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Nelson Rodrigues: um trágico à brasileira
Rodrigo Alves do Nascimento
Para citar esta Resenha:
NASCIMENTO, Rodrigo Alves do. Nelson Rodrigues: um
trágico à brasileira.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4 n. 49, set. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0801
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0
Nelson Rodrigues: um trágico à brasileira
Rodrigo Alves do Nascimento
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-13, dez. 2023
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Resenha da obra
MEDEIROS, Elen de.
Formulações do trágico no teatro de Nelson Rodrigues
. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2022.
Nelson Rodrigues: um trágico à brasileira
Rodrigo Alves do Nascimento
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-13, dez. 2023
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Nelson Rodrigues: um trágico à brasileira1
Rodrigo Alves do Nascimento2
Resumo
Resenha do livro
Formulações do trágico no teatro de Nelson Rodrigues
, de Elen de
Medeiros. A obra é resultado de uma trajetória de quase uma década de pesquisas
voltadas à poética dramatúrgica de Nelson Rodrigues. Nela, a pesquisadora revisita as já
clássicas formulações sobre o trágico rodriguiano e propõe que a obra dramatúrgica do
autor seja lida não a partir do enquadramento clássico, mas a partir do que ela denomina
um caráter “movente” de seus dramas. Em termos específicos, é preciso reconhecer
que a tragédia moderna rodriguiana absorve e inverte procedimentos trágicos clássicos,
ao mesmo tempo os mescla a recursos da comédia e do melodrama.
Palavras-chave
: Nelson Rodrigues. Dramaturgia. Tragédia. Trágico.
Nelson Rodrigues: tragic in Brazilian terms
Abstract
Review of the book
Formulations of the tragic in Nelson Rodrigues’ theatre
, by Elen de
Medeiros. The book is a result of almost a decade of research focused on the
dramaturgical poetics of Nelson Rodrigues. The researcher revisits classic formulations
about the Rodriguian tragedy and proposes that the author's dramaturgical work must
be read not from classical frameworks, but from what she calls a “sliding” aspect of his
dramas. In specific terms, she asserts that Nelson Rodrigues’ modern tragedy absorbs
and inverts classic tragic procedures and, at the same time, mixes them with resources
of comedy and melodrama.
Keywords
: Nelson Rodrigues. Dramaturgy. Tragedy. Tragic.
Nelson Rodrigues: trágico al estilo brasileño
Resumen
Reseña del libro
Formulaciones de lo trágico en el teatro de Nelson Rodrigues
, de Elen
de Medeiros. La obra es resultado de casi una década de investigaciones centradas en
la poética dramatúrgica de Nelson Rodrigues. En él, la investigadora revisita las ya
clásicas formulaciones sobre lo trágico rodriguiano y propone leer la obra dramatúrgica
del autor no desde el marco clásico, sino desde lo que llama un aspecto “corredizo” de
sus dramas. En términos concretos, hay que reconocer que la tragedia moderna de
Rodrigo absorbe e invierte procedimientos trágicos clásicos, al mismo tiempo que los
mezcla con recursos de la comedia y el melodrama.
Palabras clave
: Nelson Rodrigues. Dramaturgia. Tragedia. Trágico.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Diogo Faleiros Portela - Graduado em
Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). diogoportel@gmail.com
2 Doutorado em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de o Paulo (USP). Mestrado em Literatura e
Cultura Russa pela USP. Graduação em Licenciatura em Letras pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Professor Adjunto de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
alvesr@ufba.br
http://lattes.cnpq.br/4737593366212828 https://orcid.org/0000-0001-7130-0981
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Voltar à obra de Nelson Rodrigues, sobretudo hoje, não é tarefa das mais
simples. É forçoso constatar que qualquer estudo de fôlego sobre sua dramaturgia
terá que lidar com dois polos de tensão, razoavelmente distribuídos na pesquisa
universitária, na imprensa e nos meio teatrais: de um lado, a noção bastante
enrijecida de que, como dramaturgo, ele teria sido responsável por um ponto de
virada na história da dramaturgia brasileira esta, segundo Décio de Almeida Prado
(1993, p.15), uma filha temporã dos movimentos de modernização que haviam
incidido programaticamente décadas antes em outros gêneros e formas de arte
nacionais. Para Sábato Magaldi, crítico e historiador do teatro responsável em
grande medida por essa canonização e pela definição de divisões e critérios que
balizam ainda muitos dos estudos sobre Nelson Rodrigues,
Vestido de Noiva
seria
o grande marco de uma inovação dramatúrgica e teatral que hoje “não se contesta
mais” (Magaldi, 1997, p.217). Levada à cena em 1943 pelo grupo amador Os
Comediantes, sob direção do polonês Zbigniew Ziembinski, a peça traria temas
moderníssimos, ao rasgar “a superfície da consciência para apreender processos
do subconsciente”; inovaria ao apresentar na intriga um complexo jogo de planos
temporais que rompia com o tradicionalismo da narrativa lógica e harmoniosa e,
no plano dos diálogos, arejaria a cena ao alcançar alta carga trágica por meio de
uma “absoluta economia de meios” (Magaldi, 1997, p. 217-220). Assim congregados,
todos elementos seriam decisivos para alçar Nelson Rodrigues ao panteão
moderno - hoje seguramente entre os mais estudados de nossos autores teatrais.
Diante disso, qualquer retorno crítico à sua obra precisa lidar com critérios e
periodizações sedimentados que nem sempre contribuem para a compreensão
de processos modernizantes em curso antes mesmo da emergência de sua
dramaturgia e nem mesmo para a reflexão de arranjos e conexões internos que
estão para além de divisões e categorizações cristalizadas.
O outro polo de tensão se refere ao fato de que a obra dramática de Nelson
Rodrigues é não marcada por temas que na história da recepção de sua obra
sempre lhe renderam a alcunha de “obsceno”, “pornográfico”, “irresponsável” e
mesmo de polemista preocupado exclusivamente com sua “autopromoção” (viés
que, segundo alguns, justificaria nas peças a recorrência de recursos típicos do
sensacionalismo melodramático), mas é também atravessada pelas próprias
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posições do autor que, na sua multifacetada atuação de jornalista e ficcionista,
apoiou o Golpe Civil-Militar de 1964, declarava-se abertamente reacionário e não
se furtou a afirmações de reconhecido fundo misógino. Neste caso, a longa
tradição da “desconfiança” instalada pela Teoria da Literatura alerta para o fundo
ideológico de uma pretensa “autonomia do estético” frente à experiência da autoria
- condição esta que tornaria no mínimo “inocente” uma análise que se furtasse à
dimensão ética de sua produção.
Em um contexto como esse, qualquer atitude crítica diante da obra de Nelson
Rodrigues implica um gesto de risco e enfrentamento. Nesse sentido, o livro
Formulações do trágico no teatro de Nelson Rodrigues
, da professora e
pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, Elen de Medeiros, vem em
boa hora. Beneficiado por certa distância em relação a estudos clássicos que
cristalizaram avaliações sobre o dramaturgo, ele não se furta a um diálogo direto
com a tradição crítica, problematizando periodizações, critérios e valorações. Ao
mesmo tempo, ainda que colateralmente, responde a muitas interdições éticas à
produção de Nelson Rodrigues, pois chama a atenção para o caráter deslizante de
sua obra. O ponto de partida é o de que a fatura literária e teatral é histórica e
ideológica e, por mais que a posição pública do autor pareça feita de ultimatos,
concretamente o texto não se rende a enquadramentos, possui um “caráter
movente” e, como veremos, põe em suspenso qualquer desdobramento unívoco
que se possa subtrair de seu trabalho estético. Em suma, torna-se complexa a
tarefa de um enquadramento ideológico da obra de autor que “parte sempre de
uma noção predefinida de forma [...], inverte e confunde suas referências e desvela
conceitos e concepções muito próprios” (Medeiros, 2022, p.221).
Pode-se dizer que o livro de Elen de Medeiros enfeixa um processo de
contato com a obra do dramaturgo de praticamente uma década. em sua
pesquisa de mestrado, entre os anos de 2003 e 2005, ela se dedicou a um estudo
do fundo social especificamente aquele do conflito indivíduo-sociedade no
desenvolvimento das personagens rodriguianas. Com foco específico no que até
então respaldava como “tragédias cariocas”,3 tinha a constituição formal como
3 A fixação do termo tragédias cariocas” foi dada por Sábato Magaldi em seu trabalho de organização e
enfeixamento crítico do teatro completo de Nelson Rodrigues, publicado em quatro volumes pela Nova
Fronteira, entre 1981 e 1990. A este ciclo pertenceriam as peças
A falecida
(1953),
Perdoa-me por me traíres
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ponto de partida, ou seja, tencionava compreender como a constituição das
personagens (na dimensão dos diálogos e das rubricas) convergia para uma
determinada formulação do trágico (moderno-nacional) rodriguiano (Medeiros,
2005).
a pesquisa de doutorado que culminou no presente livro foi resultado de
um processo intenso de pesquisas, inclusive no exterior, junto ao Grupo de
Pesquisas sobre a Poética do Drama Moderno e Contemporâneo, então
coordenado pelo crítico e professor da Universidade Paris 3, Jean-Pierre Sarrazac.
Ao mesmo tempo, ela vem na esteira da pesquisa anterior, que agora se
debruça sobre questão mais ampla em torno da poética do dramaturgo: entender
se as suas peças pressuporiam a tragédia clássica (e como isso se daria) ou se
haveria elementos da tragédia clássica que auxiliariam na construção de peças
que ele, muito ludicamente, denominaria ora “tragédias”, ora “tragédias cariocas”,
ora “tragédia de costumes”, ora “farsa trágica” ou simplesmente “peças”.
A hipótese central de Medeiros é a de que Nelson Rodrigues funda sua própria
noção de trágico. O dramaturgo jogaria com a “ambivalência trágica” (em sentido
nietzschiano) e, dessa maneira, cada peça parece recorrer a procedimentos de
mescla específicos, oriundos tradicionalmente de outros gêneros, como a comédia
e o melodrama. Desse modo, se a tragédia clássica é ponto de referência (inclusive,
como a autora mostra, perseguido historicamente pelos diferentes intérpretes do
dramaturgo), o que interessa é o modo como o dramaturgo desliza para as noções
de senso comum sobre o trágico, ao mesmo tempo que as tensiona com recursos
do grotesco, do cômico e mesmo do sádico.
Como se vê, o foco do estudo é a poética dos gêneros. Para muitos, tal
enfoque parece ultrapassado seja porque estaríamos mergulhados na era de uma
pretensa “crise da Teoria” e, portanto, de crise das velhas categorias clássicas e
modernas de classificação; seja porque tal tipo de enfoque faria supor um jogo
escolar de “dentro ou fora” do gênero. No entanto, Elen de Medeiros insiste em
um retorno à reflexão sobre a tragédia não para reiterar a dimensão de
(1957),
Os sete gatinhos
(1958),
Boca de ouro
(1959),
O beijo no asfalto
(1961),
Otto Lara Resende ou Bonitinha,
mas ordinária
(1962),
Toda nudez será castigada
(1965) e
A serpente
(1978). Ao volume 1 corresponderiam as
“Peças Psicológicas”, ao volume 2 as “Peças Míticas” e nos volumes 3 e 4 as “Tragédias Cariocas”,
mencionadas acima.
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enquadramento normativo e a-histórico que a tradição muitas vezes assumiu -
tornando a mimese, portanto, critério universal de verdade e valor -, mas porque
a compreensão do drama moderno implica necessariamente uma revisitação do
próprio drama aristotélico. Isso tudo para que melhor se compreendam as
mutações, deslocamentos de fronteiras e mesmo os “transbordamentos”
(Sarrazac, 2017, p. XXI). Aliás, é no campo poético especificamente o da teoria
dos gêneros que ainda hoje teríamos, segundo Antoine Compagnon, um dos
ramos “mais dignos de confiança”. Segundo o teórico, é ali que alguns princípios
de generalização da análise se tornam mais evidentes, que a poética dos gêneros
lida com as convenções literárias e dramáticas em cada momento histórico. Essas
mesmas “regras do jogo” não se estabelecem de maneira homogênea, mas
compõem de maneira decisiva os pontos de vista e os modos de recepção de
determinada época (Compagnon, 2010, p. 154-155).
Nesse quadro, Elen de Medeiros busca mapear as condições de emergência
e de desenvolvimento do drama rodriguiano a partir de uma combinação entre a
descrição das características no nível de uma reflexão estrutural e os seus
desdobramentos históricos. De feição szondiana, seu estudo concebe a forma
dramática como dialética de dois enunciados: o da forma e o do conteúdo, o que
permite compreender a forma não como sistema fechado, mas como compósito
de tensões (Szondi, 2001). Vale destacar que, aqui, o olhar para o geral não significa
achatamento, pelo contrário: é ele que permite reconhecer a complexidade da
poética rodriguiana naquilo que ela tem de mais específico, a saber, seu caráter
“movente”. Daí provavelmente o alcance dessa dramaturgia que não contribuiu
para o fortalecimento de nossa fragmentada tradição dramática, mas também
apresentou um olhar poderoso sobre nossas formas de sociabilidade. A movência
formal, assim, seria afim àquilo que no prefácio Vilma Arêas concebe como poder
político de “desmistificação dos juízos congelados de nossa sociedade” (Medeiros,
2022, p. 13).
Para dar conta do que entende como um trágico rodriguiano, Elen de
Medeiros faz um movimento decisivo: ao invés de partir de uma pretensa definição
de “tragédia” terreno este, segundo Anatol Rosenfeld (2004, p. 21-26), sempre
feito de contornos “ideais”, que abstraem o caráter impuro e multiforme das obras
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específicas - a autora dedica todo o primeiro capítulo a uma revisão do que
críticos e estudiosos da obra de Nelson Rodrigues disseram em jornais e em
pesquisas monográficas sobre o sentido trágico de sua obra. Esta tragicidade – e
mesmo a correlação do dramaturgo com as formas da tragédia clássica – seriam
sempre retomadas, seja por críticos contemporâneos, seja por estudiosos dos
anos 80 e 90.
Na primeira parte do capítulo 1, ela faz um panorama das primeiras décadas
do século XX, que antecedem a produção dramatúrgica de Nelson Rodrigues.
destaque não só à dieta teatral do período – feita que era de um sem-número de
revistas e de peças cômicas ligeiras fortemente desgastadas pela repetição de
temas e de procedimentos -, mas também ao gesto inovador de dramaturgos que
foram fundamentais para a onda arejamento que atravessou a cena brasileira do
período, ainda que limitado no plano formal, pois muito preso às convenções
anteriores. Enfoca as obras de Roberto Gomes, de forte acento simbolista; de
Joracy Camargo, de forte acento político-social; e de Renato Vianna, de forte
acento psicanalítico. Ao fazê-lo, a pesquisadora cria um caldo importante para a
compreensão cada vez mais reforçada pela historiografia teatral contemporânea
– de que a inovação rodriguiana trazida a partir de
Vestido de Noiva
veio após um
diálogo com autores fundamentais do momento precedente e por meio de uma
negociação frequente com formas e parâmetros críticos desse período. Como
afirma a própria pesquisadora, a respeito da primeira peça do dramaturgo,
A
mulher sem pecado
, de 1941:
Ainda que fique evidente a chamada “ambição literária” do autor, é
perceptível a influência do teatro vigente nessa sua primeira tentativa
dramática: as personagens são construídas sobre bases cômicas,
especialmente o marido, falso paralítico, que se utiliza de um disfarce
tema corriqueiro nas comédias para verificar a fidelidade de sua esposa,
apenas invertendo os papeis do que fizera Oduvaldo Vianna” (Medeiros,
2022, p. 43).
Na segunda parte do capítulo, baseada em extensivo levamento de textos
críticos em jornais e periódicos do período, acompanhamos como a crítica que lhe
era contemporânea ainda se baseava no paradigma anterior, bastante pautado
pelo teatro ligeiro. E mesmo após o abalo de
Vestido de Noiva
, muitos insistiam
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numa pretensa impureza formal - nociva - das peças do dramaturgo. Peças como
Álbum de Família
pareciam não caber nas noções comuns de trágico, por
produzirem um resultado final pelo “acúmulo, pela abundância” (Medeiros, 2022,
p. 52); ou seja, a recorrência de procedimentos melodramáticos (para não falar
dos recursos cômicos em textos a princípio trágicos), em muitos momentos
desestabilizava abertamente o pacto receptivo. A partir dos anos 60, talvez
distantes do que para muitos era o fantasma da cena comercial ligeira e que fazia
com que o próprio Nelson Rodrigues quisesse se afastar da alcunha de “cômico”,
percebe-se uma paulatina aceitação de tais misturas. Não à toa, em 1979, quando
Ronaldo Lima Lins publica
O teatro de Nelson Rodrigues uma realidade em
agonia
, o crítico o hibridismo de gêneros promovido pelo dramaturgo como
sinal de maturidade literária, ou seja, isso lhe permite perceber – agora em chave
diversa que a inversão trágica rodriguiana (o conflito começa internamente e
atinge seu cume quando transborda) e que o tom de deboche com que por vezes
explora a tragédia são dados produtivos. Por fim, na última parte do capítulo, a
pesquisa destaca como a crítica pós-1980, responsável em larga medida pela
canonização do dramaturgo, reforçou seu
status
de autor trágico. Aqui ela mapeia
um dado importante: Sábado Magaldi, crítico fundamental nesse processo, refletiu
pouco sobre “a possibilidade de uma estrutura trágica moderna absorvida pelo
dramaturgo” (Medeiros, 2022, p. 80), atendo-se em famoso estudo introdutório ao
Teatro Completo a colocar em relevo aquilo que tornava a dramaturgia de Nelson
Rodrigues afim ao trágico aristotélico, ou seja, fazendo paralelos entre
personagens, pensando as formas de elevação de linguagem e mesmo as
reinstalações do coro. No entanto, estudiosos como Victor Hugo Adler Pereira
(1999) perceberam a dimensão trágica moderna de sua dramaturgia, voltada que
estava para a subjetividade das personagens e as novas formas de produção do
abismo trágico. Tinha-se, assim, a porta aberta para o questionamento de um
trágico genérico e classicizante da obra do dramaturgo e para perceber como sua
noção de trágico está também atenta aos nossos impasses modernos.
No segundo capítulo, intitulado “Trágicos e tragédias: a elaboração
rodriguiana”, Medeiros argumenta em favor da hipótese de que Nelson Rodrigues
tinha o projeto claro de escrever tragédias nacionais. Estas, inseridas no quadro
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mais amplo das
tragédias modernas
, não seriam reconhecíveis por elementos
formais pré-estabelecidos, como a tragédia clássica, mas partiriam em alguma
medida de uma ética filosófica trágica, baseada no conflito oriundo do
rompimento/destruição/enfrentamento da norma. Isso significa que a tragédia
moderna pode ser feita da “união de características que podem ser,
eventualmente, paradoxais” (Medeiros, 2022, p. 95).
Para discutir tal hipótese, a pesquisadora se baseia essencialmente na peça
Senhora dos Afogados
, que seria marcada, segundo ela, pela fusão de elementos
da tragédia clássica com um sentido de trágico imanente à sociedade moderna.
Ali, o conflito advém especificamente da polaridade estabelecida entre o mundo
dos valores da família e do sexo disciplinado e o universo subjetivo da “liberação
dos desejos” (Medeiros, 2022, p. 105). Neste momento, delineiam-se análises
centrais para a sustentação da hipótese da autora: agora, o herói trágico está
imerso em um mundo mais particularizado, sem a possibilidade de expiação ou
redenção. Desamparado em um mundo povoado, cercado de relações corrosivas
mesmo no seio familiar, ele tende ao isolamento. Não mais “superior”, ele na
prática é “frágil e superficial”. Na mesma esteira, diferentemente da tragédia
clássica, as personagens não passam mais por um momento em que se
reconhecerão como agentes ou portadoras do mal falta-lhes, portanto, uma
dimensão da consciência/reconhecimento antes fundamental. E mesmo o coro –
como o coro de vizinhos que corta as cenas de Senhora dos Afogados – não tem
mais função edificante ou de apresentação de uma consciência geral, pelo
contrário: bisbilhota, fofoca e insere aqui e ali falas de caráter abertamente
grotesco. Produz-se, assim, um tipo específico de trágico, baseado não em
outra dinâmica de construção da intriga, das personagens e da coralidade, como
também atravessado por recursos cômicos que a um tempo põem a nu as
personagens e suas representações de si, mas também ironizam os próprios
enquadramentos trágicos clássicos. A conclusão, segundo ela, é a de que, para
mostrar os paradoxos e questionamentos desse homem (brasileiro) moderno foi
necessária essa “estrutura igualmente paradoxal” (Medeiros, 2022, p. 150).
Por fim, o terceiro e último capítulo apresenta uma relevante contribuição:
ao analisar as peças
A falecida
e
O beijo no asfalto
, Medeiros opta por redefinir a
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clássica terminologia, de que se tratariam de “tragédias cariocas” optando a
partir daí por “comédia trágica” e por “tragédia urbana”. Isso permite, segundo ela,
compreender melhor as bases cômicas da primeira peça, além da presença de
elementos de uma urbanidade mais ampla que se mesclam a frequentes
procedimentos melodramáticos. No caso de
A falecida
, a tipificação das
personagens, a presença constante do grotesco, os diálogos recheados de gírias e
coloquialidades criam atravessamentos cômicos na inevitabilidade trágica das
situações e no doloroso e incontornável isolamento subjetivo das personagens.
Nelson Rodrigues teria insistido na ideia de uma “tragédia carioca” muito
provavelmente devido a suas históricas ressalvas à comédia (que, segundo ele, só
seria pertinente se fosse
agressiva
). Neste caso, a formulação de Medeiros talvez
ganhasse em adensamento se dialogasse mais com a formulação de Baudelaire
em torno de um “cômico absoluto” do que com as teorias de Bergson sobre o riso.
Para o poeta francês, o riso tem algo de vertiginoso e abissal, por a um só tempo
ser signo de uma “grandeza infinita e de uma miséria infinita” (Baudelaire, 1976, p.
532). Diferentemente do “cômico significativo” ou “imitativo”, constituído de uma
espécie de comparação e distanciamento (termos similares aos da formulação
bergsoniana do riso como “corretivo social”), o “cômico absoluto” seria motor de
um riso agressivo, violento, oriundo da afirmação, por meio de um herói grotesco,
do que é reprimido. Trata-se, nos termos dele, de uma verdadeira “vertigem da
hipérbole” e que ergue o baixo, o sexual, o “sujo” à condição criadora. A partir daí,
vale nos questionarmos se a almejada “agressividade” de que fala Nelson
Rodrigues tem a ver menos com um efeito catártico de um riso “crítico”
bergsoniano do que com um riso violento, que implique não em distância e
superioridade, mas em incômodo e fascinante envolvimento do espectador com
a vertigem do grotesco.
A pesquisadora continua agora com
Beijo no asfalto
que, por sua vez, tem
uma base trágica que se estrutura pela lógica expressionista do desenrolar de
quadros que levam o herói à completa destruição. Mais uma vez, a peça é
atravessada por procedimentos que redimensionam essa “tragédia urbana”, como
os “golpes de teatro” e, neste caso, a famosa divisão herói-vilão do melodrama. E
é essa divisão melodramática que na intriga é base do desfecho trágico. o
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cômico aqui é tênue, porque a empatia oriunda da divisão herói-vilão cria polos de
apoio que nem sempre favorecem ao grotesco, ainda que o acúmulo
melodramático tenha inevitável efeito irônico. Ao fim e ao cabo, nas duas peças,
ainda que por meio do ensaio diferenciado com as formas, o herói é esmagado
por uma estrutura social e por um conjunto de normas opressivas. Sozinho não
por um erro (como na tragédia clássica), sucumbe à própria impossibilidade de
resistência e luta.
Na conclusão deste arrojado estudo, ficamos com o desejo de entender como
essa dimensão “nacional” da tragédia rodriguiana de algum modo se refere a
formas de sociabilidade que nem sempre a noção geral de um “trágico moderno”
(europeu) conta. Sobre tal aspecto, Medeiros muito de passagem se refere
à fratura da formação social brasileira e como ela é afim a experimentação formal
do dramaturgo.
De todo modo, ao final, a relevância do estudo da pesquisadora se não só
porque arrisca novas formas de classificação do drama rodriguiano – gesto, como
sabemos, sempre provisório -, mas porque propõe uma redefinição do olhar
crítico, para que capte novos enquadramentos e perceba movimentos outros
dentro dos complexos arranjos da dramaturgia rodriguiana. Isso não é pouca coisa
diante de peças que, segundo ela bem demonstra, a inexorabilidade de uma vida
“feia, vil e trágica” vem plasmada por uma lente que absorve, aumenta e inverte
procedimentos da tragédia clássica, ao mesmo tempo que os atravessa com
procedimentos oriundos de outros gêneros. Isso sem promover o “apaziguamento
dos contrários”, pois “comédia e tragédia dividem o mesmo texto” e “estabelecem
um conflito estético fundador da tragédia rodriguiana” (Medeiros, 2022, p. 226-
228).
Trata-se de vigoroso estudo que revisita sob nova perspectiva a produção
dramatúrgica de Nelson Rodrigues. Lê-lo se torna etapa fundamental para
entender como seu particular sentido de trágico oferece uma lente poderosa – e,
como convém, incômoda – para a compreensão de nossa experiência moderna.
Referências
BAUDELAIRE, Charles. “De l’essence du rire et généralement du comique dans les
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Recebido em: 20/09/2023
Aprovado em: 31/10/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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