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O Beijo [Cancelado]
: pontos de tensão na obra de
Nelson Rodrigues
Patrícia Leonardelli
João Cláudio Petrillo Miranda
Para citar este artigo:
LEONARDELLI, Patcia; MIRANDA, João Cláudio Petrillo.
O
Beijo [Cancelado]
: pontos de tensão na obra de Nelson
Rodrigues. Urdimento Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 49, dez. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0108
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: pontos de tensão na obra de Nelson Rodrigues
Patcia Leonardelli | João Cláudio Petrillo Miranda
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-17, dez. 2023
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O Beijo [Cancelado]
: Pontos de tensão na obra de Nelson1 Rodrigues2
Patrícia Leonardelli3
João Cláudio Petrillo Miranda4
Resumo
O artigo parte da experiência de adaptação da peça
O Beijo no Asfalto
(1961) para
apresentação como Estágio de Atuação no Departamento de Arte Dramática (DAD) da
UFRGS. O resultado originou o monólogo intitulado
O Beijo [Cancelado]
5, em cuja
pesquisa se pretendeu identificar e discorrer sobre aquilo que denominamos de pontos
de tensão da peça, os imperativos de linguagem que dizem respeito ao tratamento de
gênero das personagens que podem ser submetidos a um diálogo com a crítica anti-
homofóbica e feminista. O processo parte do reconhecimento da não-neutralidade do
corpo do ator cisgênero frente ao desafio de representar personagens de grupos
subalternizados.
Palavras-chave: Punctum. Estudos de nero. Atuação. Pontos de teno. Teatro
Brasileiro.
The Kiss [Cancelled]
: treatment of gender and character development in the
work of Nelson Rodrigues
Abstract
The article originates from the experience of adapting the play
The Asphalt Kiss
(1961) to
be performed as an Acting Internship at the Department of Dramatic Art (DAD) at UFRGS.
The result originated the monologue entitled
The Kiss (Cancelled)
, whose research
intends to identify and discuss about what we call the tension points of the play, which
are the imperatives of language that concern the treatment of gender of the characters
who may be submitted to a dialogue with anti-homophobic and feminist critic. The
process starts from the recognition of the non-neutrality of the cisgender actor's body
when faced with the challenge of representing characters from subaltern groups.
Keywords: Punctum. Gender studies. Acting. Points of tension. Brazilian Theater.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Camila Alexandrini. Doutorado em Letras
(PUCRS). camilalexandrini@gmail.com http://lattes.cnpq.br/8116182386850984
2 Este artigo é oriundo em 29% do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduão de João Claudio Petrillo
Miranda, 2023.
3 Doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Artes pela USP. Graduação em
Comunicação Social Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Professora Adjunta no Departamento de Arte. Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). patleonardelli@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0954772452268445 https://orcid.org/0000-0002-9017-7525
4 Mestrando em Artes nicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação em Teatro
pela UFRGS. Graduação em Artes Visuais pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC).
petrillomiranda@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0633555278588412 https://orcid.org/0009-0002-0240-9398
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O Beijo [Cancelado]
foi apresentado na Sala Corpo Santo da UFRGS dentro da Mostra DAD nos dias 28 e 29
nov. 2011.
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El Beso [Cancelado]
: tratamiento de género y construcción de personajes en
la obra de Nelson Rodrigues
Resumen
El artículo se basa en la experiencia de adaptación de la obra O Beijo no Asfalto
(1961), para ser presentada en el Departamento de Arte Dramático (DAD ) en la
UFRGS. El resultado dio origen al monólogo titulado
O Beijo [Cancelado],
en el que
la investigación pretendía identificar y discutir lo que llamamos los puntos de tensión
de la obra, es decir, los imperativos del lenguaje que atañen al tratamiento de género
de los personajes. que puedan ser sometidos a un diálogo con la crítica
antihomofóbica y feminista. El proceso parte del reconocimiento de la no
neutralidad del cuerpo del actor cisgénero ante el desafío de representar personajes
de grupos subalternos.
Palabras clave: Punctum. Estudios de género. Actuación. Puntos de tensión. Teatro
Brasileño.
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As técnicas de atuação teatral têm sido objeto de profundas transformações
desde a segunda metade do culo XX e o início do culo XXI. Não é o objetivo
desse estudo revisar ou discutir sobre tais mudanças, quase todas amplamente
documentadas, nem tampouco acrescentar propriamente quaisquer
propedêuticas ao campo, senão provocar-lhe algumas reflexões partindo da
observação da trajetória de um aluno e da criação de seu espetáculo de Estágio
de Atuação, que tem como eixo de investigação a obra de Nelson Rodrigues.
Tomamos tais processos como estudos de caso, pois eles fizeram revelar uma
problemática que nos parece bastante importante para o
trabalho de ator
contemporâneo
. Primeiramente, trata-se de identificar que o próprio epíteto,
amplamente utilizado na bibliografia geral sobre atuação, diz respeito a um
imperativo genérico que efetivamente circunscreve um artista atuador
heterocisnormaitvo. O processo de reconhecimento da não neutralidade deste
“ator genérico”, perenemente referenciado como uma espécie de subjetividade
universal na moderna bibliografia da área, foi o ponto deflagrador da pesquisa que
se desenvolveu para a criação de
O Beijo [Cancelado]
, e que tem, no
enfrentamento com o cânone rodrigueano em geral, e com a peça
O Beijo no
Asfalto
em específico, seu lugar de desenvolvimento.
Antes de entrarmos na problemática central da pesquisa, é importante
contextualizar brevemente no que consiste a criação do Estágio de Atuação no
curso de bacharelado teatral do Departamento de Arte Dramática da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. O instante do Estágio coroa a conclusão da trajetória
acadêmica do aluno bacharel e é a oportunidade para que se desenvolva uma
pesquisa radicalmente autoral, tanto como prodão de linguagem quanto na
análise das questões que são caras ao aluno-pesquisador. O trabalho deve resultar
em um espetáculo, performance ou demonstração de trabalho coerente com o
levantamento auto-curatorial, sob orientação de um/uma docente escolhido/a
pelo aluno. O coautor do texto e realizador do projeto, um ator branco e
heterocisgênero, construiu uma caminhada de investigação sobre a obra de Nelson
Rodrigues desde os primeiros anos do curso, por meio de catalogação de leituras
e exercícios nicos nas disciplinas práticas, de modo que a escolha para seu
Estágio foi um encaminhamento natural, bem como a continuidade da
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investigação da obra do dramaturgo que está em processo no seu mestrado. Da
mesma forma, a escolha da autora do artigo como orientadora também foi um
encontro de alinhamento bastante orgânico em torno do interesse comum pela
obra do dramaturgo e pelas questões da atuação contemporânea, que tem como
desdobramento final a produção desse texto.
Às palavras do aluno, Nelson Rodrigues foi um autor que, desde muito cedo,
reverberou em seu percurso acadêmico, precisamente pelas sensações ambíguas
que suas obras lhe promoviam enquanto intérprete. Ao ler algumas das peças, ele
se deparou com inúmeros desconfortos, com temas que o próprio dramaturgo
considerava “desagradáveis”, quais sejam os temas que envolvem o tratamento de
grupos minorizados. A abordagem que a dramaturgia rodrigueana confere a tais
temas muitas vezes oscila entre o tom da denúncia aberta e outro mais ambíguo,
que parece flertar propositalmente tanto com a crítica quanto com o fetiche pela
violência. É notória a estratégia do dramaturgo em construir em torno de si a
imagem de artista polêmico, posto as muitas declarações “explosivas" e
desrespeitosas que, como experiente jornalista e conhecedor do funcionamento
da mídia, soube explorar ao longo de sua carreira. Como saber exatamente os
limites de seu conservadorismo e possíveis preconceitos quando confrontamos
tais declarações com suas personagens torna-se algo mais difícil de se identificar.
Mas, foi do conjunto todo de tensões existentes no universo dos discursos
produzidos pelo autor que estabelecemos nosso local de investigação.
Assim emergiu a seguinte questão: como montar uma peça de Nelson
Rodrigues nos dias atuais assumindo esses pontos "desconfortáveis", tensos, por
conterem um teor potencialmente violento a grupos minorizados, de modo a não
reforçar o preconceito no tratamento das personagens? Como um ator branco e
inserido nos parâmetros da heterocisnormatividade pode representar papéis de
grupos minorizados sem reproduzir os estereótipos psicofísicos de raça e gênero
construídos pela cultura racista e patriarcal vigente? Como lidar com os textos
originais diante dos desafios do debate contemporâneo sobre o assunto (preservá-
los, adaptá-los, “corrigi-los” politicamente seria a solução)? Que tipo de
procedimentos podem refinar a sensibilidade do intérprete para tal processo a
curto e a longo prazo?
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De um estudo amplo da dramaturgia de Nelson Rodrigues, escolhemos
centrar a análise em um material que, nos pareceu, condensava os principais
pontos de tensão que desejávamos tratar no Estágio:
O Beijo no Asfalto
. A primeira
encenação do texto aconteceu no dia 07 de julho de 1961, no Teatro Ginástico, no
Rio de Janeiro. Denominada pelo autor de "uma tragédia carioca em 3 atos e 13
quadros”, tinha no elenco principal Renato Consorte, Sérgio Britto, Ítalo Rossi e
Fernanda Montenegro. Essa última havia insistentemente encomendado ao autor
uma peça inédita, como o próprio relata em seu livro
Nelson Por Ele Mesmo
(um
compêndio de escritos organizados por sua filha, Sônia Rodrigues):
Fernanda Montenegro passou oito meses telefonando para mim para eu
escrever a peça. Achei linda a obstinação da “musa sereníssima”. Ela
achava que era inútil, mas insistia. Fiquei deslumbrado quando fiz a peça.
Estava cumprindo minha palavra. Eu subi no meu próprio conceito
quando entreguei à Fernanda
O Beijo no Asfalto
(Rodrigues, 2012, p. 79-
80).
É relevante pontuar que o dramaturgo produziu sua obra teatral entre 1940 e
1980, ou seja, em quarenta anos de atividade. Sua escrita e sua abordagem de
temas sociais delicados, vistas aos olhos de hoje, podem soar anacrônicas ao leitor
e espectador, mas, ao mesmo tempo, é forçoso reconhecer que muitas das
violências denunciadas em sua dramaturgia, infelizmente, permanecem não
solucionadas. Sua obra é, ao mesmo tempo, produto e prodão do
conservadorismo de uma sociedade urbana, cristã, e que tem como núcleo a
família pequeno-burguesa em tratar de determinados assuntos, e revela um
tempo em que o debate sobre violência identitária não estava democratizado.
Reside , em parte, nos parece, boa parte dos desafios em se montar uma peça
de Nelson Rodrigues nos dias atuais. De forma oposta ao tempo de sua estreia, é
hoje a crítica sobre seus aspectos conservadores que parece impor cautela sobre
sua obra. Vejamos o que relata a atriz Fernanda Montenegro sobre a experiência
da temporada de
O Beijo no Asfalto
em sua autobiografia:
A estreia de
O Beijo no Asfalto
nos deu mais um momento consagrador.
Contou com sessões sempre lotadas em que, quase diariamente, houve
protestos violentos a favor e contra. Parte do público gritando: “Tarado!”,
“Protesto em nome da família brasileira", “Merece cadeia!”, “Pornógrafo”,
e a outra parte mandando um “cala a boca” aos berros. Curioso notar que
não eram as questões políticas, ideológicas que magnetizavam as
pessoas. Jamais alguém chamou o autor de reacionário, traidor da pátria,
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entreguista. Os protestos sempre foram de cunho moral (Montenegro,
2019, p. 147).
Na citação acima, podemos perceber o quanto as peças do autor
provocavam “sensações ambíguas" nos anos 60. Figuras de variadas correntes
ideológicas e poticas declaravam amor e ódio a Nelson Rodrigues, ao longo de
sua extensa prodão como dramaturgo e cronista, o fizeram angariar afetos e
desafetos, revelando o autor paradoxal que sempre foi. Em
O Beijo no Asfalto
,
nossa peça de trabalho, ele é particularmente "obsceno" quando escancara ao
público a situação de um homem que beija outro homem na boca ao ser
atropelado em plena região central do Rio de Janeiro.
A peça (como, de resto, faz todo seu cânone) aborda as muitas camadas de
perversões sociais e individuais. A homoafetividade é tratada em todo um espectro
de interesses e violências para as quais a aniquilação do afeto é o único fim
possível. a mídia inescrupulosa e irresponsável, interessada exclusivamente na
venda de jornais, a corrupção criminosa da polícia, o pai arauto da boa moral
familiar (assassino e apaixonado pelo genro), a filha dedicada e esposa fiel e
apaixonada, (que, tanto quanto Arandir, será vítima
da violência masculina e da hipocrisia familiar e de costumes de uma
classe média branca, carioca, que se pretendia o melhor retrato urbano
da família brasileira). Personagens que constroem um quadro da
artificialidade burguesa como parâmetro de normatividade, modelo este
que, ainda hoje, ocupa o imaginário social da sociedade brasileira, e cuja
crítica se afirma, portanto, ainda pertinente na atualidade (Miranda, 2023).
Foi partindo da constatação da atualidade da obra e do desejo de inseri-la
nos debates propostos, que estruturamos a investigação de criação para
O Beijo
[Cancelado]
.
Tratando-se de um Estágio de Atuação, a pesquisa do espetáculo tinha como
eixo principal a construção de personagem, pois o projeto consistia em adaptar o
texto a um monólogo em que o ator representasse as personagens centrais da
trama, dentre as quais figuram uma jovem mulher (Selminha) em uma cena de
estupro, um homossexual (Aprígio) e um potencial bissexual (Arandir). Estavam
postos alguns dos principais desafios da pesquisa para a equipe e, de modo muito
particular, para o ator. Conscientes de que o seu corpo, apenas em sua
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apresentação, carrega uma rie de enunciados de normatividade, como
investigar exercícios que pudessem, ao menos, trazer à consciência e neutralizar
construções violentas ou caricatas sobre os corpos feminino e homossexual?
Como construir um discurso nico comprometido com a problematização dos
imperativos de gênero, e não com sua reafirmação violenta, uma vez que é o
discurso que organiza o poder sobre o outro antes mesmo da sua consciência
sobre si?
A estrutura do discurso é importante para a compreensão de como a
autoridade moral é introduzida e sustentada se concordarmos com o fato
de que o discurso está presente não apenas quando nos reportamos ao
Outro, mas que, de alguma forma, passamos a existir no momento em
que o discurso nos alcança, e que algo de nossa existência se prova
precária quando esse discurso falha em nos convencer. Mais
enfaticamente, no entanto, aquilo que nos vincula moralmente tem a ver
com como o discurso do Outro se dirige a nós de maneira que o
podemos evitá-lo ou mesmo dele desviar. Essa implicação realizada por
meio do discurso do Outro nos constitui, a princípio, contra nossa própria
vontade ou, talvez colocado de forma mais apropriada, antes mesmo de
formarmos nossa vontade. Portanto, se pensarmos que autoridade moral
tem a ver com encontrar uma vontade e sustentá-la, talvez o
estejamos percebendo o próprio modo pelo qual demandas são
apresentadas. Ou seja, não percebemos a questão do ser implicado, a
demanda que nos vem de algum lugar, muitas vezes um lugar sem nome,
pela qual nossas obrigações o articuladas e o impostas a s (Butler,
2011, p.15).
Os desafios eram consideráveis, posto que não identificamos praticamente
nenhuma referência bibliográfica ou documental sobre o tema6, mas tínhamos
clareza de que o resultado de tais enfrentamentos no processo de criação poderia
trazer provocações potentes para o debate sobre corpo, identidade de gênero e
construção de personagem na cena contemporânea. Nesse sentido, o trabalho
impunha ao ator e à equipe a tarefa tanto de criar uma estrutura que desse conta
de contar a história quanto de representar desde personagens agressivos,
violentos e sórdidos até outros mais delicados e sensíveis. Por quais caminhos
encontrar uma base técnica que fizesse revelar os clichês sobre as personagens
para que pudessem ser reinventados e desconstruídos? Pois, não se trata de negar
o arraigamento de tais construções em nosso imaginário, uma vez que são
6 Nesse sentido, o artigo da atriz e professora Jessika Cruz, em que descreve o trabalho com o texto
Toda
nudez será castigada
e o processo de construção de personagem feminina cis Geni enquanto atriz trans foi
de grande contribuição.
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estruturais, mas de propor a visibilização e esgotamento desse repertório para que
possa ser substituído por referências mais humanizadas. Partindo de tal premissa,
nos pareceu que o caminho mais eficiente para tornar visíveis os clichês não
poderia ser outro senão pelo corpo, observando de que forma nosso imaginário
colonial e patriarcal inscreve nele marcas de corporeidades generificadas.
Qualquer ator e atriz, ao brincar com outras identidades, busca em sua
interpretação um sistema igual ao que se imagina, no contexto vivenciado
pela personagem (tempo, local, época, condições financeiras, familiares,
etc.). A personagem Geni é atual, mas para a época que foi representada,
foi colocada fora dos padrões, tida como “mulher da vida” e fora da
ideologia conservadora que padronizava aquela época. Uma atriz
transexual, ou o simples fato da transexualidade levanta questões
semelhantes nos dias atuais. É preciso compreender que a identidade
sexual é definida pela personagem quando se está em cena, e não pelo
corpo do ator. Os atos e atitudes que definem alguém como homem ou
mulher, baseados em ações sexistas, são desenhados através dos gestos,
movimentos, e de toda performance (Cruz, 2023, p. 140-141).
Tratando-se de um monólogo que tinha como eixo a capacidade do ator em
tornar visíveis as trocas de papéis, começamos, juntamente com a diretora Aika
Daniela Braga, a levantar quais técnicas corpóreas poderiam ancorar a construção
das personagens, partindo, sobretudo, da composição física. A especificidade de
nossa pesquisa exigia não o levantamento dos elementos de composição, mas
também a capacidade de dilatar os momentos em que pontos de tensão
estivessem mais agudos e quais as qualidades corporais que comumente se
associam a cada ponto. Mais uma vez, trata-se do duplo movimento de deixar
surgir todas as possíveis referências caricaturais sobre as personagens, para que
possam ser mapeadas e substituídas por corporeidades que tentem precisamente
problematizar estereótipos misóginos e homofóbicos sobre elas. Para tanto, após
testarmos algumas técnicas, chegamos a um princípio de mapeamento de
corporeidades que nos foi de extrema ajuda no esforço de decolonizar os modos
de construir uma personagem: o conceito de
punctum
aplicado ao trabalho do
ator.
Punctum
é um "conceito poético” proposto originalmente pelo filósofo e
semiólogo francês Roland Barthes em uma de suas principais obras de
refencia, A Câmara Clara, para refletir sobre as relações entre fotografia,
percepção e cognição sensível. Na tensão dialética com o conceito
complementar de
studium
, Barthes define o
punctum
como o conteúdo
da imagem/paisagem que rompe com a percepção genérica do que se
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e que cria relevos de impacto, pontos intensificados da visualidade geral
da foto que “partem da cena como uma flecha […] como picada, pequeno
buraco, pequena mancha, pequeno corte”, uma irrupção radical e violenta
de sentido de um determinado ponto (Miranda, 2023).
Ainda sobre a dialética entre
studium
e
punctum
:
Desse campo, são feitas milhares de fotos, e, por essas fotos posso,
certamente, ter um interesse geral, às vezes emocionado, mas cuja
emoção passa pelo revezamento judicioso de uma cultura moral e
política. O que experimento com essas fotos é uma espécie de afeto
médio
, quase como um adestramento. Eu não via, em francês, palavra
que expressasse simplesmente essa espécie de interesse humano; mas,
em latim, acho que essa palavra existe: é
studium
, que não quer dizer,
pelo menos de imediato, “estudo”, mas a aplicação a uma coisa, um gosto
por alguém, uma espécie de investimento geral, ardoroso, é verdade, mas
sem acuidade particular (Barthes, 1984, p. 44-45).
Os conceitos são, portanto, importados do campo da semiótica aplicada à
fotografia para nos ajudar a construir um processo de composição que fissurasse
o tratamento de gênero paisagístico e genérico das personagens, essa percepção
studium
, de “afetos médios”, definida pelo filósofo; e que tão facilmente se vincula
a um senso comum sustentado por imagens grosseiras, caricaturais e
desumanizadas de corpos subalternizados. Entendendo o corpo do ator como a
“fotografia" barthesiana, ao criar determinados
punctums
(núcleos específicos de
tensão muscular) para cada papel procuramos designar suas caractesticas não a
partir de um senso comum introjetado sobre “como olha uma mulher”, ou “como
anda um homossexual enrustido", mas buscando encontrar aqueles pontos que
pudessem dar relevo no corpo as intensidades específicas do comportamento da
personagem. Trata-se de pontuar no corpo e na voz as tensões mais marcantes
de cada um deles, tão marcantes que se mostram também como rupturas,
cicatrizes, marcas profundas de seu caráter por onde o drama transborda:
[...] essa palavra (
punctum)
me serviria em especial na medida em que
remete também a ideia de pontuação e em que as fotos de que falo são,
de fato, como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas com
esses pontos sensíveis; essas marcas, essas feridas são precisamente
pontos (Barthes, 1984, p. 46).
Compreendendo os pontos demarcados como possíveis elementos
norteadores para abordagens menos colonizadas sobre as personagens,
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encontramos alguns autores cuja leitura sobre o conceito de
punctum
acabou por
subsidiar de forma muito potente a pesquisa, pois converge profundamente com
a noção de composição da personagem que buscamos desenvolver. Como
identificamos nas reflexões do pesquisador do Programa de s-Graduação em
Comunicação e Semiótica da PUC/SP, Rodrigo Fontanari, em seu artigo sobre o
tema:
Para Barthes o
punctum
é algo que fascina o corpo; é o campo do
indizível da imagem: aquilo que cala na alma do observador porque o
olhar não é capaz de capturar. Ele somente patina sobre essa superfície,
pois o
punctum
se apresenta no campo cego da imagem: “Seja o que for
o que ela a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre o
invisível: o é aquilo que vemos” (Fontanari, 2015, p. 67).
Também nós buscávamos uma construção de personagem que fosse
qualquer coisa que não o estereótipo que tão eminentemente se apresenta ao
corpo colonizado. Interessou-nos profundamente essa perspectiva do
punctum
como o ponto de intensidade de uma imagem geral que faz emergir o invivel, as
forças invisíveis da imagem, seus núcleos de intensificação que fissuram o plano
geral de “entendimento do sentido da imagem” e que convidam a perceão ao
mergulho no invivel de si. Seria possível aplicar esse princípio às técnicas de ator
para criar composições que escapassem dos clichês e dos sentidos gerais de uma
personagem?
Encontramos, na obra do ator e pesquisador Renato Ferracini, um
caminho de reflexão traçado sobre as relações entre o conceito de
punctum
e o trabalho do ator. Refletindo sobre o treinamento como um
local de intensificação de experiências corpóreas, ele relaciona o conceito
barthesiano à técnica de atuação precisamente no ponto em que nos
interessa, um procedimento que pode ser produzido do corpo expressivo
de forma análoga à imagem fotográfica. Também no corpo do ator
enquanto imagem essencial da comunicação teatral é possível se
produzir zonas de tensão com intensidades específicas que definem a
corporeidade de determinada personagem para além dos clichês, pontos
que são marcas, cicatrizes, aberturas para seus aspectos invisíveis
(Miranda, 2023).
O
punctum
, como núcleo de tensões intensifica qualidades específicas do
corpo ao ponto de abrirem brechas para que seus sentidos ocultos se em à
visão, de modo a tentar subverter a perceão panorâmica e estereotipada sobre
o corpo e o comportamento das personagens quando percebidas pelo senso
patriarcal e colonial:
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Para o ator, o conceito de
Studium
de Barthes poderia estar vinculado ao
terreno da mecanicidade, dos clichês, da fisicidade. Mas podemos
reutilizar o conceito de
Punctum
para entendermos melhor a questão da
recriação de ações físicas. Portanto, redimensiono aqui esse conceito na
relação do ator para com ele mesmo. O que chamo de
Punctum
físico é,
muitas vezes, um conjunto de pequenos detalhes da ação, mas são esses
detalhes que interessam enquanto caráter potencialmente expansivo e
metonímico do
Punctum
na ação física a ser recriada a posteriori.
Metonímico no sentido de que esse detalhe muscular contém, em
potência e em estado virtual, o todo da ação e que esse detalhe pode
mobilizar esse mesmo todo, em um processo de atualização, ou seja, de
recriação da ação (Ferracini, 2018, p. 039-047).
Era fundamental, em tal processo, que os
punctums
estivessem muito bem
definidos para que funcionassem como disparadores efetivos da construção das
personagens. Iniciamos, assim, os trabalhos práticos e as experimentações,
partindo da premissa de que uma correta investigão dos
punctums
em cada um
dos papéis poderia nos ajudar a driblar as armadilhas de uma abordagem
psicologizante das personagens que poderiam reafirmar perspectivas machistas e
Tabela elaborada por João Miranda, 2023
Personagens
Características
Punctums
Arandir
(Protagonista)
Neutro - vítima, sempre
tentando entender as
situações em que está.
Propositalmente o possui.
Como se seus movimentos não
fossem muito pensados.
Selminha
(Esposa Arandir)
Espécie de vítima, assim
como Arandir. Demonstra
preocupação com os
acontecimentos.
Passadas alinhadas que
movimentam levemente o
quadril. Braços fazem pequenos
gestos que ‘desenham’ sua fala.
Aprígio
(Pai Selminha)
Sempre a ponto de explodir,
constante tensão.
Pés paralelos, braços semi-
estáticos, cabeça/olhar altivo, ar
de preocupação.
Cunha
(Delegado)
Agressivo, violento, um dos
vilões da peça
Pés abertos, peito pra fora,
cabeça erguida, olha de cima
pra baixo.
Amado Ribeiro
(Jornalista)
Ardiloso, o principal vilão da
peça. Quem articula tudo
contra Arandir.
Pés fechados, peito pra dentro,
cabeça baixa, olha de baixo pra
cima.
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A tabela descrita acima foi constantemente ensaiada e exercitada, para
que, durante a apresentação, não houvesse o comprometimento na
compreensão de cada figura. Era importante que todos os
punctums
estivessem bem definidos e associados ao fluxo do texto, bem como às
transições de uma personagem para outra, a fim de que se construíssem
com clareza, na percepção do público, todas as cenas propostas
(Miranda, 2023).
Da mesma forma, a correta estruturação das corporeidades era a base do
nosso encaminhamento pedagógico para tentar driblar a abordagem patriarcal e
colonial na criação dos papéis. À medida que é vivenciada no corpo, cada
combinação oferece um caminho concreto para que o imaginário do ator possa
se atualizar a respeito do comportamento da personagem para além de
associações imediatas por conta de seu pertencimento a um gênero específico, e
abre a possibilidade para se reconhecer a personagem de maneira mais complexa,
paradoxal e humanizada.
Tomemos a construção da personagem Selminha como exemplo.
Inicialmente, quando ainda não trabalhávamos sob a perspectiva técnica dos
punctums
, fizemos algumas improvisações sobre como ela poderia caminhar e
quais gestos teria. Imediatamente, João apresentou uma caminhada
excessivamente rebolada e movimentos afetados com a mão, que revelavam uma
caricatura de mulher abastada e mimada que pouco remetiam ao papel. Partindo
da pesquisa sobre as tensões, buscamos um caminhar sinuoso, mas de s bem
paralelos e passadas alinhadas, que estimularam de forma mais sutil o movimento
do quadril, trazendo delicadeza e suavidade a um balanço antes grosseiro, unindo
amabilidade e determinação à caminhada. Pequenos gestos dos bros
‘desenhavam’ sua fala. Tais desenhos, por si só, poderiam trazer pontos de tensão
suficientes para se problematizar a noção de “corpo feminino”, se não fosse
agravado pelo fato de que, no terceiro quadro do terceiro ato, Selminha é
violentada pelo Delegado Cunha e pelo jornalista Amado Ribeiro.
Diante do imenso desafio para o trabalho do ator, surgiu, na equipe, um
momento de intenso e prolífico debate. Como um ator, cujo corpo apresenta todas
as características do opressor/agressor, poderia representar a vítima sem reduzir
ao escárnio, à padia ou à fetichização da violência? Com quais recursos? Do
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ponto de vista cinematográfico, a cena foi abordada de duas maneiras. No filme
de 1981, de Bruno Barreto, Selminha (interpretada pela atriz Christiane Torloni) fica
seminua e chora compulsivamente enquanto a câmera a filma por trás, expondo
completamente seu corpo. Identificamos, nessa narrativa, evidências do fetiche
machista, marcas de muitas adaptações da obra de Nelson Rodrigues do final do
século passado, registro que não desejávamos reforçar em nosso trabalho.
Optamos pela inclusão desta mesma cena como abordada na versão
cinematográfica, dirigida por Murilo Benício de 2017, com uma direção de câmera
completamente distinta, em que Selminha (interpretada por Débora Falabella)
sofre tortura psicológica dos seus agressores sem, no entanto, expor o corpo da
atriz ao apresentar uma cena explícita de estupro.
Tal opção foi resultado de muitas reflexões sobre lugar de pertencimento e
o quanto o fato de um ator estar representando uma mulher nessa condição é
algo delicado de se tratar, ainda mais por ela, no texto, sofrer uma brutal violência,
cometida por homens brancos e cisgêneros, tal como o próprio ator. De que forma
ele poderia representar tal papel, uma vez que o que se apresenta antes da
construção ficcional aos olhos do expectador é o corpo do opressor? Como isso
era feito nos anos 1960, na época da estreia da peça? Quais eram as escolhas?
Como seriam as nossas escolhas frente à conjuntura brasileira contemporânea de
alto índice de feminicídio, assédio e estupro e de debate democratizado sobre
machismo e misoginia? Qual linguagem teatral adotar para realizar a cena? Quais
técnicas e estilos de atuação? Simplesmente não se fazer essa cena, retirá-la da
adaptação? A solução seria não abordar o tema? Ou ignorar os debates sobre a
não-neutralidade do corpo do ator e seguir trabalhando com construção de
personagem como se costuma fazer desde o culo passado? Os
pontos de
tensão
estão postos.
Decidimos que não representaríamos uma mulher sofrendo violência sexual
em registro realista, como no filme de Barreto, contudo, exporíamos a situação
por meio de gestos e movimentos mais abstratos, que apenas sugerissem que a
personagem estava sendo violentada, sem recorrer à hiperexposição de uma cena
realista, tão explorada pelo cinema do passado. Chegamos a tal escolha após
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conversarmos muito, ao próprio ator reconhecer que essa situação ficcional
consistia em um
ponto de tensão
, naquele momento, instranspovel para si.
Ao final de cada apresentação de
O Beijo [Cancelado]
, era promovida uma
roda de conversa com o público, para que expusesse suas opiniões acerca do
espetáculo, e os retornos foram bastante variados. Muitas pessoas disseram que
sentiram falta de uma ousadia maior por parte da encenação que, se tratando de
uma peça de Nelson Rodrigues, o monólogo deveria conter mais cenas de
violência
explícita
, o que nos fez pensar o quanto a obra do dramaturgo segue impregnada
no imaginário popular pelas referências do teatro e do audiovisual do século
passado. Foi fundamental, para nossa pesquisa, saber das impressões causadas
pelo trabalho, para verificar se havíamos avançado em nossos objetivos iniciais de
investigar técnicas de atuação que pudessem contribuir com uma perspectiva
crítica sobre a construção da personagem em nossos dias e também sobre a
dramaturgia do autor no que diz respeito ao tratamento de gênero. Ao promover
o debate com o público, estávamos expostos a receber todo o tipo de comentário,
fosse ele mais afetivo ou agressivo. Mas, de um modo geral, após as três
apresentações, o teor das discussões revelou o quanto é relevante montar as
peças de Nelson Rodrigues, mesmo (ou, principalmente) nos dias de hoje.
Debatemos também sobre as adaptações cinematográficas realizadas nas
décadas de 70 e 80, e o quanto elas, por vezes, corroboraram para o reforço de
preconceitos tanto sobre as personagens subalternizadas quanto sobre a própria
obra do dramaturgo, explorada à exaustão no registro da hiper-violência realista.
De toda forma, foi por meio delas que seus textos obtiveram alcance popular e
contribuíram para o debate a respeito de temas invisibilizados, ainda que pela
polêmica causada.
A conclusão da pesquisa nos revelou caminhos importantes de auto-
desconstrução e autocrítica que consideramos irreverveis para se pensar a
adaptação da obra teatral de Nelson Rodrigues em geral, e de
O Beijo no Asfalto
em específico, nos dias de hoje. Reconhecemos que esse processo não pode
acontecer sem o enfrentamento dos
pontos de tensão
existentes nesta ou em
qualquer obra. Tal reconhecimento envolve não apenas a identificação da violência
de raça e gênero nos aspectos gerais do texto, mas em como as informações
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sobre as personagens acionam referenciais igualmente violentos e desumanos em
nosso próprio imaginário. Tão mais desafiador é esse processo quando nossos
corpos carregam a experiência e os imperativos da normatividade e nos vemos
instigados a representar papéis de seres humanos subalternizados, cuja história e
vivência de opressão nos escapam. Não pretendemos, de forma alguma, dar conta
do debate com a partilha de nossa experiência, nem pressupor que um conjunto
de práticas vinculados a vivências de criação específicas possa ter outra função
que não a de contribuir de forma parcimoniosa para a profunda e inadiável
discussão entre
representação
e
representatividade
nos modos de atuar
contemporâneos. Se não é mais possível sustentar o pressuposto da
neutralidade nos corpos que se apresentam em cena (senão como escárnio e
naturalização da violência normativa), como podemos transversalizar novas
práticas para problematização dos enunciados identitários na criação do papel de
forma a não reproduzir estigmas e reiterar percepções violentas sobre as
alteridades?
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Recebido em: 20/09/2023
Aprovado em: 12/11/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br