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Encontros entre o Grupo Galpão, Eid Ribeiro e
Nelson Rodrigues: a encenação de
Álbum de família
Rodrigo de Freitas Costa
Para citar este artigo:
COSTA, Rodrigo de Freitas. Encontros entre o Grupo
Galpão, Eid Ribeiro e Nelson Rodrigues: a encenação de
Álbum de família
.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 49, dez. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0105
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Encontros entre o Grupo Galpão, Eid Ribeiro e Nelson Rodrigues: a encenação de
Álbum de família
Rodrigo de Freitas Costa
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-27, dez. 2023
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Encontros entre o Grupo Galpão, Eid Ribeiro e Nelson Rodrigues1: a
encenação de
Álbum de família
2
Rodrigo de Freitas Costa3
Resumo
Este artigo discute a encenação de
Álbum de família
promovida pelo Grupo
Galpão de Belo Horizonte, em 1990. Criado em 1982 e reconhecido como um
dos mais importantes grupos de teatro do país, o Galpão possui longa
trajetória e inúmeras encenações que dialogam com questões sociais pela
chave do popular. A montagem do texto dramático de Nelson Rodrigues, sob
direção de Eid Ribeiro, marcou a carreira do grupo, especialmente por ser um
espetáculo trágico. Neste texto, debatemos o projeto da montagem, a
importância da obra de Nelson Rodrigues e o sentido de sua releitura em BH
no início da década de 1990.
Palavras chave
: Grupo Galpão. Eid Ribeiro. Teatro popular.
Álbum de família
.
Encounter between Grupo Galpão, Eid Ribeiro and Nelson
Rodrigues: the staging of
Álbum de família
Abstract
This article discusses the staging of
Álbum de família
by Grupo Galpão from
Belo Horizonte in 1990. Created in 1982 and recognized as one of the most
important groups in the country, Galpão has a long trajectory, and many
stagings that dialogue with social issues through popular lens. The editing of
Nelson Rodrigues dramatic text, directed by Eid Ribeiro was a milestone in
the group´s career, especially because it was a tragic play. In this text, we
discuss the assembly project and also the importance of Nelson Rodrigues
work and the meaning of its reinterpretation in BH at the beginning of the
1990s.
Keywords
: Grupo Galpão. Eid Ribeiro. Popular theater.
Álbum de família
.
1 Este artigo é resultado de pesquisas desenvolvidas a partir do projeto “O Grupo Galpão de Belo Horizonte
(1982-2017): a história pelo viés popular e o repertório dramático clássico”, financiado pela FAPEMIG.
2 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Maria Fernanda Martinez Souza,
mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e graduada em Letras
Português/Inglês pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
fernandamartinez.uftm@gmail.com
3 Estágio pós-doutoramento junto ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Doutorado, mestrado e graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia.
Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM -
Uberaba-MG). Professor Permanente do Programa de s-Graduação em História da Universidade Federal
de Uberlândia (UFU). rodrigo.costa@uftm.edu.br
http://lattes.cnpq.br/6550623178520228 https://orcid.org/0000-0001-5987-611X
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Encuentros entre el Grupo Galpão, Eid Ribeiro y Nelson Rodrigues:
la representación de
Álbum de família
Resumen
Este artículo analiza la representación del
Álbum de família
promovida por el
Grupo Galpão de Belo Horizonte, en 1990. Creado en 1982 y reconocido como
uno de los grupos de teatro más importante del país, el Galpão tiene una
larga trayectoria y numerosas puestas en escena que hablan de los
problemas sociales a través de la lente popular. La escena del texto
dramático de Nelson Rodrigues, dirigida por Eid Ribeiro, marcó la carrera del
grupo, especialmente porque fue un espectáculo trágico. En este texto,
debatimos el proyecto de montaje, la importancia de la obra de Nelson
Rodrigues y el significado de su reinterpretación en BH a principios de los
años 1990.
Palabras clave
: Grupo Galpão. Eid Ribeiro. Teatro popular.
Álbum de Familia
.
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Eu acho Nelson Rodrigues um dos maiores autores do teatro
moderno. Ele ainda não foi descoberto na Europa e nos
Estados Unidos, mas seu teatro é profundamente universal e
ao mesmo tempo brasileiro. O que mais me cativa em Nelson
é essa brasilidade profunda.
Eid Ribeiro (Álbum, 1990, p. 1)
Acho que o diretor pode ter duzentas visões, duzentas
interpretações de uma peça minha, mas há uma coisa que se
chama óbvio ululante. E não que se discutir o óbvio
ululante. Se tal autor é patético, humorístico, se há evidências
objetivas disso, não porque mudar essas coisas. É apenas
o que o diretor tem que ver, é isso à sua maneira
Nelson Rodrigues (Depoimentos V, 1981, p. 121)
Em 19 de dezembro de 1990, no Teatro Marília, na cidade de Belo Horizonte,
o Grupo Galpão estreou
Álbum de família
, com direção de Eid Ribeiro. Formado
em 1982, com experiências em teatro de rua e conhecido do público, na ocasião,
o Galpão apresentava seu novo projeto cênico em um espaço fechado e
encenando um clássico, cujo autor ficou conhecido como o criador de um “teatro
desagradável”. Quais as convergências entre o trabalho que o Galpão vinha
desenvolvendo até então, a dramaturgia de Nelson Rodrigues e a direção de Eid
Ribeiro? Por que um coletivo de atores preferencialmente de teatro de rua resolve
encenar um dos autores mais polêmicos e trágicos de nossa dramaturgia? Tais
questionamentos são importantes pela novidade de estilo e os novos desafios de
linguagem que a proposta cênica apresentava. Por isso, na época da estreia, o
desafio do espetáculo chamava a atenção.
No jornal
O Estado de Minas
, apoiador cultural da encenação, um texto com
o título “Álbum de Família estreia hoje” estampava a primeira página da Segunda
Seção. Além de fotos dos atores, do diretor e de Nelson, o jornal trazia dois textos.
Um mais curto, com breve biografia do dramaturgo e a lembrança dos 10 anos de
sua morte, e outro maior, com falas do diretor e informações a respeito da estreia:
O desafio enfrentado por Eid Ribeiro foi fazer com que um grupo de
comediantes redescobrisse o seu lado trágico não só no trabalho, como
também na imagem que o público faz desse Grupo e que muitas vezes
acaba condicionando os atores (Álbum, 1990, p. 1).
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o jornal
Hoje em Dia
, no Caderno Cultura, trazia matéria com o título
“Grupo Galpão volta ao palco e mostra peça de Nelson Rodrigues”. Ao lado de
fotografias dos atores em cena, o texto indicava a complexidade do espetáculo:
O Grupo Galpão, depois de oito anos de montagem de comédias, enfrenta
o desafio de representar uma tragédia. A tarefa é ainda mais árdua
quando se trata de um texto de Nélson Rodrigues. Por isso, foram gastos
nove meses de trabalho, uma gestação, até que ficasse pronta a
montagem de “Álbum de Família”, que estreia hoje, às 21 horas, no Teatro
Marília (Avenida Alfredo Balena, 586) (Grupo, 1990, p. 1).
Em razão do trabalho desenvolvido pelo Galpão, Nelson Rodrigues surgiu
como uma procuração para a trupe. A tragédia parecia não coadunar com a
trajetória dos atores e a resolução desse problema passava pelo trabalho de
direção. O espetáculo ficou no repertório do Grupo até 1992, foi apresentado em
diversas cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Campina Grande. Em
1991, ganhou 8 das 13 categorias do Prêmio Cauê de Teatro, colocando o Galpão
como destaque da temporada daquele ano em Belo Horizonte4.
Neste texto, trataremos dessa montagem buscando compreender como
foram construídas as convergências entre dramaturgo, diretor e atores.
Objetivamos lançar luzes sobre uma das propostas cênicas do Galpão,
compreender o debate social e cultural da época e ressaltar a importância de
Nelson Rodrigues para a consolidação do trabalho de um dos grupos mais
importantes de nossa história teatral recente.
O Grupo Galpão nos anos 1980: diálogo com as ruas e teatro
popular
De 1982 até a montagem de
Álbum
, o Galpão produziu oito espetáculos com
características consonantes. O que marcou a convergência das primeiras
encenações não foi apenas o fato de ser um grupo coeso de atores que se
manteve na cena teatral da época. Existiu uma conjuntura social e cultural que
4 Promovida pelo Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado de Minas Gerais
(SATED-MG), essa premiação ficou ameaçada com os cortes financeiros do Governo Collor para todo o setor
cultural brasileiro. Assim, em 1991, o grupo empresarial Cauê assumiu o projeto e criou o Prêmio Cauê, que
foi patrocinado por seis empresas: Cimento Cauê SA, Santa Bárbara Engenharia, Caeumix, Sical, Incopre e
Tropical. As categorias premiadas foram Teatro, Dança e Prêmios Especiais.
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permitiu o encontro e foi indicando caminhos para se fazer teatro em BH ao longo
do processo de abertura política.
Os atores Eduardo Moreira, Wanda Fernandes, Teuda Bara, Antônio Edson e
Fernando Linares fundaram a companhia em 1982 após a realização de duas
oficinas patrocinadas pelo
Goethe-Institut
. A primeira, ocorreu no Teatro Marília
(março de 1982), com o ator Kurt Bilstein e o diretor George Froscher, e foi voltada
para longos períodos de exercícios físicos, de voz e manipulação de objetos
cênicos. A segunda, foi realizada em julho, na cidade de Diamantina, como parte
da programação do Festival de Inverno da UFMG. Nela, os alemães, segundo
relatos de Moreira (2021), durante um mês, intensificaram o trabalho corporal com
foco voltado para o teatro de rua e técnicas circenses, como acrobacia, malabares
e pernas de pau.
Essa experiência resultou na montagem de
A alma boa de Setsuan
(Bertolt
Brecht), no Teatro Francisco Nunes, localizado no Parque Municipal de BH. Os
atores, instrumentalizados pelas oficinas dos alemães, utilizaram as pernas de pau
e romperam o espaço cênico articulando a encenação com o ambiente externo.
E, de acordo com Eduardo Moreira: “na cena em que a prostituta Chen Te se
casava, as portas do fundo do teatro eram abertas, descortinando a surpreendente
natureza iluminada do parque e fazendo com que o espetáculo se expandisse
sobre a área externa” (Moreira, 2021, p. 15).
As oficinas, sustentadas pela articulação entre teatro de rua e técnicas
circenses, foram fundamentais para o encontro, o diálogo e as possíveis trocas
entre os atores. Jovens, eles vinham de contextos diferentes, mas com interesses
próximos. Antônio Edson fez curso técnico no Teatro Universitário (TU-UFMG),
Eduardo Moreira era estudante universitário e tinha ligação com o teatro do
movimento estudantil, Wanda Fernandes estudou Psicologia na PUC-MG e fez
parte da criação da Associação dos Produtores, Artistas e Técnicos de Minas Gerais
(Apatedemig), Teuda Bara também possuía experiência cênica e havia sido
dirigida por Eid Ribeiro em 1976, e, por fim, Fernando Linares era ator e diretor
argentino radicado na cidade.
O gosto pelo teatro, a compreensão de que as artes cênicas são capazes de
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se comunicar com o público e a necessidade de tratar de questões sociais
parecem sustentar os atores. E isso se deve, entre outras coisas, ao contexto e ao
ambiente de sociabilidade daquelas pessoas.
O TU-UFMG é um curso técnico de teatro, fundado em 1952 e que tem grande
importância na formação de atores e diretores na cidade. Nos anos 1960, Haydée
Bittencourt, com formação no
Royal Theatre of London
, assumiu a direção do TU
e empreendeu uma série de transformações importantes para a qualidade do
curso. Inclusive, as diretrizes formuladas sob sua direção serviram para o Ministério
da Educação e Cultura criar as normativas brasileiras de formação
profissionalizante de atores nos anos de 1980. Durante sua direção, nomes
importantes do teatro político de BH passaram pelo TU, entre eles, os dramaturgos
Jota Dângelo e Eid Ribeiro.
Partindo da década de 1960 até o fim da Ditadura Militar, o curso permitiu
muitos debates sobre o sentido público das artes e o papel dos profissionais do
palco para a construção democrática do país. Esse ambiente estudantil e político
foi responsável pela formação de Antônio Edson e serviu de espaço para o
fomento de ideias teatrais críticas e contestatórias, pautadas na excelência
formativa dos profissionais que por ali orbitavam. Não é difícil compreender que
os atores Eduardo Moreira, Teuda Bara, Wanda Fernandes e Fernando Linares
partilhavam das ideias que encontravam solo fértil no TU.
As oficinas ministradas pelos alemães no início dos anos 1980, priorizando as
técnicas circenses e o teatro de rua, surgiram como uma possibilidade formativa
para os atores. E, mais importante que isso, apresentaram um possível caminho
de trabalho. Depois de anos de governos militares, com desestímulo à cultura
crítica e de esquerda no país, e investimento na consolidação da cultura de
massas, as salas e os espaços teatrais convencionais eram inacessíveis aos jovens
atores interessados em teatro crítico e em pesquisa de linguagem cênica. Assim,
as ruas tornaram-se um rico espaço a ser explorado, inclusive no contexto de
abertura política, onde em diversos lugares “novos personagens entraram em
cena” (Sader, 1988). No caso do teatro da capital mineira, isso não foi diferente e
novos atores entraram em cena utilizando os espaços não convencionais, como
ruas e praças da periferia e do centro da cidade. As oficinas foram importantes
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para aquele início que tinha como inspiração as práticas formativas do teatro
universitário, do movimento estudantil e de movimentos sociais. Apesar disso,
ainda não se tratava de uma formação completa de atores, o que viria ao longo do
tempo.
Após as oficinas, os atores retomaram o registro de uma associação originada
em 1979 na UFMG e criaram, em 1982, o Grupo Galpão. A primeira peça foi um
esquete circense de criação coletiva intitulado
E a noiva não quer casar
. As
apresentações ocorreram inicialmente nos espaços estudantis da UFMG e depois
começaram a percorrer a periferia da cidade, até chegar às praças do centro. Os
atores atuavam com pernas de pau, elemento fortemente explorado nas oficinas
com os alemães, formando uma identidade visual com o público. Aos poucos, o
reconhecimento foi surgindo e o Galpão foi contratado por sindicatos para atuar
em comícios e atividades de mobilização profissionais. De 1983 a 1984, a campanha
das Diretas ganhou as ruas do país e, em Belo Horizonte, o Galpão atuou em
diversas atividades. Novamente as pernas de pau chamavam a atenção e traziam
o reconhecimento do público. Com o tempo, o Grupo começou a viajar e ser
acolhido fora da capital.
Com a segunda montagem,
De olhos fechados
, texto de João Vianney, a trupe
teve a primeira experiência em palco. Esse era um espetáculo infantil que permitiu
ao grupo receber os seus primeiros prêmios. O reconhecimento do público
despontava para os atores que ainda não se profissionalizaram.
Ó pro ve na
ponta do pé
foi o terceiro espetáculo e essa criação coletiva foi feita para as ruas
com o aprofundamento das técnicas circenses, da pantomima e articulação de
bonecos. Com esse projeto, o grupo excursionou por várias cidades de Minas
Gerais e sentiu a necessidade de estudos mais aprofundados sobre o teatro
popular, especialmente sobre as máscaras da
commedia dell’arte
.
Inspirados por
L’Age d’or
do Theatre du Soleil (1975), de Ariane Mnouchkine,
os atores desejavam montar o clássico
Arlequim servidor de dois amos
, de Carlo
Goldoni. Houve o início de estudos que, por fim, levou ao encontro com Ariel
Genovese, atriz italiana que na época ministrava cursos junto ao Instituto Italiano
de Cultura (RJ). Esse trabalho foi centrado no uso de máscaras, expressão corporal
e espacialidade cênica. Ainda sem condições de estabelecer uma relação mais
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profissional com a atriz, o Galpão resolveu sozinho encenar o clássico de Goldoni
e inúmeros problemas surgiram. De acordo com Moreira:
Com o decorrer do processo da montagem, acabamos nos enveredando
num labirinto de improvisações sem rumo, que terminaram numa
adaptação completamente equivocada do “monstro de sete cabeças” em
que havia se transformado o texto de Goldoni. Nossa sorte foi contar com
o olhar de um Eid Ribeiro, que nos ajudou com um precioso trabalho de
mesa. E com Fernando Linares que, no final, amarrou o espetáculo e
conseguiu minimamente dar uma leitura tradicional ao texto (Moreira,
2010, p. 44).
Esse é o primeiro contato de trabalho de Eid com o Galpão, fato importante
para a compreensão da encenação de
Álbum
. Olhando a trajetória do grupo até
1986, com a encenação de Goldoni, é perceptível que o seu trabalho sempre esteve
articulado à pesquisa do teatro popular, que ocorreu conforme as oportunidades
foram surgindo. Dos impulsos iniciais do ambiente estudantil, passando pela
oficina com os alemães até o contato com Genovese, o Galpão foi se formando,
sem experiências teatrais além do popular e do cômico. Existia uma articulação
entre interesses pessoais, oportunidades de realização de oficinas e coragem para
ocupar as ruas da cidade, porém não havia ainda um estudo mais sistematizado
sobre as artes cênicas e as potencialidades da linguagem teatral. Decorrem daí os
problemas com a montagem de Goldoni, cujo texto é complexo, escrito em outro
tempo e muito diferente dos esquetes de rua e do teatro infantil até então
encenados. O contato com Genovese e os estudos sobre as máscaras não foram
suficientes para colocar o espetáculo de pé. Sob esse aspecto, e pensando na
formação profissional do Galpão, a experiência e o conhecimento de Eid, que será
melhor articulado com a encenação de Nelson Rodrigues em 1990, foi
fundamental.
Após
Arlequim
, o Galpão realizou nova oficina, dessa vez com o diretor
Ulysses Cruz. A partir de então, o grupo assumiu dois projetos cênicos. A
encenação do canovaccio
A comédia da esposa muda
(1986), que fazia uma sátira
sobre a relação entre marido e mulher, e a montagem de
Triunfo, um delírio
barroco
(1986), parceria entre teatro e dança, cuja montagem ficou sob a
responsabilidade da Cia de Dança do Palácio das Artes.
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Em 1987 o Galpão participou do Festival Internacional do Teatro de Rua (RJ),
onde teve contato com grupos latino americanos e europeus e surgiu a
possibilidade de viagens internacionais, ocorridas nos anos seguintes em festivais
no Peru e na Itália. A circulação internacional trouxe novas expectativas, o
aprofundamento das técnicas do teatro de rua e o uso de instrumentos musicais
em cena. Surgindo daí dois espetáculos:
Foi por amor
(1987), texto de Eduardo
Moreira, que tratava de crimes passionais e o machismo que acoberta os
conhecidos “crimes em defesa da honra” e
Corra enquanto é tempo
(1988), texto
e direção de Eid Ribeiro, que tratou do avanço de igrejas neopentecostais no Brasil
daquela época. Pela temática, é visível a opção por questões de nossa realidade
nacional.
No jornal
Tribuna de Minas
, de 04 de novembro de 1988, Ailton Maggiolli
chamava a atenção para o momento do Galpão:
Ao emergir da dura e chocante realidade nacional que lhe valeu de
inspiração à nova série de esquetes, sintomaticamente intitulada “Deus é
Brasileiro”, o Grupo Galpão de Teatro de Rua de malas prontas para
uma viagem ao Peru, onde participa de 19 a 27 de novembro do
Reencuentro Ayacucho 88 volta ao seu “habitat” hoje, a partir das 17
horas, para mostrar sua mais recente produção. “Corra enquanto é
tempo”, com texto e direção de Eid Ribeiro, narra a disputa de um “ponto”
entre um [sic] travesti e uma família de crentes, de maneira descontraída
e bem-humorada, utilizando-se da música ao vivo e um repertório brega
que não dispensa composições de Roberto Carlos, Antônio Marcos,
Silvinha e outros representantes dignos do movimento (Maggiolli, 1988, s.
p.).
A série “Deus é brasileiro” ficou em cartaz de 1988 a 1994, marcou a parceria
do grupo com Eid e trouxe elementos para a profissionalização da trupe. Para
Moreira:
Com o “Corra” e com o Eid deixamos um pouco de ser tão ingênuos e
começamos a ser impregnados da necessidade de refletir mais
radicalmente sobre a função do teatro e especialmente da dramaturgia
no teatro. O que queríamos dizer, porque e qual sentido de fazer
determinada peça naquele momento eram questões que apareciam de
forma mais clara. Nisso a contribuição de Eid foi fundamental, uma vez
que ele é essencialmente um autor que reescreve seu texto
permanentemente, dialogando com seu lado diretor e junto com seus
atores, num permanente processo de reflexão (Moreira, 2010, p. 68).
O percurso do Galpão até o trabalho com Eid é uma trajetória formativa que
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contou com as possibilidades de produção artística num país que passava pelo
processo de modernização conservadora sustentado pela recente violência militar.
O trabalho nas ruas serviu para a ocupação do urbano e o reconhecimento de
público, levando à profissionalização. Nesse caso, Eid foi importante e marcou o
início do trabalho criterioso do grupo, que se completou com a montagem de
Álbum
.
Dando sequência ao desejo de falar do Brasil e encontrar um teatro
brasileiro, veio a proposta da montagem de “Álbum de Família”, de Nelson
Rodrigues. A ideia polêmica, e que deixou quase todos bem perplexos, foi
lançada numa viagem de barco em direção à Sardenha, na Itália, quando
fazíamos uma longa turnê por aquele país (Moreira, 2010, p. 68).
Dirigindo
Corra
, Eid acompanhou a viagem pela Itália e, pelas memórias de
Moreira, a referência sobre a “função do teatro e especialmente da dramaturgia no
teatro”, nos ajuda a compreender a escolha pelo texto de Nelson Rodrigues após
as experiências com as ruas e as técnicas circenses.
Eid Ribeiro e a sugestão de montagem de Nelson Rodrigues
O diretor e dramaturgo do interior de Minas fez carreira em Belo Horizonte a
partir de 1960, quando se articulou com o teatro engajado e o movimento
estudantil por meio do Centro Popular de Cultura5. Nessa época, também estudou
no Teatro Universitário da UFMG e fundou, com José Ulisses de Oliveira e José
Antônio de Souza, o Grupo Geração, com o propósito de tratar da situação política
brasileira no contexto da Ditadura. O Geração realizou encenações importantes:
A
vida impressa em dólar
, de Clifford Odets (1967),
Mortos sem Sepultura
, de Jean-
Paul Sartre (1968) e
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come
, de Ferreira Gullar
e Vianinha (1968). Em 1969, Eid dirigiu o espetáculo
Fábula da hora final
, uma
adaptação de
Zoo Story
, de Edward Albee, que, devido à perseguição dos militares,
marcou o fim do Geração.
Logo em seguida, Eid se mudou para o Rio de Janeiro e trabalhou como
assistente de direção de Amir Haddad no grupo
A Comunidade
, cujo propósito era
5 Segundo Gomes (2013), o CPC em BH foi organizado por Oduvaldo Vianna Filho e esteve vinculado à União
Estadual dos Estudantes (UEE). Eid era funcionário do Banco Mercantil de Minas Gerais e atuava no Sindicato
dos Bancários, daí a proximidade com o CPC e, mais tarde, da Organização Marxista Política Operária (POLOP).
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a pesquisa de linguagem para romper com a encenação à italiana, questionando
seus princípios formais: linearidade, verticalidade e frontalidade. A parceria no Rio
permitiu que Eid aprofundasse seus conhecimentos, especialmente no que se
refere à efervescência experimental dos anos de 1970. Dividindo seu tempo entre
Rio e Belo Horizonte, atuou ainda como jornalista, redator e diretor teatral, com
destaque para o prêmio de diretor do ano de 1976, pelo Serviço Nacional de Teatro
(SNT), com a encenação de
Risos e Facadas
, adaptação de Samuel Beckett.
O final dos anos 1970 é marcado pelo retorno definitivo à capital mineira,
quando começou a escrever e dirigir textos teatrais. São desse período:
Cigarros
Souza Câncer
(1977),
Terreno Baldio
(1978),
Delito Carnal
(1979) e a montagem de
As Criadas
, Jean Genet (1980). Nos anos seguintes criou a Cia Absurda com
montagens importantes de Samuel Beckett, como
Fim de Jogo
(1988).
Para Moreira,
Eid era sinônimo de bom teatro e irreverência. Entre alguns marcos na
minha formação teatral, eu citaria montagens do Eid como “Risos e
facadas” e “Cigarro Souza Câncer”, além da sua inesquecível encenação
de “As Criadas”, de Jean Genet. Houve outras de outros encenadores,
como “A noite dos assassinos”, dirigida pelo Paulo César Bicalho, “O Bravo
soldado Schweik”, do Pedro Paulo Cava, e alguns espetáculos do Jota
D’Angelo, mas o trabalho do Eid era o que mais nos arrebatava (Moreira,
2010, p. 65).
Os projetos continuam nos anos seguintes, com destaque para a atuação no
Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de BH, direção de diversos
espetáculos e também trabalhos no cinema.
O teatro de Belo Horizonte deve muito ao trabalho de Eid Ribeiro. Ele é um
nome importante para a aproximação daquilo que se produzia nos grandes centros
teatrais do país e no exterior com o ambiente da cidade, fora do principal eixo de
produção teatral do país. Não é o único a fazer esse tipo de trabalho, porém chama
a atenção em sua carreira a abertura para a experimentação e para as
modernidades teatrais. Conhecendo o engajamento dos anos de 1960, o
agit-prop
,
as práticas não convencionais de teatro e valorizando a dramaturgia do “Teatro do
Absurdo”, Eid estimulou novos grupos teatrais e contribuiu para a multiplicidade
cênica na cidade.
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O convite do Galpão, em 1985, para o diretor acompanhar os ensaios de
Arlequim
é um dos índices da importância desse homem de teatro na cidade. A
generosidade com que ele se dirigiu para o grupo de jovens atores demonstra o
compromisso com as artes cênicas. Tal ação estava articulada ao clima cultural
da época, onde era importante ocupar os espaços públicos e produzir arte de
qualidade para um público que poderia fruir experiências cênicas críticas e
inovadoras.
Um traço importante do trabalho de direção de Eid que marcou o Galpão
inclusive isso é lembrado no processo de rememoração de Moreira – é a dinâmica
desenvolvida pelo diretor ao reescrever os textos dramáticos no processo de
montagem. Essa é uma característica do seu trabalho, sempre focado no
momento em que o espetáculo está sendo produzido, assim como nas
potencialidades as quais os grupos de atores podem oferecer à proposta cênica e
no processo de recepção do público. Forjado no contexto das experiências
artísticas da segunda metade do século XX, importa pouco a ele o zelo absoluto
ao texto dramático, mas sim o respeito às ideias do dramaturgo em articulação
com o momento da montagem. É um encenador que conhece e valoriza a
importância da literatura dramática, mas atua como construtor de cenas. Seu
trabalho se localiza sob a chave da “teatralidade”, reforçando a arte do teatro como
ato (Sarrazac, 2021)6.
Luiz Carlos Garrocho, ao analisar o trabalho do encenador, ressalta a
importância da função do ator para a composição dos espetáculos:
Num dos planos de confecção da dramaturgia cênica, Eid perpassa
caminhos que vão da elaboração dos tipos às personas, de tal modo que
suas silhuetas sejam bem definidas e compostas pelo ator/atriz com
precisão, seguindo as diretrizes do encenador. Eid conhece muito bem as
artimanhas e os vícios que a cultura burguesa impõe sobre os corpos
quando em estado de atuação cênica. Se não formula uma metodologia
6 Na esteira de Bernard Dort e Roland Barthes, Jean-Pierre Sarrazac, especialmente no livro C
rítica do Teatro
I
, discute a potência do teatro crítico na segunda metade do século XX europeu voltando-se, entre outros
temas, para o trânsito entre o real e a cena. O autor, ao se dedicar à relação entre texto e cena, compreende
que o teatro incide sobre o real, por isso ele não se concretiza a partir de “uma identidade literária abstrata
e atemporal” (Sarrazac, 2021, p. 85), mas sim a partir de um “devir cênico” que ressalta e confronta os
elementos que fazem parte especificamente do teatro num movimento dialético. A “teatralidade” diz
respeito à relação entre os elementos que compõem a cena e o efeito sobre o real, assim ela valoriza o
teatro como ato, sem submissão à literatura dramática e capaz de intervir no real. Devido à sua formação,
Eid Ribeiro potencializa em seus projetos a dialética entre os elementos da ficção e a situação cênica que
deseja produzir.
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Álbum de família
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configurada a priori para o ator/atriz, operando muito mais de modo
intuitivo, como afirma em diversas ocasiões, ele incidirá sobre duas
frentes, simultaneamente: trata-se, por um lado, de tirar o tapete de
conforto do ator/atriz e, por outro, de propor um encontro visceral com
os signos emergentes no acontecimento cênico. Numa cena em que o
trabalho do ator/atriz envolve o adensamento das relações e da duração
(Garrocho, 2016, p. 320-321).
A elaboração do “acontecimento cênico”, ou do
ato teatral
, necessita da
dramaturgia e de outros elementos, entre eles, a pulsão do corpo do ator na cena.
Para um grupo de jovens atores, o trabalho com Eid se configurou como um
processo de aprendizagem, pois nele não se encontra uma formalização pré-
elaborada da escritura cênica, mas um trabalho específico, conforme as intenções
da montagem. Isso teve dimensão considerável para o Galpão que na época tinha
experiência em teatro de rua, mas havia encontrado dificuldades para elaborar um
espetáculo complexo e que exigia uma leitura mais cuidadosa da escrita
dramática. Daí o ator Eduardo Moreira tributar a “perda da ingenuidade” do grupo
ao contato com Eid. Naquele momento, houve uma interconexão entre o trabalho
cuidadoso com a dramaturgia e aquilo que Garrocho chama de “propor um
encontro visceral com os signos emergentes no acontecimento cênico”.
No trabalho de montagem de
Corra
, o diretor e dramaturgo articulou a
experiência de teatro popular do Galpão com a escritura do texto dramático. Para
abarcar o tema da manipulação da por pessoas interessadas em ganhos
financeiros, foi realizado intenso trabalho de imersão nas ruas, especialmente nas
regiões onde pastores pregavam utilizando caixas de som em meio a moradores
de rua, pobres, desempregados e prostitutas. O
ato teatral
surgiria do encontro
entre a realidade das ruas e a articulação cênica, com isso Eid potencializou a
experiência acumulada pelo Galpão e apontou para novas dimensões do fazer
teatral por meio da construção de textos dramáticos mais complexos e articulados
à função dos atores. “Assim, o texto também foi construído e desconstruído
inúmeras vezes, sempre escrito e reescrito pelo diretor-dramaturgo, valendo-se
do material que, muitas vezes, surgia durante as improvisações e os ensaios”
(Moreira, 2007, p. 10).
Como Eid acompanhou as viagens do Galpão pelo Peru e pela Itália, o jornal
O Estado de Minas
publicou em 4 de janeiro de 1989 uma matéria de página inteira
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assinada pelo diretor que avaliava o teatro latino americano, especialmente o
teatro de rua, e relatava a experiência do Galpão no país andino. A maneira como
ele tratou do grupo reforça as noções de pesquisa de linguagem e experimentação
exploradas em sua parceria com a trupe:
[...] é preciso analisar o trabalho do Galpão sob vários aspectos. É um
Grupo que está junto há seis anos (coisa rara no Brasil de hoje) e que vive
exclusivamente para o teatro (sem nenhuma ajuda oficial ou particular),
o que pode ser considerado um milagre. O que é apaixonante no Galpão
é a sua necessidade de estar sempre aprendendo sempre estudando,
procurando aprimorar cada vez mais a sua linguagem, seja através da
música (pretendem tocar vários instrumentos), seja através da dança, da
voz, das técnicas do circo, da interpretação, do canto, ou qualquer outra
matéria que por acaso caia no seu rol de interesse. É também um grupo
que mantém um repertório (atualmente de 4 peças) e que jamais deixa
de aprimorar essas peças através de constantes ensaios, novas
pesquisas, debates e discussões com os vários diretores com quem
trabalhou (Ribeiro, 1989, s. p.).
Após esses reconhecimentos, Eid volta-se para uma questão pouco discutida
pela bibliografia sobre o Galpão:
O impressionante nisso tudo é a incapacidade da crítica teatral enxergar
a importância do Galpão no teatro brasileiro, talvez porque o teatro de
rua não seja considerado teatro pelos “bem pensantes” da elite
colonizada. Ou talvez porque, infelizmente, no Brasil não existe uma
tradição de teatro de rua (Ribeiro, 1989, s. p.).
Nessa passagem, o diretor aponta para um problema que envolvia as artes
cênicas daquele momento: não havia tradição de teatro de rua no Brasil e as
experiências que existiam eram incapazes de serem valorizadas pela crítica teatral.
Dificuldade ligada aos aspectos políticos da época, pois a Ditadura Militar no geral,
perseguiu a produção artística crítica e, com isso, desestimulou a ocupação de
espaços públicos por profissionais da arte. Em 1989, o país retomava o debate
democrático e Eid entendia que diferentes tipos de expressões artísticas,
principalmente o teatro de rua, precisavam ser valorizados e divulgados pela
crítica. O Galpão era conhecido em Belo Horizonte e tinha participado de festivais
de teatro no exterior, mas ainda precisava ser melhor conhecido pela crítica e
público.
A montagem de
Álbum de família
está articulada a esse projeto. Encenar
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Nelson Rodrigues não significava transpor das páginas para o palco um autor
conhecido. Havia planejamento cênico para os atores, que incluía formação cênica
mais densa, buscando o reconhecimento da crítica nacional pelo trabalho daquele
grupo que atuava com coesão há sete anos.
A proposta de Álbum de Família: composição cênica e desafios
formativos
O trabalho para a montagem de
Álbum
ocorreu ao longo do ano de 1990.
Foram nove meses de leitura de mesa, pesquisa de linguagem, conhecimento da
obra do dramaturgo, ensaios e desafios múltiplos. Um mergulho rodrigueano e nos
possíveis sentidos que poderiam ser atribuídos àquele teatro.
Muito já havia sido escrito sobre a obra de Nelson, sendo ele um dos autores
brasileiros mais comentados dentro e fora dos meios teatrais. Toda obra artística
carrega, ao longo do tempo, suas próprias características e tudo aquilo que se
produziu, escreveu e interpretou sobre ela, principalmente quando tratamos de
autores muito conhecidos. A recepção não é isenta das interpretações sobre a
obra e, com Nelson Rodrigues, isso não foi diferente. Um dos exemplos que ilustra
essa situação é o trabalho de organização e classificação das peças de Nelson por
gênero e temas, desenvolvido por Sábato Magaldi e seguido pela publicação de
Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações
, em 1987 pela Ed. Perspectiva.
Magaldi é um nome importante das artes cênicas. Crítico teatral e pensador, ele
foi responsável por categorizações da história do teatro brasileiro, inclusive as que
envolvem a ideia de modernidade teatral em articulação à dramaturgia e à cena
rodrigueana. A divisão das peças de Nelson sob três chaves para efeito didático
das publicações das obras completas “peças psicológicas”, “peças míticas” e
“tragédias cariocas” acabou se tornando uma referência para críticos, diretores,
atores e pesquisadores. Além disso, o próprio dramaturgo, exímio autor de
crônicas para a imprensa brasileira, tratou de produzir expressões que acabaram
definindo seu teatro, como por exemplo a noção de “teatro desagradável”. Esses
e outros elementos fazem parte das peças de Nelson, num amplo processo de
produção de sentidos.
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A montagem de
Álbum
, uma “peça mítica” de um “teatro desagradável”, por
um grupo que lidava com técnicas circenses, com o cômico e dialogava com a
Commedia dell’arte
e com o “teatro pobre” de Jerzy Grotowski e Eugênio Barba,
soava estranho para o público, para a crítica teatral e para os próprios atores, que
ficaram “perplexos” com a sugestão de montagem, de acordo com Moreira.
No entanto, o Galpão vinha desenvolvendo a pesquisa cênica com o objetivo
de abordar problemas sociais brasileiros. Assim, a sugestão de Eid surgiu como
uma possibilidade dupla: discutiria problemas nacionais e montaria um
dramaturgo brasileiro com um novo desafio de linguagem.
As palavras de Moreira novamente nos apresentam pistas interpretativas:
Nosso projeto de mergulhar na realidade do Brasil ganhou um novo e
inusitado rumo com a proposta feita por Eid de montarmos
Álbum de
família
. Um dos mais virulentos exemplos das chamadas tragédias
metafísicas de Nelson Rodrigues, a peça disseca os podres de uma
família tradicional do interior mineiro (Minas, sempre Minas!) com cenas
de incesto generalizado, crimes, castração, numa violência explícita e ao
mesmo tempo velada, bem típica da nossa cultura brasileira e,
especialmente, mineira (Moreira, 2021, p. 28).
O ator articula a violência do enredo com a realidade nacional e,
particularmente, a mineira. As práticas de violência do processo de formação de
nosso país passam pelos espaços de Minas, inclusive porque o estado possui
variadas formas de exploração social incentivadas, desde a colonização, pela
exploração de minérios, além de forte tradição religiosa que, em muitas ocasiões,
mascaram as práticas de violência física e simbólica. Pelo processo de
rememoração do ator, essa parece ser uma chave que justifica a escolha do texto
de Nelson, apesar da proposta do dramaturgo passar por outras lentes
interpretativas. Todavia, é preciso considerar que a preocupação com questões
que poderiam ser próprias de Minas Gerais – “Minas, sempre Minas!” aparecerá
na trajetória do Galpão de maneira mais forte a partir da encenação de
Romeu &
Julieta
(1992), espetáculo que, não por acaso, sucede a experiência com Eid e
Nelson.
Se a violência surge como uma explicação para a experiência cênica de 1990,
talvez seja pelo fato dela ter se tornado mais explícita diante do trabalho com a
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Álbum de família
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dramaturgia, porém o tema era tratado pelo grupo, especialmente na série “Deus
é brasileiro”.
Foi por amor
abordou crimes produzidos pelo machismo estrutural e
Corra enquanto é tempo
enfrentou a questão da violência simbólica e econômica
promovida pela religiosidade das ruas e praças de nossas cidades, onde pastores
disputavam espaço com sujeitos violentados pela exploração do capital. A
diferença é que, nesses projetos, o tratamento dado à questão social foi por meio
da irreverência e da comicidade. Com a dramaturgia de Nelson, a sustentação do
espetáculo passava por outros caminhos, notadamente o da tragédia.
O Galpão inovou a nossa cena teatral por muitas razões. Sobre a série “Deus
é brasileiro” o grupo conseguiu articular temas complexos com diferentes
propostas cênicas. O sentido do engajamento dos anos 1960 com o teatro de
agitprop
, que marcou a fase inicial da carreira de Eid, fora esvaziado, ao passo que
a Ditadura Militar havia deixado um rastro de silenciamento na cultura artística
crítica do país. Se o coletivo de atores tinha por interesse discutir problemas
sociais, o questionamento sobre a forma propícia para isso rondou os espaços de
produção dos espetáculos. A comicidade, a irreverência, a sátira, entre outras, são
possibilidades e foram utilizadas. No entanto, faltava um olhar para a tragédia e o
tratamento que ela proporciona aos temas sociais. Além disso, é difícil estruturar
um espetáculo de cunho trágico para as ruas, assim surgia o desafio de encenar
em um espaço fechado.
Em 2012, o projeto Ocupação, do Itaú Cultural, se dedicou a Nelson Rodrigues.
Uma das atividades do evento foi o
Encontro com Nelson ao da cena
, que
reuniu diretores para falar de suas experiências de criação de espetáculos com
textos do dramaturgo. Sobre
Álbum de família
foram convidados Eid Ribeiro e
Newton Moreno. O encenador mineiro, obviamente, tratou do processo de criação
do Galpão.
No vídeo disponível no site do Itaú Cultural, uma apresentação dos
diretores com exibição de partes filmadas da encenação de 1990
(http://portale.icnetworks.org/). Em seguida, o mediador Valmir Santos pergunta
ao diretor os motivos da escolha do texto, que o Galpão é reconhecido pela
chave cômica. Eid retoma a questão da ausência de crítica teatral para espetáculos
de rua, explicitada em 1989, mas não usa apenas esse argumento. Ele reforça o
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interesse do grupo no final dos anos 1980 em tratar da realidade social brasileira
e afirma seu desejo de encenar uma peça de Nelson em Belo Horizonte, que, para
ele, teria um importante sentido transgressor. Por isso, ele indica um trabalho de
workshop para os atores com três peças:
Álbum de família
,
Boca de ouro
e
Beijo
no asfalto
. A decisão por Nelson já havia sido tomada.
Pelo relato, chamou a atenção do diretor o trabalho com
Beijo no asfalto
,
porém o encenador gostaria que fosse realizado uma montagem de palco, objetivo
que ficaria melhor com
Álbum
, peça que ele chama de “muito mineira”, não
pelos espaços onde a trama ocorre, mas pelo aspecto da “família tradicional
mineira”. Eid chega a dizer que “Nelson possui coração pernambucano, alma
mineira e verve cômica carioca”. A partir desse olhar,
Álbum
trazia a “transgressão”
que o diretor gostaria que o Galpão colocasse em cena, inclusive para ser
reconhecido pela crítica.
A partir daí, os estudos para o espetáculo foram realizados e a montagem
construída. O trabalho de reestruturação do texto por Eid foi fundamental na
articulação entre os interesses do grupo e a dramaturgia de Nelson Rodrigues. De
acordo com Moreira, “o texto [dramático] foi incessantemente escrito e reescrito
durante as longas improvisações baseadas nas situações da peça”. (Moreira, 2021,
p. 29)
A reescrita priorizou o núcleo familiar do texto e focou a discussão no
arrebatamento entre o sexo reprimido e a culpa. O conflito entre desejo e
repressão, exalado pelos personagens, foi a base, segundo Eid, para provocar
pulsões nos corpos dos atores que deveriam atuar de forma a demonstrar, pelas
ações físicas, a contradição entre desejo e moral, elemento importante para a
dramaturgia de Nelson, preocupada com a condição da natureza humana, cindida
entre o demoníaco e o divino (Gusmão, 2022)7. Moreira (2010) afirma que o
espetáculo tinha uma linguagem marcadamente corporal, cuja preparação foi com
7 Por mais que estejamos tratando de um espetáculo temporalmente localizado com base em um texto
dramático de Nelson Rodrigues, entendemos que o escritor elaborou um projeto de crítica social definido,
onde a linguagem teatral era indispensável para atingir o público e denunciar aquilo que ele compreendia
como problemas da modernidade. Justamente por capturar a matéria crítica do dramaturgo, articulando os
textos dramáticos com as crônicas jornalísticas e, com isso, lidando com o objetivo da obra, optamos por
utilizar neste artigo o trabalho de Gusmão (2022), em meio às inúmeras e importantes interpretações
acadêmicas sobre a obra de Nelson.
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Álbum de família
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base no
Teatro Antropológico
, de Eugênio Barba.
A linguagem corporal está articulada às condições do grupo de atores. O
trabalho de direção insere, no contexto do espetáculo, novos elementos sem
deixar de lado a experiência acumulada. A pulsão que a dramaturgia de Nelson
tanto explora para mostrar as contradições do humano foram relidas com o
objetivo de estimular ações físicas que desafiavam os corpos cênicos,
conhecedores e adaptados a outras expressões, como as do teatro popular. A
ânsia entre desejo e repressão gerava movimentos que dizem respeito à
individualidade e à forma como cada um encara a si mesmo, e isso é diferente
dos amplos movimentos acrobáticos, por exemplo.
Com essa proposta, a cenografia ganhou importância. Assinado por Rômulo
Bruzzi, – profissional que trabalhou com Eid e o Galpão em espetáculos nos anos
1980/1990 o cenário era escuro, composto pelo jogo de luzes e sombras e
marcado por elementos religiosos, como altar e cruz. Dividia-se em três partes ou
pavimentos. O plano baixo era um curral quadrado, cujas cercas direcionavam o
olhar da plateia para os atores da cintura para cima. Os outros dois planos ficavam
atrás e acima e os atores que atuavam nesses espaços deslizavam utilizando um
carrinho de rolimã invisível ao público. Da plateia, todo palco parecia um grande
teatro de marionetes em um altar católico, o que também lembrava uma cena
expressionista, segundo o diretor e Moreira. Os personagens apareciam como
peças de um jogo. Além da expressão corporal dos atores, o fervor entre desejo e
moral se materializava no conjunto cênico, colocando o espectador como
observador da trama.
Nelson escreveu peças que, para ele, deveriam ser encenadas para purificar
o lado demoníaco dos espectadores, daí a importância da identificação do
espectador com os personagens. Eid e o Galpão construíram cenicamente outra
dimensão para
Álbum
. Os personagens como peças de um jogo, ou no teatro de
marionetes circundado por símbolos cristãos, podem ser vistos pelo público não
somente por suas expectativas individuais, mas também sociais. Afinal, quem
move as peças do jogo de marionetes carregado de incesto, desejos e repressão?
A ação poderia ser interpretada apenas por meio das questões individuais dos
personagens ou existiriam outras dimensões, como o ambiente social? Importante
Encontros entre o Grupo Galpão, Eid Ribeiro e Nelson Rodrigues: a encenação de
Álbum de família
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pontuar também que a proposta da encenação surgiu da vontade do Grupo de
tratar sobre a realidade social brasileira e Eid via no texto um sentido
“transgressor”, que precisava ser estimulado na cena de BH.
Também ocorreram mudanças importantes no texto dramático. O diretor
construiu o personagem Sobrenatural, vivido por Antônio Edson, que repetia em
cena frases conhecidas de Nelson Rodrigues. “Devagar, em ritmo de filme em
câmera lenta, Nelson entra no palco, sobe numa mesa central e aponta sua
bengala para o público, a ele se dirigindo para informá-lo a respeito da tragédia
iminente” (Alves, Noe, 2006, p. 71). Esse personagem comentava a cena, apesar do
diretor afirmar que ele não era um narrador. O personagem circulava pelo palco,
tratava sobre a obra repetindo ideias e frases polêmicas do dramaturgo,
estimulando o espectador a pensar sobre o sentido do que assistia, marcando a
relação entre obra, criador e papel interpretativo do público. Esse é um expediente
cênico de distanciamento, instigando o público a olhar a cena de fora.
Ainda sobre o trânsito do texto para a cena, Eid dedica atenção especial ao
personagem Nonô, “o possesso”, que se enlouqueceu depois do incesto com a
mãe. No texto dramático, esse personagem ronda nu e alucinado o entorno da
casa da família, sem entrar em cena. No palco do Galpão, Nonô é vivido por Chico
Pelúcio e está em cena. Nu, com o corpo descompensado pela loucura, grita, emite
grunhidos, rola no chão e é parte da trama. Cada membro da família o vê de uma
forma. Para alguns, ele é indesejável e obsceno, Senhorinha admira o corpo
masculino nu, enquanto Jonas o odeia e o ignora. Em entrevista à jornalista Vitória
Neves do jornal
O Estado de Minas
, em 16 de junho de 1991, o ator comenta a
composição do personagem e sua importância para a trama cênica:
No texto de Nelson Rodrigues o Nonô não é materializado no palco. O Eid
(Ribeiro, diretor da peça) o colocou como uma pessoa que incomoda o
tempo todo e tem um dedo muito forte na composição desse
personagem. O Nonô passa por momentos de uma dor muito grande na
medida em que tem o pai como obstáculo entre ele e a mãe e mostra
isso de maneira evidentemente angustiante (Neves, 1991, p.8).
Diferentemente da proposta teatral de Nelson Rodrigues, o incômodo da
presença em cena do personagem pode estimular o olhar mais distanciado dos
espectadores, gerando estímulos para questionar os padrões morais da
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“tradicional família mineira”. Apesar do dramaturgo ser contrário às propostas de
distanciamento, em especial o brechtiano, pois visa com o seu teatro estimular o
contrário, a identificação com o objetivo de purificar o mal que compõe uma das
partes do ser humano, Eid apresenta outra dimensão cênica, lendo e
ressignificando Nelson a partir da ideia de transgressão.
As características da construção cênica de
Álbum de família
demonstram
que a parceria entre o Galpão, Eid Ribeiro e Nelson Rodrigues promoveu um ato
teatral muito próprio. Isso indica as potencialidades cênicas da dramaturgia
rodrigueana, conforme os interesses das pessoas e grupos que as utilizam nos
palcos. Levando em conta esses aspectos, para efeito de conclusão, cabe o
questionamento: O que significou Nelson Rodrigues para Eid e para o Galpão?
Sentidos e propostas de Nelson Rodrigues no palco do grupo
mineiro
Eid é um encenador que merece estudos mais aprofundados, pois muito
que refletir sobre o trabalho que ele vem desenvolvendo com constância desde
os anos 1960. No contexto deste artigo, o projeto com o Galpão e Nelson Rodrigues
foi tomado como referência; todavia, para responder com mais propriedade ao
questionamento anterior é preciso olhar para o conjunto da obra e não somente
para uma encenação. Para tentar construir uma resposta condizente para a
questão, recorremos a Garrocho (2016) que, ao tratar da trajetória do dramaturgo
e encenador, aponta que um de seus interesses frequentes é pelo “mundo de
baixo”. Para o pesquisador, Eid sempre se interessou pelos sobreviventes,
marginalizados e esquecidos que, apesar do perigo da extinção iminente,
continuam a habitar o mundo. Ele tratou, por exemplo, do universo do
entretenimento popular e dos dramas dos atores de espetáculos circenses. Seus
textos estão carregados de figuras marginais: idosos, mascastes, travestis,
ambulantes, mágicos de circo, mulher macaco, entre outros. Sob essa chave, a
parceria como dramaturgo e diretor com o Galpão em 1988 levou à elaboração de
Corra enquanto é tempo
, peça que trata dos desvalidos que disputam espaços de
sobrevivência nas ruas.
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Álbum de família
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Para Garrocho uma preocupação com o humano e suas contradições,
fato que não pode ser explicado por uma lógica causal e é, nesse ponto, que a
obra de Nelson interessa a Eid:
Basta lembrar que Beckett e Nelson Rodrigues transversam as escritas
cênicas e dramatúrgicas de Eid Ribeiro: todos os dois já foram montados
por ele. São autores que expõem, cada um a seu modo, e diversamente
entre si, essa paixão inútil que é o homem (Garrocho, 2016, p. 328-29).
Nelson, com sua crítica à modernidade e olhar conservador e religioso,
sempre se interessou pela natureza humana, em especial a divisão entre o divino
e o demoníaco. Para tanto, lançou mão de uma potente verve narrativa contra a
modernidade e também se interessou pelo “mundo de baixo”. Era na periferia, em
meio à baixa classe média, que ainda existiam, para ele, os gestos e ações
eminentemente humanos. Nelson acreditava e denunciava a desumanização da
modernidade, que poderia ser percebida na falta de espanto da vida moderna,
porém a periferia era um ambiente de resistência. “O subúrbio ainda teria um
resquício de humanidade que os tempos modernos teriam suprimido das zonas
mais abastadas” (Gusmão, 2022, p. 20).
Contudo, Eid não é antimoderno, conservador ou religioso, mas um
profissional interessado na crítica social e na vontade de expor os impasses do
humano em favor da transformação. E é isso que ele realiza com o Galpão ao
encenar
Álbum de família
. Essa construção cênica significou a possibilidade de
trabalhar com um dramaturgo brasileiro, que tratava de temas importantes que
tocam a sociedade contemporânea e que, por fim, buscava, de alguma forma, uma
resposta aos problemas da modernidade.
Para os problemas do humano, as respostas de Eid são diferentes das de
Nelson. Este, a partir de perspectivas distintas, permitiu àquele construir
interpretações sobre a sociedade contemporânea. Por isso, Nelson foi indicado
para o Galpão num momento em que a trupe buscava a “realidade brasileira”. O
diretor objetivava discutir problemas sociais e viu em Nelson Rodrigues um teor
“transgressor”, que ele necessariamente não possui. Para tanto, Eid reescreve a
cena rodrigueana atuando como encenador que fomenta o teatro como ato.
Certamente, pelo olhar de Nelson, Eid não seria um bom diretor, pois rompeu com
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Álbum de família
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o objetivo teatral de purificação do público. No entanto, “múltiplos são os sentidos
que podem ser atribuídos a um mesmo texto, múltiplos podem ser os universos
de crenças criados em torno de uma mesma obra - o que torna ainda mais
dinâmico o jogo que articula autores, obras, leituras e interpretações das mesmas”
(Gusmão, 2021, p. 308).
E para o Galpão, o que significou a montagem de
Álbum de família
? Conforme
foi discutido, o projeto fez parte da formação do grupo. As palavras de Moreira
apontam nesse sentido, inclusive o grupo “perdeu a ingenuidade” ao se encontrar
com Nelson Rodrigues. Ao olharmos em retrospecto para as primeiras obras que
o Galpão ofereceu ao público, parece haver, com
Álbum
, um “corte” na trajetória;
porém essa interpretação é apressada e descontextualizada. A encenação
representou um aprofundamento formativo fundamental para o Galpão. O
encontro com Eid, cujo ápice foi a montagem de Nelson Rodrigues, marcou a
profissionalização da trupe. Depois de realizar cursos, dialogar com muita gente e
ocupar as ruas das cidades, a encenação de
Álbum
permitiu ao grupo se lançar
em projetos mais complexos, que foram altamente comentados pela crítica teatral
a partir dos anos 1990. Eid e Nelson pavimentaram o caminho que o Galpão
seguiria a partir dali.
Para efeito de conclusão, é importante retomar a ideia de Eid de que o Galpão
não aparecia nas páginas da crítica. Em Belo Horizonte, a encenação de
Álbum de
família
permitiu inúmeros prêmios e colocou o espetáculo como destaque de 1991.
Depois, o grupo encenou em várias cidades, entre elas Rio de Janeiro, no Teatro
Glaucio Gill. Após assistir ao espetáculo, Maksen Luiz publicou, no
Jornal do Brasil
,
a crítica
Poética Desagradável
, onde elogia o trabalho de reescrita e direção
realizado por Eid e a cenografia de Rômulo Bruzzi. Já sobre a atuação dos atores,
ele considera:
O elenco segue uma linha algo operística, que em alguns casos se reduz
apenas à incapacidade técnica de resolver uma interpretação não
naturalista. Beto Franco empobrece o desespero de Jonas; Chico Pelúcio
amplia, oligofrenicamente, a loucura de Nonô; Júlio César Maciel, além de
uma caracterização insatisfatória (cabelo e maquilagem), não alcança o
patético de Edmundo; Eduardo Moreira atinge, apenas parcialmente, a
angústia de Guilherme; Wanda Fernandes mostra-se convincente como
D. Senhorinha; Teuda Bara não compromete como Ruth; Maria Castelois
[sic] é responsável pela cena que deixa a platéia [sic] mais tensa, quando
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Álbum de família
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é arrastada pelo pescoço. A disciplina e contenção corporal da atriz é
digna de registro. Antônio Edson, com voz apagada, não sustenta,
integralmente, a responsabilidade de conduzir o espetáculo (Luiz, 1991, p.
9).
Em seguida, o crítico volta a elogiar a composição cênica e finaliza o texto: “A
adaptação de
Álbum de família
, mesmo modificando o texto original, não trai o
espírito de Nelson Rodrigues: provocador, trágico, violento e poético” (Luiz, 1991, p.
9).
Não trair o espírito do escritor, “mesmo modificando o texto original” parece
ser o maior mérito da encenação. Os problemas que o crítico aponta sobre a
fragilidade dos atores em cena são importantes e estão articulados ao momento
que o grupo vivia e ao interesse do diretor ao sugerir a montagem daquele texto
dramático. Eid ressignificou a peça, criou a cena a partir dos interesses que
circundavam o Grupo e lançou a trupe em desafios interpretativos novos. Os
atores estavam consolidando suas atividades, não tinham experiência com a
montagem de tragédias e com textos dramáticos densos, além de pouca
familiaridade com o palco, por isso encenaram Nelson.
Ao realizar seus apontamentos, Maksen Luiz permitiu que o Galpão figurasse
nas páginas da crítica do eixo Rio-São Paulo, rompendo espaços e promovendo
debates. Objetivo que Eid buscava desde quando voltou da turnê europeia com o
grupo. No início da década de 1990, durante e após a encenação de
Álbum
, críticos
conhecidos no cenário teatral, como Alberto Guzik, Barbara Heliodora, Maria Lúcia
Pereira e Carmelinda Guimarães passaram a tratar dos espetáculos do Galpão.
Cabe reconhecer, portanto, a importância de Eid Ribeiro e de sua releitura de
Nelson Rodrigues para o Grupo e para a cena teatral brasileira. As décadas
seguintes foram muito ricas para a trupe de Belo Horizonte e parte disso se deve
ao trabalho consolidado pela montagem e também pela recepção de
Álbum de
família
.
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Recebido em: 13/09/2023
Aprovado em: 31/10/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br