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Acervo Sábato Magaldi,
muito além da memória
Elen de Medeiros
Ana Clara P. C. Marques
Para citar este artigo:
MEDEIROS, Elen de; MARQUES, Ana Clara P. C. Acervo Sábato
Magaldi, muito além da memória.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0201
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Acervo Sábato Magaldi, muito além da memória
Elen de Medeiros | Ana Clara P. C. Marques
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-20, abr. 2024
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Acervo Sábato Magaldi1, muito além da memória2
Elen de Medeiros3
Ana Clara P. C. Marques4
Resumo
O crítico teatral mineiro Sábato Magaldi desenvolveu inúmeras funções ligadas ao
teatro, contribuindo extensamente com o estudo, a crítica e a formação teatrais.
Este artigo aborda o trabalho de tratamento, inventariação e pesquisa no Acervo
Sábato Magaldi, custodiado pelo Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, e tem como
objetivo discutir seus processos e suas bases metodológicas. Diante disso, visa a
apresentar alguns resultados obtidos durante o processo de tratamento, descrição
e inventariação de seu acervo, bem como aponta algumas reflexões acerca do
impacto deste acervo para a historiografia teatral. Para tal, discute a definição de
acervo pessoal e a necessidade da prática contextual para a descrição do arquivo.
Palavras-chave
: Acervo pessoal. Sábato Magaldi. História do teatro. Memória.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Alexandre Caroli Rocha. Graduação Licenciatura e
bacharelado em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestrado em Teoria e História
Literária pela UNICAMP. Doutorado em Teoria e História Literária pela UNICAMP
.
http://lattes.cnpq.br/1023198477094559
2 Artigo resultante da pesquisa “Acervo Sábato Magaldi: tratamento, inventariação e figurações do crítico”,
desenvolvida a partir de 2018, na Faculdade de Letras da UFMG, com apoio do CNPq (Edital Demanda
Universal 28/2018) e da Fapemig (Edital Demanda Universal 01/2018).
3 Pós-doutorado na Université Sorbonne Nouvelle Paris3/ França. Pós-doutorado na Universidade do Estado
de Santa Catarina (UDESC). Pós-doutorado na Universidade de o Paulo. Doutorado em Teoria e História
Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestrado em Teoria e História Literária pela
UNICAMP. Graduação em Letras pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE). Professora de Literatura
e Teatro na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista de Produtividade
em Pesquisa do CNPq. elendemedeiros@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/9882448569137338 https://orcid.org/0000-0003-1281-2092
4 Graduanda em Teatro na UFMG. Bolsista de Iniciação Científica com a pesquisa “Acervo Sábato Magaldi: da
inventariação à consolidação da memória teatral”, com bolsa da Rede de Museus/UFMG.
anaclarapcmarques@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4132424098914791 https://orcid.org/0009-0000-3388-4488
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Sábato Magaldi collection, far beyond memory
Abstract
Sábato Magaldi, a Brazilian theater critic from Minas Gerais, played many roles in the
theater, contributing extensively to the study, criticism and formation of theater. This
article discusses the work of processing, inventorying and researching the Sábato
Magaldi Collection, held by the UFMG Collection of Writers from Minas Gerais, and
aims to discuss its processes and methodological bases. It aims to present some of
the results obtained during the process of preparing, describing and inventorying his
collection, as well as pointing out some reflections on the impact of this collection
on theatrical historiography. To this end, it discusses the definition of a personal
collection and the need for contextual practice when describing the archive.
Keywords:
Personal collection. Sábato Magaldi. Theater history. Memory.
La colección Sábato Magaldi, más allá de la memoria
Resumen
Sábato Magaldi, crítico teatral brasileño de Minas Gerais, desempeñó múltiples
funciones en el teatro, contribuyendo ampliamente a los estudios, la crítica y la
formación teatrales. Este artículo aborda el trabajo de procesamiento, inventario e
investigación de la Colección Sábato Magaldi, conservada en la Colección de
Escritores de Minas Gerais de la UFMG, y pretende discutir sus procesos y bases
metodológicas. Para ello, pretende presentar algunos de los resultados obtenidos
durante el proceso de procesamiento, descripción e inventario de su colección, así
como apuntar algunas reflexiones sobre el impacto de esta colección en la
historiografía teatral. También se discute la definición de colección personal y la
necesidad de una práctica contextual a la hora de describir el archivo.
Palabras clave
: Colección personal. Sábato Magaldi. Historia del teatro. Memoria.
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Acervo em foco
Em 2017, o acervo de Sábato Antônio Magaldi, crítico teatral belo horizontino,
foi recebido para compor a coleção do Acervo de Escritores Mineiros da
Universidade Federal de Minas Gerais um “‘lugar de memória’ [...] a ser vivido,
construído e habitado”, segundo o pesquisador Reinaldo Marques (2008, p.105-
106). Sendo o único acervo, até então, ligado à produção e à crítica teatral de tal
conjunto, o Acervo Sábato Magaldi expande as possibilidades de informação, de
pesquisa e de produção de conhecimento no campo teatral e historiográfico, além
de permitir a preservação da memória do crítico e das histórias do teatro brasileiro
e mundial, avidamente acompanhadas pelo mineiro em seus quase 50 anos de
atividade.
Com um vasto volume de documentos (desde itens textuais, iconográficos
até sua biblioteca pessoal), seu conjunto permite uma compreensão da
diversidade do teatro, em particular do brasileiro, diante de construções sociais e
políticas, além da própria história e contribuições do crítico, evidenciando sua
relevância para os estudos teatrais do nosso período moderno. Diante de tal
complexidade, há de se observar a importância do tratamento, da inventariação e
da disponibilização do acervo ao público (geral e pesquisadores) e do estudo que
envolvem tais tarefas. E é justamente no cruzamento dessas perspectivas, entre
os estudos teatrais e a arquivologia, que se encontra o presente trabalho.
O processo de tratamento de seu acervo revela-se como um projeto de
contínuo desenvolvimento, apresentando diversas etapas que serão abordadas
neste artigo –, minuciosamente pensadas, discutidas e constituídas a partir de seu
conjunto documental. Buscam-se a preservação, a organização e a
disponibilização do arquivo como memória e fonte de informações.
O arquivo pessoal – ou “acervo de pessoa”, como explica Ana Maria Camargo
(2009, p. 28) – pode ser definido como um “conjunto de documentos produzidos,
ou recebidos, e mantidos por uma pessoa física ao longo de sua vida e em
decorrência de suas atividades e função social” (Oliveira, 2012, p. 33). Nele, estão
contidos documentos de origens e formatos diversos, como pontua Heloísa
Liberalli Bellotto (2006, p. 256):
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[...] papéis ligados à vida familiar, civil, profissional e à produção política
e/ou intelectual, científica, artística de estadistas, políticos, artistas,
literatos, cientistas etc. Enfim, os papéis de qualquer cidadão que
apresente interesse para a pesquisa histórica, trazendo dados sobre a
vida cotidiana, social, religiosa, econômica, cultural do tempo em que
viveu ou sobre a própria personalidade e comportamento.
Dessa forma, compreendemos os arquivos pessoais como o resultado da
acumulação natural, orgânica e não intencional de documentos variados, ligados
à produção cotidiana, às funções exercidas e às relações mantidas pelo titular.
Ainda que os arquivos pessoais não sejam carregados com a artificialidade de uma
coleção “conjunto de documentos com características comuns, reunidos
intencionalmente” (Arquivo Nacional, 2005, p. 52) –, tratados anteriormente de
forma superficial como correlatos, como aponta Campos (2016, p. 105), reside em
sua composição um certo grau de intencionalidade, uma vez que o titular, ao longo
de sua trajetória, decide se desfazer ou manter determinados documentos,
seguindo seus próprios critérios, suas vontades e sua organização. Vale ressaltar,
ainda, a possibilidade de inserções de terceiros, muito comum nos casos de
doações ou aquisições póstumas, a exemplo do que ocorre no acervo do crítico
Sábato Magaldi.
A respeito deste detalhe, sobre a inserção de terceiros, podemos observar na
constituição do acervo doado recortes de jornais e revistas, transcrições de
discursos e cartas sobre o falecimento do crítico e em sua homenagem,
provavelmente incorporados ao arquivo pela esposa de Magaldi, a escritora Edla
van Steen. Tais inserções, como sugerem Britto e Corradi (2018, p.155), não
deveriam compor o acervo do titular, e sim servir como um material de apoio para
a pesquisa, devendo, antes, respeitar o limite em que “o alcance cronológico dos
acervos pessoais não ultrapassa a vida do indivíduo” (Vidal apud Britto; Corradi,
2018, p.155).
Ainda que não exista a finalidade de gerar um acervo, a edição feita pelo
titular em seu arquivo, selecionando aquilo que deseja guardar e suprimindo o que
deseja omitir, rompe com a ideia de que o arquivo pessoal representa fielmente a
vida da pessoa que o produziu. Ainda assim, como aponta José Francisco Guelfi
Campos (2011, p.3):
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Mais do que identifi-los como subprodutos derivados das atividades do
titular do fundo, é possível reconhecê-los também como instrumentos
que viabilizaram o exercício de suas atividades, dos papéis sociais
desempenhados e dos relacionamentos por ele mantidos com outras
pessoas ou instituições ao longo de sua vida.
O que temos, portanto, nos acervos pessoais não é o acesso à memória
intacta do titular, mas o contato com seus fragmentos – da memória individual e
coletiva. E são esses vestígios capazes de nos fornecer informações de sua vida,
de pessoas a ele relacionadas, de seu grupo ou classe e da sociedade como um
todo: um trabalho da arquivística apoiado na assimilação do contexto de produção,
no recebimento e na manutenção dos documentos que compõem o acervo.
Ocorre, a partir dessa articulação, uma espécie de “simbiose entre memória e
arquivo”, tratada por Campos (2016, p.102) de forma crítica: com base nos registros
podemos nos aproximar de uma reconstrução da história fragmentada, e é por
meio da história em construção que podemos compreender seus restos
documentais arquivados.
Se a história é (re)construída e passível de validação e revisão por meio de
registros, a compreensão do teatro, arte marcada pela efemeridade, evidencia
ainda mais a necessidade da constituição e da manutenção dos documentos e
dos arquivos. É por meio de inscrições, por exemplo, que são identificados traços
de teatralidade ainda no período “pré-histórico”, muito interligada ao ritual, bem
como se compreende e se especula sobre o teatro jesuítico. A partir das anotações
de viajantes e clérigos, é possível identificar a relação entre o teatro, as festividades
religiosas, as procissões e a utilização de alegorias, fogo, efeitos visuais e sonoros,
como aponta Carvalho (2015) a partir dos relatos do Padre Fernão Cardim. Os
vestígios ainda permitem uma compreensão acerca da função social e política
exercida pelo teatro, utilizado à época pelos jesuítas como mecanismo de
materialização e reafirmação da e de costumes católicos, sendo um
instrumento de catequização e apagamento da cultura originária. É justamente a
partir da ausência de registros à época da escrita do livro, podemos aventar
sobre o teatro realizado no Brasil durante o século XVII e parte do XVIII que nos
deparamos com o que o próprio Sábato Magaldi nomeia como “vazio de dois
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séculos”, em capítulo controverso5 de seu
Panorama do teatro brasileiro
(2004
[1962]).
Para o estreito entrelaçamento entre a história, o documento, seus dados e
funções, temos, na metodologia seguida, a necessidade de uma abordagem
contextual para a compreensão e trabalho de descrição e inventariação dos
acervos pessoais. Além disso, optamos por uma expansão de um dos princípios
da arquivística: a proveniência. Assim como exposto por Laura Agnes Millar, para a
abordagem de um acervo pessoal, torna-se imprescindível uma concepção de
proveniência ampliada “respeito à proveniência” (Millar, 2015, p.159), abarcando
não somente o contexto de criação do documento, sua procedência, como
também a história do produtor (criação), a história dos arquivos (uso) e a história
da arquivística (gestão).
A abordagem contextual, proposta por Ana Maria Camargo e citada em “Um
salto no vazio?” (Campos, 2011, p. 4-5), permite uma descrição documental
minuciosa e mais fiel às histórias do documento e do titular. Ao compreendermos
a composição do documento, seu contexto de produção e a motivação para seu
ingresso e permanência no acervo do titular, garantimos a preservação dos
vínculos entre os itens, as atividades exercidas pelo titular e o produtor do
documento e a organicidade do arquivo.
Tratamento e descrição do Acervo Sábato Magaldi
O acervo de Sábato Magaldi, objeto de nossa pesquisa e reflexão, como a
escritora Edla van Steen aponta na apresentação do livro póstumo
Na plateia do
mundo
(2017), seguiu as definições ampliadas de acervo pessoal: é o conjunto
resultante da produção e do cotidiano de Sábato Magaldi – de seus encargos, vida
doméstica, relacionamentos, atividades –, mantido seguindo os desejos e a
organização particular do titular. Segundo Edla van Steen, se não fosse a sua
5 Pesquisas realizadas recentemente promovem uma revisão histórica do período, seja buscando
compreender as teatralidades populares como manifestações importantes, seja trazendo a lume uma
produção teatral fora do eixo cultural do qual Sábato fazia parte. Mariana Soutto Mayor (2015, p. 107) observa
que “para o historiador interessa apenas a encenação dialogada baseada na veiculação cênica de um texto”,
mas que “é importante olhar para o século XVIII pelo viés das manifestações cênicas para considerar que o
teatro não está necessariamente atrelado à existência de uma dramaturgia, de atores profissionais ou
espaços teatrais”.
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pesquisa no arquivo da biblioteca Mário de Andrade para presentear o crítico com
a publicação única de críticas nos jornais paulistas, até mesmo a edição de
Amor
ao teatro
seria impossibilitada, uma vez que:
Sábato, pelo acúmulo de funções, durante um período, além de professor
na ECA era procurador do INSS, assistia aos espetáculos para fazer a
crítica quase diária no JT [Jornal da Tarde], não tinha a menor ordem nos
assuntos pessoais [...]. Ele vivia rodeado de papéis e, às vezes,
enlouquecia atrás de um documento ou de um livro [...]. E quando
precisava consultar o arquivo que eu lhe dera, para escrever artigos
longos, na pressa, ele se servia das críticas e jamais as devolvia ao arquivo
(Van Steen, 2017, p.14).
Essa pluralidade de funções e grande dedicação à produção artística, crítica
e acadêmica, apontada pela escritora e companheira do crítico, está bem
representada no extenso e diverso arquivo de Magaldi. Como observamos
anteriormente,
o acervo é composto pela biblioteca do crítico, manuscritos de críticas e
de livros de sua autoria, manuscritos de peças originais enviados para
apreciação, correspondência (passiva em sua maioria), fotografias de
espetáculos e particulares, programas, anotações diversas, quadros,
homenagens recebidas, escrivaninha, cadeira, fardão e a espada da
Academia Brasileira de Letras (ABL) (Medeiros, 2017, p. 280).
Não bastasse o volume do seu acervo, observamos um ordenamento
documental irregular, apresentando muitos documentos com temas relacionados,
agrupados ou não, folhas soltas, rasuradas e, infelizmente, algumas em estado de
deterioração avançado. Sendo assim, ao passo que o contato com o acervo de
Magaldi se revela uma enorme oportunidade, o trabalho para seu tratamento e
inventariação representa um grande desafio.
Seguindo a proposição de Campos (2011), o primeiro passo para o trabalho
com um acervo pessoal é o estudo da trajetória e das obras do titular, bem como
do universo que o circunda e que ele aborda. Para além do estudo sobre a vida de
Sábato Magaldi, tornou-se fundamental o contato com algumas de suas
publicações e a retomada do contexto histórico, em especial aquele do teatro
brasileiro e da crítica moderna, que, em grande medida, suas atividades estão
relacionadas a este universo. Muito embora suas atividades críticas e de docência
estejam estreitadas com a historiografia teatral, de se observar que Magaldi
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também desenvolveu atividades administrativas importantes, como secretário
municipal de Cultura de São Paulo, e participou, ainda na juventude, da geração
literária
Edifício
, de Belo Horizonte. O trânsito que ele estabelecia, assim, entre o
teatro e outras atividades era intenso e de fundamental compreensão para a
descrição dos documentos de seu acervo.
O processo arquivístico com o acervo tem algumas etapas. Em um primeiro
momento, o passo fundamental da higienização dos documentos, que, logo
após, são acomodados em pastas e caixas adequadas a fim de garantir sua
preservação e integridade. Passando para a fase da descrição documental, tem-
se por base uma ficha de descrição documental unitária, em que são detalhados
aspectos do documento com duas bases de leitura diferentes, mas
complementares: a) as características do documento (tipo documental, aspectos
gerais do documento); e b) contexto de sua produção. Com a descrição,
finalmente, cada documento recebe um código específico que o identifica dentro
do todo, sua notação. Todas essas informações alimentam a cronologia, que irá
compor o inventário, e na qual finalmente se articulam evento, contexto e
documentos relacionados.
Considerando-se a extensão e a diversidade do Acervo Sábato Magaldi, que
abarca inúmeros tipos documentais, bem como inúmeras funções exercidas por
ele ao longo de sua trajetória, que vão da crítica até a docência no país e no
exterior, os glossários que respaldam a descrição documental necessitam
constante atenção e atualização. Os glossários de atividades e de documentos
são suportes, compostos por verbetes, que padronizam as descrições de
identificação. Na composição destes glossários, elaborados conforme as
especificidades do acervo, é fundamental evitar ao máximo generalizações e
palavras extensivas, eventualmente faz-se necessário suprimir termos e alimentar
novos que melhor descrevem o documento e as atividades realizadas pelo titular,
de modo a garantir a organicidade do acervo e, ainda, facilitar a busca dos futuros
pesquisadores.
A cronologia, preenchida
pari passu
às fichas documentais, traduz a trajetória
do titular do arquivo. Os contextos descritos são associados à data de
acontecimento e aos itens documentais relacionados, compondo uma tabela
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cronológica que permite uma melhor visualização do arquivo como um todo. Tem-
se, ao fim e ao cabo, um esboço da vida do titular a partir dos acontecimentos
cronológicos evidenciados em seu acervo.
Amor ao teatro, sempre
Nascido em Belo Horizonte (MG) em 9 de maio de 1927, Sábato Magaldi foi
um dos principais estudiosos da cena teatral brasileira, consolidando sua carreira
de forma paralela à consolidação do teatro moderno brasileiro. Antes mesmo de
completar sua graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
(1949), participou da fundação da Revista
Edifício
, em 1946, juntamente com
importantes figuras mineiras, como Autran Dourado e Francisco Iglésias, a qual
contou com colaborações de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara
Resende e Hélio Pellegrino primo de Magaldi. Mudou-se para o Rio de Janeiro
para trabalhar em departamento da administração pública dirigido por Cyro dos
Anjos e, no ano seguinte, tornou-se crítico teatral no
Diário Carioca
(RJ), onde
permaneceu até 1953, enviando críticas teatrais sobre montagens europeias, uma
vez que, em 1952, mudou-se para Paris para cursar Estética na Universidade
Sorbonne.
Após o curso na universidade francesa, retornou ao Brasil para lecionar, a
convite de Alfredo Mesquita, na Escola de Arte Dramática de São Paulo, a disciplina
“História do teatro”. Posteriormente, em 1962, fundou no curso da Escola a
disciplina “História do teatro brasileiro” até aquele momento inexistente na nossa
formação teatral. Ainda em 1953, por indicação de Décio de Almeida Prado, tornou-
se crítico teatral do jornal
O Estado de São Paulo
, possuindo coluna própria no
Suplemento Literário a partir de 1956. Também participou como redator de
diversos veículos, como a revista
Teatro Brasileiro e Visão
, e como crítico no
Jornal
da Tarde
desde 1966, data da fundação do periódico, até a aposentadoria do
crítico, em 1988.
Doutorou-se em 1972 com tese sobre o teatro de Oswald de Andrade,
posteriormente editada como
Teatro da ruptura: Oswald de Andrade
(2004). Em
1970 transfere-se da EAD para a Escola de Comunicações e Artes da Universidade
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de São Paulo (ECA-USP), onde prestou livre-docência com a tese
Nelson
Rodrigues: dramaturgia e encenações
. Lecionou como professor convidado nas
universidades Sorbonne e Aix-Provence, além de ter participado de diversas
conferências, palestras, entrevistas e programas radialísticos e televisivos. Em
1997, inaugura no canal de TV Multishow, como entrevistador-apresentador, o
programa
Primeira Pessoa
o primeiro voltado para o teatro em horário nobre.
Recebeu o Prêmio Jabuti de Teatro nos anos de 1963 e 1965 e o Prêmio Juca Pato
de Intelectual do Ano de 1997.
Em dezembro de 1994, Sábato Magaldi é eleito para ocupar a 24ª cadeira na
Academia Brasileira de Letras, anteriormente ocupada por Cyro dos Anjos, e toma
posse em julho de 1995. Faleceu em 14 de julho de 2016, deixando conosco sua
grande contribuição aos estudos do teatro brasileiro, que vai além de suas
publicações e de sua atuação como professor universitário.
Esses eventos elencados, aqui organizados cronologicamente conforme a
trajetória do crítico e em formato de biografia factual, estão representados no seu
acervo a partir de uma vasta quantidade de documentos e itens que a eles se
relacionam. Como exemplo, no caso das premiações, são identificadas cartas de
cumprimentos, reportagens, fotografias, listas, discursos, seu memorial e os
próprios prêmios e medalhas. Há, para além dos documentos que perscrutam
suas atividades profissionais, outros que apontam para nuances da história do
teatro brasileiro moderno, uma vez que seus principais movimentos foram
acompanhados de perto por Magaldi.
Durante sua atuação como primeiro secretário municipal de Cultura de São
Paulo, Magaldi foi responsável pela reforma de espaços teatrais, além de ter
auxiliado na consolidação do Departamento de Informação e Documentação
Artísticas (IDART) e estimulado pesquisas e publicações teatrais pela secretaria.
Participou da Associação Paulista de Críticos Teatrais – inclusive como presidente
–, da Comissão Municipal de Teatro, do Serviço Nacional de Teatro (SNT), como
primeiro representante, e da fundação da Comissão Estadual de Teatro. O que
almejamos destacar é que, além de lecionar e contribuir com o desenvolvimento
do teatro, de sua teoria e crítica, Magaldi atuou em uma militância, lutando
incansavelmente para o financiamento e para a liberação de textos e montagens
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teatrais censurados pela ditadura militar.
Figura 1- Parecer de Sábato Magaldi sobre
O burguês fidalgo
para apoio da
Comissão Estadual de Teatro (CET). Fonte: Acervo Sábato Magaldi/AEM/UFMG.
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Figura 2 - Parecer de Sábato Magaldi sobre a peça
Galileu Galilei
, para apoio da Comissão
Estadual de Teatro (CET). Fonte: Acervo Sábato Magaldi/AEM/UFMG.
Nesse sentido, tendo em mãos a diversidade de tipos documentais com os
quais nos deparamos no processo de tratamento, estamos diante de um acervo
que permite o acesso a uma construção de memória não apenas individual, como
também coletiva, evidenciando ainda mais a relevância do conjunto e de sua
preservação. O período teatral entre 1964 e 1985 definido em entrevista pelo
crítico como vazio e de voz uníssona do teatro contra a ditatura é bastante
registrado em seu acervo por suas críticas teatrais, artigos e pareceres e, pela
presença de documentos que apontam a ação do governo militar e de seus
censores, as insatisfações e problemas enfrentados pelos artistas e, ainda, as
estratégias encontradas para a manutenção das manifestações artísticas. É vasta
a coleção de correspondências sobre esse contexto, com cartas de amigos e
artistas censurados e/ou exilados.
É o caso, em relação à correspondência, de Consuelo de Castro, que
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manifesta diversas vezes sua indignação com a censura de suas peças, inclusive
aquelas premiadas. Em uma de suas cartas, a dramaturga convida o crítico para
uma leitura dramática “clandestina” da peça proibida
A cidade impossível,
de
Pedro Santana
(1975)
inicialmente denominada
Acidente de trabalho
. Outro
exemplo é de Augusto Boal: exilado em Paris, onde inaugurou e consolidou seu
Teatro do oprimido
, mantém uma assídua troca de cartas com Magaldi para
atualizações de notícias de seus trabalhos, de sua visão do Brasil e do mundo.
Em certo momento, em fase de redemocratização, como aponta uma
carta, dentre outros assuntos, Boal comenta seu possível retorno ao Brasil, com
grande desejo de dirigir a adaptação de
Cândida Erendira
6, com Fernanda
Montenegro no elenco. As cartas desse período são de peculiar interesse porque
é quando, com apoio de Magaldi e de Fernanda Montenegro, além de outros
artistas, Boal prepara seu retorno ao Brasil, após a montagem de
O corsário do rei
,
em 1985, numa parceria com Edu Lobo e Chico Buarque. Inclusive, essa montagem
começa a nascer de uma visita de Edu Lobo a Boal em Paris, como é possível ler
na segunda missiva, datada de 22 de janeiro de 1984:
Figura 3 - Cartas de atualização de informações de Augusto Boal a Sábato Magaldi.
Fonte: Acervo Sábato Magaldi/ AEM/UFMG.
6 A peça, uma adaptação do conto
La incredible y triste historia de la candida Eréndira y de su abuela
desalmada
, de Gabriel García Marquez, teve uma montagem francesa em 1983, incentivada pelo Ministério
da Cultura da França.
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Entre tantos documentos, em seu acervo encontramos inúmeros registros
que permitem um acesso à dimensão da redemocratização do país. São muitas
as críticas escritas por Magaldi celebrando a abertura política e a possibilidade de
crescimento do teatro e o aparecimento de novos dramaturgos, sem as sanções
ditatoriais. Por exemplo, no recorte do jornal
O Estado de São Paulo
,
com texto de
Magaldi, em que comemora a nova temporada teatral em abertura inicial e ainda
incipiente após o fim do Ato Institucional 5 (AI-5), em dezembro de 1978.
Apesar de olhar com otimismo para a composição de uma cena teatral mais
diversa e livre – em linguagem, temas e vozes –, Magaldi evidencia, em sua crítica,
a permanência do descaso dos órgãos governamentais com a cultura (com falta
de incentivo e de investimentos) e da perseguição política, apontando a proibição
arbitrária de
Carnaval do povo,
espetáculo do Teatro Oficina, dirigido por José
Celso Martinez Corrêa.
Figura 4 - Edição de crítica de Sábato Magaldi, “A nova era da dramaturgia, oficializada
pelos ventos da abertura”, no jornal
O Estado
de São Paulo, em 29 de dezembro de 1979. Fonte:
Acervo Sábato Magaldi/ AEM/UFMG
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Em entrevista a Marta Góes, Magaldi compreende a opinião crítica como um
“diálogo com a sua impressão de espectador” (Góes, 1989, p.70). Por isso, defendia
uma “democracia total” e o direito de o crítico teatral se equivocar. Nesse sentido,
quando observamos os documentos que formam seu acervo e sua trajetória,
vemos que ele expandiu a função da crítica: além de analisar montagens e textos
teatrais, tarefas ordinárias do seu cotidiano como crítico, ele defendia a construção
de políticas culturais, empenhou-se em tentativas de subsídios para as
manifestações teatrais7, além de ter atuado no combate à censura, em favor da
liberação de peças.
Por sua ramificada atuação, Sábato consolidou nomes em nosso cânone
teatral, a exemplo de Plínio Marcos e Nelson Rodrigues, em intenso diálogo pessoal
e crítico. Por outro lado, podemos levantar questionamentos acerca do
apagamento de outros nomes. Como mostra outro trecho da entrevista citada, ele
revela a prática comum de receber de autores e diretores os textos montados
o que justifica, ainda, a presença de tantos exemplares de dramaturgias
encontradas em seu acervo.
Fico extremamente curioso até para ler o texto, antes da estreia. Cansei
de ler textos. O Nelson Rodrigues quando escrevia uma peça mandava
primeiro para mim. Tenho vários originais dele. Jorge Andrade, também.
Mostrou-me oito versões de Vereda da Salvação (Magaldi apud Góes,
1989, p. 71).
Por suas anotações e apontamentos nas cópias das peças enviadas por
diversos autores do país inteiro, notamos que elas são remetidas ao crítico com
pedidos de orientação ou apoio. Ou seja, além de sua atividade pública como
crítico, por meio de publicações em periódicos, sua atuação é notada também no
campo mais restrito, de relação direta entre autores e crítico, como um suporte
ou como um norteador de perspectivas de escrita de dramaturgia.
Vale ressaltar, ainda, algumas ausências em seu acervo, já que, por mais que
tenhamos um extenso volume de documentos, um acervo sempre será
7 Alguns documentos que compõem o acervo do crítico evidenciam uma participação ativa dele, no ano
(presumido) de 1961, para que a CET (Comissão Estadual de Teatro) encetasse esforços para a recuperação
de alguns espaços teatrais, dentre eles o TBC, com verba do Governo do Estado. Essa atuação está registrada
no seu livro, escrito em parceria com Maria Thereza Vargas,
Cem anos de teatro em o Paulo:
“Forma-se
imediatamente uma comissão, incumbida de examinar não a situação do TBC mas de todo o teatro
paulista”
(2001, p. 224 e 241).
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fragmentado. algumas ausências permanentes, a exemplo de seus cadernos
de apontamentos e análises sobre os espetáculos assistidos, que eram utilizados
para a formulação de suas críticas (inicialmente manuscritas, como verificado em
seu acervo) e foram denominados pelo autor como “Crônica teatral”. São cerca de
48 diários, com 400 páginas cada, doados à Academia Brasileira de Letras, que
poderão ser consultados apenas após 30 anos de seu falecimento como observa
Edla van Steen (Van Steen in Magaldi, 2017, p. 14) –, e que tiveram a sua publicação
proibida por Magaldi ainda em vida. Para outras ausências ligeiramente notadas,
ainda reside certa esperança de que, no decorrer de nossos trabalhos de
higienização, descrição e pesquisa, as revertamos. É o caso da peça teatral “Os
solitários”, escrita por Sábato e nunca publicada, citada em entrevistas e
documentos contidos em seu acervo.
Figura 5 - Um rascunho íntimo de Magaldi sobre o desejo da escrita.
Fonte: Acervo Sábato Magali/ AEM/UFMG.
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Considerações finais
um imenso campo ainda a ser redescoberto da nossa historiografia teatral.
Se considerarmos que Sábato Magaldi esteve lado a lado no processo de
modernização de nosso teatro, acolhendo e elaborando perspectivas diversas para
a arte e para os artistas, trazer a lume seu acervo é dar continuidade a esse
movimento. Nesse sentido, faz parte do objetivo deste trabalho de tratar e
inventariar acervo tão rico e sensível montado por ele ainda em vida, compondo-
se como memória concreta possibilitar o acesso à sua documentação e, por
meio de escavações e lapidações, a uma reconstrução do passado, contribuindo
com pesquisas do tempo presente, que reverberarão no futuro.
Destacamos neste texto, além do processo arquivístico em diálogo
intrínseco e complexo com a história do teatro –, que a pesquisa de um acervo
teatral como o de Magaldi pode apontar para detalhes, fissuras e vazios
historiográficos. Com cerca de 92 caixas devidamente higienizadas e acomodadas
e centenas de documentos descritos, o trabalho no Acervo Sábato Magaldi
progride respeitando não apenas o arquivo, mas igualmente sua história, a
memória e as produções do crítico mineiro. Seguindo uma metodologia delineada
conforme as características do acervo pessoal, os fundamentos do trabalho
respeitam os princípios da arquivística, construindo-se justamente a partir dos
fatos e dados da história do teatro, na expectativa de que, de forma dialética, seja
possível olhar para o passado no anseio de voltar-se para o futuro. Temos, no
entanto, a consciência de que esse passado é sempre
parte dele
, já que “articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele de fato foi’”
(Benjamin, 2012, p. 243).
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Aprovado em: 22/03/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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