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Correio sentimental de Nelson Rodrigues
e
A prosa
do Nelson
, do Núcleo Carioca de Teatro
Nara Waldemar Keiserman
Para citar este artigo:
KEISERMAN, Nara Waldemar.
Correio sentimental de
Nelson Rodrigues
e
A prosa do Nelson
, do Núcleo Carioca
de Teatro.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 49, dez. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0104
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e
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, do Núcleo
Carioca de Teatro1
Nara Waldemar Keiserman2
Resumo
Descrição e análise de procedimentos de criação e da linguagem cênico-narrativa
do coletivo Núcleo Carioca de Teatro nas montagens de
Correio sentimental de
Nelson Rodrigues
(1999) e
A prosa do Nelson
(2000), da obra de Nelson Rodrigues,
em que a autora esteve como atriz, preparadora corporal e pesquisadora.
Palavras-chave
: Núcleo Carioca de Teatro. Teatro Narrativo. Ator Rapsodo. Nelson
Rodrigues
Nelson Rodrigues 's Sentimental Advice Column
and
Nelson’s prose
Abstract
Description and analysis of creation procedures and scenic-narrative language by
Núcleo Carioca de Teatro in the productions of
Correio sentimental de Nelson
Rodrigues
(1999) and
A prosa do Nelson
(2000), by Nelson Rodrigues, in which the
author was as performer, body trainer and researcher.
Keywords
: Núcleo Carioca de Teatro. Narrative Theatre. Rhapsode Actor. Nelson
Rodrigues
Correio sentimental de Nelson Rodrigues
y
La prosa de Nelson
Resumen
Descripción y análisis de los procedimientos de creación y lenguaje escénico-
narrativo del Núcleo Carioca de Teatro en las producciones de
Correio sentimental
de Nelson Rodrigues
(1999) y
A prosa do Nelson
(2000), a partir de la obra de Nelson
Rodrigues, en los que el autor actuó como performer, entrenadora corporal e
investigadora.
Palabras clave:
Núcleo Carioca de Teatro. Teatro Narrativo. Actor Rapsodo. Nelson
Rodrigues.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Diana de Hollanda Cavalcanti, Mestre em
Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ).
2 Pós-doutorado na Universidade de Lisboa Portugal. Pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Doutorado em Teatro na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado
em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Graduação em Licenciatura em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação em Teatro pela UFRGS. Professora Titular, da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro. Atriz-peformer. Diretora em movimento.
narakeiserman@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/8197562800629849 https://orcid.org/0000-0001-7539-0179
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Apresentação
Esta escrita tem como base a tese de doutorado apresentada em dezembro
de 2004, na Unirio, ainda inédita. Teve como orientador Luis Artur Nunes e na
banca examinadora Ingrid Dormien Koudela (USP), José Ronaldo Faleiro (UDESC),
Maria Helena Werneck (UNIRIO) e Ricardo Kosovski (UNIRIO). Num jogo com o
tempo, aparecem aqui pelo menos três camadas: revejo em 2023 o que escrevi
em 2003-2004 sobre o que vivi entre 1999 e 2000, com o Núcleo Carioca de Teatro.
O olhar/visão de mundo de hoje é que determina o critério de “isso sim, isso não”
o que ainda parece relevante se destaca do que se tornou banal ou mesmo
circunstancial.
O Núcleo Carioca de Teatro (NCT3) nasce no Rio de Janeiro, após uma feliz
experiência na encenação de
A maldição do Vale Negro
, de Luis Artur Nunes4 e
Caio Fernando Abreu, em 1988, com direção do primeiro. As(os) artistas ali
reunidos5 resolvem, por nítidas afinidades, apostar num trabalho em continuidade
que resultou na montagem de
A vida como ela é
(1991 e 2002), com contos
selecionados de Nelson Rodrigues, seguida por
Cândido ou o otimismo
, novela de
Voltaire (1993) e
Tragédias cariocas para rir
, contos de vários autores (1996) todos
dirigidos por Luis Artur Nunes.
Em 1997, ingressei na Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro - Unirio para assumir o cargo de professora de Dança e Expressão
Corporal, onde Luis Artur era já professor no Departamento de Direção Teatral. O
trabalho que realizávamos no Núcleo passa a ter um caráter assumidamente
investigativo, no contexto de nossas pesquisas institucionais: de Nunes,
Teatro
Rapsódico: uma investigação de novas formas de interação entre os discursos da
épica teatral e da épica literária a crônica popular e memorialista de Nelson
Rodrigues e Ator rapsodo: pesquisa de procedimentos para uma linguagem
gestual
, esta sob minha coordenação. A vinculação entre as duas pesquisas se dá
3 O histórico do Núcleo Carioca de Teatro encontra-se disponível em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo399360/nucleo-carioca-de-teatro. Acesso em set. 2020.
4 Prêmio Molière de Melhor Autor e Melhor Cenário para Alziro Azevedo.
5 Ivo Fernandes, Maria Esmeralda Forte, Shimon Nahmias e eu citando os que formaram o Núcleo, e não
todo o elenco de A maldição do Vale Negro.
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na medida em que o treinamento atoral, do meu projeto, é alimentado e aplicado
no trabalho de preparação, criação, ensaios e apresentações das montagens
objetivadas no projeto de Nunes, de que eu participava como atriz. Montamos
Correio sentimental de Nelson Rodrigues
, com as cartas escritas sob o
pseudônimo de Myrna (1999),
A Prosa do Nelson
, contos, crônicas e reportagens
de Nelson Rodrigues (2000) e
Um menino de paixões de ópera
, crônicas
autobiográficas de Nelson Rodrigues (2000)6. Passei a atuar como atriz e como
pesquisadora, dando início a minha experiência como artista-docente-
pesquisadora.
Os princípios do trabalho se colocavam: exploração da teatralidade como
linguagem, envolvendo todos os aspectos da encenação; literatura ficcional como
material textual, com a voz narradora mantida no palco e convertida em
personagem narradora, que eventualmente introduz os diálogos, as formas épica
e dramática convivendo num jogo produtivo de intercâmbios. A explicitação do
jogo é parte da linguagem, que se propõe a revelar seus próprios procedimentos.
Assim como o autor não desaparece nos personagens, a cena não esconde o uso
dos recursos e estratégias de encenação.
Coexistem nas montagens do Núcleo Carioca de Teatro duas categorias
principais de entidade narradora, a que denominamos de narrador-personagem e
de personagem-narrador, que determinam (Keiserman, 2005, p. 18) a composição
de diferentes corpos-gestos-atitudes.
O narrador-personagem é onisciente e se manifesta com maior ou menor
grau de adesão afetiva ao relato. É o dono da voz autoral que conduz a narrativa,
mas não pretende corporizá-la, no sentido de assumir o seu papel, de “ser” Nelson
Rodrigues, por exemplo, ao narrar os contos de A vida como ela é. Em relação à
espacialização da cena, poderá estar colocado num lugar afastado, ou
compartilhar o espaço da cena com (Keiserman, 2005, p. 18) as personagens,
podendo mesmo estabelecer com elas uma interação fisicalizada em toques e/ou
olhares.
O personagem-narrador se manifesta na primeira pessoa e sua visão do
6 Em 2004, o NCT encenou
A tempestade
, de Shakespeare, com direção de Nunes, de que não participei.
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relato será sempre parcial, que participou dos eventos ficcionais como
protagonista ou coadjuvante.
situações em que a narrativa introduz personagens que se expõem através
de diálogos e, ainda, em que esta personagem, fruto do relato, é também
incumbida de narrar. Assim, um transitar entre esses corpos, uma passagem
de um para o outro com fluência e ostentação, podendo a atriz, o ator habitá-los
simultaneamente, no caso em que empresta a voz à narração pretérita, enquanto
seu corpo fisicaliza a personagem, presentificando-a.
Esse trabalho ecoa, evidentemente, certos princípios brechtianos, como a não-
metamorfose no personagem, por exemplo.
O fato de não estar colado ao personagem, oferece um espaço a ser
preenchido por uma opinião, um ponto de vista fundamental tanto no
teatro brechtiano quanto no rapsódico. Mesmo no caso de o personagem
narrador ser o protagonista da história narrada, ele estará sempre
colocado, por diferentes recursos da linguagem da encenação, em algum
grau de distanciamento que permita revelar seu caráter de manipulador
e de encaminhador do relato (Keiserman, 2005, p. 18).
A atriz e o ator são incumbidos de corporizar (dar corpo e voz), fisicalizar (em
atitudes, gestos, posturas, ações), de ostentar (em linguagem teatral) a interface
entre o épico e o dramático. Nesse ato, apoderam-se da voz autoral, tanto no
sentido do autor do texto quanto no do autor da cena, pela manipulação revelada
da linguagem e seus recursos.
Quando afirmo que a atriz e o ator compõem, tenho em mente a
disponibilização de um nível de consciência perceptiva, da orquestração do
aparato expressivo, da organização dos esforços imprimidos, gerando uma
gestualidade que implica em organização postural e tônica e carrega a
intencionalidade de revelar o trabalho realizado, como se dissessem para o
espectador, durante a apresentação: “meus gestos foram ensaiados, preparados
cuidadosamente, exigiram-me esforço e maestria, e agora, eu observo minha
execução tanto quanto vocês” (Brecht, 1978). Abordamos o espectador pela via
intelectiva, apostando na configuração de um teatro em que pensar emociona.
Munidos de tais princípios e de intenso treinamento em procedimentos
gestuais, a que chamamos de “manipulações” e base da linguagem em A vida
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como ela é, assim como no modo improvisacional de criação, a partir de
indicações precisas de Nunes, lançamo-nos na criação de Correio sentimental de
Nelson Rodrigues.
Correio sentimental de Nelson Rodrigues
Entre abril e dezembro de 1949, Nelson Rodrigues manteve uma coluna de
correio sentimental, no jornal Diário da Noite sob o pseudônimo de Myrna.
Chamava-se
Myrna Escreve
. Este material encontrava-se digitalizado na
hemeroteca da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro e, nesta pesquisa,
encontramos o
folhetim A mulher que amou demais
Cartas e Folhetim vieram
a se constituir na base textual da encenação.
Demos início à etapa de preparação, com práticas de treinamento corporal
(as manipulações) e vocal, sendo este baseado em Cicely Berry (1973). O objetivo
principal está na compreensão da palavra como construtora de cenários,
ambientes e imagens, a palavra como carne.
As sequências de manipulação foram experimentadas pela primeira vez para
a encenação
de A vida como ela
é e exercitadas a cada nova montagem, não
como possível procedimento a ser utilizado na cena como também como um
aquecimento de chegada a cada ensaio. O trabalho é realizado em duplas, numa
relação ativo-passivo, em que o primeiro é o manipulador e o segundo é o
manipulado, numa dinâmica análoga a do bonequeiro e boneco. O foco da
corporeidade está em fatores como peso e contrapeso, apoio e contato, estímulo
e resposta. As mudanças em qualquer desses fatores alteram as diferentes
qualidades da gestualidade produzida. As etapas sequenciadas do trabalho com
as manipulações se dão a partir da modificação, principalmente, do fator peso no
corpo do boneco. São denominadas de Morto, Macaco, Bêbado, Impulso, Mola,
Bonecos Chineses, “Justino”/Clone7 e Fotograma/Escultura. Todas têm suas
especificidades e desdobramentos possíveis, adequados a esse ou aquele efeito
cênico desejado ou objetivo pedagógico, mas alguns princípios básicos que
7 Justino é o nome do personagem do conto Dentro da Noite, de João do Rio, para cuja composição a técnica
foi criada, a partir da ideia de sombra: em duplas, o ator que se coloca atrás segue os movimentos do que
está na frente. Este conto era parte do espetáculo
Tragédias cariocas para rir
, de 1996.
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norteiam o trabalho como um todo, e que podem ser traduzidos por uma
colocação muito simples. Trata-se de não trair a proposta, ou seja, do ponto de
vista do boneco, seguir fielmente os impulsos recebidos do manipulador,
permitindo que se manifestem no corpo todo, mesmo que apenas internamente
e de maneira muito sutil, num trabalho inequívoco de ressonância e de acordo
com grau de tensão, contato entre os corpos, força, direção e parte do corpo que
recebe o toque do manipulador. Cabe a este investir na sua condução com
absoluta precisão, no que se refere aos mesmos fatores de força, direção, partes
do corpo, de modo a produzir o movimento desejado, o que implica em clara
intencionalidade.
As etapas do Morto, Macaco, Bêbado, e Mola não foram usadas nas
encenações do Núcleo, como linguagem narrativa. As demais foram largamente
exploradas com inúmeras variações e desdobramentos.
Tivemos acesso à cerca de 40 cartas de Myrna dando conselhos sentimentais,
e ao folhetim
A mulher que amou demais
, em que Myrna conta a história da
personagem Lúcia, envolvida pelo amor de dois irmãos, Paulo e Carlos que
haviam, em épocas passadas, amado a mesma mulher, Virgínia tida como morta,
num acidente com Paulo.
Depois das várias leituras que fizemos do material, o diretor selecionou para
montagem as cartas “A mulher faz o homem”, “O homem que foi abandonado
nove vezes”, “O mistério da felicidade matrimonial”, “É bom ser fiel”, “A esposa
sem amor é como a solteirona” e o romance-folhetim “A mulher que amou
demais”.8 A dramaturgia do espetáculo foi organizada numa estrutura em quadros,
os capítulos do folhetim sendo interrompido pelas Cartas, de forma a preservar o
sabor do seu relato episódico.
Trabalhamos sobre os textos das cartas experimentando diferentes
modalidades da fala coral, o que nos levou à descoberta do efeito do uníssono e
à busca de um timbre comum entre os atores - adequado ao narrador coral em
que investimos como linguagem.
Passamos então às improvisações, considerando como princípios
8 Coloco aqui os títulos das Cartas por seu sabor inequivocamente rodriguiano.
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estabelecidos para a encenação: a utilização de recursos experimentados,
privilegiando a linguagem das manipulações; o uso de máscaras e bonecos, a
narração coral, os atores operando, em cena, a sonoplastia. Eram dados
estabelecidos: a fala narradora passando com fluidez de um narrador para outro;
simples mudanças de posição do ator, no uso do plano espacial, definindo
mudanças de ambiente; mudanças de tom evidenciando a transformação de um
mesmo ator de narrador em personagem e vice-versa.
Nas improvisações, fomos testando a adequação de cada Carta às técnicas
de manipulação e a outros procedimentos que o diretor foi sugerindo. Nesse
período de criação, atrizes e atores, seguindo as indicações do diretor, iam
elaborando suas composições vocais e gestuais e à medida em que estas vão se
afinando com as propostas do diretor, passa-se a uma repetição rigorosa dos
resultados alcançados. Cria-se tal tessitura rítmica na atuação que, por menor
que seja a alteração que uma atriz ou ator eventualmente imprima, faz sair do
lugar a partitura milimétrica dos demais, o que não impede que, mesmo durante
as temporadas e a qualquer momento, o elenco e diretor proponham
modificações, exigindo quantos ensaios forem necessários na busca do resultado
que se considere perfeito.
Deixo de descrever elementos cenográficos e de figurinos, por acreditar que
as fotos dão conta das informações necessárias para a visualização por parte da
leitora(or). Vale a pena acentuar que pela primeira vez num trabalho do Núcleo,
usamos uma maquiagem elaborada e igual para todo o elenco. Rosto bem claro,
sombra alaranjada nas pálpebras e lentes de contato azuis fazem o desenho do
rosto do elenco se assemelharem. Fundo e figurinos pretos trazem destaque para
o rosto e as mãos claras.
A música atuava em duas modalidades, ambas executadas pelo elenco. Uma
sonoplastia gravada, muito presente no folhetim, era operada de cena pelo elenco,
num equipamento de som colocado na direita alta, devidamente iluminado para
que fosse revelado. Vale lembrar que o ano é 1999 - a sonoplastia estava gravada
em fitas cassete. Duas das Cartas eram sonorizadas ao vivo com vozes e
instrumentos de percussão, como parte da própria cena. Ao final, cantávamos em
coro a “Canção de Myrna”, composta por Demetrio Nicolau, com um dos atores ao
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violão.
Segue o detalhamento cênico de duas Cartas que considero exemplos
emblemáticos dos procedimentos e linguagem cênico-narrativa adotada para
teatralizar este universo rodrigueano específico. Adoto uma linguagem mais
pessoal, por se tratar de uma narração de dentro estou como atriz nas cenas
que descrevo.
O mistério da felicidade matrimonial
Dalva, Minas
Feita a opção por uma Myrna coral, enfatizando uma coletividade rapsódica,
estabeleceu-se um desenho inicial em que as três atrizes e os dois atores estão
sentados em linha, no centro do palco, de frente para a plateia. Após algumas
experiências, colocou-se em cena a mesa, com os atores sentados atrás dela. Veio
daí o primeiro traço do caráter da personagem Myrna: didático, professoral,
conferencista. Os gestos e as atitudes começaram a surgir de acordo com o tom
adotado para a fala e foram tomando diferentes qualidades em relação a fatores
como tempo, uso do espaço e peso, de acordo com a personalidade narradora de
cada uma, cada um, o seu modo de expressão pessoal, repertório e vocabulário
gestual. Assim, quanto ao uso do espaço, alguns gestos se tornaram maiores ou
menores, com ênfase nos planos horizontal e/ou vertical. Na relação com o tempo,
os gestos variavam entre as possibilidades de iniciar antes, durante ou mesmo
depois da emissão da fala, preenchendo ou não a fala inteira, o que determinava,
para o gesto, os seus andamento e duração. No uso do peso, os gestos poderiam
permanecer num mesmo tônus, leve ou pesado, enquanto outros ostentavam um
acento, que poderia coincidir ou não com a ênfase do texto. O trabalho evoluiu de
tal forma - e para acentuar a ideia de se ter uma mesma Myrna que se optou
pela realização simultânea da partitura gestual resultante da realização
sequenciada do gesto criado por cada uma(um). No momento em que se fez essa
opção, os gestos sofreram modificações em função do encadeamento necessário.
Por exemplo: se o gesto anterior finalizava com as duas mãos sobre a mesa, o
próximo deveria, necessariamente, iniciar desta posição.
Esta partitura gestual acabou por ganhar vida própria, identificada num dos
ensaios quando experimentamos uma execução da sequência toda em silêncio,
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com o texto apenas mentalizado, com o objetivo principal de ganharmos clareza
no uso dos tempos de realização de cada gesto e das pausas entre eles. O
resultado mostrou-se de tal forma interessante como procedimento, atraente
para o elenco e aparentemente instigante para a plateia, que foi mantido no
espetáculo. Decidimos iniciar a cena por essa execução muda e simultânea da
partitura gestual, que será repetida em seguida com texto. Pareceu-nos que o
caráter aberto (em sentidos possíveis) e ao mesmo tempo definido (nas qualidades
formais dos movimentos) da sequência gestual proporcionaria ao espectador uma
espécie de interessante jogo de fruição e de adivinhação, solucionado na segunda
realização.
A ausência das palavras, ou a presença delas, trouxe a necessidade de
diferentes usos do tempo nas duas execuções. A palavra como que esgarça o
tempo, escandindo o gesto. O silêncio obriga ao gesto sintético, único e necessário.
Elimina o supérfluo, secando o gesto de qualquer tendência cotidianizada, natural.
Posso afirmar o prazer que tivemos em todo o processo de criar, realizar, adaptar,
aprender e se apropriar dos gestos criados, executar nos tempos adequados,
perceber e fazer parte de um coro vocal e gestual.
O mistério da felicidade matrimonial. Nara Keiserman, Francisco de Figueiredo,
Maria Esmerada Forte, Alexandre Bordalo. O mesmo gesto, em execução própria.
Foto: Chico Lima. Acervo da autora.
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O Homem que Foi Abandonado Nove Vezes
Romano, Varginha
É a única carta em que, na encenação, o consulente não é imaginário -
Romano está colocado em cena como personagem. Houve também uma
interferência dramatúrgica maior, estabelecendo-se diálogos entre Myrna e
Romano.
Myrna é feita pelas três atrizes, no procedimento de manipulação que
chamamos de Clone9, e Romano, portando meia-máscara, pelos dois atores na
técnica dos Bonecos Chineses10, com alternância entre as funções de
manipuladora(or) e manipulada(o).
Como em outras cenas, a música é usada como comentário. Cada atriz tem
um tema musical que cantarola em solo, em determinado momento da cena. Em
outro, o fazem simultaneamente, criando um efeito de desarmonia, salientando as
diferenças contidas na unidade. As canções são os temas musicais dos filmes E o
vento levou, composta por Victor Young,
Casablanca
, por Herman Hupfeld e
Amacord
, por Nino Rota.
Estou no papel de Myrna, feita pelas três atrizes na técnica do Clone, também
usado em outras cartas. Nesta, entre nós um jogo espacial que permite
diferentes tipos de deslocamentos e composições corporais, com gestos que
seguem os procedimentos vocais: falas e gestos uníssonos e idênticos, falas e
gestos com diferentes tipos de repetições.
Esta construção foi estabelecida logo de início, e no processo de ensaios, à
medida em que os gestos de cada Myrna, os encaixes dos três corpos, a sincronia
dos movimentos e a harmonia adequada entre a corporeidade e o texto foram
sendo conquistadas novos códigos iam sendo criados, tanto para Myrna/Clone
quanto para Romano/Boneco Chinês.
Myrna aparece neste conto como uma conselheira sentimental mais dura,
impositiva, quase cruel. Nossa gestualidade é forte, ágil, com um caráter de
9 No Clone, o movimento do ator que está à frente é seguido pelos demais.
10 Nos Bonecos Chineses, a manipulação é feita em ação contínua, o ator boneco no seu grau de tensão
normal, equilibrado.
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determinação, resultando numa composição por vezes distorcida, aproximada do
grotesco. Nos momentos em que trocamos olhares, usufruindo do mesmo texto
e com gestos de comentário, o tom é claramente “diabólico”.
É evidente que o entrosamento entre nós, as três atrizes, foi fundamental e
por vezes, durante os ensaios, esbarrava-se em algum tipo de resistência ou
dificuldade de qualquer ordem que, por menor que fosse, prejudicava a fluência
desejada. Isto era sanado com ajustes, correções e repetições, que realizamos
inúmeras vezes, incansáveis.
A mulher que amou demais
Escrito em 25 capítulos, com todos elementos melodramáticos típicos de um
folhetim,
A mulher que amou demais
foi transposto para o espetáculo em cinco
inserções, intercaladas pelas cartas de Myrna, abrangendo toda a gama de
acontecimentos do original e preservando o seu caráter.
São várias camadas de narração: Myrna (feita por uma única atriz,
diferentemente do que ocorre nas cartas, em que se tem sempre o coletivo de
narradores) onisciente, introduz os personagens da história de Lúcia, a
protagonista. Estes, se expressam através de diálogos e, algumas vezes, estão
encarregados de falas em que narram seu próprio passado. Lúcia trafega entre os
dois mundos, o habitado por Myrna e o dos personagens que presentificam a sua
história. É a única a perceber a presença de Myrna e faz-lhe confidências,
manifestando os seus desejos, angústias, esperanças. Constitui-se, assim, em uma
colaboradora na narração da história, chegando mesmo a completar frases
iniciadas por Myrna. No caso dos personagens de Virgínia e Paulo, há um passado
mais remoto. Um
flashback
narrativo se encarrega de trazer para o espectador o
passado do passado.
A manipulação ostensiva com que Myrna conduz o relato fez optarmos, na
composição das personagens, pela criação de uma corporeidade que sugere a
presença de manipulador imaginário, o que resulta em gestos extremamente
desenhados no espaço e sustentados no tempo. Próximos à impostação
melodramática, gestos vocais e corporais possuem acentos descotidianizados e
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complexos. De caráter predominantemente evocativo, pode-se ter, por exemplo,
uma realização géstica de um conteúdo verbal explicitado ou que está por vir.
Exemplos: na cena do momento em que Paulo tenta matar Virgínia, o movimento
do corpo da atriz que designa o movimento do barco em que estavam, é iniciado
antes mesmo do texto evocar o passeio que faziam; quando Virgínia conta que foi
ela quem matou Paulo, no final do folhetim, o gesto indicativo da ação de
apunhalá-lo conclui a narração feita.
Houve uma peculiaridade na construção do desempenho atoral no folhetim.
O texto nos foi entregue pelo diretor em capítulos, como um folhetim que se preze.
Portanto, lidávamos, para a criação das primeiras cenas, com informações
incompletas sobre os personagens e a trama.
Nos papéis de Dona Dorinha, mãe de Lúcia, e de Dona Olívia,11 mãe de
Carlos e de Paulo, noivo de Lúcia, trabalhei a partir da ideia de estabelecer
uma diferença corporal entre as duas - que aliás contracenavam em
certos momentos - pela colocação nitidamente contrastante da coluna
vertebral. O uso de um xale sobre os ombros para uma e ao redor do
pescoço para outra, também oferecia uma distinção. Mas, no momento
em que eu fazia as duas dialogarem, nem tocava no adereço. A
diferenciação dava-se tão somente no corpo e na voz (Keiserman, 2005,
p. 32).
definida a corporeidade de Dona Olívia, é que se revelou para mim a
possibilidade do contraste radical com Dona Dorinha. Assim, coloquei Dona Olívia
ereta, quase rígida no seu sofrimento e austera autoridade. Gestos econômicos,
realizados nunca acima da linha da cintura, os braços próximos do corpo, andar
firme, lento e cadenciado, de quem não perde o autocontrole – característica que
o texto aponta também para o seu filho Paulo.
Para Dona Dorinha, então, por contraste e servindo às circunstâncias do
texto, arredondei as costas. Deixando que esta postura repercutisse no
corpo inteiro, obtive: inclinação acentuada na cervical para trás, o queixo
alto, gestos elevados sempre na altura do peito, ganhando amplitude para
frente e para os lados, ágeis, nervosos. O caminhar era igualmente rápido,
de passos curtos e leves. Na cena em que as duas mães dialogam tornou-
se muito simples passar de um corpo para outro com a fluência e
prontidão necessárias (Keiserman, 2005, p./32).
11 De Dona Olívia, por conta desta forma de entregar o texto aos atores, fui ter a compreensão que me
permitiu a sua composição, quando li a cena em que ela revela que Paulo, o noivo de Lúcia e Carlos, o seu
novo apaixonado, são irmãos.
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Para a composição dos personagens Carlos e Virgínia foram usadas meias
máscaras neutras. Carlos é descrito como um homem belíssimo, quase
sobrenatural. Virgínia, tida como morta, reaparece sem memória. Se, como
explicitado, na composição dos personagens do folhetim uma sugestão
corporal de manipulador imaginário, nestes dois, na construção com o uso de
máscaras, tal alusão é quase uma presença.
A composição de Virgínia trouxe-me várias questões. Primeiramente,
considerando a própria máscara, foi preciso ter movimentos muito definidos
comandados pelo pescoço, que o olhar do personagem é dado pela direção para
onde aponta o nariz. Optei por ter a coluna naturalmente ereta, sem o tônus
adotado para Dona Olívia, e alguma coisa me fez trabalhar com as palmas das
mãos apontando para fora - o que me dava uma sensação inequívoca de solidão,
carência e abandono.
O diretor concebeu a primeira cena de Virgínia e Lúcia ao redor da mesa.
Pediu que além de a circundarmos, também girássemos ao redor de nós mesmas.
Os giros fizeram-me sentir a presença forte das pernas, e todo o jogo de
peso/equilíbrio que traduzia a inquietação do personagem. Estabeleci uma ênfase
nas transferências de peso, com ou sem locomoção, o que possibilitou a execução
do balanço sincronizado entre tronco e pernas, que sugere o movimento do barco
em que Paulos e Virgínia estão quando ele tenta matá-la. Da mesma forma, na
cena em que o personagem caminha pelas ruas como uma sonâmbula o foco vai,
mais uma vez, para o controle do movimento das pernas.
Mas alguma coisa, a música talvez, trazia um forte chamamento para os
meus punhos12. Estou em pé, sobre a mesa/praticável, de frente para a
plateia. Carlos, atrás de mim, pronuncia um nome, Virgínia, que ainda não
reconheço como meu. Mas é grande a minha comoção. Levo as mãos
na altura dos ouvidos, os cotovelos apontando para os lados. Em seguida,
vou aproximando-os à frente do corpo, até que as palmas das mãos
encubram o rosto/ máscara, os cotovelos baixos, ao mesmo tempo em
que me ajoelho. ajoelhada, giro os cotovelos para fora, e vou, então,
estendendo os braços lateralmente, com uma tensão o forte nos
punhos, que demoro a desfaze-la. Tenho que promover um esforço para
estender finalmente as mãos, repetindo sempre “Virgínia, Virgínia...”
(Keiserman, 2005, p.33).
12 Trata-se do
Prelúdio da Suíte 2, em ré menor
, de J.S. Bach. Muito tempo depois, ao ouvir essa música
casualmente, ainda pude sentir como se fios presos aos meus punhos fossem puxados firmemente,
obrigando-me a dobrá-los.
Correio sentimental de Nelson Rodrigues
e
A prosa do Nelson
, do Núcleo Carioca de Teatro
Nara Waldemar Keiserman
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É a posição das mãos que marca a diferença na personagem, quando ela
recupera a memória suas palmas voltam-se decididamente para baixo, apontando
para dentro, para o corpo.
O prazer de passar com imediatismo de um corpo para outro, pude
experimentar também quando, logo após o momento em que Dona Olívia seu
filho Paulo morto, a narração evoca a cena do assassinato. Coloco-me de costas
para a plateia. Auxiliada por um dos atores, entrego-lhe meu xale e recebo de suas
mãos a máscara de Virgínia, que coloco imediatamente. O movimento de girar
sobre mim mesma, voltando à cena, já se dá em seu nome.
No trabalho que fiz com o Núcleo Carioca de Teatro, foi em A mulher que
amou demais que me ofereceu maiores oportunidades de aprendizado: a
composição elaborada de diferentes personagens, dialógicos e narradores, numa
dramaturgia com fortes elementos melodramáticos e abordagem genuinamente
fundada no épico-gestual-narrativo.
A mulher que amou demais
. Nara Keiserman. Virgínia “sentindo os punhos”.
Foto: Chico Lima. Acervo da autora.
Correio sentimental de Nelson Rodrigues
e
A prosa do Nelson
, do Núcleo Carioca de Teatro
Nara Waldemar Keiserman
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A Prosa do Nelson
Este espetáculo nasceu de circunstância determinada por um fato muito
simples e singular. O Núcleo Carioca de Teatro solicitou pauta no então chamado
Teatro do Planetário, no Rio de Janeiro - atualmente, chama-se Teatro Domingos
Oliveira, diretor e dramaturgo que era o diretor do Teatro naquele momento. A
resposta que recebemos foi que interessava que ocupássemos o espaço não com
um único espetáculo já estreado, mas com um novo trabalho e ainda a ocupação
de todos os horários disponíveis, durante os meses de janeiro, fevereiro e março
daquele ano de 2000.
Adeptos do sim, com a coordenação geral de Demetrio Nicolau13, criamos o
Verão Cultural 2000. Nossa programação, então, incluiu apresentações de
Correio
sentimental de Nelson Rodrigues
e uma nova criação. Outros horários seriam (e
foram) ocupados por apresentações de música e poesia. A necessidade de uma
estreia, num tempo menor que o necessário para o modo de produção e criação
do Núcleo Carioca de Teatro, fez nascer
A prosa do Nelson
, com três diretores
(Luis Artur Nunes, Demetrio Nicolau e eu), três elencos diferentes, o tempo
multiplicado por três.
Explorando linguagens próprias de encenação, o ponto de convergência
deveria ser o ator narrador, fonte primordial dos procedimentos de cena. Nenhum
cenário, pouquíssimos adereços e um coral de 20 vozes fazendo a trilha musical.
Sobre as crônicas autobiográficas de Nelson Rodrigues, pesquisadas nos
livros
A menina sem estrelas
(1999) e
O óbvio ululante
(1993), Nunes construiu duas
cenas, em que o autor evoca a sua infância. Demetrio Nicolau selecionou
passagens dos livros
A pátria em chuteiras
(1998) e
À sombra das chuteiras
imortais
(1993) para falar dos jogadores ídolos do futebol como Almir, Garrincha e
Pelé, das paixões da torcida e dos dramas pessoais vividos nas Copas do Mundo.
Optei pela encenação das reportagens policiais escritas pelo jovem Nelson
no jornal Crítica, de seu irmão Mário Rodrigues, ao redor de 1930 - fruto da pesquisa
13 Demetrio Nicolau foi diretor musical dos espetáculos do Núcleo Carioca de Teatro:
Correio sentimental de
Nelson Rodrigues
,
A prosa do Nelson
e
Um menino de paixões de ópera
; é diretor da Companhia Pop de
Teatro Clássico.
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, do Núcleo Carioca de Teatro
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de Caco Coelho, intitulada
O Baú do Nelson
14, cuja meta era resgatar sua produção
jornalística ainda não publicada em livro. Interessavam-me, especialmente, as
reportagens com temas recorrentes nas crônicas de
A vida como ela é
, como
suicídios, assassinatos, pactos de morte entre amantes Selecionei, entre as que
tinham uma escrita mais acabada - em algumas havia lacunas que deixavam as
histórias inconclusas: “Sofro por sua culpa”, “Um tiro ecoou entre os rumores
da festa e a jovem tombou morta”, “A paixão religiosa de Maria Amélia”. Fui para a
encenação movida pelo desejo de explorar uma gramática da cena rapsódica não
experimentada pelo NCT, tendo por princípios as ideias de aludir mais que ilustrar,
evocar mais do que descrever, essencializar mais do que a detalhar, buscando a
intensificação da teatralidade e da poesia gestual.
No trato dramatúrgico, segui os princípios de teatralização do material textual,
com cortes apenas os necessários para manter a fluência narrativa e preservando
o rebuscamento literário utilizado pelo autor, de modo a tirar proveito do possível
estranhamento provocado no espectador.
Com um elenco formado por três atrizes e dois atores que haviam sido meus
alunos, familiarizados com as técnicas de manipulação e outras linguagens de
movimento trabalhadas em sala de aula, e uma afinidade própria com as coisas
corporais optei por uma cena que enfatiza as corporeidades.
Evitando a fase dos chamados ensaios de mesa, o texto verbal foi trabalhado
em ação. Fizemos uma ou duas leituras para que se estabelecessem as primeiras
impressões dos conteúdos e o elenco passou à fiscalização, atendendo aos
procedimentos corporais indicados por mim ou respondendo a seu próprio
impulso criador. Caminho de mão dupla, os movimentos esclarecem e ampliam
os sentidos e imprimem um modo específico de enunciamento do texto verbal.15
14 A pesquisa de Caco Coelho foi realizada dentro do Projeto de Bolsas da extinta RIOARTE, da Prefeitura do
Rio de Janeiro. A publicação que consta em Referências é posterior à encenação. O acesso às reportagens
foi através de contato telefônico, com o pesquisador ditando os textos.
15 Essa experiência fez nascer no grupo o desejo de prosseguir as investigações e fundamos o coletivo
AtoresRapsodos que encenou, sob minha direção (eu)Caio Jogo Teatral, contos de Caio Fernando Abreu,
O narrador
, contos de vários autores,
A incrível bateria histórias de carnaval
, contos de vários autores.
Atores do coletivo: Helena Borschiver, Natasha Corbelino e Rodrigo Dias.
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Um tiro ecoou entre os rumores da festa e a jovem tombou
morta
A reportagem segue a trajetória da jovem Nair, da casa dos pais em São Paulo
até o Rio de Janeiro, onde vem a se suicidar durante uma festa.
Optamos por ter as duas vozes masculinas como narradoras e as três atrizes
performando a personagem de Nair, simultaneamente, com movimentos
realizados cada uma ao redor de uma cadeira num ponto fixo do espaço. Algumas
poucas falas, que poderiam ser ditas pela personagem Nair como pensamentos,
um deles aparecendo inclusive entre aspas no original, eram ditas pelas atrizes
em uníssono, ou encadeadas, numa mesma frase, as palavras passando de uma
para outra. Outras, apenas por uma delas. Os dois atores se encarregam do texto
narrativo no mesmo jogo de uma mesma frase dividida entre eles palavra por
palavra, outras ditas em uníssono ou ainda tendo um parágrafo inteiro cada um.
Seguindo indicações do texto sobre o temperamento da personagem Nair,
como “jovem e insinuante, a alegria estonteante que lhe caracterizava, nervosa,
muito nervosa”, por exemplo, as três atrizes compuseram uma partitura gestual
inspirada em alguns estudos da Biomecânica de Meierhold (1974). O objetivo desta
composição era revelar, com movimentos de caráter alusivo, os pensamentos,
sentimentos e ações da jovem Nair, seguindo a narração que vai descrevendo o
seu desejo de morte até que esse seja finalmente concretizado.
A construção da cena resultou em um texto verbal claro e fluente, certos
movimentos surgindo como que uma ampliação da fala, outros só lhe seguindo o
ritmo e outros designando estados interiores do personagem, às vezes mesmo
contradizendo o texto. Nas primeiras execuções, foi fácil constatar o excesso
gestual que tomava conta da cena. Havia tanto movimento e de execução tão
detalhada, que se tornaria impossível para o espectador acompanhar o que quer
que fosse. Mesmo o texto parecia impossível de se entender, devido ao acúmulo
de informações. Optamos então pelo recurso de alternância, de modo que o
movimento passava de uma atriz para outra, e algumas poucas vezes a sua
execução era simultânea. Com muito pesar, tivemos que “jogar fora” bons
momentos da partitura gestual de cada uma das atrizes, em favor da cena como
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um todo.
A partitura de movimentos da cena constitui-se da combinação da partitura
de cada uma das atrizes, com momentos de execução simultânea; movimentos
assemelhados e de realização alternada; movimentos sucessivos; movimentos
idênticos de execução simultânea e um único movimento assemelhado de
execução simultânea, que se quando é narrado o suicídio de Nina. As três
atrizes batem duas palmas curtas e consecutivas, inspiradas no
dactyl
, um dos
estudos da Biomecânica de Meierhold (1974).
Um tiro ecoou entre os rumores da festa e a jovem tombou morta
. Renata Porto.
Nair no gesto do suicídio. Foto: Guga Melgar. Acervo da autora.
A paixão religiosa de Maria Amélia
Esta reportagem tem uma estrutura bastante aproximada da crônica
jornalística. Nela, Nelson faz o criminoso falar na primeira pessoa, o repórter
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narrador diz apenas que “O assassino fez uma pausa. Tomou um gole de cognac
e continuou”. Optamos por alternar o uso do pronome na primeira e terceira
pessoa, fazendo o relato ser narrado tanto pelo assassino quanto por Maria Amélia,
sua vítima e pelo repórter Nelson Rodrigues, mantendo o tempo sempre no
pretérito, as falas divididas entre todo o elenco. Como nas outras cenas, algumas
falas são corais, outras divididas palavra por palavra. As três atrizes figuram Maria
Amélia e os dois atores, o seu assassino. Todos narram. Foi a cena de construção
mais sofisticada em todos os sentidos, de intervenção no texto, de troca de
funções entre os atores, de elaboração da partitura de movimentos. A fonte dos
movimentos está nas sequências de manipulação - Clone, Fotograma16, e Bonecos
Chineses e no trabalho com foco no fator peso, em que o jogo é “sair do chão com
a ajuda do outro”. O processo de trabalho foi estabelecido a partir da divisão do
texto em blocos de ação e para cada um deles selecionamos a técnica a ser
utilizada, a que atores caberia o texto de narração e quais os casais, ator e atriz,
que se formariam.
A paixão religiosa de Maria Amélia
. Início da cena. Natasha Corbelino narrando. Vivian
Duarte e Henrique Pinho, Renata Porto e Saulo Rodrigues, Performando a etapa de manipulação
chamada Morto. Foto: Guga Melgar. Acervo da autora.
16 Fotograma - o manipulador coloca o manipulado em posturas/atitudes corporais expressivas.
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Memoração, Rememoração
Escrevi em 2004, à propósito de
A prosa de Nelson
(2000): “[ ] gostaria de
destacar que duas impressões sobre o trabalho. Uma, que tenho na memória
em relação ao espetáculo propriamente, outra é a lembrança afetiva que guardo
dele”. Relendo o que escrevi sobre o
Correio
e a
Prosa
, reafirmo as afetividades e
acrescento os aprendizados, as experiências da artesania do nosso
métier
, o
quanto tudo isso se encontra instalado no meu próprio corpo-pensamento. As
coisas que “faço sem pensar” foram arduamente conquistadas através de muito
fazer e muito pensar. Tenho aqui-agora o impulso de dizer que fiz isso
incansavelmente mas não é a verdade. Cansa. É preciso resistência, força e fé.
no poder transformador da nossa arte – me arrisco aqui ao lugar comum e cito
Dorrit Harazim citando Rita Lee, na coluna
Em carne viva
publicada no jornal
Globo
em 20/02/2022: “O que a gente mais quer no mundo neste momento? Mudar!
Mudar para melhor, para mais consciência, mais luz”! A citação parece deslocada.
Explico. Neste momento, estou prestes a estrear
Retratos da Alma Brasileira 2019-
2022
, com textos de Harazim. Mergulhada mais uma vez (e sempre?) no teatro
narrativo, que aprendi no Núcleo Carioca de Teatro, me regozijo de tudo que ali
vivi. E agradeço.
Fichas Técnicas dos Espetáculos
Correio sentimental de Nelson Rodrigues
Texto:
Nelson Rodrigues
Direção
: Luis Artur Nunes
Elenco
: Maria Esmeralda Forte, Nara Keiserman, Francisco de Figueiredo,
Ludmila Breitman e Alexandre Bordalo.
Cenário
: Carlos Alberto Nunes
Figurino
: Francisco de Figueiredo
Direção Musical
: Demetrio Nicolau
Adereços
: Carlos Alberto Nunes, Francisco de Figueiredo e Fernando
Sant’Anna
Maquiagem
: Francisco de Figueiredo
Iluminação
: Luis Carlos Nem
Preparação Corporal
: Nara Keiserman
Pesquisa
: Bárbara Carolino
Assistente de Direção
: Alex Machado
Produção Executiva
: Ângela Blazo
Direção de Produção
: Francisco de Figueiredo
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Realização
: Núcleo Carioca de Teatro
Estreia
: Teatro Gláucio Gill, Rio de Janeiro, 1999
A prosa do Nelson
Texto
: Nelson Rodrigues
Direção:
Luis Artur Nunes, Nara Keiserman e Demetrio Nicolau
Elenco:
Crônicas Autobiográficas
: Maria Esmeralda Forte, Nara Keiserman,
Francisco de Figueiredo, Ludmila Breitman, Alexandre Bordalo, João Paulo
Pantoja
Reportagens Policiais
: Henrique Pinho, Natasha Corbelino, Renata Porto,
Saulo Rodrigues, Vivian Duarte
Crônicas de Futebol:
Isabel Penoni, Luciana Ferreira, Maria Luiza Cavalcanti,
Mohamed Harfouch, Pedro Rocha, Tatiana Nogueira, Thales Coutinho e
Thiago Magalhães.
Músicas e Direção Musical:
Demetrio Nicolau
Arranjos Vocais e Regência
: Sérgio Sansão
Coral
: Quebra-Vozes
Figurino
: Francisco de Figueiredo
Iluminação:
Luca Pergon
Assistente de Direção
: Alex Machado
Direção de Produção
: Demetrio Nicolau
Produção Executiva
: Aduni Benton
Realização:
Núcleo Carioca de Teatro
Estreia
: Teatro de Planetário, Rio de Janeiro, 2000
Referências
BERRY, Cicely.
Voice and the Actor
. New York: 1st Collier Books, 1973.
BRECHT, Bertolt.
Estudos sobre teatro
. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
COELHO, Caco (Org). O Baú de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Companhia das
Letras, 2004.
GORDON, Mel “Meyerhold’s biomechanics”,
The Drama Review
. MIT Press, New York
University School of Arts., vol.18, n.3, setembro de 1974, p 77-89.
KEISERMAN, Nara. O desempenho atoral rapsódico.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v.1, n.7, p. 017-037, 2005.
RODRIGUES, Nelson.
A menina sem estrela:
memórias. Rio de Janeiro: Companhia
das Letras, 1999.
Correio sentimental de Nelson Rodrigues
e
A prosa do Nelson
, do Núcleo Carioca de Teatro
Nara Waldemar Keiserman
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-23, dez. 2023
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RODRIGUES, Nelson.
A pátria em chuteira
. Rio de Janeiro: Companhia das Letras,
1998.
RODRIGUES, Nelson.
À sombra das chuteiras imortais
. Rio de Janeiro: Companhia
das Letras, 1993.
RODRIGUES, Nelson.
O óbvio ululante
: primeiras confissões. Rio de Janeiro:
Companhia das Letras, 1993.
Recebido em: 19/09/2023
Aprovado em: 02/11/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br