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Técnica, experiência e invenção
no baile de dança de salão
Giancarlo Martins
Fernanda Goya Setubal
Para citar este artigo:
MARTINS, Giancarlo; SETUBAL, Fernanda Goya. Técnica,
experiência e invenção no baile de dança de Salão.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0203
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Técnica, experiência e invenção no baile de dança de salão
Giancarlo Martins | Fernanda Goya Setubal
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-23, abr. 2024
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Técnica, experiência e invenção no baile de dança de salão1
Giancarlo Martins2
Fernanda Goya Setubal3
Resumo
O artigo a seguir discorre a respeito dos bailes de dança de salão como um espaço
de invenção e aprendizagem. Entende-se, pois, as danças de salão (DS) como um
campo social que se organiza a partir do interesse por essa técnica específica de
dança. Para tal conceituação, parte-se dos escritos de Tonial (2011) e Dickow (2020),
que pesquisam a respeito de dança de salão. A noção de técnica é delimitada através
de Mauss (2003) e Ortega y Gasset (1963), além disso, conta-se com os escritos de
Taylor (2013) e Schechner (2003) a respeito da
performance
, o que permite observar
as DS como um sistema de aprendizagem e como contexto e prática social que
pode ser delimitado pelo seu sentido social e por sua história.
Palavras-chave
: Dança de salão. Experiência. Baile. Técnica. Performance.
Technique, experience and invention in ballroom dancing
Abstract
The following article discusses ballroom dance as a space for invention and learning.
Ballroom dances are understood as a social field that is organized around the
interest in this specific dance technique. To conceptualize this, we draw from the
writings of Tonial (2011) and Dickow (2020), who research ballroom dance. The notion
of technique is delineated through Mauss (2003) and Ortega y Gasset (1963), in
addition to the writings of Taylor (2013) and Schechner (2003) regarding performance,
allowing us to view ballroom dances as a learning system and as a social context
and practice that can be defined by its social significance and history.
Keywords:
Ballroom dance. Experience. Dance event. Technique. Performance.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Fernanda Goya Setubal, que é licenciada
em Letras Espanhol pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2 Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Mestrado em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Especialização em Fundamentos Estéticos para a arte e
educação pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP/PR). Graduação em Dança na PUC/PR. Prof. Dr. Adjunto
da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). giancarlo.martins@unespar.edu.br
http://lattes.cnpq.br/5485635472498844 https://orcid.org/0000-0003-1038-5701
3 Graduação em Dança pela Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Graduação em Letras Espanhol
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). goya.fernanda.s@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6518911523621602 http://orcid.org/0009-0006-9939-7010
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Técnica, experiencia e invención en la pista del baile de salón
Resumen
El presente artículo discurre a respecto de las pistas de baile de salón como un
espacio de invención y aprendizaje. Se entiende, pues, los bailes de salón como un
campo social que se organiza a partir de los intereses por esta técnica específica de
danza. Para esa conceptualización , se parte de los escritos de Tonial (2011) y Dickow
(2020), que investigan acerca de los bailes de salón. La noción técnica es delimitada
por Mauss (2003), además de Ortega y Gasset (1963), se cuenta, también, con los
escritos de Taylor (2013) y Schechner (2003) en respecto a la
performance
, lo que
permite observar los bailes de salón como un sistema de aprendizaje y como
contexto y práctica social que puede ser delimitado por su sentido social y por su
historia.
Palabras clave
: Baile de salón. Experiencia. Pista. Técnica. Performance.
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Chegada
Os assuntos aqui investigados buscam discorrer sobre o baile de dança de
salão (DS) compreendendo que esse é um lugar para onde as pessoas vão, não
apenas para colocar em prática o passo que foi aprendido na aula. O baile é um
ambiente de convivência e socialização, um contexto inventivo, onde ideias podem
ser testadas e onde diferentes modos de dançar ganham um espaço de
ocorrência. Defende-se aqui que o baile é um ambiente propício para vivenciar
experiências, não apenas relativas ao campo das DS, como a testagem de outros
modos de aprendizagem, mas também como espaço para refletirmos sobre
modos de vida e normatizações sociais, reconhecendo que o corpo é um sistema
complexo que estabelece relações inestancáveis com os seus ambientes de
existência. Ao dançar, portanto, o corpo performa fluxos, dando visibilidade a uma
série de questões que lhe constitui, tornando possível analisar hábitos e costumes
presentes nas DS, mas que reverberam em toda a sociedade.
Para dar embasamento a este assunto, no que diz respeito ao campo de
conhecimento das DS, fala-se de baile a partir de Tiago Tonial (2011) e das
concepções de dança de salão e danças sociais presentes na pesquisa de Katiusca
Dickow (2020). O conceito de experiência advém do filósofo pragmatista John
Dewey (2010), enquanto as noções de aprendizagem e inventividade aparecem
neste trabalho, através da pesquisadora Virgínia Kastrup (2001). Por fim, conto com
Diana Taylor (2013) e Richard Schechner (2003), ambos interessados nos estudos
da performance, com a finalidade de compreender como o campo das DS se
organiza, observando-o não apenas a partir de seus fazeres técnicos, mas também
a partir das relações sociais que ocorrem nesses contextos. Com isso, além de
mapear o campo levando em consideração as tensões sociais nele presentes,
coloca-se em foco a complexidade que permeia as discussões que rodeiam as DS
na atualidade
.
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Ser campo
Comumente o espaço de um baile de danças de salão possui um centro sem
obstruções, sem pilares, nem mesas, nem cadeiras. As pessoas ali presentes, além
de dançar umas com as outras, param para conversar com seus amigos, para
beber, conhecer gente nova e, dentre várias outras ações, param para ver outras
pessoas dançarem. Em um baile de DS os agentes são ora espectadores, ora o
fenômeno a ser observado, de modo que essas experiências de dançar e
observar acontecem uma seguida da outra, até que o baile acabe ou a pessoa
decida ir embora.
De acordo com Tiago Tonial, que em sua dissertação de mestrado em lazer
observa o espaço social das DS a partir da teoria dos jogos, o salão é descrito
como um espaço em que as pessoas presentes oscilam entre as ações de
espectar e dançar, tornando-se, então, objetos de observação (Tonial, 2011, p.28),
o autor ainda ressalta que “o olhar do terceiro passa a ser um ponto que dialoga
com os dançarinos que estão em casal no salão” (Tonial, 2011, p.28). Dessa maneira
o salão de baile é entendido como um tipo de palco (Tonial, 2011, p.28), uma vez
que o salão é “o local não somente para dançar, mas também para assistir a dança
dos outros” (Tonial, 2011, p. 30). Sendo assim, a dança no salão ocorre com o
desenrolar da música e da própria ação de dançar e, portanto, se desenvolve
atravessada pelas mais diversas informações daquele baile: o piso, os sapatos, a
iluminação, o par, a música, as vestimentas, os olhares dos espectadores e,
também, as danças anteriormente vistas. A dança acontece, no baile, a partir de
lógicas aprendidas em sala de aula (os passos, a técnica), e em certa medida, das
emoções e afetos daqueles(as) que dançam naquele momento preciso.
Assume-se, no presente trabalho, as DS como um
campo
uma vez que esse
conceito é útil para delimitar.
[...] um microcosmo social dotado de certa autonomia, com leis e regras
específicas, ao mesmo tempo em que influenciado e relacionado a um
espaço social mais amplo [...] Os campos são formados por agentes, que
podem ser indivíduos ou instituições, os quais criam os espaços e os
fazem existir pelas relações que aí estabelecem (Pereira, 2015, p. 341)
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Ao situar as DS como um desses microcosmos pode-se colocar foco sobre
essas duas experiências possíveis de serem vivenciadas ao longo de um baile de
DS (dançar e observar), reconhecendo que, ao longo de um baile, é possível e,
inclusive, comum experimentar essas duas possibilidades de apreciação do
campo, por conta de suas próprias características. Aqui, porém, essas experiências
são trazidas com o fim de discorrer brevemente sobre os modos de conhecimento
e aprendizagem vigentes nesse campo.
Assim, se diz, com base nas pesquisas de Katiusca Dickow, que as DS
e seus gêneros específicos, apesar de na maioria das vezes surgirem
das mesmas manifestações populares que as danças sociais, estão
vinculadas ao aprendizado de estruturas mais rígidas em seu
processo de ensino por caracterizarem a aquisição de uma técnica
específica que envolve o saber fazer de habilidades, discursos e gestos
em todos os ambientes considerados como parte desse campo: aulas de
dança, bailes, shows, competições, eventos e mídias sociais (Dickow,
2020, p. 124-125).
Entre os diferentes ambientes elencados acima, o baile é selecionado como
objeto de observação, uma vez que o foco da pesquisa recai sobre a presença e
manifestação de diferentes subjetividades nas DS que não se adequam no que é
social e culturalmente reconhecido como norma. O baile, sendo esse espaço onde
são colocados em prática os conhecimentos e modos de relação aprendidos
durante as aulas de dança, e também o lugar onde vemos outras pessoas
dançarem e somos afetados por essas danças, são, portanto, o contexto para que
tais subjetividades se exponham e sejam vistas por outras pessoas.
A partir do que o filósofo pragmatista John Dewey diz sobre arte e expressão,
pode-se dizer, então, que, durante um baile, os dançarinos num salão se
expõem
.
O autor defende que para que haja um
ato expressivo
é necessário elaborar uma
emoção, num processo que se por vias mentais e práticas, que são diluídas
num tempo que vai além do período no qual se sentiu a emoção motivadora do
ato expressivo. Nas palavras de Dewey, “podemos gritar de alegria ou até chorar
ao ver um amigo de quem estivemos separados por muito tempo. Esse desfecho
não é um objeto expressivo a não ser para o espectador” (Dewey, 2010, p.159).
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Por se tratar de um efeito que pode ser percebido por terceiros (o grito ou o choro)
e que se relaciona com uma emoção, o autor diz que esses seriam
atos de
exposição
. No ato de exposição as emoções são expressas “cruamente”, a pessoa
expõe
aquilo que sente, seu modo de agir não possui uma finalidade específica,
não há elaboração dos sentimentos e dos materiais trabalhados durante a dança.
Ao fim do trecho citado anteriormente, no entanto, o autor reconhece que,
para quem esses atos (o grito, o choro, ou a dança no baile), ou seja, para o
espectador, o momento visto sempre será um
objeto expressivo
, salientando que
o espectador, ao observar a ação em curso será, inevitavelmente, atravessado por
ela. O espectador no baile, por sua vez, também será afetado pelas danças que
ele vê, de modo que tais danças passam a compor um arcabouço imaginativo
(Dewey, 2010, p.175) que é especialmente íntimo e particular, uma vez que se
constrói a partir das vivências de cada pessoa. Esse arcabouço imaginativo, em
alguma medida, abarcará aquilo que a pessoa reconhece como DS, coloca um
limite, ainda que subjetivo, naquilo que se entende por essa técnica e conjunto de
práticas e, por fim, colabora neste mapeamento individual a respeito daquilo que
pode ou não acontecer dentro de um baile de DS.
Sendo assim, o jeito que a pessoa vai agir durante o baile, a roupa que ela
escolhe usar, quem ela vai, ou não, convidar alguém para dançar, são todas
situações cuja resolução se a partir daquilo que essa pessoa entende e imagina
sobre as DS. Essas danças, portanto, não estão dissociadas da sociedade como
um todo, sendo assim, as ações que acontecem nos ambientes internos desse
campo
podem, também, ser compreendidas levando em consideração o contexto
social amplificado no qual elas se encontram.
Ser técnica
Como visto, os ambientes e a técnica da DS são regulados, também, pelo
seu contexto escolar, espaço onde se aprende quais são os modos de portar-se
que são permitidos dentro desses espaços. Esses modos de agir são moderados
não apenas pelas lógicas internas às DS, como, também, pelo entorno social no
qual essa prática está imersa, uma vez que o conhecimento técnico carrega
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consigo uma série de outras informações que veiculam quais ações são, ou não,
permitidas nos bailes e aulas de DS. Tais conhecimentos técnicos, assim como
outros modos de saber, vão se construindo ao longo do tempo, com a história, de
modo que é possível perceber a existência de um vínculo entre tradição, técnica,
e a maneira como se dança e ensina as DS.
A relação entre
tradição
e
técnica
não é restrita às DS. Que ela esteja presente
nesse contexto apenas reafirma que os assuntos pertinentes a essas danças não
estão desvinculados da sociedade como um todo. Em 1934 o sociólogo Marcel
Mauss já tratava acerca da intrínseca relação entre esses termos. Nas palavras do
próprio autor, chama-se
[...] técnica é um ato tradicional eficaz (e vejam que nisso não difere do
ato mágico, religioso, simbólico). Ele precisa ser tradicional e eficaz.
Não
técnica e não transmissão se não houver tradição
. Eis em que o
homem se distingue antes de tudo dos animais: pela transmissão de suas
técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral (Mauss, 2003,
p. 407)
(grifo nosso).
Nessa perspectiva, podemos afirmar que as técnicas influenciam no modo
como o sujeito se relaciona com os contextos com os quais entra em contato.
Nesse sentido é importante considerar que o corpo, não apenas o corpo que
dança, mas qualquer corpo, não pode ser entendido como uma tábula rasa, mas
sim, como resultado de um longo processo evolutivo, de elevada complexidade,
em constante interação com seu ambiente relacional: natureza e cultura.
Nesse contexto, a técnica compreende um traço cultural com o qual o corpo
estabelece trocas. Um processo que se estabelece numa lógica na qual o corpo
transforma, na mesma medida em que também vai sendo transformado. Ou seja,
“meio e corpo se ajustam permanentemente num fluxo inestancável de
transformações e mudanças” (Katz; Greiner, 2001, p.90). Lembrando que, nesse
fluxo, taxas de preservação que garantem a sobrevivência e a unidade do
organismo. Tais perspectivas vão ao encontro da citação da professora Katiusca
Dickow (2020) no início do presente texto: a técnica diz respeito a um
saber fazer
.
Caminhando ainda nessa direção, pode-se considerar os escritos do filósofo
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espanhol Ortega y Gasset4 a respeito da técnica e de suas variações. Para o autor,
a técnica é
[...] a produção do supérfluo: hoje e na era paleolítica. É, certamente, o
meio para satisfazer as necessidades humanas. [...] Temos, pois, que
enquanto o simples viver é uma grandeza fixa (...) o bom viver ou bem-
estar é um termo sempre móvel, ilimitadamente variável. E como o
repertório de necessidades humanas é função dele, resultam estas não
menos variáveis, e como a técnica, é o repertório de atos provocados,
suscitados pelo e inspirados no sistema das necessidades, será também
uma realidade proteiforme, em constante mutação (Ortega y Gasset,
1963, n.p.)
Desse modo, torna-se ainda mais evidente que as técnicas se constroem ao
longo de uma temporalidade, através da repetição e/ou elaboração de
determinadas ações.
Ainda na intenção de delimitar o que se chama de
técnica
ao longo do
presente artigo, desta vez aproximando das especificidades da dança, toma-se
como referencial a dissertação em filosofia de Ana Rita Nicoliello Lara Leite, em
que ela aborda o Contato e Improvisação (CI) a partir das considerações filosóficas
de John Dewey. Nesse texto, entende-se que o CI é uma prática de dança coletiva
e argumenta-se que a técnica de dança é “um treinamento que conforma o corpo
a determinados padrões de movimento” (Leite, 2017, p. 151). Defende-se na tese
que tal prática de dança (CI), por não ser dotada de passos padronizados,
comporta-se menos como técnica e mais como “um treinamento da atividade
perceptiva sobre o próprio corpo, sobre o espaço-ambiente e sobre o corpo do
outro” (Leite, 2017, p. 151), no entanto, a concepção de técnica ali traçada pode ser
trazida para pensar as DS em aproximação com os conceitos do filósofo em
questão, uma vez que as DS, de fato, estabelece determinados padrões de
4 Para esse autor a técnica surge da necessidade de viver bem e de produzir coisas que não se encontram
previamente na natureza. Ele diz, em seu texto
Meditação sobre a técnica
: “[...] convém reparar na
significação que aqui tem o termo necessidade. Que quer dizer que o esquentar-se, alimentar-se, caminhar
são necessidades do homem? Sem dúvida que são elas condições naturalmente necessárias para viver. O
homem reconhece esta necessidade material ou objetiva e porque a reconhece a sente subjetivamente
como necessidade. Mas note-se que esta sua necessidade é puramente condicional [...]. Ora, indicamos
que o homem vive porque quer. A necessidade de viver não lhe é imposta à força, como lhe é imposto à
matéria não poder aniquilar-se. [...] Se, por falta de incêndio ou de caverna, não pode exercer a atividade ou
fazer de esquentar-se, ou por falta de frutos, raízes, animais, a de alimentar-se, o homem põe em
movimento uma segunda linha de atividades: faz fogo, faz um edifício, faz agricultura ou caçada. [...] O
homem, ao contrário, dispara um novo tipo de fazer que consiste em produzir o que não estava na
natureza” (Ortega y Gasset, 1963, n.p.).
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movimentos e de relação entre os corpos que praticam essas danças e, por essas
mesmas vias, molda um determinado modo de perceber e relacionar-se com o
mundo.
Enquanto Dewey coloca foco sobre como os hábitos moldam a percepção,
tanto Ortega y Gasset quanto Marcel Mauss atentaram-se ao aspecto social e
variável da técnica. Esse último ainda ressalta que as
técnicas
podem ser
aprendidas socialmente ou através de alguém que possui a função de ensinar esse
saber (como um mestre ou um professor, por exemplo), conferindo à técnica a
habilidade de transmitir, perpetuar e estabilizar informações. Mauss explica que a
técnica difere-se de outros atos tradicionais, como os ritos, por ser “sentido pelo
autor como um ato de ordem mecânica, física ou físico-químico, e é efetuado com
esse objetivo” (Mauss, 2003, p. 407). Para ele, a técnica, como ato meramente
mecânico, ignora as esferas sociais, psicológicas e perceptivas do ser que aprende,
e a partir disso comenta que
A noção de educação podia sobrepor-se à de imitação. Pois há crianças,
em particular, que têm faculdades de imitação muito grandes, outras
muito pequenas, mas todas se submetem à mesma educação, de modo
que podemos compreender a sequência dos encadeamentos. O que se
passa é uma imitação prestigiosa. A criança, como o adulto, imita atos
bem-sucedidos que ela viu serem efetuados por pessoas nas quais confia
e que têm autoridade sobre ela. O ato se impõe de fora, do alto, mesmo
sendo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo (Mauss, 2003,
p. 405)
Esse autor elabora sua noção de
técnica
a partir de diferentes atividades que
são realizadas cotidianamente numa cultura (como o ato de caminhar e os
diferentes cuidados de si - horário de dormir, de se alimentar, cuidados relativos
à higiene…), algumas dessas ações são aprendidas em ambientes formais, como a
escola e o exército, outras, porém, aprende-se cultural e socialmente, como é o
caso da caminhada. Dessa maneira, ele explicita que as ações sociais que dão
origem às técnicas e as tradições “variam não simplesmente com os indivíduos e
suas imitações, variam sobretudo com as sociedades, as educações, as
conveniências e as modas, os prestígios” (Mauss, 2003, p. 404).
Entendemos, portanto, que o elemento técnico passível de repetição e
aperfeiçoamento é o
passo de dança
. Tal elemento é de fundamental importância
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para as DS, uma vez que eles são o “conteúdo explícito" da aula de dança, no
entanto, a técnica não se resume aos passos, uma vez que ela carrega em si traços
de sua constituição ao longo da história. A técnica e seus elementos quando
pensados em separado, como atos meramente mecânicos, ignoram as outras
esferas do ser que aprende e, nesse trajeto, podemos cair na armadilha de crer
que a técnica é neutra. E ela não é. Ortega y Gasset, a respeito da variação da
técnica ao longo do tempo e das culturas, argumenta “ser inútil querer estudar a
técnica como uma entidade independente ou como se tivesse dirigida por um
vetor único e de antemão conhecido” (Ortega y Gasset, 1963, n.p.).
Ao nos darmos conta de que junto dos passos de dança aprende-se, também,
um certo modo de agir e perceber o mundo, torna-se impossível sustentar tal ideia
de neutralidade. Apesar de ser o conteúdo explícito das aulas de DS, nesses
espaços aprende-se não apenas o passo de dança, como também os modos de
portar-se “em todos os ambientes considerados como parte desse campo: aulas
de dança, bailes, shows, competições, eventos e mídias sociais” (Dickow, 2020,
p.125). Assumir, portanto, a não neutralidade da técnica e, nesse caminho, a não
neutralidade da sala de aula nos permite entender como as DS mobilizam, em
suas fronteiras, questões que são pertinentes à sociedade como um todo. Algo
que pode ser tomado como exemplo disso são as consequências advindas do
debate promovido, nos ambientes internos das DS, em torno dos termos
tradicional
e
contemporâneo
, que trouxe à tona questões que antes pareciam
pouco importantes para essas danças.
De maneira resumida, pode-se dizer que a
dança de salão tradicional
refere-
se, ao mesmo tempo: à intenção de permanecer executando determinados
movimentos consolidados nessas práticas de dança, fomentando a manutenção
de um dado repertório de passos em DS; aos sexismos presentes nos variados
ambientes dessas danças, quando sustenta o argumento moral que compreende
que a DS pode acontecer entre um par composto por um homem e uma mulher
(Setubal, 2022). Enquanto a
dança de salão contemporânea
, ou, mais
recentemente, as
abordagens contemporâneas das danças de salão
, buscam dar
conta das desigualdades de gênero presentes nas DS, além de elaborar estratégias
pedagógicas que não necessariamente estejam ancoradas na repetição de
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movimentos e lógicas pré-estabelecidas.
Cada um desses modos de ensino trabalham o corpo num certo sentido,
apresentando para aquele que aprende um leque específico de lógicas de
movimento, de meios para conectar-se com o par da dança e com a música, de
formas em que se pode ou não dançar em um salão. Para pesquisadora Denise
Zenicola
O performer, ao dançar, resgata determinadas formas de utilização deste
corpo, revelando a sua história social e, ao mesmo tempo, conta da
relação consigo mesmo, da sua subjetividade. Este duplo aspecto está
presente tanto na forma de dançar mais espontânea partindo do
improviso, a dança livre, como em danças sob controle total, preso a
técnicas e métodos corporais altamente especializados e rigidamente
pré-estabelecidos e coreografados (Zenicola, 2008, p. 1).
Esses diferentes modos de ensino e de formas de utilização do corpo chegam
aos bailes e se encontram, desse modo, formam-se pares compostos por uma
pessoa que tem muito apreço ao passo e outra que se importa mais com a
conexão musical; ou com uma pessoa que se importa em manter o fluxo do salão
e outra que tem vontade de criar pequenas estruturas ao longo da dança; ou com
uma pessoa que quer conectar-se com a respiração da outra, enquanto a outra
entende a dança no baile como um jogo repleto de desafios a serem enfrentados.
No baile as pessoas se encontram, encostam em outras informações e em
outros modos de dançar, nesse encontro surge um contexto profícuo para o
processo de aprendizagem, pois, ao entendermos a dança como forma de
conhecimento, não um mero encadeamento de passos e formas, tais encontros
criam um campo de possibilidades para que os envolvidos nesse processo
construam, a partir de suas experiências corpóreas, danças que se expandem para
além do espaço-tempo do baile, transbordando para todos os seus ambientes de
existência. Uma experiência coletiva de corpos coletivos que, em alguma medida,
como afirma Rancière, "repõe em questão a distribuição dos papéis, dos territórios
e das linguagens [...] recolocam em causa a partilha já dada do sensível" (Rancière,
2005, p. 62), atuando na produção de novas formas de subjetividade.
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Entende-se, então, que as invenções presentes nos bailes de DS
acontecem nesse intervalo das vontades e expectativas entre as pessoas que
compõem o par. Por ser feita a dois, a dança que acontece no salão
inevitavelmente pede por negociações, não apenas entre o par, como também
entre as outras pessoas presentes naquele espaço. No salão os encontros são
sempre uma surpresa, a cada nova dança emergem novos problemas e relações
que colaboram com o processo de
aprendizagem
de um aluno.
A
aprendizagem
, lembrando de Virgínia Kastrup (2001), não caracteriza-se
“como a passagem do não-saber ao saber” (Kastrup, 2001, p.17), ela é “sobretudo,
invenção de problemas, é experiência de problematização” (Kastrup, 2001, p.17), ou
seja, é uma experiência em que “somos forçados a pensar, a aprender e a construir
um novo domínio cognitivo e uma outra maneira de realizar atividades que eram
tão simples e corriqueiras que havíamos esquecido seu caráter inventado”
(Kastrup, 2001, p.17).
Pensamos, a partir disso, que o
passo de dança
se trata de um elemento
inventado pela técnica e pela tradição, e que por esses mesmos caminhos se
consolidou como elemento importante para o campo das DS como um todo. O
debate entre o
tradicional
e o
contemporâneo
nas DS parece promover um abalo
na maneira como o
passo de dança
é entendido e ensinado nos ambientes
internos ao campo, além de colocar luz sobre o caráter inventado desse elemento,
ao tempo que ampliam os entornos do campo em que se inserem.
Por serem práticas pedagógicas, e por conta da importância que o contexto
da sala de aula têm para a formação e manutenção desse contexto social, esses
modos de ensino chegam aos bailes onde o processo de aprendizagem dos alunos
e agentes das DS segue seu curso. O ambiente do baile, por sua vez, promove um
conhecimento pautado na resolução de problemas em dança que surgem a partir
do encontro de diferentes lógicas e expectativas de movimento, o que acaba
ampliando o repertório (individual e coletivo) de possibilidade de ação nas DS
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Ser performance
Para Diana Taylor as performances “funcionam como atos de transferências
virtuais, transferindo o conhecimento, a memória e um sentido de identidade
social por meio do que Richard Schechner denomina 'comportamento reiterado'”
(Taylor, 2013, p.27).
Comportamento reiterado
, também traduzido por
comportamento restaurado,
é um conceito que veicula a ideia de que “todo
comportamento consiste em recombinações de pedaços de comportamentos
previamente exercidos” (Schechner, 2003, p.34), porém, tal
comportamento
reiterado/restaurado
, possui uma especificidade, ele é “marcado, emoldurado ou
acentuado” (Schechner, 2003, p.34). Schechner percebe essa
reiteração
ou
restauração
em “convenções estéticas, como em teatro, dança e música”
(Schechner, 2003, p.34), mas elas também se fazem presentes no modo como os
conhecimentos, a memória e o sentido de identidade social são veiculados, esse
processo “pode estar contido nas ações codificadas como ‘regra do jogo’,
‘etiqueta’, ‘protocolo’ diplomático” (Schechner, 2003, p.34). Sendo assim, o
comportamento reiterado/restaurado, vai ganhando suas marcas, desenvolvendo
sua moldura em um processo que ocorre ao longo do tempo, o que permite a
acentuação de certos modos de agir.
Nesse sentido, entendemos que a técnica de DS formou-se com base na
restauração e consolidação de algumas ações, que vêm sendo tomadas como
regra nos espaços internos dessas danças, como é o caso, por exemplo, dos
passos de dança e das convenções sociais sobre as maneiras de se portar nos
diferentes ambientes de DS. O autor ainda ressalta que “os hábitos, rituais e rotinas
são comportamentos restaurados” (Schechner, 2003, p.33) e nos recorda que
Comportamentos restaurados são comportamentos vivos [...]; eles são
independentes do sistema causal (pessoal, social, político, tecnológico …)
que os levou a existir. Eles tem vida própria. A verdade ou fonte que
originou o comportamento pode ser desconhecida, perdida, ignorada ou
contradita [...]. O modo como os pedaços de comportamento foram
criados, achados ou desenvolvidos pode ser desconhecido ou oculto,
elaborado, distorcido pelo mito ou pela tradição (Schechner, 2003, p.33).
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Tais comportamentos podem ser percebidos nos bailes de DS, mas, também,
fora deles, em festas e eventos onde se vai com o objetivo de dançar a dois ou,
até mesmo, na vida cotidiana como um todo, como por exemplo, a escolha das
vestimentas e hábitos de socialização. Ao incluir em seus escritos a noção de que
a tradição e o mito podem interferir no processo de como estes comportamentos
são entendidos socialmente, abre-se a possibilidade de dar atenção, também, para
os discursos que aparecem vinculados aos comportamentos restaurados e à
técnica.
Partindo do reconhecimento de que existem forças políticas que moldam os
campos sociais das DS, e tendo como base as definições de dança de salão
presentes em Reid (2003), Faro (1989) e Ellmerich (1964), a pesquisadora Katiusca
Dickow (2020) elabora uma breve conceituação que diferencia as danças sociais
das danças de salão. Diz-se que,
as danças sociais surgem da miscigenação de culturas, geralmente das
classes populares e, por conta disso, apresentam estruturas mais livres
e cambiáveis que se moldam a aspectos culturais, temporais e físicos
(Dickow, 2020, p.124)
As DS, como foi apresentado anteriormente, encontram-se fortemente
conectadas às danças sociais, porém “estão vinculadas ao aprendizado de
estruturas mais rígidas em seu processo de ensino por caracterizarem a aquisição
de uma técnica específica [...]” (Dickow, 2020, p. 124). Torna-se explícita, nessa
breve conceituação, que os espaços de DS, diferentemente dos espaços das
danças sociais, possuem suas práticas reguladas pelo que se aprende em sala de
aula, além de contar, também, com outras mídias e mediações que delimitam e
apresentam aquilo que se convencionou denominar por
dança de salão
.
Sabe-se, então, que esses comportamentos restaurados se consolidam com
o passar do tempo e num dado contexto cultural; Eles moldam a noção de
identidade dos sujeitos, além de construir a relação desses sujeitos com o mundo
e as outras pessoas que os cercam. Sabe-se também que tais comportamentos
são aprendidos socialmente (em ambiente familiar, ou mesmo por observação
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do mundo), mas que eles também podem ser ensinados em sala de aula (o que
acontece nas DS).
Dois motivos nos levam a observar o campo das DS a partir das lentes
propostas pelos estudos da performance. O primeiro é porque, por essas vias,
pode-se assumir a DS como “um sistema de aprendizagem, armazenamento e
transmissão de conhecimento” (Taylor, 2013, p.50) não apenas pelos seus fazeres
técnicos, mas também por conta das relações sociais e dos modos de ação que
são fomentadas nos diferentes ambientes que compõem o campo das DS. Em
segundo lugar, os estudos da performance possibilitam que alguns fenômenos do
mundo sejam vistos
como
performance, ou seja, como um contexto e prática
social que pode ser reconhecido e delimitado a partir de seu sentido de identidade,
sua história e dos conhecimentos que veicula. Encarando a DS
como
uma
performance, então, é possível explicitar a intrínseca relação entre essa técnica de
dança e o contexto social amplificado no qual ela se insere, uma vez que “a
performance e a estética da vida cotidiana variam de comunidade para
comunidade, refletindo a especificidade cultural e história existente tanto na
encenação quanto na recepção” (Taylor, 2013, p. 27) da ação.
Nas DS, por meio do apresentado conflito entre as noções de
tradição
e
contemporâneo
, nota-se um movimento no âmbito da encenação dessas danças,
que se expande, também, para a recepção delas. Isto é: alteram-se alguns
parâmetros de ensino (que deixam de se basear exclusivamente na repetição de
passos pré determinados) e os efeitos dessa mudança podem ser notados no
salão dos bailes de DS, tanto por parte da quem dança, que passa a se locomover
naquele espaço a partir de outros parâmetros, como por parte de quem as
danças em curso, que passa a aceitar, com mais naturalidade essas fugas da
técnica (antes, possivelmente vistas como erro), ao tempo que amplia o seu
próprio repertório imaginativo e imagético de como são as danças possíveis em
um salão de baile.
Ao analisar o discurso que sustenta a ideia de que as DS devem ocorrer,
sempre, entre um par composto por homem e mulher, com ele conduzindo e ela
sendo conduzida, parece ficar explícito que a
dança de salão tradicional
, em alguns
dos seus fazeres e, em especial, o docente, não apenas distorce os
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comportamentos restaurados, como também, subtrai a sua vivacidade quando
atribui, por meio de seus discursos moralizantes e normativos, diretividade entre
o gênero de quem dança e a função que essa pessoa desempenha no momento
de dançar.
No baile, porém, tais comportamentos retomam seu caráter vivaz quando
alguém se atreve a expor suas vontades e entra no salão para dançar, em par, indo
de acordo com aquilo que sente e experiência, extrapolando os passos aprendidos
em aula e, por vezes, inspirando as danças daqueles que são, agora, espectadores
pelas margens do salão.
Ser invenção
As práticas pedagógicas que se encontram abaixo do nome guarda-chuva
abordagens contemporâneas das/nas DS
, levam em consideração os sexismos
presentes nessas danças e elaboram estratégias para lidar com ele de maneira
sistemática. Ou seja: atuam considerando os efeitos gerados em curto e longo
prazo, com fins de promover a resolução das desigualdades e imposições de
gênero nessas danças.
Com o passar do tempo, tais práticas se diversificam e passam a dar conta
de outras demandas
emergentes
nos ambientes das DS, abrindo espaço para
danças que não atuem no limite daquilo que é normativo na sociedade,
evidenciando “a encruzilhada de tensões de raça, classe, gênero e sexualidade
presente entre seus participantes” (Silveira, 2021, p. 1534), além de dar voz às
atualizações, invenções e inovações criativas que estavam presentes nesse
contexto.
Percebe-se que uma das ações propostas pelas
abordagens contemporâneas
das DS
salienta que os diferentes ambientes de DS, especialmente as aulas,
podem ser um espaço profícuo para tratar de assuntos como o respeito,
possibilitando o reconhecimento dos seus próprios limites e vontades de si e do
outro. Nesse sentido, o espaço da sala de aula é entendido a partir de sua
complexidade e de suas estreitas relações com o social, gerando um efeito
comportamental que se expande para além das fronteiras e dos ambientes das
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DS. As
abordagens contemporâneas das/nas DS
colocaram em foco ações
pedagógicas que compreendem os sujeitos em sua completude, assumindo que
O ensino das danças de salão deve, também, ser entendido como um
ambiente educacional importante na formação de cidadãs e cidadãos de
qualquer faixa etária, pois promove, dependendo dos métodos e
entendimentos sobre os protocolos e condutas, o respeito no âmbito das
relações interpessoais, a integração de múltiplas linguagens e áreas de
aprendizagem como a cinestésica, a auditiva e a visual (Keiber, 2021, p.39).
Nesse sentido, acredita-se que as
abordagens contemporâneas das DS
,
através dos debates e práticas que propõe, geram um impacto no campo das DS
que amplia, não apenas os modos de dançar que são possíveis dentro de um baile,
como também a própria noção de técnica de dança. Isso porque, nessas
abordagens, fica explícita a não neutralidade do fazer docente, e abre-se espaço
para a criatividade e vontades de professores e alunos, que, agora, ganham lugar
em sala de aula, podendo servir de impulso para a invenção de modos de dançar
e agir no mundo, salientando que “a aprendizagem [...] faz-se num encontro de
diferenças, num plano de diferenciação mútua, em que tem lugar a invenção de si
e do mundo” (Kastrup, 2001, p.19).
Para John Dewey, filósofo educador que ampara o conceito de
experiência
abordado no presente artigo, o processo de aprendizado implica em fazer “mais
do que agregar estímulos e responder a eles, mas articulá-los de maneira eficiente
para que sirvam como guias de ações futuras” (Leite, 2017, p. 34). Nesse caminho,
concebe que os hábitos se tratam de “respostas sociais". É o que transforma a
ação em conduta, ou seja, que unifica várias ações isoladas em uma tendência de
ação” (Leite, 2017, p. 37). Ainda relacionado aos hábitos, “[...] em termos sociais, é
aqui que surge a autoridade, o dogmatismo, as verdades e valores morais
absolutos, a tradição, em seus sentidos negativos. Mas mesmo que sejam rígidos,
os hábitos são passíveis de modificação” (Leite, 2017, p. 39).
Ainda nessa direção, de compreender os processos de ensino numa
perspectiva relacional e, por sua vez, o
campo
das DS como um ambiente em
constante mudança, retorno à Diana Taylor, desta vez recorrendo a uma de suas
falas durante a conversa virtual ocorrida em 2021 entre ela e alguns membros da
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Pele Preta - Escola de Teatro(s) Preto(s)
. Nesse contexto, Taylor afirmou que
[...] nosotros no existimos como seres individuales, existimos siempre y
solo como seres relacionales. Y es una cosa que hemos aprendido de las
culturas africanas, de las culturas negras, de las culturas indígenas, eso
hemos aprendido de esas culturas [...]. Entonces creo que también el
conocimiento se transmite cuando hay esa relacionalidad, ¡¿no?! Se
transmite, como hemos dicho, como yo dije antes, en familias, en
comunidades, en lugares donde podemos hablar, donde podemos cantar,
donde podemos cocinar, donde podemos tener nuestras celebraciones,
y ritos, y nuestra vida, ¡¿no?! Y es relacional, todo eso es relacional, pero
nuestro sistemas de educación no han insistido en una pedagogía,
digamos, de interrelacionalidad (Pretos, 2021, 28’53’’ - 31’02’’).5
Sendo assim, as
abordagens contemporâneas de DS
promovem práticas
pedagógicas com foco na interrelacionalidade presente entre as pessoas que
compõem os ambientes de DS. Essa interrelacionalidade abordada por Taylor,
assim como os efeitos no campo das DS e decorrentes das
abordagens
contemporâneas
, colaboram na compreensão de que as DS não são uma realidade
apartada dos outros convívios sociais, o que colabora na promoção da integração
de diferentes modos de dançar
danças de salão
, tornando explícita a troca de
informações entre os ambientes internos e externos à essas danças.
Essas propostas e propósitos, delineiam novas formas de organização,
inclusão e relação entre diferenças, propondo uma nova ordem que faz proliferar
questões e a testagem de novos procedimentos e metodologias, que levem à
geração de estruturas não hierarquizadas, compostas de heterogenias em
permanente estado de autocriação, servindo como exemplo para outras
experiências e, sobretudo, como atratores para pessoas e ideias que entendam
esses modos de abordagem da DS como uma possibilidade para a geração do
pensamento crítico a romper com estruturas deterministas.
Tais experiências demonstram a necessidade da partilha, pois a
transformação efetiva-se através de uma troca recíproca que repercute tanto
sobre o todo, como também sobre suas partes de maneira complementar, uma
mescla de disposições e investimentos, criando ideias e ações que auxiliem na
5 A entrevista completa pode ser acessada em:
https://www.youtube.com/watch?v=fvCurNcsHPY&t=1861s&ab_channel=PeleNegraEscoladeTeatro%28s%29
Preto%28s%9
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transformação e oxigenação da DS e de seu ambiente de existência.
Saída
Ao se aproximar das aulas e bailes de DS, o aluno passa a ter acesso a uma
seleção de informações que fazem com que ele, cada vez mais, se insira nesse
campo social. O aluno passa a compor seu
arcabouço imaginativo
com base nas
aulas e nas danças que observa, e o ato de observar, nesse aluno, opera como
“aguçamento sensório-perceptivo” (Ribeiro, 2015, p.168), uma vez que “é pela
observação das relações com o mundo que construímos nossos repertórios para
ação no mundo” (Ribeiro, 2015, p.168). Com isso o aluno vai se tornando
espectador/observador, ao passo em que se torna, também, dançarino de salão.
Na DS, a pessoa que observa, logo mais, passará a ser foco dos olhos dos
outros, de modo que, nesse contexto, é explícito que “o espectador analisa e
produz sentido a partir do que vivencia no momento da recepção, fazendo
conexões por meio da própria experiência” (Moreira; Satler, 2021, p.45). É nesse
sentido que o dançarino de salão se encontra diante da possibilidade de
“transformação, alteração e recuperação de elementos produtores de sentido”
(Zenicola, 2008, p.1) que aprendeu em sala de aula, podendo, a partir dessa
reorganização, elaborar seu jeito próprio de conectar-se com os pares e de dançar
no baile, assim esse aluno poderá testar danças que escapem do padrão comum,
do estereótipo, e que surgem a partir de suas próprias experiências e elaborações
sobre o material (técnico) aprendido nas aulas ou visto nos bailes.
Para a pesquisadora Denise Zenicola, “o indivíduo compreende sua
corporeidade a partir da visão global que tem de si, isto é, sobre como os
elementos do seu corpo se relacionam no espaço, com o outro e com os objetos
à sua volta” (Zenicola, 2008, p.3). A medida em que os alunos são percebidos e
percebem-se em sua integridade (sem ignorar seus aspectos psicológicos, afetivos
e sociais), passam a incorporar de maneira mais consciente em suas danças suas
vontades pessoais e esses outros referenciais vistos nos bailes, evidenciando que
“o movimento é um processo subjetivo e social, dinâmico, em contínuas
mudanças” (Zenicola, 2008, p.3).
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No baile de DS aquilo que é visto é mais “vida vivida”; é mais social e cultural
do que artístico. No entanto, os processos de aprendizagem, no entanto, na
maneira como propõe Kastrup (2001), auxiliam na tarefa de compreender e
salientar a importância da “inventividade que perpassa nosso cotidiano e que
permeia o funcionamento cognitivo de todos nós” (Kastrup, 2001, p.19), afastando-
se de uma concepção que entende a “invenção como algo excepcional e raro,
privilégio exclusivo de artistas ou mesmo cientistas” (Kastrup, 2001, p.19) e
aproximando-a do dia a dia.
As pessoas no salão se expõem ao tempo em que se expressam. Ali, no salão,
elas têm a chance de reorganizar seu modo de existência, testar maneiras de
mover o corpo, colocar-se em relação com outras pessoas e deixar-se como foco
de olhares alheios. Todas essas ações são intermediadas e acontecem junto dos
muitos
comportamentos restaurados
que constituem aquele contexto. Com isso,
conclui-se que não se pode pensar em dança ignorando as variadas esferas
sociais, políticas, subjetivas e culturais com as quais ela se vincula, do mesmo
modo que não se pode pensar o ensino das danças (aqui, especificamente das
danças de salão) sem levar em conta qual sujeito e quais relações sociais estão
sendo formadas naquela aula.
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Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br