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Cenografia de
Paraíso Zona Norte
e de outros
Nelsons
José Carlos Serroni
Para citar este artigo:
SERRONI, José Carlos. Cenografia de
Paraíso Zona
Norte
e de outros Nelsons.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 49,
dez. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0301
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e de outros Nelsons
José Carlos Serroni
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
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Cenografia de
Paraíso Zona Norte
e de outros Nelsons1
José Carlos Serroni2
Resumo
J. C. Serroni adentrou o universo do dramaturgo Nelson Rodrigues desde que começou sua
trajetória como cenógrafo, ainda nos tempos dos teleteatros da TV Cultura. Ao lado do diretor
Antunes Filho, do CPT (Centro de Pesquisa Teatral) do Serviço Social do Comércio (Sesc-SP),
Serroni encarou a montagem de vários textos rodrigueanos, em espírito de pesquisa
permanente dos signos cênicos, dos materiais técnicos e das formas de produção artística.
Ao lado de Eid Ribeiro e Gabriel Villela, deu sequência ao trabalho criativo, no estudo deste
universo. Neste relato, relembra as soluções cenográficas para
Álbum de Família
,
Beijo no
Asfalto
,
Os Sete Gatinhos
,
Toda Nudez Será Castigada
e Vestido de Noiva.
Palavras-chave
: Cenografia. Nelson Rodrigues.
Paraíso Zona Norte
.
Scenography for
Paraíso Zona Norte
(Paradise North Side) and other Nelson Rodrigues’
plays
Abstract
J.C. Serroni entered the universe of the Brazilian playwright Nelson Rodrigues since he began
his career as a set designer, back in the days of TV Cultura's teletheaters. With the famous
director Antunes Filho, Serroni worked as set designer in several of Rodrigues’ plays, always
in constant research of their scenic symbols, technical materials and forms of artistic
production. Beside Eid Ribeiro and Gabriel Villela, he continued his creative work of studying
this universe. In this essay, he recalls the scenographic solutions for the plays
Álbum de
Família
(Family Album),
Toda Nudez Será Castigada
(All Nudity Shall Be Punished),
Beijo no
Asfalto
(The Deceased Woman),
Os Sete Gatinhos
(The Seven Kittens) and
Vestido de Noiva
(Wedding Dress).
Keywords
: Scenography. Nelson Rodrigues.
Paraíso Zona Norte
(Paradise North Side).
Escenografía de
Paraíso Zona Norte
y de otros Nelsons
Resumen
J. C. Serroni se sumergió en el universo del dramaturgo Nelson Rodrigues desde que
comenzó su trayectoria como escenógrafo, aun en los tiempos de los teleteatros de la TV
Cultura. Al lado del director Antunes Filho, del CPT (Centro de Pesquisa Teatral) del Servicio
Social del Comercio (Sesc-SP), Serroni encaró el montaje de varios textos rodrigueanos, con
el espíritu de investigación permanente de los signos escénicos, de los materiales técnicos
y de las formas de producción artística. Al lado de Eid Ribeiro y Gabriel Villela, continuó con
su trabajo creativo, en el estudio de este universo. En este relato, recuerda las soluciones
escenográficas para
Álbum de Família
,
Beijo no Asfalto
(Beso en el asfalto),
Os Sete Gatinhos
(Los siete gatitos),
Toda Nudez Será Castigada
(Toda Desnudez Será Castigada) y
Vestido de
Noiva
(Vestido de novia).
Palabras clave
: Escenografía. Nelson Rodrigues.
Paraíso Zona Norte.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por via Lisbôa, graduada em Artes Cênicas pela ECA-
USP e por Paulo Marquezini, graduado em Letras-Linguística na Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
2 Cenógrafo. Arquiteto teatral e cenógrafo de destacados méritos, internacionalmente reconhecido, ex-
colaborador do Centro de Pesquisas Teatrais (CPT) de Antunes Filho. Criador do Espaço Cenográfico, escola
livre de cenografia. Respeitado pesquisador e curador de exposições referentes. jcserroni@gmail.com
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Fiz, com Antunes Filho, 34 anos, o espetáculo
Paraíso Zona Norte
, cuja
estreia foi no Teatro do Sesc Anchieta em São Paulo, em 1989. Convidado a relatar
essa minha experiência, e outras, de longa data, relacionadas a Nelson Rodrigues,
precisei recorrer às duas pastas do meu arquivo documental de espetáculos. Ao
abri-las, revi o vasto material dos cinco anos de existência da peça e, de cara, me
deparo com um número da revista Folhetim, da Companhia do Pequeno Gesto,
editada no ano 2000, para a qual também escrevi um artigo sobre o espetáculo. E
tomo a liberdade, para esse relato, de usar uma variação do mesmo título que dei
ao texto daquela ocasião: “A Cenografia de Paraíso Zona Norte, Toda Nudez e
Outros Nelsons”. No artigo da
Folhetim
, abordei, além de
Paraíso
[…], outros dois
espetáculos um deles também dirigido por Antunes, em Nova York (
Nelson 2
Rodrigues
; composto de
Álbum de Família
e
Toda Nudez Será Castigada
), e um
outro espetáculo realizado em Caracas, este dirigido por Eid Ribeiro (o mesmo
Toda Nudez[…], em 1994). Agora, incluo a minha experiência com Gabriel Villela,
para uma encenação de
Vestido de Noiva
, do mesmo Nelson Rodrigues, espetáculo
realizado em 2009, no Teatro Vivo, em São Paulo.
Espetáculo
Paraíso Zona Norte
, com cenografia de J.C. Serroni. Foto: Emidio Luisi
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Espetáculo
Nelson 2 Rodrigues
em N.Y., com cenografia de J.C. Serroni. Foto: J.C. Serroni
Espetáculo
Vestido de Noiva
, com cenografia de J.C. Serroni. Foto: João Caldas
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Detalhe da maquete de J. C. Serroni para
Toda Nudez Será Castigada
. Foto: J. C. Serroni
Antes de entrar com mais profundidade nos espetáculos mencionados, relato
a minha proximidade com o universo rodrigueano, desde os tempos em que
iniciava a minha trajetória como cenógrafo, no envolvimento com o teatro.
Era o ano de 1976 e eu fazia teatro amador, mas cursando a faculdade de
arquitetura, quando fui ao RJ fazer uma visita a um irmão e vejo um anúncio de
um espetáculo no Teatro Nelson Rodrigues. Fiquei curioso, pois tinha lido alguma
coisa sobre a peça, na minha cidade, anos antes, quando Ziembinski esteve por lá
como diretor e ator, e numa matéria de jornal. Pois o espetáculo era justamente
Vestido de Noiva
e saí de maravilhado com a remontagem que conservava,
ainda, praticamente a mesma cenografia.
Um ano depois, comecei a trabalhar na TV Cultura de São Paulo, onde conheci
Antunes Filho e pude acompanhar alguns momentos da gravação do teleteatro
Vestido de Noiva
, no lindo casarão da FAU Maranhão. Semanas depois, pude ver o
teleteatro editado, na TV. De novo, encantei-me com a linguagem de atmosfera
cinzenta e com a belíssima iluminação de Carlos Travaglia, o iluminador preferido
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por Antunes, nos tempos de TV Cultura.
Vi outros espetáculos de Nelson, especialmente em festivais de teatro, e uma
adaptação para a dança, com o grupo Delta, de Londrina, chamou-me muita
atenção, usando preto e branco, e algumas pinceladas de vermelho, como escolha
cromática.
Em 1979, eu havia feito vários teleteatros e Antunes então me convida a
ver ensaios de uma nova peça sob sua direção. Era
Macunaíma
, a emblemática
adaptação da obra de Mário de Andrade, que estrearia no Theatro Studio São
Pedro. Em 1981, novamente acompanho alguns ensaios. Dessa vez, o diretor
Antunes Filho, tendo recebido, por carta, os direitos para mergulhar na obra do
dramaturgo Nelson Rodrigues, montava
O Eterno Retorno
. “Espero que saia uma
obra-prima irretocável”, disse o dramaturgo. Na minha opinião e na de milhares
de outras pessoas — saiu!
Nesse momento, eu estava bastante inteirado da obra do grande Nelson
Rodrigues, lido vários de seus textos, artigos, programas de espetáculos, além de
ter ficado fascinado com a leitura feita por Antunes. Quatro textos numa
montagem:
Álbum de Família
,
Beijo no Asfalto
,
Os Sete Gatinhos
e
Toda Nudez
Será Castigada
. Como disse Sábato Magaldi, no programa da peça,
a criação experimental de Antunes Filho mudou de vez o modo de
encenar as peças do autor. Ele descarnou a superfície das comédias de
costumes rótulo facilmente colado às histórias de Nelson Rodrigues
desde os anos de 1940, mesmo quando o próprio autor percebia suas
17 peças como psicológicas, trágicas ou míticas.
Em 1987, com dez anos de estrada como profissional na cenografia, fui à
Praga, na minha primeira incursão na “Quadrienal de Cenografia, Figurinos,
Arquitetura Teatral e Escolas de Cenografia”. Ao voltar, encantado com tudo o que
havia visto por mas um pouco desanimado com a nossa situação teatral —,
fui convidado por Antunes para integrar o CPT (Centro de Pesquisa Teatral) do
Sesc, por ele dirigido. Encontrei-me com ele, numa tarde, no sétimo andar do
Sesc Consolação, onde funcionava o CPT, e contei do momento pelo qual passava;
um pouco cansado com o teatro imediatista que vinha fazendo, sem muito tempo
para a pesquisa e experimentação, com a descontinuidade de projetos, a carência
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na formação, na mão de obra técnica etc. e ouço dele, então: “Serroni, vem pra cá.
Aqui é o lugar de muita coisa que você não está encontrando fora. Faça daqui
seu laboratório de pesquisa”.
Não pensei duas vezes e, na semana seguinte, estava lá. estava em
processo
A hora e a vez de Augusto Matraga
, que acompanhei de perto. Em
seguida, veio
Xica da Silva
e, nesse momento, havia criado um Núcleo de
Cenografia, acompanhado de um curso. Foi mais de um ano de processo.
Estreamos. Depois de alguns meses, fomos convidados a fazer o espetáculo em
Seul, durante as Olimpíadas e, depois, Japão o que foi, para mim, uma
experiência transformadora. Eu me lembro que Antunes não ficou plenamente
satisfeito com o resultado desse espetáculo e, voltando, recolheu-se por meses,
sem dar pistas do que faria, na sequência.
Continuei lá, na pesquisa, tocando o curso. Sempre com quinze aprendizes,
sempre pensando na cenografia.
Até que, um dia, ele me chama na sua sala e diz: “Vamos começar a pensar
em um novo espetáculo? Mas pra valer? Entrando de cabeça? Vou voltar ao
universo de Nelson Rodrigues e fazer
A Falecida
e
Os Sete Gatinhos
. Os dois textos
num espetáculo só, num mesmo espaço. E vai se chamar
Paraíso Zona Norte
”.
Isso tudo numa sexta-feira.
Fui para casa e, claro, fiquei estimulado pela ideia. me tornara
incondicional da dramaturgia de Nelson e me senti um privilegiado de poder
compartilhar essa aventura com aquele que eu mais admirava nas leituras de
Nelson, que dizia a todo tempo que pra encenar Nelson Rodrigues se formos
“para um outro lado que não o da realidade”; que é preciso ver a ação interna e
não o que está fora; que suas peças são mitos, e que precisamos “atingir o
inconsciente coletivo”.
Na segunda, estava eu, para nosso primeiro encontro. Ao começarmos a
conversar, indaguei Antunes: “por que
Paraíso Zona Norte
?”. E então ele me
esclarece, perguntando se eu conhecia bem o Rio de Janeiro, lembrando a zona
norte de como um lugar meio periférico, como tantos outros existentes em
nosso país e no mundo. Iríamos em busca de um paraíso perdido no tempo, ali
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pelos lados da zona norte carioca. Entendi por que a existência miserável de
Zulmira (uma mulher que esperava encontrar, na morte, a sua realização pessoal)
e a de Noronha, esposa e filhas (que se prostituíam, na infrutífera tentativa de
preservar a virgindade da caçula), eram marcadas pela ânsia de eternidade e de
superação dos limites impostos por uma sociedade injusta não em busca da
ascensão material, mas da purificação espiritual. Era essa a batalha desses seres.
Entendi que o palco seria um lugar de indissolúveis relações arquetípicas.
Foi no convívio anterior com esse diretor que encontrei alguns caminhos para
iniciar minha jornada, em busca do espaço desejado por ele. Busquei entender
questões ligadas às ondas relacionadas à nova física e rever alguns conceitos do
taoísmo. Sim, pois Antunes queria um espaço em que os atores flutuassem em
cena. Veja só! Apenas isso!
Não estranhei e, mais tarde, entendi por que, em
Nova Velha Estória
, ele
pediria um espaço que fizesse com que o público sonhasse acordado. E me ajudou
muito entender por que Antunes estava trabalhando com os atores um exercício
denominado de “bolha”, uma derivação de outro exercício, “o desequilíbrio”, no
qual ele fazia os atores darem voltas e voltas no palco, por horas, no sentido de
descobrirem seus corpos. Ele achava que o ator deveria estar em completo
desequilíbrio, com o corpo solto; e, a partir daí, começar a entendê-lo.
Então, desequilíbrio, bolha e flutuação começaram a dar pistas para sugerir
o espaço para o trabalho de criação dos atores.
Dessa forma, o embrião da cenografia de
Paraíso Zona Norte
nasceu do
próprio diretor, cuja intenção era usar a cenografia para sublinhar a interpretação
expressionista que os textos de Nelson Rodrigues suscitam. Até então, desde
Macunaíma, Antunes optava pelo palco nu, sem uma cenografia implantada. Desde
que cheguei, iniciamos uma tentativa de delimitar o espaço, mas sem engessá-lo.
Em
Xica da Silva
, optei por sugerir um fundo e pernas laterais, feitos com fios
penetráveis permitindo que os atores os atravessassem. Em
Paraíso
[…],
avançamos nessa delimitação: criamos uma cenografia de contorno, toda
transparente, com grandes portas, o que permitia, a todo tempo, que se visse o
dentro e o fora. Isso com uma interferência fundamental da luz esmaecida, criada
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por Max Keller, um dos mais importantes designers de luz do mundo.
Posso citar, aqui, um pequeno texto escrito por Eva Spitz (1990) em artigo
para o
Jornal do Bra
sil, à época, intitulado “A Bolha Expressionista”, que traduz
muito bem o que intencionávamos:
J.C. Serroni construiu um espaço penetrávelpara Paraíso Zona Norte.
Para ele o importante era criar um espaço, não sobre o texto de Nelson
Rodrigues, mas sobre a concepção de Antunes. O diretor queria que os
atores flutuassem em cena, num cenário que fosse uma bolha, em que
os atores deslizassem com a sensação de ter como limite uma
membrana.
Saí em busca de formas côncavas, que lembrassem bolhas, ou redomas de
vidro, e vidraças que sugerissem a vida abafada e artificial das estufas e
orquidários, onde a luz e o ar são interceptados (por mais que a transparência e a
claridade se acentuem). A ideia também era a de que, ali, havia pousado uma nave
perdida no tempo, que mal tocava o piso, como se estivesse flutuando. Essa
nave/útero/ovo também revelava identificação com o desenho das antigas
estações de trem desativadas, cujos trilhos não levam mais a lugar nenhum e, por
isso, impõem a marca do não tempo e da imobilidade.
Antunes sempre quis lançar os personagens rodrigueanos para além do
realismo, esperando que eles refletissem, irônica e simbolicamente, o absurdo dos
desejos e da vida. Essas e outras anotações, desde o início, mostravam que, para
a cenografia, seria importante buscar materiais como vidro, acrílico, acetatos;
materiais com transparências, mas que, ao mesmo tempo, emparedam; sempre
aplicados em estruturas metálicas de desenhos retorcidos, que pudessem traduzir
a alienação, o isolamento e o doloroso convívio com as próprias emoções.
A pesquisa se iniciou pela arquitetura; desde o Palácio de Cristal, em
Versalhes, passando pela Estação da Luz, pelas entradas seculares dos metrôs
londrinos ou de Nova York, pelo Museu D’Orsay de Paris, sem deixar também de
visitar orquidários e estações férreas da antiga Europa; debruçando-me, ainda, na
arquitetura
art nouveau
, da qual sabíamos ser, Nelson Rodrigues, um grande
admirador. Um apanhado de tudo isso resultou em estudos de três maquetes
exigindo uma quarta e definitiva versão. Muitos desenhos e cálculos foram
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elaborados, não pensando na estrutura (que era bastante complexa, que
deveria suportar um teto), mas também no transporte em viagens, muitas vezes,
feitas de avião (o que pedia uma cenografia bastante modular).
Maquete de J. C. Serroni para o espetáculo
Paraíso Zona Norte
. Foto: J. C. Serroni
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Croquis de J. C. Serroni para o espetáculo
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Paraíso Zona Norte
rendeu muitos estudos, artigos e até teses de mestrado.
É um espetáculo de dimensões épicas, o que, inclusive, foi acentuado pela trilha
sonora saída de filmes hollywoodianos. Mas finalizaria esse meu relato sobre
Paraíso
[…], citando trechos de um artigo do crítico Alberto Guzik (1989, p. 14), que
acompanhou de perto o processo e a finalização desse espetáculo, e que traduz
bem aquilo que resume o universo dos textos de Nelson Rodrigues, que o próprio
autor caracterizava como “um pântano difícil de atravessar”.
O mundo de A Falecida e Os Sete Gatinhos, as duas peças que compõem
Paraíso Zona Norte, fala de amor, sexo, traições e religiosidade e de
homens sujeitos a impulsos degradantes. Nesse universo não se um
sentimento sublime ou grandioso. Humilhação e mesquinharia são as
denominações comuns das personagens e tramas rodrigueanas. […] Num
duelar de luzes e sombras emerge o retrato da horrenda mediocridade
do homem. Não da raça humana em geral ou do homem como ser
abstrato, mas do nosso vizinho, ou de nós mesmos. Teria sido muito difícil
enfrentar essas situações não fosse a leitura surpreendente, poética,
mítica e de enorme rigor estético imprimidas por Antunes Filho para esse
seu mais que Paraíso Zona Norte.
Agora passo a comentar a minha experiência num outro espetáculo de Nelson
Rodrigues, também dirigido por Antunes: a junção de dois textos,
Álbum de Família
e
Toda Nudez Será Castigada
; textos já encenados por ele e que, juntos, passaram
a se chamar Nelson 2 Rodrigues.
Ainda no início da temporada de
Paraíso Zona Norte
, em São Paulo, Antunes
recebe a visita de dois produtores, um cubano (Roberto Zaldívar) e um
estadunidense (Robert Weber Federico), proprietários do Teatro de Repertório
Espanhol de Nova York, que vieram com a incumbência de levar Antunes para uma
direção de espetáculo lá. Tinham visto
Paraíso Zona Norte
e saíram encantados e
mais animados de ter o diretor com eles, em Nova York. Antunes, desde 1979,
quando fez
Macunaíma
, não tinha ainda se aventurado em outra direção fora do
Grupo Teatro Macunaíma — agora alocado no CPT.
Mais uma vez, recebi o convite para acompanhá-lo nessa aventura. Aventura,
sim, mas em um universo por ele dominado pois definiu-se montar Nelson
Rodrigues com a companhia de lá. E lá fomos nós, meses depois, acompanhados
por Rita Martins, atriz de
Paraíso Zona Norte
, que seria assistente de Antunes (por
conhecer profundamente o método de atuação do diretor). Ritinha tinha feito
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Cilene, em
Paraíso Zona Norte
, de forma magistral.
Como tínhamos acabado de fazer Paraíso, não foi difícil dar continuidade à
atmosfera conseguida através do fechamento transparente em vidro, que
acabamos adotando para Nelson 2[…], e que, novamente, fechava a cena, mas não
isolava os atores. O espaço era bem menor do que o teatro Anchieta, onde sempre
trabalhamos: 8 metros de largura por 12 metros de profundidade e 6 metros de
altura; com uma grande escada ao fundo e visão totalmente frontal. Um teatro
íntimo, antigo, em leve decadência e muito propício, a meu ver, para receber uma
encenação de Nelson Rodrigues, na montagem em preto e branco definida por
Antunes.
Sentado na plateia, percebi que precisaria tirar partido daquele espaço. A
grande escada, ao fundo, seria um elemento fundamental como a grande entrada,
na casa da fazenda, de
Álbum de Família
; assim como a escada por onde Geni
desce, no seu casamento, em
Toda Nudez […]
. Um grande painel emparedado, ao
fundo, em estrutura metálica e vidro jateado, separava a área do espaço em dois
planos. A luz revelava (ou não) as entradas, por aquela escada. Instalei uma espécie
de bambolina, ao alto da boca de cena, acompanhando o painel de fundo, em
inspiração
art nouveau
, que criava mais profundidade ao teatro. De resto, quinze
cadeiras, duas mesas e duas urnas funerárias serviam, economicamente, para
Antunes criar toda a movimentação cênica.
Novamente optamos por transformar o espaço num grande salão
envidraçado, de fora do qual, através das superfícies transparentes, podia se
observar o embate dos personagens: arquétipos que adentram os subterrâneos e
transitam por um espaço sem tempo, compondo imagens grotescas e uma
deslumbrante representação do cotidiano.
Não cheguei a comentar, no meu relato de
Paraíso
, a criação dos figurinos em
cores esmaecidas pelo tempo, saídas de um baú imaginário de tempos muito
remotos, de figuras que coreografavam o espaço. Mas comento, agora, que os
figurinos elegantes em
Álbum de Família
, todos em preto e branco, e os de
Toda
Nudez[…]
criando uma atmosfera erótica e decadente, recebeu, dos críticos
teatrais de Nova York, o prêmio de melhor indumentária teatral do ano de 1988.
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Maquete de J. C. Serroni para o espetáculo
Vestido de Noiva
. Foto: J. C. Serroni
Maquete de J. C. Serroni para o espetáculo
Toda Nudez Será Castigada
. Foto: J. C. Serroni
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Maquete de J.C. Serroni para
Paraíso Zona Norte
. Foto: J. C. Serroni
Maquete de J. C. Serroni para
Nelson 2 Rodrigues
. Foto: J. C. Serroni
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Gostaria de registrar, aqui, ainda que não com a mesma intensidade de
Paraíso Zona Norte
e de
Nelson 2 Rodrigues
, a minha atuação com dois outros
cenógrafos, que não Antunes Filho: Eid Ribeiro e Gabriel Villela, ambos de Minas
Gerais.
Com ambos tentei manter os caminhos trilhados com Antunes, com suas
devidas adaptações. Com Eid, muito mais próximo, que o espetáculo por ele
dirigido aconteceu em momento posterior recente às montagens de
Paraíso
e
Nelson 2[…].
Com Gabriel, anos à frente, numa releitura mais desconstruída
dessas mesmas linguagens anteriores.
A montagem feita com Eid Ribeiro foi realizada em Caracas, a partir de um
convênio firmado entre Brasil e Venezuela, a ser encenada no Teatro Del Paraíso,
com equipe de criação brasileira, e atores e produção venezuelanas. O ano era
1994. Dando sequência à pesquisa iniciada em
Paraíso[…]
, e continuada em
Nelson 2 Rodrigues
, sugeri que trabalhássemos também com uma estrutura
armada em ferro e vidro. A produção apoiou totalmente porque, naquela ocasião,
o ferro era muito acessível, sendo mais barato que a madeira. Trabalhamos com
o piso nu do palco, levantando duas grandes paredes que vinham dos extremos
da boca de cena e se encontravam ao fundo, em ângulo reto, onde um pequeno
palquinho elevado continha um piano de cauda, ocupado por músico que
acompanhava a peça.
Olhando da plateia, o paredão do lado esquerdo continha uma caixilharia
bastante vazada, composta de porta e grandes janelões, num estilo misto de art
nouveau e clássico, lembrando igrejas. Isso trazia o culto à religiosidade católica,
presente exageradamente na família de Herculano. Nesse lado, todas as entradas
e saídas se davam pelo nível do palco. a parede do lado direito, também com
uma altura de 7 metros, foi desenhada com uma caixilharia toda ortogonal, mais
atual, trazendo, do lado de fora, uma grande escadaria metálica que descia de 3
metros até o chão (e por onde se viam as entradas e saídas dos atores, através
dos vidros). A ideia é que os personagens, vindos do nível das ruas da cidade
descessem para um submundo, que Geni habitava.
Na verdade, estaríamos vendo as fachadas por dentro, de costas para o
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mundo exterior. No lado esquerdo, víamos ao alto uma grande cruz; e, do lado
direito, um grande luminoso de neon vermelho, com os dizeres “Tia Laura”, para
indicar o bordel onde vivia Geni. Um grande lustre foi colocado no centro, que
sempre se acendia quando tínhamos as cenas de casa de Herculano, onde ele
contracenava com seu filho Serginho e suas tias, e com seu irmão Patrício.
As cenas de rua eram feitas no proscênio, recortadas por corredores de luz.
E havia a cama redonda giratória, uma cama hospitalar e uma mesa de delegado,
que entravam sobre rodas, nos momentos exigidos pelas cenas. O espetáculo todo
era feito com uma luz de penumbra, com um fog constante, criando uma
atmosfera de ações escondidas, mas sempre com alguém espiando. As paredes
parecem ter olhos. A nudez não se esconde.
Escolhi um quarto projeto que fiz para texto de Nelson Rodrigues, uma
montagem de
Vestido de Noiva
que Gabriel Villela levou no Teatro Vivo em 2009.
As possibilidades dessa montagem passaram, anteriormente, pelo teatro do Sesc
Vila Mariana, que teria um determinado porte e, depois, pela Sala São Luiz,
pertencente ao Teatro de Cultura Artística, com espaço bem menor, mas que
criaria muitas possibilidades, tendo um grande elevador ao centro do palco. Por
inúmeras razões burocráticas, e de produção, acabou acampando no Teatro Vivo,
que exigiu um terceiro pensamento sobre a encenação.
Fosse a qualquer um desses teatros, a intenção do diretor Gabriel Villela seria
quebrar com a separação do espaço nos três planos definidos na antológica
montagem de 1943, dirigida pelo polonês Ziembinski, com cenografia de Tomás
Santa Rosa.
Confesso que, de início, fiquei bastante inseguro com a opção de desconstruir
uma leitura tão inovadora para a época. Aos poucos, nas conversas com Gabriel,
e no desenvolvimento dos ensaios, fui me convencendo dessa nova leitura. E que
espaço único seria esse, para abrigar a sugestão de um jazigo de morte de Alaíde,
que sofre o acidente no início da peça, e um altar festivo de núpcias, que define o
nome da peça? Missão difícil, a minha, que tinha trabalhado, até então, com o fora
e o dentro; com transparências, onde toda nudez poderia ser vista…
Agora o espaço estaria fechado, com tudo acontecendo ao mesmo tempo e
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no mesmo lugar. Optei, então, junto com Gabriel Villela, em fechar um espaço
espelhado, onde não veríamos a superposição de planos, mas teríamos, sim, o
rebatimento desses planos para a cena. Assim, tanto piso como paredes foram
construídos com chapas de acrílico fumê, negro, criando uma volumetria em
degraus e planos, onde todos os espaços seriam indicados com falas, objetos ou
mudanças de luz.
Usamos 62 chapas desse acrílico, numa estrutura limpa, rígida com um
grande pórtico fúnebre, por onde aconteciam todas as entradas para essa sinistra
festa nupcial, concebida pelo diretor Gabriel Villela impondo, ao espetáculo,
uma carnavalização da morte.
Ao findar esse relato, comentando aspectos relacionados com esses quatro
espetáculos, fico pensando na época em que foram criados. Cada um deles,
separadamente, não me dava a dimensão daquilo que tinha sido feito. Relendo
agora esse apanhado de reflexões é que acabo tendo a visão do quanto Nelson
Rodrigues é importante, e de como diretores como esses com quem trabalhei
contribuíram para o engrandecimento de sua obra. Sinto, nesse momento, não
poder, por exemplo, ter a oportunidade de experimentar novas aventuras com
Antunes Filho; mas, certamente, espero outras empreitadas com Marco Antônio
Brás, Gabriel Villela e Eid Ribeiro, entusiastas da arte desse inigualável gênio da
dramaturgia brasileira.
Referências
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Internacional de São Paulo]. 1984. Artigo publicado na Seção Teatro, do catálogo
da exposição em São Paulo-SP.
Recebido em: 21/09/2023
Aprovado em: 07/11/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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