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Atlas Coreodramatúrgico: constelações de imagens
como método de criação em dança
Éden Peretta
Para citar este artigo:
PERETTA, Éden. Atlas Coreodramatúrgico: constelações
de imagens como método de criação em dança.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 48, set. 2023.
DOI: 10.5965/1414573103482023e0108
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Atlas Coreodramatúrgico: constelações de imagens como método de criação
em dança1
Éden Peretta2
Resumo
A presente proposta metodológica de criação coreodramatúrgica fundamentou-se
em um uso crítico e negativo da imagem, tendo como disparadores a poética e os
procedimentos utilizados pelo criador da dança Butô, Tatsumi Hijikata, e suas
potenciais intersecções com o universo da filosofia da imagem, principalmente com
as contribuições de pensadores como Didi-Huberman, Aby Warburg e Georges
Bataille. Esta pesquisa teve início em um período de pós-doutoramento e
gradualmente vem ganhando diferentes camadas materiais na medida em que seus
procedimentos criativos vêm sendo atualizados em diversos contextos pedagógicos
e artísticos. São apresentados aqui, portanto, alguns princípios de suas bases
conceituais e relatadas experiências práticas de criação nas quais o Atlas
Coreodramatúrgico (ACD) foi aplicado e complexificado nos últimos anos, tanto em
disciplinas de graduação e pós-graduação, como no processo de criação de um
grupo universitário de pesquisa artística.
Palavras-chave
: Imagem. Dança Butô. Processo Criativo. Estética. Montagem.
Choreodramaturgical Atlas: image constellations as a method of creation in
dance
Abstract
The present methodological proposal of choreodramaturgical creation was based on
a critical and negative use of the image, having as triggers the poetics and the
procedures used by the creator of the Butô dance, Tatsumi Hijikata, and its potential
intersections with the universe of the philosophy of the image, mainly with the
contributions of thinkers such as Didi-Huberman, Aby Warburg and Georges Bataille.
This research began in a post-doctoral period and has gradually gained different
material layers as its creative procedures have been updated in different pedagogical
and artistic contexts. Therefore, some principles of its conceptual bases are
presented here and practical creation experiences are reported in which the
Coreodramaturgical Atlas (CDA) has been applied and made more complex in recent
years, both in undergraduate and graduate disciplines, and in the process of creating
a university artistic research group.
Keywords:
Image. Butoh Dance. Creative Process. Aesthetics. Montage.
1 Artigo resultante do projeto de pesquisa, em andamento, “Arquivo Memória Intercultural das Artes da Cena
no Brasil” (Demanda Universal / FAPEMIG / APQ-00891-22). Revisão ortográfica e gramatical do artigo
realizada por Maria Luiza Caetano Pereira, graduada em Letras Bacharelado em Estudos Literários pela
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
2 Pós-doutor pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Estudos Teatrais
e Cinematográficos pelo Departamento de Música e Espetáculo da Università di Bologna (2010), na Itália.
Pesquisador visitante junto à mesma universidade. Editor-chefe da revista
Ephemera
(PPGAC/UFOP).
Professor Associado junto ao Departamento (DEART) e ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
(PPGAC) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Pesquisa o corpo nas Artes Cênicas e Visuais.
edensp@ufop.edu.br
http://lattes.cnpq.br/5206908210115194 https://orcid.org/0000-0002-0763-8045
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Atlas coreodramatúrgico: constelaciones de imágenes como
método de creación en danza
Resumen
La presente propuesta metodológica de creación coreodramatúrgica se basó en un
uso crítico y negativo de la imagen, teniendo como detonantes la poética y los
procedimientos utilizados por el creador de la danza Butoh, Tatsumi Hijikata, y sus
potenciales intersecciones con el universo de la filosofía de la imagen,
principalmente con las aportaciones de pensadores como Didi-Huberman, Aby
Warburg y Georges Bataille. Esta investigación se inició en un período posdoctoral y
ha ido ganando diferentes capas materiales a medida que sus procedimientos
creativos se han ido actualizando en diferentes contextos pedagógicos y artísticos.
Por ello, aquí se presentan algunos principios de sus bases conceptuales y se relatan
experiencias prácticas de creación en las que se aplicó y complejizó el Atlas
Coreodramatúrgico (ACD) en los últimos años, tanto en las disciplinas de grado y
posgrado, como en el proceso de creación de un grupo universitario de investigación
artística.
Palabras clave
: Imagen. Danza Butoh. Proceso Creativo. Estética. Montaje.
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Imagens laceradas
A histórica relação entre as artes da cena e a imagem, usualmente, tem se
estabelecido de forma mimética, isto é, por meio da reprodução e/ou cópia de
suas formas enquanto estímulo criativo do gesto ou da presença, o que busca
reelaborar a materialidade do corpo no trabalho de atores, atrizes, dançarinos,
dançarinas e performers. Esta abordagem de transcrição entre os campos das
artes visuais e das artes cênicas, historicamente, atravessa as mais diversas
metodologias formativas das artes do corpo. Acredito, contudo, que uma
perspectiva crítica e negativa do uso da imagem, isto é, uma operação de
desconstrução de suas formas, ainda não tenha sido suficientemente explorada a
ponto de constituir um corpus teórico, ou um discurso reflexivo, revelando-se
questões que somente as artes do corpo seriam capazes de problematizar.
Nos últimos anos, com minhas pesquisas no universo da filosofia da imagem,
comecei a perceber possibilidades de desenvolvimento de processos criativos no
campo da dança. Meu percurso de pesquisa atual tem como fio condutor as obras
do filósofo Didi-Huberman (1998, 2013, 2015, 2018), que, aos poucos, vem auxiliando
no desvelamento de relações profundas e complexas com novas e antigas
referências bibliográficas, introduzindo, assim, conceitos contundentes que
perpassam uma longa reflexão sobre a imagem.
A problematização que Didi-Huberman propõe reiteradamente em seus
escritos sobre a obra de Aby Warburg (1866-1929), historiador da arte e criador do
Atlas
Mnemosyne
, é um daqueles exemplos-chave em torno do qual orbitam
minhas reflexões atualmente. Isso porque Warburg prontamente rejeita as
perspectivas puramente formalistas ou estetizantes na compreensão da arte e de
sua história, insistindo em considerá-la como parte constitutiva de uma psicologia
social mais ampla.
Por toda a sua vida Warburg defendeu a expansão temática, espacial e
metodológica da
ciência da arte
construída na interseção entre a História da Arte
e a História da Cultura, em consonância com a tradição de Jacob Burckhardt
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(2003). Buscando dissolver as fronteiras entre Ocidente e Oriente, ele reinterpretou
as noções de clássico e de antigo, bem como do próprio Renascimento, em uma
investigação pelos detalhes que desvendariam coexistências, contradições e
significados invertidos de tradições recorrentes e reativas em um mesmo espaço-
tempo (Teixeira, 2010).
No cerne do projeto warburguiano encontra-se o conceito de Nachleben: vida
após a morte ou sobrevivência das imagens, ou seja, as formas com certos
motivos, característicos da arte e da literatura pagã, foram retomadas nos séculos
XV e XVI por artistas como Leonardo, Botticelli e Ghirlandaio, enquanto verdadeiras
forças psíquicas ativadas pela memória cultural e não apenas como elementos
figurativos na obra. Para Didi-Huberman (2013, p. 22), Warburg desenvolveu assim
uma “ciência arqueológica do pathos na Antiguidade e seu destino no
Renascimento italiano e flamengo''. Parece ter desenvolvido assim um estudo da
mobilização inconsciente, em pinturas e esculturas, de forças emotivas (patéticas)
herdadas do (e revividas no) contacto com a tradição antiga as
Pathosformeln,
fórmulas do pathos
, onde o
pathos
é entendido, alinhado com o filósofo Friedrich
Nietzsche (2007), como o conflito entre o dionisíaco e o apolíneo no mundo grego.
Logo, Warburg fez da história da arte um "saber-movimento de imagens, um
saber em extensões, em relações associativas, em montagens constantemente
renovadas e não mais um saber em linhas retas, em corpos fechados, em
tipologias estáveis" (Didi-Huberman in Michaud, 2013, p. 19). Nessa perspectiva, o
saber-movimento estabelece uma percepção das imagens não em sua morfologia
inerte, mas em suas relações, em seus fluxos de interação, nas conexões
profundas de suas dimensões patéticas percebidas na materialidade de sua
montagem. E a
montagem
é entendida aqui não apenas como um método, um
procedimento técnico, mas também como um
princípio epistemológico
(Rebecchi,
2010, p. 2), tornando o fragmento e o intervalo em categorias, em conceitos
operativos do pensamento, não resumindo-se apenas à sua materialidade técnica.
O Atlas
Mnemosyne
3 de Warburg mostra-nos como uma dinâmica de composição
3 Tal projeto consistia em uma série de painéis de madeira cobertos por um tecido preto, sobre os quais ele
fixou constelações de imagens (reproduções fotográficas, fotos, diagramas, esboços, cartões postais e vários
tipos de material impresso, incluindo anúncios e recortes de jornais), propondo uma leitura subversiva e
horizontal da história da arte conectada pelas
suas fórmulas de pathos
cultivadas em tempos espiralares.
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de imagens baseada numa espécie de
empatia energética
.
Figura 1: Painel nº 39 do Atlas
Mnemosyne4
Caminhando sobre os passos de Didi-Huberman e sua constelação de
filósofos da imagem, pude perceber de forma concreta como a investigação por
laceração
da imagem é capaz de trazer à superfície elementos
informes
que
alimentam suas origens. A desconstrução dos traços figurativos pode trazer à tona
os restos
anadiômenos
5 da imagem. Aquilo que na ação dilacerante do pintor
Apelle tornou possível o acesso ao seu verdadeiro estado de
formação
, em vez de
4 Fonte: https://warburg.sas.ac.uk/aby-warburg-bilderatlas-mnemosyne-virtual-exhibition
5 "Palavra estranha, aliás, já que anadiômena significa ao mesmo tempo aquilo que emerge, aquilo que nasce,
e aquilo que mergulha, que desaparece sem cessar. Palavra de fluxo, palavra do refluxo" (Didi-Huberman,
1998, p. 113).
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sua
representação
.
Um dia, num gesto de fúria, o pintor grego Apelle (séc. IV a.C.) lança contra
um quadro que ele não conseguia terminar uma esponja embebida de
água, de cores e aglutinantes orgânicos, talvez clara de ovo misturada ao
leite ou a algum obscuro sêmen animal. Em um instante, em um grito, o
quadro explode e se desfigura. Uma espuma branca invadiu a imagem,
estriando-a em algumas partes com filetes, formas imprevisíveis e
manchas salpicadas vermelhas. A figura pintada, Afrodite, que Apelle
detestou, ou que talvez amou demais, praticamente desapareceu. Eis que
essa grande mancha de espuma a recobria em partes e fez flutuar todos
os seus contornos. O quadro, recentemente inacabado, parece bem
"acabado" no presente: mas em um sentido de assassinato. Ele apenas
se como uma vasta superfície de indecisão. É então que o pintor Apelle
contempla, como em um sonho [...] o prodígio que ele acaba de provocar
contra sua vontade: Afrodite deixou de ser representada e, portanto, está
lá, mais presente do que nunca diante dele. Ela está neste sentido
extremo de seu nascimento. Não como uma forma acabada, que o
acontecimento da mancha transtornou tudo no quadro. Mas melhor que
isso: como a
formação
mesma do corpo de Afrodite no redemoinho de
espuma, as gotas de sangue e o esperma de um deus - o Céu - mutilado
por
Chronos
, pelo Tempo (Didi-Huberman, 1998, p. 113).
Em seu livro
A semelhança informe
(2015), por sua vez, Didi-Huberman
nos apresenta uma outra perspectiva possível para o uso da imagem ao analisar
minuciosamente os procedimentos estéticos e poéticos utilizados pelo filósofo
francês Georges Bataille na construção da revista de arte
Documents
(1929-30).
Para Didi-Huberman, Bataille operava suas construções narrativas, entremeando
ensaios e fotografias, a partir de uma espécie de
laceração
das imagens
: algo como
uma heurística das relações visuais ao colocar em contato formas e formas,
formas e fatos. Estes procedimentos por montagem contrastantes geravam
semelhanças irritantes,
semelhanças que gritam
, fundando-se visualmente em
uma espécie de dialética herética e material.
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Figura 2 - À esquerda:
Nos abatedouros de La Villete
, Eli Lotar, em
Documents, 1929, nº6, p. 328. À direita:
Fox Follies
em Documents, 1929, nº6, p. 3446.
No centro do projeto político-estético de Bataille encontra-se o desejo radical
pela desfiguração do antropomorfismo. Nos escombros de suas imagens
dilaceradas habita aquilo que ele denomina de
informe
, ou uma espécie de
"intratável condição rítmica da forma" (Didi-Huberman, 2015, p. 293). De modo
sintético, é possível percebermos que o
informe
batailliano parece, assim,
corresponder a três exigências teóricas fundamentais, a saber: 1. reconhecimento
das “determinações contraditórias” ou das “divergências das formas”; 2.
reconhecimento de uma “colocação em movimento dessas determinações
contraditórias”; 3. reconhecimento, da “colocação em movimento dessas
determinações contraditórias”, de algo que se abre, que vai além, ainda que no
sentido de uma ferida, de uma queda: aquilo por meio do qual as semelhanças
nos tocam enquanto “sintomas de um estado de coisas essencial” (Didi-
Huberman, 2015, p. 233). Nesse sentido, uma das inquietações centrais de Bataille
não seria a de se saber o que as formas são, mas sim reconhecer o que elas de
fato
fazem
enquanto processos
percussivos
: a própria eficácia das formas, a
incessante repercussão das formas sobre as outras formas um
vai e vem
em
fluxos de metamorfose.
6 Fontes: https://www.mutualart.com/Artwork/Abattoirs-de-la Villette/C6A61B5F6161BDB0A80FDD045D35450C
Frame do vídeo disponível em https://www.dailymotion.com/video/x8wuxq
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Essas operações de aproximação, montagem e colagem das imagens
estariam, portanto, no cerne do projeto estético do filósofo Georges Bataille, sendo
combinadas por um princípio que se aproxima de um “paradoxo patético” (Didi-
Huberman, 2015, p. 99). As noções de semelhança, crueldade e sintoma
apresentam-se como bases centrais no projeto herético de Bataille, o que
reivindica em cada operação a potência do informe, daquilo que pulsa nos
destroços da imagem quando despojada de seus traços representativos: algo de
anadiômeno reivindicando a sua existência.
A dissolução da
Figura Humana
, o trabalho contínuo de laceração da imagem
em busca da deterioração da forma antropocêntrica por excelência, também se
apresenta como um grande pano de fundo para as experimentações e horizontes
do autor da revista
Documents
. O que, de algum modo, também nos ajuda a
aproximar técnica e teoricamente o seu projeto dos procedimentos e desejos de
dissolução do indivíduo colocados em cena pelo coreógrafo Tatsumi Hijikata,
assumidamente inspirado pela poética batailiana.
A dança do corpo de carne
Tatsumi Hijikata (1928-1986), dançarino e coreógrafo criador da dança Butô,
estruturou uma singular metodologia de trabalho para a construção da presença
cênica que buscava subverter o corpo em suas dimensões físicas e sociais. Ele
desenvolveu assim metodologias de criação em dança que partiam da renúncia a
concepções precisas de corpo e de sociedade, atravessadas por um preciso
horizonte ideológico. Em
To Prison
(TDR, 2000, 44-5), Hijikata anuncia
explicitamente a sua oposição aos sistemas capitalista e totalitário, bem como a
todas as reverberações sociais e fisiológicas que os mesmos instituem às
múltiplas camadas do corpo. A reivindicação da dança enquanto forma de “uso
despropositado do corpo” ou como “instrumento de prazer”, evidencia a sua
oposição à “moral civilizada” e à “alienação do trabalho”, ideais construídos por
uma “sociedade voltada para a produtividade” de forma condizente com o
“sistema econômico capitalista e suas instituições políticas”.
As metodologias de criação cênica propostas por Hijikata estruturaram,
portanto, um complexo projeto estético-artístico, que desvela uma nítida posição
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política e ideológica em suas raízes, mesmo que esta não seja manifestada de
modo explícito ou panfletário. Em algum sentido, é possível afirmar, portanto, que
Hijikata antecipa7, em suas críticas e anúncios, a discussão sobre a biopolítica,
mesmo que de forma difusa e inominada.
Hijikata desenvolveu, assim, técnicas de criação cênica que passavam pela
problematização do ser humano por meio da dissolução de sua identidade social.
A subversão do
shintai
(corpo cultural) apresenta-se como o centro de seu
trabalho, a partir da exploração profunda do
nikutai
(corpo de carne) e da
afirmação das diferentes qualidades da matéria que o constituem. Dessa forma
se estabeleceu um percurso investigativo baseado nas possibilidades da existência
de identidades polimórficas, com o qual buscava desconstruir os automatismos
cotidianos de seus/suas dançarino/as, para tornar possível um fluxo contínuo de
metamorfoses.
Hijikata considerava o corpo como um conjunto de fluxos de sensações e um
inesgotável reservatório de memórias. O comportamento anárquico inerente às
dimensões da carne recusava assim a supremacia da racionalidade,
deslegitimando a possibilidade de uma configuração técnica advinda
exclusivamente de fora do organismo. É então que Hijikata a reivindica a partir de
suas estruturas mais internas: o osso e a carne. A dança do
nikutai
passa assim a
não admitir a pré-existência de uma gestualidade codificada ou de um universo
técnico pré-concebido. A dança anárquica de Hijikata celebrava a fugacidade de
suas formas ao emergir do fluxo contínuo de decomposições e metamorfoses da
matéria (Peretta, 2015).
O gesto construído pela carne, na obra de Hijikata, surge da experiência
profunda de fricção entre o espaço interior e suas imagens. A expressividade na
dança do
corpo de carne
não provém, portanto, de uma inferência racional,
pessoal ou subjetiva. A expressividade da dança, para Hijikata, se assemelhava
mais a uma espécie de secreção do corpo, resultante de processos metamórficos
e da investigação de estratos profundos da memória que compõem o peso e a
escuridão de sua matéria.
7 O termo estrito seria conceituado por Michel Foucault somente nos anos 1970.
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É exatamente este corpo em constante transformação
naru shintai
que
se apresenta como a substância fluida e primordial da obra de Tatsumi Hijikata. O
fluxo entre as identidades polimórficas desvelava assim, aos seus/suas
dançarinos/as, a concretude de seus
kanōtai
: seus “corpos possíveis” (Peretta,
2022). As metodologias de trabalho criadas por Tatsumi Hijikata, são baseadas
tanto em estímulos verbais como na apresentação visual de uma infinidade de
imagens, o que tornava possível ao/às dançarinos/as a construção de
equivalências internas que desconstruíam os seus
shintai
ordinários,
apresentando-lhes a concretude de seus
nikutai
e dos múltiplos estratos de seus
corpos-memória. Esse corpo-em-dança instaurado, portanto, poderia ser
experimentado como a sucessão de fragmentos sobrepostos de uma “memória
reificada” (Centonze, 2003/2004, p. 22), ou seja, de imagens mentais transformadas
em objeto, em coisa.
Imagens de um corpo-em-dança
Como vimos até aqui, no fundamento do butô de Hijikata está presente o
corpo carnal. Um corpo-em-dança que se expressa pela secreção gerada em seus
processos metamórficos, instaurados por imagens que impregnam a sua carne. É
essa a específica concepção de dança que passou a sustentar as reflexões que
culminaram na criação do Atlas Coreodramatúrgico8 (ACD). O universo da filosofia
da imagem surge, assim, como elemento catalisador de sua constituição, uma vez
que nos possibilita o aprofundamento conceitual de suas raízes, ao mesmo tempo
em que nos apresenta a dimensão operativa que muitos desses conceitos nos
oferecem quando lidos em uma perspectiva poética.
O uso crítico e negativo de imagens como procedimento técnico de criação,
parece aproximar uma constelação de autores à esta específica concepção de
8 O entendimento de coreodramaturgia aqui utilizado inspira-se livremente no conceito proposto por Joana
Lopes, atualizando-o, porém, em outras direções. A
coreodramaturgia
criada por Lopes contribui
profundamente para a pesquisa no campo da arte-educação, ao propor procedimentos de reflexão e criação
da dimensão dramática do gesto na dança, tendo como fundamento os estudos dos jogos arcaicos e a
coreologia de Rudolf Laban (Madureira e Yonashiro, 2020). A seu modo, porém, o ACD tem como principal
objetivo registrar cartograficamente possibilidades imagéticas de composição dramatúrgica no campo do
teatro-dança nas múltiplas camadas que constituem essa experiência cênica: os gestos e as presenças, as
luzes e as sombras, os sons e os silêncios, o figurino, a cenografia, as cores, as narrativas, as zonas de
afecções etc.
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dança. Ou seja, na sobreposição entre esses dois universos evidenciam-se
algumas das potências que a imagem possui para a transmutação do corpo e a
criação em dança. Quando observamos tal sobreposição a partir da perspectiva
apresentada pela dança butô, poderíamos destacar especificamente os
procedimentos poéticos de criação do gesto e de suas dramaturgias baseados no
uso de imagens internas e externas ao corpo. Por um lado, temos a imaginação
como um princípio de criação, ou seja, procedimentos de reificação da memória,
de materialização física de dimensões da memória e de imagens internas. Por
outro lado, teríamos também a utilização de imagens visuais desenhos, recortes,
fotografias como disparadores criativos, ou mesmo imagens geradas por
estímulos verbais9.
Buscando sistematizar e potencializar o seu processo de incitação ao corpo
de carne, além de compartilhar com seus/suas discípulos/as um universo comum
de criação, dentre outros procedimentos, Hijikata dispunha de álbuns de recortes
(
butoh-fu
) nos quais escrevia palavras e colava imagens, desenhos, fotografias e
reproduções de obras de arte de todos os tempos e escolas. Segundo Kuniyoshi
(2006, p. 159), “ele era capaz de penetrar nas pinturas e acompanhar os movimentos
das coisas, plantas e personagens ali representados. [...] Assim, para ele, a forma servia
para destruir a forma”. Hijikata realizou suas composições coreográficas e registrou seus
processos criativos por meio de aproximações e sobreposições de um universo infindável
de imagens, pois somente as mesmas eram capazes de transportar o movimento interior
daquela presença para a consciência do/a dançarino/a, quem poderia traduzi-lo em carne.
Hijikata tentou medir a vibração, o fluxo, a modulação infinita que forma
um órgão. [...] As anotações de Butoh são muitas vezes feitas por esse
trabalho de observação minuciosa dos detalhes de uma imagem e sua
tradução em movimentos de dança. [...] [Hijikata] estava mais interessado
na vibração que transborda as imagens, nas forças quase imperceptíveis
(Uno, 2018, p. 42-53).
Essa forma de perscrutar a imagem, de arranhá-la, provocá-la e, no limite,
dilacerá-la em busca de algo sem nome que nela habita e nela se inicia, nos faz
aproximar os procedimentos de trabalho de Hijikata, Warburg e Bataille em uma
forma muito livre e poética, sempre nos questionando sobre as potências que se
9 Para se obter maiores aprofundamentos sobre os procedimentos criativos na dança Butô gestados "entre a
carne e a palavra", ver em: Peretta, 2016.
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revelam para a criação em dança.
Esta talvez seja a forma de se pensar a "coreografia" na dança butô: uma
sucessão de imagens transformadas em carne. Uma dança em que a
expressividade não se constrói por meio de uma organização gramatical dos
movimentos dos membros do corpo, mas surge, como vimos, enquanto uma
espécie de secreção decorrente de estímulos imagéticos que geram colapsos
internos e instauram um corpo em crise. Em uma licença poética, poderia aqui
afirmar que, mesmo de forma anacrônica e inconsciente, Hijikata construiu em
seu
butoh-fu
um pequeno Atlas
Mnemosyne
para possibilitar o pensamento e a
criação de sua dança: uma dança feita de imagens, palavras, carne e papel.
Figura 4 - Reprodução de página do
butoh-fu
de Tatsumi Hijikata10
E são justamente essas analogias e sobreposições que tornam possíveis que
os conceitos, as noções e os procedimentos introduzidos pelos pensadores do
10 Fonte: Takashi, 2015, p. 66.
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universo da filosofia da imagem até aqui apresentados, nos ajudem a repensar os
procedimentos criativos da dança, em suas múltiplas dimensões. Gostaria assim
de apresentar, de forma pontual, experiências por meio das quais fui estruturando
e atualizando, gradativamente, o Atlas Coreodramatúrgico (ACD) como método de
criação cênica em diferentes contextos e coletividades.
Murobushico
: princípios da repercussão
Entre os anos de 2018 e 2019, em um período de pesquisa de pós-doutorado,
pude conhecer de forma mais aprofundada alguns pensadores nas áreas da
filosofia da imagem e da fotografia11. Provocado por essas novas leituras, iniciei a
criação de um espetáculo de teatro-dança12, inspirado em fotografias da obra do
falecido dançarino de butô Kô Murobushi.
No processo de criação deste espetáculo, a dramaturgia foi sendo composta
por procedimentos de repercussão, isto é, por justaposição e aproximação de
fotografias a partir de critérios de semelhança de seus elementos estéticos e
morfológicos, desconsiderando possíveis cronologias ou filiações formais em
âmbito geográfico, cultural e/ou escolar. Em um certo sentido, dentro de seus
limites e proporções, foi utilizado um procedimento que compartilha a "abordagem
patética paradoxal" introduzida por Georges Bataille em seus
Documents
(Didi-
Huberman, 2015, p. 99) ou mesmo a dinâmica composicional baseada na "empatia
energética" (Didi-Huberman, 2015, p. 339) adotado por Aby Warburg em seu Atlas
Mnemosyne
.
Neste experimento coreográfico, sonoro e antropofágico, propusemos uma
homenagem aos mortos que nos habitam, em um possível diálogo entre a obra
do dançarino de butô Murobushi falecido logo após sua última turnê no Brasil
em 2015 – e a estética sonora do movimento brasileiro
Mangue Beat
, capitaneada
11 Desenvolvido junto ao Departamento de Artes da Universidade de Bolonha (Itália) e à Escola de Belas Artes
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/Brasil), sob a supervisão dos professores Elena Cervellati e
Fernando Mencarelli. Neste período de pesquisa pude acompanhar também as disciplinas de doutorado da
Profa. Daisy Turrer e do Prof. Adolfo Cifuentes. Registro aqui, portanto, os meus mais sinceros
agradecimentos aos referidos professores, bem como a todo/as o/as discentes que trabalharam comigo
nos anos subsequentes e tornaram possível o início da estruturação deste método.
12 Espetáculo do grupo Anticorpos - investigações em dança (2019). Concepção e Dramaturgia: Éden Peretta e
Ernesto Valença;
Dança
: Éden Peretta;
Música
: Ernesto Valença;
Técnica
: Jaqueline Lourenço e Gabriel Baez.
Duração
: 50’. Disponível em: https://vimeo.com/ user12933332.
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pelo também falecido Chico Science. Neste contexto, a sobreposição entre os
universos imagéticos do Japão e do nordeste brasileiro ofereceu-se como zona de
criação na qual se efetivou o colapso e a repercussão entre elementos formais,
figurativos e sígnicos. Em um fluxo livre de repercussões e analogias, as cenas
foram sendo criadas.
Figura 5 - Página do
butoh-fu
do espetáculo de teatro-dança Murobushico (2019)
Acervo pessoal do autor
Como exemplo, trazemos aqui o processo de criação da primeira cena, na
qual a imagem disparadora foi a foto de Murobushi com diversos papéis
amassados inseridos nos olhos, boca, nariz e orelhas. A imagem, por analogia
formal, nos remeteu à famosa foto de Yukio Mishima segurando a rosa branca em
sua boca, realizada por Eikoh Hosoe13. Essa imagem, por sua vez, dentro do
contexto de repercussão entre os universos nipônico e nordestino, nos remeteu
diretamente à imagem do Caboclo de Lança, do Maracatu Rural de Pernambuco,
também com a sua flor na boca. O formato e a textura de seu chapéu, ao seu
tempo, nos remeteram à cultura japonesa e às famosas cerejeiras floridas, tão
admiradas no período do
Hanami
.
Neste contexto nasce a primeira cena, na qual a imagem que se oferece à
carne é a de uma cerejeira que nasce, cresce, desabrocha suas flores que, logo
13 Fotografia que ilustra a capa do livro
Ba-ra-kei: Ordeal by Roses
(1963).
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após, caem lentamente, até que a árvore começa seu definhamento natural. O
dançarino desenvolve essa partitura sem buscar a mímese ou a cópia formal da
árvore, mas sim por meio de uma relação profunda e concreta entre a imagem
disparadora e a sua carne, gerando a experiência do desabrochar enquanto uma
secreção deste colapso. As “flores” foram sendo construídas com papéis
amassados, inseridos nos orifícios da cabeça e grudadas no corpo com o cuspe
do próprio dançarino, o que determinou a temporalidade de suas quedas.
Figura 6: Primeira cena do espetáculo de teatro-dança Murobushico
Fonte: Foto de Gustavo Maia (2023)
Corpo alquímico: princípios da montagem
Em 2022, juntamente com os/as discentes, desenvolvemos processos de
criação utilizando essa metodologia do Atlas Coreodramatúrgico (ACD) dentro de
duas disciplinas vinculadas ao Departamento de Artes Cênicas (DEART) e ao
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal
de Ouro Preto (UFOP). Ambas foram disciplinas eletivas ministradas de forma
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paralela14, e contaminaram-se reciprocamente a partir das atualizações que os
processos efetivaram nos fundamentos do ACD.
O processo de criação desenvolvido na disciplina do mestrado foi inspirado
pelos procedimentos espagíricos15 e os princípios da Alquimia, elementos teóricos
centrais da proposta do
Corpo Alquímico
. A contribuição mais significativa para o
ACD advinda desse universo, foi a dinâmica de estruturação da constelação de
imagens, inaugurando uma disposição de círculos concêntricos que emanam da
imagem disparadora. Assim, em diferentes camadas de significação, as imagens
vão sendo organizadas em constelações, em uma fértil rede de significados e
analogias.
A imagem central da constelação instaura o epicentro de um campo de
forças que circunscreve os estímulos visuais da criação coreodramatúrgica. Um
campo que pulsa em direção à sua periferia tendo a imagem central como vórtice
centrífugo que convoca o fluxo novamente para o seu interior. Nessa zona
movediça e imanente, instaura-se um percurso livre de significados, analogias e
relações em prol da criação coreodramatúrgica. A disposição concêntrica das
imagens que compõem esse campo é inspirada, de modo estritamente
instrumental e poético, nos procedimentos espagíricos esses, por sua vez,
fundamentados em princípios da Alquimia os quais buscam
abrir
as plantas
decompondo as suas estruturas em diferentes níveis:
- o
corpo
(o sal resultante dos processos de calcinação, lixiviação e
calcinação), ou a dimensão mais material de cada planta;
- a
alma
(o óleo resultante dos processos de destilação e retificação), ou
aquilo que revela a personalidade, a individualidade de cada planta, por
isso cada óleo tem o seu perfume específico;
- o
espírito
(o álcool resultante dos processos de fermentação, destilação e
retificação), ou a dimensão mais etérea e universal de cada planta.
14 Uma disciplina foi ministrada na graduação, intitulada Oficina de Percepção Visual e Criação, e a outra no
mestrado, intitulada
Tópicos Especiais em Poéticas do Corpo II: Corpo Alquímico
, ministrada em parceria
com a socióloga e estudante de espagiria Priscilla Bitencourt Freitas.
15 A Espagiria seria uma dimensão operativa da antiga Alquimia, e seu nome deriva da terminologia grega
composta por σπάω (
spáō
, “separar”, “dividir”) e γείρω (
ageiro
, “reunir”). Os seus procedimentos envolvem
fermentações, destilações e extrações que visam a separação e extração dos componentes constituintes
dos vegetais, minerais e animais. A espagíria vegetal, na qual nos concentramos, trata de extrair os
ingredientes ativos de uma planta inteira com diferentes métodos, alcançando-se assim diferentes frações
que no final devem ser reunidas novamente, concentradas, purificadas e fortalecidas, gerando tinturas,
hidrolatos, óleos essenciais, sais e quintessências.
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Neste movimento de apropriação poética e de transposição visual, o ACD
passou a ser estruturado, nos processos de criação das referidas disciplinas, tendo
essa disposição de montagem como referência: o corpo (forma material), a alma
(significações individuais) e o espírito (significações culturais ou "universais"). A
primeira mancha concêntrica de imagens passou, assim, a ser estruturada pelo
princípio de analogias figurativas e formais. As imagens mais próximas do
epicentro seriam as reverberações diretas dos traços, das linhas de força, das
cores ou de outras características que emanam diretamente do corpo da imagem
central disparadora.
A segunda camada concêntrica de constituição do ACD é composta pelas
significações subjetivas ou individuais que o/a dançarino/a desdobra de cada
imagem que compõe a primeira camada. Nesse momento, são convocados tanto
a memória afetiva, como todo o universo imagético que habita a experiência
singular de vida de cada pessoa. Seria então, metaforicamente, o equivalente à
alma na Espagiria. a terceira e última camada de imagens, a mais periférica,
metaforiza o espírito ao ampliar as significações subjetivas para um campo cultural
mais amplo, o que convoca imagens compartilhadas pela vida em comunidade,
com diferentes recortes geográficos e culturais.
Figura 7: Esquema ilustrativo simplificado do ACD com seu campo de imanência, suas
camadas constitutivas de imagens e seus fluxos de convergência.
Acervo pessoal do autor
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O exemplo concreto que trazemos aqui para apresentarmos o princípio da
montagem dentro do ACD é o processo de criação realizado pelo discente da
graduação Gustavo Maia. A provocação inicial para os trabalhos de criação foi o
registro fotográfico de fragmentos do corpo dos colegas da turma, os quais
serviriam de disparador para o processo de repercussão de imagens. No exemplo,
um fragmento da digital de um dos dedos da mão ofereceu-se como imagem
central instauradora do campo de forças que circunscreveu a experiência de
criação cênica.
Figura 8: ACD criado por Gustavo Maia, no qual é possível perceber as diferentes
camadas concêntricas de seu processo de criação coreodramatúrgica
Acervo pessoal de Gustavo Maia (2022)
Na primeira camada surgem campos, terras aradas e labirintos, repercutindo,
por analogia, as formas e sulcos da imagem matriz. A segunda camada foi
composta pelas repercussões subjetivas que as primeiras imagens geraram:
caracóis, conchas, os sulcos das mãos, chifres retorcidos, terras secas… A terceira
camada expandiu as significações para um espectro cultural mais amplo, com
símbolos e imagens advindas de universos compartilhados por coletividades de
diferentes âmbitos culturais e geográficos. Eis que surgem em seu ACD:
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cangaceiros, Luiz Gonzaga, povos africanos e médio-orientais portando berrantes,
anjos e mitos advindos de iconografias medievais.
Figura 9 -
Frame do vídeo Circular Sulco
(2022), de Gustavo Maia
Acervo pessoal de Marina João Cangussu (2022)
Esse eclético Atlas ofereceu-se como matriz de trabalho para a criação de
um videodança, no qual o artista foi elegendo diferentes aspectos das imagens
que compõem a constelação para configurar, em camadas, a sua experiência
cênica. Portanto, o chão terroso do ambiente, o tom vermelho da indumentária
utilizada, os gestos espiralados, a música experimental nordestina, dentre outros
aspectos das imagens estruturam a sua obra videográfica16.
Yoshi
: princípio da laceração
Em 2023 desenvolvemos o processo de criação do espetáculo
Yoshi: imagens
laceradas
17, o qual introduz o princípio da laceração como primeiro movimento de
investigação da imagem no ACD. Partindo de obras do artista visual mineiro
contemporâneo Caio Mateus, nas quais ele propõe desenhos de animais
16 Circular sulco (2022), Disponível em: https://drive.google.com/file/d/16EnGEjyg5OC16L_HEd6rtR-
RX7AQ_8lM/view?usp=share_link.
17 Espetáculo do grupo Anticorpos - investigações em dança (2023). Dança: Diego Bernardo, Malu Mesquita,
Marina Freire, Marina Cangussu, Thay Lobo; Música: Arnold Ayrala;
Materialidades Cênicas e Assistência de
Direção
: Belize Neves; Direção e Luz: Éden Peretta. Duração: 50’. Disponível em: https://vimeo.com/
user12933332.
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empalhados e deformados, nos propusemos a investigar diferentes possibilidades
de laceração da imagem.
Figura 10: Imagem de Caio Mateus (2022) utilizada como um dos disparadores do
processo criativo do espetáculo
Yoshi
Fonte: Acervo pessoal de Caio Mateus (2022).
Cada dançarina escolheu uma imagem como disparadora e realizou
diferentes procedimentos de laceração, cortando, aproximando, fragmentando,
invertendo posições, contrastes e/ou cores. A partir do fragmento escolhido, a
instauração da constelação de imagens prosseguiu com a mesma dinâmica de
composição descrita anteriormente. Uma vez constituído o ACD de cada
dançarina, começamos a sobrepor as repercussões de imagens e cada artista
desenvolveu uma partitura solo que serviu de base para a criação do espetáculo
como um todo.
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Figura 11 - ACD criado pela dançarina Malu Mesquita
Fonte: Acervo pessoal de Malu Mesquita (2022)
Figura 12: ACD criado pela dançarina Marina Freire, no qual é possível perceber o
princípio da laceração e os fluxos centrífugos instaurados pela imagem matriz central. Fonte:
Acervo pessoal de Marina Freire (2022)
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Acima podemos observar os ACDs criados por duas dançarinas. Como
exemplo, podemos aqui analisar o segundo Atlas, criado por Marina Freire,
procurando compreender melhor o seu percurso criativo. Em um primeiro ato, a
dançarina lacera a imagem matriz criando diferentes fragmentos a partir dos quais
germina o seu processo de criação coreodramatúrgica. No exercício de um
gaio
saber visual
, é da imagem ambígua de um animal-humano empalhado que
explode uma constelação de estímulos imagéticos disparada por detalhes
seccionados, invertidos, isolados, observados em seus detalhes. Nas múltiplas
direções, a partir de cada fragmento, se estabelecem relações de repercussão que
constroem diferentes narrativas. Como exemplo, seguimos o detalhe do olho
recortado que repercute assim, na intimidade dos processos de subjetivação da
dançarina, transformando-se, por analogia formal, em um bicho de pé, o qual, por
sua vez, deriva em uma sanguessuga, remetendo-a diretamente à imagem dos
tratamentos medievais de sucção sanguínea para a cura de doenças.
Neste exemplo, é perceptível como a imagem central do ACD se oferece
como epicentro de um campo de forças centrífugas, instaurando uma zona de
imanência. É assim que o centro convoca de volta a periferia, circunscrevendo
limites semânticos, temáticos ou sígnicos à experiência potencialmente infinita do
procedimento das repercussões imagéticas. No ACD acima, portanto, é possível
percebermos como a imagem matriz de um ser que colapsa a ambiguidade
homem-animal, multiplica-se em imagens periféricas nas quais a humanidade do
corpo é questionada em seus limites, na fricção com outras formas de vida. É
neste contexto que a referência
percussiva
da dançarina-criadora transita da
posição do enfermo prostrado em um assento acolchoado, para a imagem de uma
criança com cabeça de cachorro sentada de forma ereta em uma cadeira de
madeira. Esta imagem final serviu de disparador para a construção da gestualidade
de um dos momentos da partitura solo da dançarina durante o espetáculo. Em
um colapso entre carne e imagem, eis que a dançarina
secreta
uma cadela-mulher
que se levanta de uma cadeira.
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Figura 13 - A dançarina Marina Freire em um momento de seu solo no espetáculo
Yoshi: imagens laceradas
(2023). Fonte: Gustavo Maia (2023)
Dessa forma, o processo de criação do espetáculo se desenvolveu no
encontro e na sobreposição das diferentes partituras que emergiram dos ACDs de
cada dançarina. O processo de escolhas estéticas e montagens, realizado pelo
diretor do trabalho, que resultou na coreodramaturgia final, foi também
atravessado pelas provocações trazidas pelas materialidades cênicas da artista
Belize Neves, as quais permaneceram na montagem final seja como cenografia,
figurino ou mesmo como vestígios da memória de um gesto ou de uma presença
física.
Em um movimento criativo do olhar, buscamos nos escombros dessas
imagens desfiguradas fragmentos que nos remetessem por repercussões
metafóricas visuais à
dimensão rítmica da forma
: aquilo que Georges Bataille
nomeava como
informe
. Em uma inquietação decolonial, buscando nos
desvencilhar do protagonismo dos conceitos europeus em nossas experiências
criativas, durante o processo de criação, nos deparamos com o conceito de
Yoshi
,
do povo amazônico Yaminawa18, o qual nos sugeriu poética e hereticamente
aproximações ou equivalências com o informe batailliano. Foi assim que ousamos
falar com
(e não
falar por
) os povos ameríndios, acreditando que suas imagens e
18 Para maiores aprofundamentos consultar Jeremy Narby (2018).
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seus pensamentos se aproximam, de forma radical, do compromisso de nosso
grupo na desconstrução da figura humana como epicentro da vida.
Yoshi
denota
o movimento, a anima; é a figura que se move entre a forma e a sua não forma.
Yoshi
é o informe; é a dimensão da vida que está em tudo e que torna possível ao
xamã metamorfosear-se e transitar entre as formas de todos os seres.
Yoshi
transformou-se assim em um espetáculo, poeticamente movediço, mas
politicamente compromissado com as ações coletivas que tornam possível que
o
céu não caia
.
Considerações finais
O Atlas Coreodramatúrgico surge, assim, diretamente, da derivação poética
de alguns dos conceitos filosóficos aqui apresentados, potencializando os
processos de criação em dança. Ao observar esses conceitos em suas dimensões
operativas, foram sendo estruturados os procedimentos técnicos da criação desta
espécie de cartografia de imagens que se oferece como registro das potências de
dramaturgias e de movimentos.
Todo o processo fundamenta-se em um percurso de desconstrução da
forma figurativa para buscar em seus escombros fluxos de analogia e significação
estratificadas, o que torna possível um processo de repercussão entre as imagens.
Um uso crítico, negativo e generativo da imagem, pois nega incessantemente à
primazia de suas formas, utilizando-as como disparador para a estruturação
coreodramatúrgica de uma dança informe; uma dança que se assume como
princípio de sua existência: a
intratável condição rítmica da forma
.
Essa pesquisa ainda se apresenta em desenvolvimento e maturação, sempre
fluída, sendo atualizada em cada nova experiência. A criação desta metodologia
de trabalho artístico construída nas fronteiras entre as artes cênicas e as artes
visuais, foi possível pois parte de uma concepção de dança que também
compartilha essa origem liminar. Uma dança na qual imagem e carne celebram as
suas zonas de intersecção e colapso. Uma dança que secreta a sua expressividade
transitando entre imagens reificadas. Contudo, tenho certeza de que o processo
de criação instaurado pela dinâmica do ACD parte desta dança, mas não se
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encerra nela. Acredito que diferentes processos de criação artística, nas mais
diferentes linguagens, podem se potencializar com a utilização de constelações de
imagens e dos procedimentos de
laceração
, repercussão e montagem que
constituem os fundamentos teóricos e operativos do Atlas Coreodramatúrgico,
transformando-o, desconstruindo-o, desfigurando a sua forma atual. Talvez esse
procedimento de criação encontre justamente o ápice de sua existência no
momento em que retornar à
intratável
condição rítmica
de sua forma, que,
como diria Hijikata, a “forma torna-se vívida ao desaparecer”19.
Figura 14 - Discentes utilizando os procedimentos do ACD no processo de criação
coletiva da dramaturgia do espetáculo teatral #Validei, dentro da disciplina de Oficina de Criação
Musical e Teatral (2023). Fonte: Acervo pessoal do autor
19 Todos os meus irmãos mais velhos foram para o exército. Meu pai os faz beber um pouco de saquê em um
copo e talvez ele tenha dito algo como: 'Faça o seu melhor', mas eu realmente não sei. Então todos eles
ficaram vermelhos por beber saquê. Eles ficaram assim porque são todos irmãos mais velhos sérios. E
quando voltaram, havia areia nas urnas funerárias. Saíram vermelhos e voltaram areia. Ah, aquela coisa que
é forma emerge enquanto desaparece; a forma torna-se vívida ao desaparecer (Hijikata,
Wind Daruma
in
TDR, 2000, p. 76, tradução do autor).
All my older brothers went into the army. My dad has them drink some sake from a sake cup, and maybe he
said something like, ‘Do your best’, but I don’t really know. Then they all get red from drinking sake. They get
that way because they are all such serious big brothers. And when they come back there is sand in funerary
urns. They left red and came back sand. Ah, that thing which is form emerges as it disappears; form becomes
vivid in disappearing”.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br