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Uma Serpente operística – a encenação da última
peça de Nelson Rodrigues
Andréa Renck
Para citar este artigo:
RENCK, Andréa. Uma Serpente operística a encenação
da última peça de Nelson Rodrigues.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4,
n. 49, dez. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0110
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Uma Serpente operística a encenação da última peça de Nelson Rodrigues
Andrea Renck
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-26, dez. 2023
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Uma Serpente operística – a encenação da última peça de Nelson Rodrigues1
Andréa Renck2
Resumo
Este artigo enfoca a primeira encenação de
A Serpente
, última peça de Nelson
Rodrigues, realizada no Rio de Janeiro em 1980, com direção e cenografia de Marcos
Flaksman. A partir de pesquisa sobre a montagem e de entrevista realizada com o
diretor, foram compilados dados historiográficos e analisadas a recepção crítica da
peça, a atuação do dramaturgo na montagem do texto e as opções cênicas e
estéticas do encenador, abordando por fim o processo de criação da espacialidade
para aquela cena.
Palavras-chave
: A Serpente. Cenografia. Espaço cênico. Nelson Rodrigues. Marcos
Flaksman.
A Lyrical Serpent – The staging of Nelson Rodrigues’ last Play
Abstract
This article focuses on the first theatrical production of
The Serpent
, Nelson
Rodrigues’ last play, performed in Rio de Janeiro in 1980, directed and set designed
by Marcos Flaksman. Based on research into the production and an interview with
the director, historiographical data was compiled and the critical reception of the
play, the playwright’s role in the production and the director’s scenic and aesthetic
choices were analyzed, finally dealing with the process of creating spatiality for this
scene.
Keywords
: The Serpent. Scenic design. Scenic space. Nelson Rodrigues. Marcos
Flaksman.
Una Serpiente operística La escenificación de la última obra de Nelson Rodrigues
Resumen
Este artículo se centra en la primera puesta en escena de
La Serpiente
, la última
obra de Nelson Rodrigues, representada en Rio de Janeiro em 1980, con dirección y
escenografía de Marcos Flaksman. A partir de una investigación sobre el producción
y una entrevista al director, se recopilaron dados historiográficos y se analizó la
recepción crítica de la obra, el papel del dramaturgo em la montaje y las opciones
escénicas y estéticas del director, tratando finalmente acerca del proceso de
creación de espacialidad para esta escena.
Palabras-clave
: La Serpiente. Escenografía. Espacio escénico. Nelson Rodrigues.
Marcos Flaksman.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Paulo Telles Ferreira, Mestre em Literatura
Brasileira pela PUC-Rio, Bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
pauloffred@yahoo.com.br
2 Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestre em Teatro
pela UNIRIO. Bacharel em Artes Cênicas - com Habilitação em Cenografia - pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Professora adjunta dos Cursos de Artes Cênicas da Escola de Belas Artes da UFRJ.
andrearenck@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1492949128984936 https://orcid.org/0000-0002-5014-1974
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Uma Serpente operística3 A encenação da última peça de Nelson
Rodrigues
A partir do desejo, o ser humano é capaz de tudo.
Até de crueldade.
Porque todo o desejo é cruel
(Nelson Rodrigues,1980)4.
Muito foi dito e escrito sobre Nelson Rodrigues em vida e nos quarenta e
três anos que se seguiram à sua morte. Como contribuir com algo novo sobre a
sua obra depois de tantas pesquisas e tanto material significativo publicado? No
campo da visualidade da cena, o autor vem sendo analisado desde sua segunda
peça,
Vestido de noiva
, considerada por muitos o marco do teatro moderno
brasileiro. Partindo dessa premissa, propomos investigar5 uma obra que ainda não
foi totalmente explorada, no que tange à sua primeira montagem cênica:
A
Serpente
, de 1978, a última peça de Nelson. A encenação possui especificidades
de interesse para o desenvolvimento de um estudo, pois o texto foi levado à cena
contando com a participação ativa do dramaturgo no processo de montagem, e o
diretor, Marcos Flaksman, atuou também como diretor de arte e coprodutor da
peça, permitindo que imprimisse com amplitude sua visão particular como criador
cênico.
Desde a juventude, Nelson Rodrigues sonhava em escrever uma obra
intitulada
A Serpente
: a ideia surgiu bem antes dele escrever seu primeiro texto
teatral,
A mulher sem pecado
, aos vinte e nove anos. Fascinado por pactos de
morte desde a infância, quando, morando em Aldeia Campista, soube de casos de
amor que envolviam suicídios, o autor reelaborou esse tema naquela que seria a
sua peça derradeira. A serpente do título simboliza a própria tentação que se abate
sobre os personagens, definindo um fatídico destino àqueles que realizam seus
desejos proibidos.
Classificada por Sábato Magaldi como uma tragédia carioca,
A Serpente
foi a
3 Título de reportagem de Flávio Marinho para o jornal
O Globo
, 07 mar. 1980.
4 Nelson Rodrigues em entrevista ao jornal
O Globo
, 11 fev. 1980.
5 Para a escrita deste artigo, tive acesso ao acervo pessoal de Marcos Flaksman e à pesquisa hemereográfica
sobre a montagem de estreia de
A Serpente
, realizada pelos professores Lídia Kosovski (UNIRIO) e Henrique
Gusmão (UFRJ), que me foi gentilmente cedida.
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17ª peça teatral escrita por Nelson Rodrigues. O texto é uma tragédia familiar que
evidencia o triângulo amoroso estabelecido entre duas irmãs e o marido de uma
delas. O fim do casamento de uma das irmãs é o ponto de partida para a trama
densa e concentrada que resultará em um desfecho trágico. Para Flaksman,
A
Serpente
“pode ser vista como um desdobramento de
A vida como ela é
ou de
uma notícia de crime passional”6: é uma peça sobre a morte cujos personagens
são pessoas comuns7.
Os temas amor e morte são recorrentes na dramaturgia rodriguiana - o
próprio autor afirmou que seus textos dramáticos eram “uma meditação sobre o
amor e a morte”8. Em reportagem sobre
A Serpente
, Nelson reafirma a presença
dessa temática, sublinhando a violência presente na trama:
Esta é, de fato, a minha obra mais brutal e, ao mesmo tempo, a mais
afrodisíaca. Tudo se desenvolve num clima de amor absoluto que busca
a consagração da morte. Quem morre por um ser amado leva consigo o
consolo da eternidade de seu sentimento. Mas, francamente, eu não tive
a preocupação de fazer nada chocante. A vida em si é que é chocante. O
homem é chocante (Teixeira, 1979).
Diferentemente de algumas peças do autor,
A Serpente
não foi escrita por
encomenda. Nelson dedicou um longo período entre a concepção e a execução
dessa obra, propiciado em parte por não haver nenhum tipo de pressão externa
para a sua finalização. O texto, escrito em 1978, passou por revisões em 1979, e
sua versão final foi publicada em março de 1980, junto com a temporada da
montagem teatral9.
Em entrevistas realizadas à época da primeira montagem, o dramaturgo
expressou sua vontade de trabalhar o texto teatral eliminando o supérfluo e
manifestou a satisfação com o resultado da última peça, por ela possuir ação e
diálogos precisos.
6 Rios Neto, 1980.
7 Flaksman em entrevista concedida à Andréa Renck, 18 set. 2023.
8 A frase está na sua crônica Memórias, 1967, capítulo XXII, p.25; e foi o título de uma entrevista de Nelson
Rodrigues concedida a Margarida Autran, publicada no jornal O Globo em 26 jun. 1973. Fonte: Magaldi, 1992,
p.28.
9 A primeira publicação foi pela Editora Nova Fronteira. Além das livrarias, exemplares do livro foram vendidos
em um balcão no próprio Teatro do BNH, com autógrafos do autor.
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Em
A Serpente
, o que me parece ser a sua grande virtude é a
concentração extrema do diálogo. Eu não tenho, a meu ver, nenhuma
gordura. Tudo é músculo puro. Puro e vibrante. Agora, não nem mesmo
um “boa noite”, um “olá”. O sujeito diz o seu verbo e vive o seu verbo.
Ele é ação (Araújo, 1980).
Nelson Rodrigues chamou a atenção para a concisão do texto, definindo-o
como “uma peça de um único ato de grande concentração emocional”10, onde não
nenhuma fala que não seja fundamental para a ação. Marcos Flaksman
afirmou11 que a dramaturgia de
A Serpente
apresenta uma síntese de linguagem:
os personagens possuem a essência, todos os excessos foram filtrados. Essa
concisão resultou em um texto curto, se comparado aos demais escritos por
Nelson, e também na sua única peça escrita em um ato.
Para Antonio Guedes, na dramaturgia de
A Serpente
, Nelson Rodrigues parece
querer mostrar a estrutura de construção da peça. Indicada como uma qualidade
do texto, essa “dramaturgia seca”
[...] aponta para uma escrita dramática que, sem abandonar sua base
trágica, começa a experimentar um tempo e uma velocidade próprios da
época em que foi escrita (1978), quando a televisão é uma referência
cultural e o cinema é uma realidade, inclusive em relação à obra de
Nelson (Guedes, 2017, p. 32).
Guedes (2010) constata que os diálogos curtos, reforçados pelo fato de não
haver tramas paralelas à ação principal, imprimem velocidade ao fluxo da peça.
A sinopse divulgada para a imprensa informava que
Em um ato, a peça é uma crônica de amor entre duas irmãs num
momento de grande crise na vida de uma delas. O desenrolar dos
acontecimentos é rápido e leva a um desfecho trágico. E o
pequeno/grande mundo destas duas moças vai colorir de sangue as
manchetes dos jornais populares.
A trama de
A Serpente
conta a estória de duas irmãs que possuem uma
relação muito próxima e acabam disputando o amor do mesmo homem. As duas
se casaram no mesmo dia, hora e local e foram morar com os maridos no mesmo
apartamento, doado pelo pai delas. Uma das irmãs, Guida, tem um relacionamento
10 Flavio Marinho, 28 jan. 1980.
11 Flaksman em entrevista concedida à Andréa Renck, 18 set. 2023.
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feliz, enquanto a outra, Lígia, continua virgem um ano após se casar. Com o fim do
casamento, Lígia ameaça se matar. Guida, para salvá-la, oferece à irmã uma noite
de sexo com o seu marido, Paulo. A partir dessa noite, estabelece-se um triângulo
amoroso que irá resultar no assassinato de Guida, empurrada da janela pelo
próprio marido, ato que não será perdoado por Lígia.
Além dos dois casais, a trama envolve a empregada doméstica que trabalha
no apartamento. Definida pelo autor como uma lavadeira, esse personagem tem
a função, em uma cena rápida, de despertar o desejo de Décio, o marido de Lígia.
Impotente com a própria esposa, Décio, ao ver a empregada, sente uma atração
imediata. O personagem da lavadeira não tem um nome próprio, é uma mulher
descrita no texto como “uma crioula de ventas triunfais”. Para Sábato Magaldi
(1992), esse personagem funciona na trama apenas como um objeto sexual.
A Crioula personifica uma das obsessões de Nelson Rodrigues: a imagem da
mulher negra e sensual que desperta um desejo proibido. A empregada doméstica
é uma personagem recorrente nas tragédias rodriguianas. Souza e Figueiredo
(2021) identificam que o autor apresenta esse personagem de forma estereotipada,
com características físicas sexualizadas, e que a função da criada é sempre
secundária nas tramas. As autoras fazem uma crítica à forma preconceituosa com
que o dramaturgo representou a figura da empregada doméstica, afirmando que
essa representação colaborou para a sexualização do corpo negro e reforçou
conceitos estabelecidos no período da escravidão.
A Serpente
foi encenada dois anos após escrita. O texto inédito tinha
sido apresentado às atrizes Fernanda Montenegro e Dina Sfat, assim como ao
cineasta Arnaldo Jabor, mas foi Marcos Flaksman quem se interessou em levar o
texto à cena. Ele conheceu Nelson Rodrigues durante as filmagens de
Os Sete
Gatinhos
, longa metragem baseado na obra homônima do autor, dirigido por
Neville D’Almeida e lançado em abril de 1980. Flaksman, o cenógrafo do filme,
conviveu com Nelson no
set
das filmagens. Ele sabia que o dramaturgo tinha
uma peça inédita e teve acesso ao texto - que lhe foi entregue por Fernanda
Montenegro12 - na época dessas filmagens.
12 Marinho, 06 mar. 1980.
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Marcos Flaksman ficou impactado com a leitura do texto, conversou com
Nelson Rodrigues sobre sua intenção de dirigir a montagem e, com a autorização
deste, começou a estruturar a produção do projeto, no qual assumiu a direção
geral, a coprodução, a cenografia e o desenho de luz.
A Serpente
foi a segunda
direção cênica do artista13, que, no início de 1980, era reconhecido por sua premiada
atuação como cenógrafo e estava com importantes realizações em cartaz14.
Figura 1 - Sura Berditchevski, Claudio Marzo e Xuxa Lopes, em cena de
A Serpente
.
Acervo Marcos Flaksman.
13 Marcos Flaksman estreou na direção teatral em 1978 na peça
Nó cego
, de Carlos Vereza.
14 As peças
É...
de Millôr Fernandes, com direção de Paulo José, protagonizada por Fernanda Montenegro e
Fernando Torres; e
Rasga Coração
, de Oduvaldo Vianna Filho, com direção de José Renato.
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Em entrevista concedida à imprensa e publicada15 na semana de estreia da
peça, o diretor apontou as características do texto:
A Serpente
está escrita de forma magistral, seus diálogos têm a concisão
e a força que caracterizam o autor, e ela contém também um grande
achado dramático: as árias, momentos em que os personagens solam o
que vai em suas almas, dirigindo suas confidências e seus sentimentos
mais íntimos diretamente ao público. É uma peça de clímax, um clímax
que perdura por todo o desenvolvimento da ação até o desfecho.
Nelson Rodrigues indicou, nas rubricas, falas que deveriam ser ditas na boca
de cena, “como o tenor na ária”16. Algumas rubricas especificam que essas falas
devem ser ditas “aos gritos” ou “berrando”. A indicação desses monólogos foi
incorporada pelo diretor e cenógrafo, que projetou um praticável que avançava no
proscênio no qual marcou as cenas em que os atores e as atrizes deram seu texto
de forma vigorosa, com pronúncia alta e exagerada. Flaksman afirmou17 que essas
falas
[...] eram discursos pessoais, que definiam os personagens. Foi um
cuidado que o Nelson teve com a humanização dos personagens. A
impostação da voz podia ser operística, mas o tratamento [da cena] era
feito para que o público reconhecesse aquelas pessoas como pessoas
comuns, com reações absolutamente comuns.
Essa opção cênica, comparada a uma ária de teatro lírico e aos coreutas do
teatro grego, é um procedimento introduzido por Nelson Rodrigues que marca a
dramaturgia de
A Serpente
. O autor indicou, em conversa reproduzida no programa
do espetáculo, que essas declamações deveriam ser violentas, para surpreender
e agredir o público, trazendo força à encenação. Flaksman afirmou18 que Nelson
Rodrigues gostaria que os monólogos tivessem sido ainda mais exacerbados do
que foram na montagem dirigida por ele. Em críticas sobre a estreia, Michalski
identificou um “humor infiltrado em cada descabelado berro trágico”19, enquanto
Marinho e Linhares ponderaram que “os monólogos interiores, aos berros”20 ou
15 Michalski, 1980; Cambará, 1980; Rios Neto, 1980.
16 Rodrigues, 2012, p.12.
17 Flaksman em entrevista concedida à Andréa Renck, 18 set. 2023.
18 Flaksman em entrevista concedida à Andréa Renck, 18 set. 2023.
19 Michalski, 10 mar. 1980.
20 Marinho, 07 mar. 1980.
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“monólogos gritados”21 prejudicaram o ritmo do espetáculo.
Para Antonio Guedes (2007), o texto apresenta dois recursos que possibilitam
alterações no ritmo da peça, oferecendo um “respiro” ao criar um desvio em
relação à cena principal: os monólogos e as cenas de Décio e Crioula. Os encontros
dos dois personagens funcionam como uma suspensão da narrativa principal, que,
ao retornar, recebe um novo vigor. Já os monólogos são
[...] interrupções nos diálogos que artificializam a cena, possibilitando uma
leitura ambígua em relação à história: se, por um lado, esses monólogos
trazem uma urgência na revelação da história, colocando-a como foco
do recurso narrativo, por outro lado, eles chamam a atenção para o fato
de que uma história está sendo contada e, assim, sublinham o que há de
estrutural no conto (Guedes, 2007).
Segundo Guedes, essas “quebras” funcionam tanto para diminuir o ritmo
acelerado do texto, como para potencializar esse ritmo no retorno às cenas em
conjunto.
Ainda sobre a estrutura da peça, Marcos Flaksman declarou que o ato único
poderia ser considerado um “terceiro ato”22. O contexto das situações que
antecedem a ação inicial não é enfatizado: “a peça mostra os momentos
cruciais, os pontos fundamentais para o desenvolvimento do enredo”23. O diretor
percebeu, na tensão latente do texto, as possibilidades de realização das
performances dos atores e atrizes. A direção cênica foi realizada buscando
explorar a potência dramática de cada um dos intérpretes, e o espetáculo foi
apoiado na dramaturgia e no trabalho de ator.
A violência da peça, assumida por Nelson, é ressaltada por Flaksman:
A Serpente
é o texto mais violento, mais enxuto e possivelmente mais
humano de Nelson Rodrigues. Os personagens são um retrato fiel do ser
humano brasileiro, urbano, carioca. É aquele ser humano que é atingido
dentro de sua própria casa por uma tragédia fulminante. [...] É no
cotidiano que a coisa acontece [...]. (Marcos Flaksman, programa do
espetáculo, 1980).
21 Linhares, 01 jun. 1980.
22 Marinho, 06 mar. 1980.
23 Marcos Flaksman, programa do espetáculo, 1980.
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10
[...] Nesta peça, você não consegue escapar da violência. Ela retrata
aquele lado oculto das pessoas que só aparece quando todos os valores
menores são eliminados. A morte espreita os personagens todo o tempo,
e isso acaba envolvendo o espectador inteiramente (
O Globo
, 11 fev. 1980).
Mesmo sem haver nenhuma indicação da idade dos personagens no texto,
Flaksman pretendeu, desde a primeira leitura, que as protagonistas fossem
interpretadas por mulheres jovens24. Para esses papéis, convidou duas atrizes que
estavam ascendendo na carreira: Sura Berditchevsky e Xuxa Lopes. Sura integrava
o Teatro Tablado, estava atuando na telenovela
Marron Glacè
e acabara de
trabalhar no filme
Os sete gatinhos
, onde interpretou Hilda, uma das cinco filhas
do personagem Noronha. Xuxa Lopes tinha feito dois filmes e três peças de teatro25
quando entrou no elenco de
A
Serpente
. Para completar o elenco feminino, autor
e diretor entrevistaram centenas de candidatas. Ambos procuravam, para
interpretar a personagem Crioula, uma mulher negra, alta, que tivesse um corpo
exuberante e exalasse sensualidade. Foi selecionada para o papel a modelo
Yuruah26, que participava de um dos quadros do programa televisivo humorístico
de Chico Anísio.
O elenco masculino contou com o veterano Cláudio Marzo, reconhecido galã,
interpretando Paulo, e Carlos Gregório, ator com experiência em teatro, cinema e
TV, no papel de Décio. Gregório tinha participado da montagem de
Anti-Nelson
Rodrigues
e também de
A mais sólida Mansão
, peça de 1976 dirigida por Fernando
Torres na qual Flaksman participou como cenógrafo.
A cena contou ainda com a participação dos violoncelistas Luiz Fernando
Zamith e Lúcio de Souza, que se revezaram nas apresentações executando, ao
vivo, a música original composta por John Neschling. Flaksman sublinhou a
importância da música e sua execução ao vivo para imprimir o tom operístico que
concebeu para sua encenação.
Passaram-se seis anos entre a montagem de um texto novo de Nelson -
Anti-
24 Marinho, 06 mar. 1980.
25 Na montagem de
Dependências de empregada
(1976) pelo Teatro Tablado, Xuxa Lopes e Sura Berditchevski
atuaram juntas.
26 Nome artístico de Esther Maria Nogueira.
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11
Nelson Rodrigues
- e
A Serpente
. A estreia de uma peça inédita do dramaturgo foi
um acontecimento na cena teatral.
A Serpente
estreou em 06 de março de 1980
no Teatro do BNH, “o Teatro do Banco”, atual Teatro Nelson Rodrigues, no Rio de
Janeiro. A peça teve boa acolhida pelo público que compareceu à estreia -
segundo o dramaturgo o teatro estava lotado e a plateia aplaudiu de pé27 - e teve
uma temporada bem-sucedida, com sessões de terça-feira a domingo, sendo
sessões duplas aos finais de semana28. O espetáculo tinha duração de 70 minutos
e esteve em cartaz por quase quatro meses, com encerramento da temporada
em 29 de junho de 1980.
Nelson Rodrigues participou ativamente dessa encenação, acompanhando a
escolha de parte do elenco, participando dos ensaios e assistindo as
apresentações. O processo de montagem da peça se iniciou com leituras de mesa,
e, depois do levantamento das situações a serem encenadas, iniciaram-se os
ensaios, que ocorreram numa sala no Teatro Villa-Lobos, em Copacabana, nos
meses de janeiro e fevereiro, de 17:00h à meia noite, exigindo de sete a oito horas
de trabalho diário.
Figura 2 - Marcos Flaksman e Nelson Rodrigues durante os ensaios de
A Serpente
.
Acervo Marcos Flaksman.
27 Rodrigues, 08 mar. 1980.
28 Foram realizadas 134 apresentações da peça no Teatro do BNH, a centésima foi no dia 31 de maio de 1980.
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12
A presença de Nelson Rodrigues nos ensaios foi documentada em fotografias
e em uma entrevista publicada no programa do espetáculo, intitulada “Conversa
com o autor no ensaio de mesa”.
Desde 1979, com a revogação dos Atos Institucionais, havia uma abertura
da censura imposta pelo Regime Militar, porém, na primeira metade da década de
1980, as produções teatrais continuavam submetidas à avaliação dos censores.
A
Serpente
sofreu cortes em duas cenas. Às vésperas da estreia, Nelson Rodrigues,
que declarou ter evitado “irritar os censores”29, entrou em contato com Eduardo
Mattos Portella, então Ministro da Educação, para pedir que interviesse junto ao
Conselho Superior de Censura a fim de que a peça fosse exibida na íntegra30.
Reportagens noticiaram que, na temporada, somente algumas palavras do texto
original foram substituídas.
A estreia de
A Serpente
foi cercada de expectativas. As críticas da época
apresentam em comum a observação de que o dramaturgo trabalhou temas
recorrentes na sua obra: sexo, virgindade, incesto, amor e morte31. Muitos
consideraram a peça como uma síntese da dramaturgia rodriguiana e afirmaram
que o autor se manteve fiel às suas obsessões. Embora quase todas as críticas
exaltem a genialidade de Nelson Rodrigues e atestem a existência de uma estética
rodriguiana, muitas também apresentam ressalvas quanto a uma falta de inovação
na temática de
A Serpente
, criticando o assumido moralismo e o conservadorismo
presente na sua obra. Um dos textos mais contundentes nesse sentido foi escrito
por Yan Michalski32 logo após a estreia:
[...] Hoje, a nova dramaturgia de Nelson é uma das mais conservadoras
do país, na medida em que se compraz, sob a ingênua aparência de
manutenção de uma aura escandalosa, em atender docilmente o que
dela se espera: um certo tipo de personagens, de situações, de
ambientação, de frases feitas (Michalski, 10 mar. 1980).
29 Estreia teatral,
Tribuna da Imprensa
, 15 mar. 1980.
30 Swann, 07 mar. 1980.
31 Em textos de Flávio Marinho, Ricardo Linhares, Yan Michalski, Macksen Luiz do Rosário Filho.
32 Michalski, 10 mar. 1980, reproduzida no livro
Reflexões sobre o teatro brasileiro do século XX
, organizado por
Fernando Peixoto, Ed. Funarte, Rio de janeiro, 2004.
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13
Para Michalski,
A Serpente
contém o moralismo presente em textos
anteriores do dramaturgo, reproduz os arquétipos rodrigueanos e apresenta a
mesma linha estilística baseada numa mistura entre elementos hiper-realistas e
estilizações inspiradas na tragédia grega. Michalski criticou sobretudo o que definiu
como imobilismo do autor. Ao mesmo tempo, elogiou o “instinto teatral” e o poder
de síntese de Nelson:
A frase não tem uma palavra além do necessário, as poucas frases que
contém cada fala são suficientes para conter a ideia que a fala pretende
transmitir, cada uma das pequenas cenas em que a peça é dividida
desenvolve e esgota uma ação dramática, e as elipses introduzidas na
fusão das cenas são virtuosisticamente dosadas. Por outro lado, Nelson
sabe sempre explorar até as últimas consequências o impacto teatral de
recursos como o paradoxo, o grotesco, o detalhe desmedido (Michalski,
10 mar. 1980).
Apesar da imprensa especializada apontar para uma falta de inovação ou
mesmo de modernidade no texto, foi consenso que Nelson Rodrigues permanecia
como um grande dramaturgo do teatro brasileiro.
Macksen Luiz menciona, em sua crítica, o tom operístico do espetáculo e
exalta a direção de Flaksman:
Marcos Flaksman construiu o espetáculo como um concerto retumbante,
uma quase ópera. Os atores gesticulam, movimentam-se com
generosidade no amplo e belo espaço cênico que ele criou. O contraponto
musical - representado por um instrumentista no
cello
, aliás uma das
melhores brincadeiras do espetáculo - marca o ritmo tenso e ao mesmo
tempo hilariante da montagem. O tratamento de Flaksman lembra,
paradoxalmente, os programas policiais de rádio. O trágico é narrado com
humor, sem, contudo, o deboche e a grosseria das transmissões
radiofônicas. [...]
A serpente
é espetáculo que não deixa a plateia
indiferente. Os risos histéricos nas cenas de sexo mais exacerbadas
provam a eficácia de uma direção que ajustou à perfeição a teatralidade
ao universo pequeno burguês de Nelson Rodrigues (Rorio Filho, 19 mar.
1980).
Para Michalski, a encenação de Flaksman conseguiu explorar a tragédia e a
farsa, evidenciando a primeira e realçando sutilmente a segunda, transformando
a exploração dessa dualidade “[...] numa sustentada dialética de imagens visuais e
sonoras”33.
33 Michalski, 10 mar. 1980.
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14
Figura 3 - Capa do programa do espetáculo desenho de Carlos Vergara.
Acervo Marcos Flaksman.
Por
A Serpente
Marcos Flaksman recebeu o Prêmio “Revelação de Diretor” da
Associação Paulista dos Críticos de Arte - APCA.
A criação da espacialidade de
A Serpente
O encenador declarou34 que tinha uma ideia definida do que queria fazer em
A Serpente
: imprimir um tom operístico à montagem do que ele considerou ser
uma tragédia do cotidiano, enfatizando a característica comum dos personagens.
Ao assumir a direção, a cenografia e o desenho de luz, Flaksman teve a
liberdade de criar uma espacialidade pertinente para a sua proposta de encenação,
34 Flaksman em entrevista concedida à Andréa Renck, 18 set. 2023.
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Andrea Renck
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definindo a estética da cena em concomitância com a direção dos atores e atrizes.
Em sua montagem, o diretor “seguiu rigorosamente o pensamento do autor”35,
trabalhando com precisão o texto dramatúrgico.
Nelson Rodrigues não viu os croquis realizados durante o processo de criação
da cenografia e visualizou a proposta quando a maquete do cenário foi
apresentada à equipe. O dramaturgo não interferiu na forma como o diretor
conduziu as cenas e nem nas opções cenográficas: mapeando a vasta cobertura
da imprensa sobre este evento teatral, um registro no qual o autor
manifestou um certo desapontamento: ele preferia que as declamações
individuais, as “árias”, tivessem sido interpretadas com mais veemência do que
foram36.
Ao mesmo tempo em que o dramaturgo fez, no texto, indicações específicas
sobre a forma com que os atores e atrizes deveriam interpretar as cenas, inserindo
entre parênteses termos como “gritando”, “enfurecida”, “falsamente doce”,
“bruscamente”, “atônito”, para citar somente alguns, Nelson Rodrigues não sugeriu,
indicou ou descreveu o espaço da cena. O autor ofereceu um espaço livre, como
uma sala vazia ou uma tela em branco, para a criação da cenografia.
Antonio Guedes (2010) chama a atenção para essa falta de sugestão de
cenário no início do texto de
A Serpente
. A primeira rubrica contextualiza a ação
da primeira cena, mas não indica o espaço. Entre parênteses, está escrito:
a separação. Décio está fechando a mala. Fecha, levanta-se e vira-se
para Lígia, a mulher, que olha com maligna curiosidade).
Para Guedes (2010, p.392), ao não apresentar uma sugestão de cenário,
Nelson Rodrigues permite uma livre criação da “relação entre o espaço e os
diálogos”. A invenção desse espaço e da sua ocupação deve partir “da observação
dos elementos que se colocam em jogo na estrutura proposta pela peça” e não
de uma “mera ilustração da história”.
Em
A Serpente
as indicações importantes para a espacialidade da ação são
35 Cambará, 06 mar. 1980.
36 Em “Conversa com o autor no ensaio de mesa”, programa do espetáculo, 1980, informação reiterada por
Marcos Flaksman em entrevista à Andréa Renck, 18 set. 2023.
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feitas ao longo da peça, na fala dos personagens e em algumas rubricas.
Na segunda cena, protagonizada pelas irmãs, entendemos, pela fala dos
personagens, que elas coabitam o mesmo apartamento e que não possuem
nenhuma privacidade:
Guida: Mas criatura, nós moramos no mesmo apartamento. Uma parede
separa as tuas intimidades e as minhas.
Lígia: Por isso mesmo. Ouve-se no meu quarto tudo o que acontece no
teu. Chega a ser indecente. Ouço os teus gemidos e os de Paulo. Mas
você nunca ouviu os meus. Simplesmente porque no meu quarto não há
isso. Esse mistério nunca te impressionou?
Mais adiante, Guida menciona que o apartamento fica no décimo segundo
andar e Lígia, em um momento a seguir, ameaça se jogar pela janela. Uma rubrica
indica “Lígia corre para a janela”. Ainda nesse diálogo, Lígia fala para a irmã sair do
seu quarto, localizando a cena.
Quase toda a ação ocorre no espaço interno do apartamento dos dois casais,
com exceção de uma cena em que Décio e Crioula se encontram “num quarto”, e
de duas cenas de exterior: um breve encontro “numa esquina” e uma cena “no
exterior” que se passa em um parque, sugerido - por uma fala de Guida - que seja
o Parque da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.
Marcos Flaksman criou a cenografia a partir de dois dados fundamentais para
a cena indicados no texto: os personagens moram em um apartamento localizado
em um andar alto o suficiente para causar a morte de uma pessoa, em caso de
queda; e os quartos dos dois casais são separados por uma parede que não
impede o vazamento sonoro entre os cômodos.
A primeira responsabilidade do cenário seria a de esclarecer,
geograficamente, um fator muito importante no desencadeamento da
própria tragédia: a relação especial entre dois quartos de um mesmo
apartamento, cuja parede divisória é incapaz de separar as intimidades.
Essa, para mim, é a maneira de morar da classe média. Ou seja, a
necessidade de morar nos grandes bairros dos grandes centros urbanos
é mais importante do que a manutenção da privacidade doméstica. A
segunda responsabilidade do cenário é a de localizar esse apartamento,
com relação ao espaço circundante. Outra informação essencial que
deverá ser dada pela cenografia é a altura. O apartamento está localizado
num décimo segundo andar, e este sempre foi um excelente e facilitado
meio de suicídio (Magaldi, 1992, p.163).
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A primeira imagem que o artista teve da cenografia de
A Serpente
foi “um
espaço que continha uma parede no meio do palco37”, porém, para que a cena
tivesse boa visibilidade em um palco italiano, Flaksman logo optou por eliminar
essa parede. Ele realizou estudos para a cenografia que propunham um espaço
integrado e incluíam, desde as primeiras ideias, um teto que também servia de
piso superior.
Figura 4 - Esboço para a cenografia de
A Serpente
. Grafite sobre papel. 18cm x 15cm
(1979/80). Acervo Marcos Flaksman.
No desenho reproduzido, a cenografia está sobre um piso cenográfico, o
espaço no nível mais próximo ao nível do palco possui duas janelas, duas camas
e uma escada que permite acesso a um nível superior, que representa a laje do
prédio. Essa proposta, que não representa a cenografia realizada, ainda contém
uma parede que cobre parte da escada e linhas verticais que sugerem uma parede
invisível dividindo os quartos. A preocupação com a informação da altura já estava
nos primeiros croquis, que incluíam janelas com vista para um
skyline
partindo de
37 Flaksman em entrevista concedida à Andréa Renck, 18 set. 2023.
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um ponto de visão alto. Desde os primeiros estudos, o cenógrafo evidenciou um
espaço que serviria como teto do apartamento e também como laje do terraço.
Esse teto/ laje, além de oferecer mais uma área de atuação, servia para
informar que o apartamento se localizava no último andar do prédio. Para reforçar
essa indicação, o cenógrafo colocou, sobre o teto, uma caixa d’água cenográfica
envolta por antenas de TV e cercou o terraço com uma mureta.
Essa imagem foi criada para atender a ideia da transposição da cena final -
que nas indicações do texto ocorre no peitoril da janela do quarto de Guida e Paulo
- para o terraço do edifício. Na encenação de Flaksman, ao invés de Guida ser
empurrada por Paulo da janela do quarto, ambos sobem ao terraço e se sentam
no parapeito, de onde Paulo empurra Guida.
Figura 5 - Sura Berditchevski e Cláudio Marzo na cena final de
A Serpente.
Acervo Marcos Flaksman.
O acesso dos atores a esse piso superior se dava por uma escada localizada
dentro ou atrás de uma coluna central, local onde também estavam instaladas
duas portas praticáveis, uma frontal à cena e uma lateral, que acessavam os dois
quartos. Além desses elementos construídos, a cenografia contava com a moldura
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de uma janela, suspensa, por onde se visualizava um conjunto de edifícios em
perspectiva frontal.
A espacialidade da primeira montagem de
A Serpente
propunha uma
cenografia formada por fragmentos de elementos arquitetônicos, remetendo ao
interior de um apartamento no último andar de um prédio alto, dispostos sobre
um piso cenográfico e circundados por uma rotunda preta. Interligado ao piso
cenográfico, porém mais baixo que este e projetando-se sobre o proscênio, havia
um praticável no qual foram marcadas as cenas que se passam
fora
do
apartamento, assim como as “árias”, que, segundo a indicação de Nelson
Rodrigues, deveriam acontecer “completamente à parte” 38 da peça. Segue
fotografia da maquete física do palco do Teatro do BNH com a cenografia em
escala39:
Figura 6 - Maquete de cenografia de
A Serpente
. Acervo Marcos Flaksman.
38 Em “Conversa com o autor no ensaio de mesa”, programa do espetáculo, 1980.
39 Maquete confeccionada por Paulo Flaksman. O melhor registro encontrado dessa maquete foi uma
fotografia de Luis Carlos David, em cores, publicada na reportagem “Estudioso de espaços e tensões”, de
Joelle Rouchou e Clóvis Marques.
Jornal do Brasil
, Revista do Domingo, p.16, Rio de Janeiro, 16 mar.1980.
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O cenário foi projetado em cinco níveis: uma área texturizada revestindo a
frente do piso do palco, um piso cenográfico formado por praticáveis baixos que
delimitava a área do apartamento (este com três pequenas diferenças de altura)
e uma plataforma superior, representando o terraço. O piso da área do
apartamento possuía uma parte mais alta à esquerda, diferenciando sutilmente as
áreas dos dois quartos e uma plataforma mais baixa, frontal, que iniciava na
metade direita do palco e avançava sobre o proscênio.
Figura 7 - Desenho de Marcos Flaksman para a cenografia de
A Serpente
.
Grafite e caneta hidrocor sobre papel manteiga, 10 cm x 8 cm, 1979/1980.
Acervo Marcos Flaksman.
A colocação da cenografia sobre um piso cenográfico é um procedimento
utilizado por Marcos Flaksman ao projetar cenografias para palcos de tipologia
italiana:
Quando o espetáculo se passa num palco à italiana, ou você radicaliza e
faz um espetáculo que se passa num palco italiano, considerando o
próprio palco como cenário, ou o cenário é colocado dentro do palco, e
nesse caso o piso do palco não serve como cenário. Assim é em
A
Serpente
40.
No piso cenográfico que delimita a área do apartamento, móveis específicos
40 Flaksman em entrevista concedida à Andréa Renck, 18 set. 2023.
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identificavam os dois quartos onde se passa a maioria das cenas. Para reforçar o
fato de que os dois casais coabitam o apartamento sem nenhuma privacidade,
Flaksman criou um ambiente sem paredes: a divisória era sugerida pela união das
cabeceiras de duas camas de casal antigas, posicionadas ao centro do palco.
Contribuindo com essa estética e também com a finalidade de permitir uma
melhor visão do público nas cenas marcadas nas camas, foram retiradas as
madeiras internas das cabeceiras, mantendo somente a moldura que definia a
silhueta das mesmas.
Figura 8 - Sura Berditchevski em cena de
A Serpente
.
Acervo Marcos Flaksman.
As demais informações foram dadas através de revestimentos, mobiliário e
objetos específicos. Para sinalizar que o apartamento pertencia a uma família
tradicional, o cenógrafo investiu em móveis de madeira de estilo antigo, que
contrastaram com as linhas modernas da estruturação do cenário. Detalhes como
o revestimento da torre central com papel de parede e a foto emoldurada do
patriarca da família - o pai que doou o imóvel e poderia ter mobiliado o
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apartamento para as filhas - colaboraram para a percepção do público sobre os
personagens e o local.
O quarto à esquerda (quarto de Guida) possuía uma mesa de cabeceira, uma
penteadeira e uma escrivaninha, com diversos objetos referentes a esses móveis
sobre eles, e, na parede ao lado da porta, quadros e fotografias emolduradas. No
quarto à direita (quarto de Lígia), além da citada moldura indicativa da janela -
na cena, complementada com uma cortina - havia uma mesa de cabeceira com
abajur, uma cômoda, uma poltrona e um guarda-roupa. Malas e caixas de papelão
sobre o roupeiro contribuíram para dar vivência à cenografia, e as presenças de
uma boneca de pano sobre a cômoda e um urso de pelúcia encostado ao da
cama, em destaque, revelavam algo ainda infantil em Lígia.
Todas as cenas que não se passavam no apartamento foram realizadas no
praticável frontal que se projetava sobre o proscênio: as cenas de Décio e Crioula
e a cena de Paulo e Lígia no Parque da Quinta da Boa Vista. Se, para as cenas dos
encontros de Décio e Crioula, Flaksman optou por não acrescentar nenhum
elemento que indicasse um local (quarto ou rua), para a cena no Parque o
cenógrafo posicionou sobre a plataforma um banco de praça e emoldurou a área
central do palco com arranjos de folhas (recortadas em papel craft e aplicadas
em telas de filó) que surgiam suspensas em uma vara cênica, ambientando uma
área externa.
Fora do piso cenográfico do apartamento, a direita de quem assiste a cena,
foi inserido um praticável que definia o espaço do músico e destacava a sua
presença, elegantemente vestido em um traje de concerto.
Antonio Guedes defende que a cenografia para uma peça de Nelson
Rodrigues não deve se ater a uma mera descrição ou representação de lugar, mas
articular os elementos da cena para a criação de um espaço a partir da existência
cênica das palavras do texto.
Se pensarmos na cena como um todo, ela nos aparece como uma
narrativa, que envolve em sua construção elementos sonoros e visuais.
Assim como as palavras na obra de Nelson têm concretude e, portanto,
não são instrumentos do conto, mas elementos do próprio conto, a cena
não se presta a sublinhar o conto, a ilustrar uma história. A cena vai
dialogar com as palavras, a partir de uma ideia de palavra na qual a
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estrutura tem tanta importância quanto o sentido, a cena vai se constituir
também como concretude, como experiência de realidade (Guedes, 2007,
p.263).
Para Flaksman41, o apartamento onde se passa a trama poderia estar
localizado em qualquer cidade, o fundamental é a cenografia informar, através da
imagem vista pela janela, a altura do local, e indicar os quartos das irmãs através
das duas camas de casal.
Na espacialidade criada para
A Serpente
, Marcos Flaksman utilizou
procedimentos característicos do seu trabalho como cenógrafo, que se tornaram
marcas reconhecíveis de sua obra cênica: a criação de um piso cenográfico para a
cena, o uso do ângulo reto nos espaços internos, a indicação de espaços através
de fragmentos arquitetônicos e a contestação ao uso de linhas paralelas à boca
de cena nos seus projetos.
A encenação ficou marcada por ser a primeira montagem da última peça de
Nelson Rodrigues, e a premiada direção de Flaksman por imprimir um clima
operístico à cena.
A Serpente
, considerada por alguns uma peça de menor
importância dentro do conjunto da obra de Nelson, contém uma lapidação dos
métodos dramatúrgicos empregados pelo autor, que, do alto da sua maturidade
artística, apresentou uma síntese do próprio universo rodrigueano.
Ficha técnica:
Texto
: Nelson Rodrigues
Direção geral, cenografia e iluminação
: Marcos Flaksman
Figurinos
: Marília Carneiro
Música original e direção musical
: John Neschling
Produção Executiva e Administração:
Guilherme Callado
Produção
: Ello Produções Artísticas
Elenco:
Carlos Gregório (Décio)
Claudio Marzo (Paulo)
Xuxa Lopes (Lígia)
Sura Berditchevsky (Guida)
Yuruah (Crioula)
Músicos:
Luiz Fernando Zamith e Lúcio de Souza
Assistente de direção
: Luca de Castro
41 Flaksman em entrevista concedida à Andréa Renck, 18 set. 2023.
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Assistente de cenografia
: Paulo Flaksman
Assistente de figurinos
: Wandick Lorettte
Assistente de produção
: Anita França
Execução de cenário:
René Magalhães
Equipe de carpintaria
: Luis Carlos da Silva, René Magalhães Filho, Jairo
Edmundo de Moraes
Contrarregra
: Paulo Garcia
Camareira e costureira
: Hilda
Montagem e operação de luz
: Gerson Batista da Silva
Técnicos eletricistas
: Mario Gil, Adegilson A. Cordeiro, Altair Gomes
Complementos cenográficos
: Carlos Alberto Ferreyra
Estilista
: Oneida Araújo
Divulgação
: Silvia Wolfenson
Assistente de divulgação
: Maria Alves de Lima
Fotos de ensaio e programa
: Carlos Cesar Pini e Sebastião Lacerda
Desenho de cartaz e capa de programa
: Carlos Vergara
Layout do programa
: Luca de Castro
Diagramação
: Jair de Oliveira
Figura 9 - Nelson Rodrigues no ensaio de mesa de
A Serpente
1980.
Acervo Marcos Flaksman.
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A Serpente
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Estreia teatral. Nelson Rodrigues, o fazedor de frases.
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FLAKSMAN, Marcos. Entrevista presencial concedida à Andréa Renck em 18 set.
2023, no Rio de Janeiro. Duração: 80 minutos.
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Recebido em: 20/09/2023
Aprovado em: 13/11/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br