Correio sentimental de Nelson Rodrigues
e
A prosa do Nelson
, do Núcleo Carioca de Teatro
Nara Waldemar Keiserman
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-23, dez. 2023
Para a composição dos personagens Carlos e Virgínia foram usadas meias
máscaras neutras. Carlos é descrito como um homem belíssimo, quase
sobrenatural. Virgínia, tida como morta, reaparece sem memória. Se, como já
explicitado, na composição dos personagens do folhetim há uma sugestão
corporal de manipulador imaginário, nestes dois, na construção com o uso de
máscaras, tal alusão é quase uma presença.
A composição de Virgínia trouxe-me várias questões. Primeiramente,
considerando a própria máscara, foi preciso ter movimentos muito definidos
comandados pelo pescoço, já que o olhar do personagem é dado pela direção para
onde aponta o nariz. Optei por ter a coluna naturalmente ereta, sem o tônus
adotado para Dona Olívia, e alguma coisa me fez trabalhar com as palmas das
mãos apontando para fora - o que me dava uma sensação inequívoca de solidão,
carência e abandono.
O diretor concebeu a primeira cena de Virgínia e Lúcia ao redor da mesa.
Pediu que além de a circundarmos, também girássemos ao redor de nós mesmas.
Os giros fizeram-me sentir a presença forte das pernas, e todo o jogo de
peso/equilíbrio que traduzia a inquietação do personagem. Estabeleci uma ênfase
nas transferências de peso, com ou sem locomoção, o que possibilitou a execução
do balanço sincronizado entre tronco e pernas, que sugere o movimento do barco
em que Paulos e Virgínia estão quando ele tenta matá-la. Da mesma forma, na
cena em que o personagem caminha pelas ruas como uma sonâmbula o foco vai,
mais uma vez, para o controle do movimento das pernas.
Mas alguma coisa, a música talvez, trazia um forte chamamento para os
meus punhos12. Estou em pé, sobre a mesa/praticável, de frente para a
plateia. Carlos, atrás de mim, pronuncia um nome, Virgínia, que ainda não
reconheço como meu. Mas é grande a minha comoção. Levo as mãos
na altura dos ouvidos, os cotovelos apontando para os lados. Em seguida,
vou aproximando-os à frente do corpo, até que as palmas das mãos
encubram o rosto/ máscara, os cotovelos baixos, ao mesmo tempo em
que me ajoelho. Já ajoelhada, giro os cotovelos para fora, e vou, então,
estendendo os braços lateralmente, com uma tensão tão forte nos
punhos, que demoro a desfaze-la. Tenho que promover um esforço para
estender finalmente as mãos, repetindo sempre “Virgínia, Virgínia...”
(Keiserman, 2005, p.33).
12 Trata-se do
Prelúdio da Suíte n° 2, em ré menor
, de J.S. Bach. Muito tempo depois, ao ouvir essa música
casualmente, ainda pude sentir como se fios presos aos meus punhos fossem puxados firmemente,
obrigando-me a dobrá-los.