Escrevivências de um corpo preto entre-lugares na peça de teatro pós-moderno “Bagagem de Desjeitos”
Thiago Francysco Rodrigues Cassiano | Gustavo Henrique Lima Ferreira
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-28, abr. 2024
espetáculo compilou uma miríade de materiais, que incluíam textos como uma
tradução do discurso
E eu não sou uma mulher?
, feito no século XIX por Sojourner
Truth (2014), trechos da peça
Terror e miséria no terceiro reich
, de Bertold Brecht
(2008), e da transcrição da obra
Intervenção no Rio: Como Sobreviver a uma
abordagem indevida
, de Ad Junior, Edu Carvalho e Spartakus Santiago, exibida na
exposição Histórias Afro-Atlânticas de 2018; assim como registros audiovisuais da
Alemanha e da Itália entre os anos 1930 e 1940, vídeos de operações policiais em
favelas brasileiras e declarações de integrantes da equipe do governo recém eleito,
incluindo trechos do discurso de posse do novo presidente.
Na atuação das performances multimídia, bem como na atuação
brechtiana, tudo parte e tudo volta ao real num questionamento que
busca analisar-lhe a situação. É, portanto, sobre a análise do real e sua
percepção pelo artista e pelo espectador que resulta o essencial do
trabalho de distanciamento (Féral, 2015, p. 237).
A combinação de elementos do distanciamento brechtiano com a utilização
de registros audiovisuais contemporâneos considerou a proposição metodológica
apresentada por Josette Féral (2015) ao abordar a relação entre a reprodução do
real fora de suas relações – de modo fragmentado, não continuado – passando
pela noção de desaceleração e imobilidade da imagem, da multiplicação detonada
de seu conteúdo, nos levando à reprodução no palco do real, sem trabalho sensível
da imagem, Féral (2015, p.237-239) relata que a:
É em virtude de as mídias autorizarem precisamente mais que qualquer
outra forma espetacular tal aproximação extrema, quase absoluta entre
a cena e o real, que o real encontra-se aí suprimido. De tanto reproduzir
o real com exatidão, de se lhe ajustar, elas acabam por se colocar no seu
lugar, por tragá-lo; o real midiatizado nada mais é que um simulacro,
ilusão, ponto de vista, rota de fuga.
Por meio de um processo evocativo imagético, com o uso de projeções
diretamente calçadas em registros audiovisuais não apenas artísticos, mas,
principalmente, documentais e jornalísticos, lançou mão de elementos
contemporâneos da lógica do distanciamento cênico, não do mesmo modo
proposto no passado por Bertolt Brecht, mas atualizado para as relações
contemporâneas, pois a:
[...] realidade da qual falava Brecht implicava a fé numa história universal
que se dirigia ao destino da humanidade e colocava em cena um homem