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Mutações po-éticas das dramaturgias da dança em
contextos formativos de Fortaleza/CE
Thereza Cristina Rocha Cardoso
Thiago Mota Torres
Para citar este artigo:
CARDOSO, Thereza Cristina Rocha; TORRES, Thiago Mota.
Mutações po-éticas das dramaturgias da dança em
contextos formativos de Fortaleza/CE.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 48,
set. 2023.
DOI: 10.5965/1414573103482023e0107
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Mutações po-éticas das dramaturgias da dança em contextos formativos de
Fortaleza/CE1
Thereza Cristina Rocha Cardoso2
Thiago Mota Torres3
Resumo
O presente texto desdobra, aprofunda e discute, anotações de processo escritas a
quatro mãos ao longo de uma década de trabalho da dupla de autores em
componentes curriculares relativos às dramaturgias da dança em contextos de
ensino de dança formais da cidade de Fortaleza/CE. Esta escrita tomou o
componente curricular obrigatório "Dramaturgias da dança", presente nos quatro
contextos formativos que serão aqui tematizados: Graduações em Dança
(Licenciatura e Bacharelado) e os Cursos Técnicos em Dança da Escola Porto
Iracema das Artes e do Centro Cultural do Bom Jardim. Neste artigo narra-se o
trabalho docente realizado, partindo de uma abordagem ético-política no que diz
respeito à estética da dança. Uma vez que os fazeres dramatúrgicos pedem leitura
e escuta apuradas de contexto, integrou esta escrita, também, a apresentação de
pontos da história recente da dança contemporânea cearense, somente aqueles que
elucidem, mesmo que brevemente, a sua conjuntura.
Palavras-chaves
: Dramaturgia da Dança. Contextos formativos formais. Fortaleza.
Poet(h)ic mutations of dance dramaturgies in formative contexts in
Fortaleza/CE
Abstract
The present text unfolds, deepens and discusses the process notes that the duo of
authors has written together over the course of a decade of working on curricular
components concerning dance dramaturgies in formal dance education contexts in
the city of Fortaleza/CE. The curricular component "Dance Dramaturgies" is part of
the four educational contexts that will be discussed here: Dance graduates (Bachelor
and Licentiate) and Dance Technicians from the Escola Porto Iracema das Artes and
the Centro Cultural do Bom Jardim. In this article, the teaching work is narrated from
an ethical-political approach with regard to the aesthetics of dance. Since
dramaturgical work requires careful reading and listening to the context, this article
also includes a presentation of the recent history of contemporary dance in Ceará,
only those points that can elucidate, even briefly, its context.
Keywords
: Dance Dramaturgy. Formal Formative Contexts. Fortaleza.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Antônio Renan Salgueiro dos Santos,
graduado em Letras Habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Vale do Acaraú.
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em
Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduação em Comunicação
Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora das graduações em Dança e do Programa de
Pós-graduação em Artes do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (UFCE).
thereza.rocha@ufc.br
http://lattes.cnpq.br/9450346202377323 https://orcid.org/0000-0001-5583-1571
3 Mestre em Artes e Bacharel em Dança pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Dramaturgista e criador-
intérprete em dança contemporânea. Professor dos Cursos Técnicos em Dança da Escola Porto Iracema
das Artes e do Centro Cultural Bom Jardim. thiagomota.danca@ufc.br.
http://lattes.cnpq.br/2521353796166446 https://orcid.org/0000-0002-7761-8381
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Mutaciones po-éticas de las dramaturgias de la danza en contextos formativos
de Fortaleza/CE
Resumen
El presente texto despliega, profundiza y discute las notas de proceso que el dúo de
autores ha escrito conjuntamente a lo largo de una década de trabajo en
componentes curriculares referentes a dramaturgias de danza en contextos de
educación formal en danza en la ciudad de Fortaleza/CE. El componente curricular
"Dramaturgias de Danza" forma parte de los cuatro contextos educativos que serán
discutidos aquí: Graduados en Danza (Bachillerato y Licenciatura) y Técnicos en
Danza de la Escola Porto Iracema das Artes y del Centro Cultural do Bom Jardim.
En este artículo se narra el trabajo docente desde un enfoque ético-político en
relación con la estética de la danza. Dado que el trabajo dramatúrgico requiere una
lectura atenta y una escucha del contexto, este artículo incluye también una
presentación de la historia reciente de la danza contemporánea en Ceará, sólo
aquellos puntos que puedan dilucidar, aunque sea brevemente, su contexto.
Palabras Claves
: Dramaturgia de Danza. Contextos educativos formales. Fortaleza.
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Introdução
O presente texto desdobra, aprofunda, discute e estuda, anotações de
processo escritas a quatro mãos ao longo de uma década de trabalho da dupla de
autores em componentes curriculares relativos às dramaturgias4 da dança em
contextos formativos formais da cidade de Fortaleza/CE5. A longeva parceria
desenvolveu diferentes relações de trabalho ao longo do tempo: primeiramente a
de professora-aluno no referido componente, em seguida a de orientadora-
orientando de TCC da graduação, depois a integração dos dois na tríade de
coordenação do grupo de estudos ‘Dramaturgia: o que quer e o que pode o
corpo?’6 junto com Andrei Bessa, mais tarde como supervisora-estagiário de
docência de Mestrado em Artes e ambos como docentes dos cursos que serão
tematizados no texto.
No escopo de atividades do grupo de estudos, um artigo foi publicado7 e
alguns eventos organizados. Dentre eles, destaca-se o de 13/12/2018, por ocasião
do cinquentenário nada comemorativo do Ato Institucional no 5. Na ocasião, o
documento foi projetado sobre as paredes da escola Porto Iracema das Artes e
artistas da cidade foram convidados para sobrescrever o texto que, terminado o
evento, com a luz do projetor apagada, deixasse atrás de si, uma intervenção
escrita na pedra. Eram inscrições modificadas dos ditames repressivos do principal
e mais duro instrumento da repressão de Estado perpetrada pela violenta ditadura
empresarial-militar vigente no país de 1964 a 1985. Ao fazer eco ao título do
importante livro de Zuenir Ventura (1989), intencionou-se urgentemente alertar
4 É necessário dizer que, neste texto, a noção de dramaturgia é sinônima de dramaturgismo e que ambos os
termos serão utilizados. O mesmo, entretanto, não se aplica ao artista que exerce a/o
dramaturgia/dramaturgismo que será chamada desde sempre de dramaturgista e nunca como
dramaturgo/a por razões que, assim esperamos, o texto venha a elucidar.
5 São contextos formais de formação em dança nos quais os autores do texto atuaram e atuam como
docentes: Cursos de Licenciatura e de Bacharelado em Dança da Universidade Federal do Ceará; Cursos
Técnicos em Dança (CTD) do Porto Iracema das Artes: Escola de Formação e Criação do Ceará, e do Centro
Cultural do Bom Jardim (CCBJ).
6 Grupo de estudos que funcionou em 2018 e 2019 na Porto Iracema das Artes: Escola de Formação e Criação
do Ceará realizado em parceria institucional entre a escola e o Instituto de Cultura e Arte da Universidade
Federal do Ceará. No grupo, além do estudo de textos, trabalhávamos com apresentações comentadas de
trabalhos de criação de artistas da cidade.
7 Bessa; Mota; rocha, 2020.
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que, 50 anos depois, 1968 não terminara. Tanto era verdade que Jair Bolsonaro
estava eleito como presidente do Brasil naquela data.
Como a proposição do evento acima mencionado denuncia, a abordagem das
dramaturgias da dança parte do pressuposto de que a produção de sentido
inerente aos saberes e fazeres das artes do corpo atravessa o estético pelo ético
e pelo político o que resulta em uma multiplicidade de “po-éticas”. A grafia
alterada do termo desenha um conceito que será apresentado no texto em sua
busca por refletir, dentre outros aspectos, sobre as urgências e lutas vigentes nas
salas de aula diante da viragem epistemológica radical exigida por grupos
minoritários da sociedade brasileira quando acedem às instituições públicas de
formação em dança.
A presente escrita tomará o componente curricular obrigatório "Dramaturgias
da dança"8, presente nas quatro instâncias formais de ensino que serão aqui
tematizadas, como palco inevitável dessas lutas e tentará descrever os modos
como a
abordagem dramatúrgica
(Rocha, 2021), através deles desenvolvida,
adentra a cena. Trata-se da oportunidade de encontrar os dizeres de um modo
bastante específico de trabalho que implica certa autorreflexividade ao ocupar,
diga-se, a dramaturgia dramaturgicamente. Aqui pretende-se relatar, descrever e
narrar o trabalho docente de tal modo que possa vir a ajudar, quem sabe,
professore/as e estudantes a operarem junto/as nos processos em sala de aula
desde as lutas, dentro delas, sem apaziguamento, mas com vontade de
construção de futuro. Uma vez que os fazeres dramatúrgicos pedem leitura e
escuta apuradas de contexto, integrará esta escrita, também, a apresentação de
pontos da história recente da dança contemporânea cearense, somente aqueles
8 Dado o contexto ao qual o artigo se dedica, é importante pontuar que no seu processo de escrita foi
importante consultar o site do e-MEC (Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior)
para sabermos onde o termo 'Dramaturgia da Dança' aparecia como componente curricular nos projetos
pedagógicos de Cursos de Dança em IES no Brasil. Deste modo, pudemos constatar as seguintes instituições
e seus componentes curriculares: UFS - Federal de Sergipe (Dança, dramaturgia e montagem coreográfica);
UCS - Universidade de Caxias do Sul (Dramaturgia na dança); UFU - Federal de Uberlândia (Dramaturgia do
Corpo I: conceitos e fundamentos e Dramaturgia do Corpo II: gramáticas corporais); UNISO - Universidade
de Sorocaba (Dramaturgia); UFMG - Federal de Minas Gerais (Oficina de Dramaturgia); UFPE - Federal de
Pernambuco (Dramaturgia e apreciação crítica em dança); UFC - Federal do Ceará (Dramaturgias da dança:
passagens e Dramaturgias da dança: Dispositivos); UFG - Federal de Goiás (Dança e Dramaturgia); UFRJ -
Federal do Rio de Janeiro (Tópicos especiais em dança - dramaturgia); UESB - Universidade do Estado da
Bahia (Dramaturgia da dança); UEMS - Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Dramaturgia da cena);
UNIENSINO - Centro Universitário do Paraná (Dramaturgia do corpo); UERGS - Estadual do Rio Grande do
Sul (Dramaturgia da dança); UNESPAR - Estadual do Paraná (Laboratório de pesquisa e criação IV:
Dramaturgia). Disponível em: https://emec.mec.gov.br/. Acesso: 10 mar. de 2023.
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que elucidem, mesmo que brevemente, a conjuntura.
Desenvolvimento
Assinalar Fortaleza no mapa de produções sobre as dramaturgias da dança
no Brasil implica propor um deslocamento da hegemonia sudestina e
concomitantemente uma mudança de eixo em direção às criações e aos estudos
nesse campo localizados em cidades do Nordeste brasileiro. Dados relativos às
ações entre dança e ensino realizadas em Fortaleza sinalizam a atenção dedicada
à abordagem dos fazeres dramatúrgicos em dança e, dentro deles, das relações
entre dança e construção de sentidos. Historicamente, tais dados, como estarão
dispostos mais adiante, atestam a busca por instaurar conexões que
concorressem para a difusão de um panorama contemporâneo de dança na
cidade. Trata-se, portanto, de exercício político, o de compreender como as
investigações acerca da produção de sentido em dança realizadas em terras,
supostamente alencarinas, caminhou historicamente
pari passu
com as noções
de dramaturgia produzidas no eixo Rio-São Paulo na década de 1990.
Naquele momento, a função de um(a)
dramaturg
9 ainda caminhava a passos
lentos até a sua plena admissão nas fichas técnicas das obras de dança. É
ocorrência, no mínimo curiosa, portanto, que no final da mesma década, o
emprego da nomenclatura “Dramaturgia da dança” se manifestasse no âmbito
9 As fichas técnicas de espetáculos teatrais do fim dos anos 1980, e ao longo da década subsequente, traziam
esse termo em alemão para nomear a função que, muito tempo depois, seria traduzida para o termo
dramaturgista, em português. O contraste entre os termos
dramatiker
e
dramaturg
é possível no alemão,
língua de onde provém esta diferenciação, sendo
dramatiker
o/a autor(a) do texto teatral que antecede a
encenação (dramaturgo/a, em português) e
dramaturg
, sendo a pessoa que acompanha o processo de
criação e atua na tessitura dramatúrgica (e não dramática, cabe a ressalva) do trabalho. Apesar de
existente hoje nos dicionários especializados, o termo dramaturgismo não comporta um consenso acerca
do rol de atividades nem do território conceitual circunscritos pela palavra, dependendo, para isso, da
natureza do projeto artístico ao qual se associa ou pelo qual se veja convocado. Na dança, o emprego do
termo é tardio quando comparado ao teatro e aparece inicialmente no ambiente da dança contemporânea
internacional. O caso de Raimund Hodge é emblemático, pelo acompanhamento feito a Pina Bausch durante
muitos anos na montagem de seus espetáculos. Seja na dança, ou no teatro, o/a dramaturgista e-se
como tarefa perguntar-se, no decurso do tempo de montagem de um trabalho, acerca do sentido, do tecido
de sentido, que ali se fabrica. Pode ladear o/a diretor(a) ou o/a coreógrafo/a, em uma relação nem sempre
pacífica, propondo perguntas, fazendo anotações, trazendo material referencial (leituras, obras de outrem
etc.), com o objetivo de criar um espaço de interlocução acerca da feitura da obra, agindo, portanto, em sua
poética. Em alguns contextos, o/a dramaturgista é considerado um(a) crítico/a
avant la lettre
, uma espécie
de crítica avançada ou antes da hora, agindo em uma área que se estabelece precisamente entre o presente
do fazer privado de criação e a sua futura vida pública.
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artístico-pedagógico do (histórico) Colégio de Dança do Ceará10 (1998-2002), sinal
de haver nele uma aposta no fazer que a dramaturgia nomeia, o que viria a se
intensificar cada vez mais ao longo dos anos.
O Colégio de Dança do Ceará tornava-se assim uma plataforma de
acesso a informações, práticas, pesquisas e conhecimentos provenientes
de outros contextos. Entre as disciplinas ministradas, pode-se mencionar
as de balé clássico, dança contemporânea, composição coreográfica,
anatomia, cinesiologia, teoria do balé, prática de ensino, danças
tradicionais, história da dança e iniciação musical. Em momentos
distintos, os alunos contavam ainda com aulas de danças regionais,
análise do movimento, iluminação cênica, técnica
Limón,
dramaturgia da
dança, contato-improvisação, dança criativa, capoeira, danças afro-
brasileiras (Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2016).
Através de todos esses componentes curriculares, o percurso no Colégio de
Dança oferecia aos/às discentes a escolha pela atuação em um de seus três eixos
de capacitação: Bailarino/a, Coreógrafo/a ou Professor/a. A presença da
dramaturgia como componente curricular nesse desenho pedagógico apontava
para uma trajetória atenta às demandas contemporâneas do pensamento acerca
do corpo e disposta a trazer a provocação da dança e na dança como mote de
criação nas turmas que ali estudavam.
A discussão sobre a criação do Colégio de Dança fora realizada no decurso
da programação da primeira Bienal Internacional de Dança do Ceará11, em 1997. Em
reunião, artistas emergentes e mais experientes se perguntavam sobre a
pertinência da criação de uma companhia pública de dança, nos moldes de outras
existentes no Brasil12, ou do investimento na formação/qualificação artística e
10 O Colégio de Dança do Ceará, criado em 1998, foi um importante equipamento de formação pública em
dança no Estado, à época localizado no Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza.
Importantes nomes da cena contemporânea cearense da dança, que ainda hoje atuam, passaram pelo
Colégio, dentre alguns nomes podemos citar: Silvia Moura, Cláudia Pires, Fauller, Wilemara Barros, Andrea
Bardawil, Alysson Amâncio e Marina Carleial. O Colégio encerrou suas atividades em 2002, mas abriu
margens para outras iniciativas no que se refere à formação em dança no Ceará como o Curso de Formação
Básica da Escola Pública de Dança da Vila das Artes, o Curso Técnico em Dança (criado em 2005, na época
vinculado ao Sesc-Senac Ceará, e hoje ao Porto Iracema das Artes: Escola de Formação e Criação do Ceará)
e as Graduações em Dança Bacharelado e Licenciatura da Universidade Federal do Ceará-UFC (criadas
em 2011).
11 A Bienal Internacional de Dança do Ceará é um dos eventos de dança mais importantes do Brasil. Criada
em 1997 e conduzida até hoje por David Linhares, possui uma programação com apresentações de
companhias, grupos, artistas locais e internacionais de dança, bem como programações de conversas,
oficinas, residências e intercâmbios tanto na capital, Fortaleza, como em cidades do interior do Estado.
Desde 2010, a Bienal de Dança conta com a sua edição De Par em Par, ocorrida nos anos pares, e com a
recente criação da Bienal Criança, hoje em sua segunda edição.
12 Também conhecidas como companhias estáveis ou oficiais são vinculadas à administração pública, seja ela
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profissional do/as agentes locais de dança, o que viria a ser preconizado no
Colégio. A escolha realizada dava sinal claro da inclinação cearense para a
educação, o que notabilizaria o estado anos mais tarde. Tal como o caso do debate
acima mencionado exemplifica, a Bienal Internacional de Dança do Ceará surgiu e
se estabeleceu como um celeiro de discussões políticas, éticas e estéticas acerca
da criação em dança. Assim, o festival possibilitou à cena cearense novos olhares
e linguagens diversificadas no que diz respeito às po-éticas contemporâneas em
dança produzidas local, nacional e internacionalmente.
Trazer o Colégio de Dança e a Bienal Internacional de Dança do Ceará juntos,
para além de compreendê-los como episódios de relevo e historicamente
concomitantes na cena da dança cearense, contribui para pontuar, hoje, a atenção
sensível aos estudos da dramaturgia da dança no campo formativo local. Como
visto, esses acontecimentos foram impulsionadores de discussões e, para além
disso, proporcionaram e no caso da Bienal de Dança do Ceará ainda proporciona
a criação de um exercício ético e político nas estéticas de dança difundidas para
o público em geral, esse também formado por pessoas hoje atuantes nos espaços
de criação e formação em Fortaleza.
São por esses episódios, nos quais a dramaturgia da dança atua como
elemento formativo formal e não-formal13, que vimos aparecer duas publicações
pioneiras realizadas sobre o assunto, ambas criadas no Ceará. A primeira se refere
ao livro
Tecido Afetivo
(2010)14, organizado por Andréa Bardawil, contendo textos
sobre a dramaturgia escritos por diversos artistas da dança nacionais e
internacionais a partir da (con)vivência em residência artística entre os próprio/as
autore/as na praia de Flecheiras (litoral cearense). Já a segunda obra bibliográfica,
que aqui cabe nota, refere-se à publicação organizada por Ernesto Gadelha e Paulo
Caldas intitulada
Dança e Dramaturgia(s)
(2016), reunindo traduções de textos
seminais e escritos de artistas e pesquisadores/as atuantes seja nos estudos sobre
no âmbito municipal ou no estadual. São alguns exemplos: o Balé da Cidade de São Paulo, o Balé Teatro
Guaíra, o Balé Teatro Castro Alves, o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, dentre outros.
13 Entende-se por ensino formal em dança aquele que oferece certificação.
14 Para além da publicação impressa do livro, há também um documentário dividido em duas partes sobre o
período de encontros em Fleixeiras (CE) contendo discussões sobre criação e dramaturgia da dança.
Disponível em: https://youtu.be/Tx-38gCVQfY. Acesso em: 06 de jun. de 2023.
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as dramaturgias da dança, seja na área da criação dramaturgista em dança. O livro
foi criado dentro do escopo da Escola Pública de Dança da Vila das Artes15, e
apostou na qualificação do/as professore/as que nela atuam, capilarizando-a
também para o/as artistas do estado e de todo o país. Trata-se do primeiro e único
livro lançado até agora pela Escola que, muito longe de assemelhar-se a qualquer
manual didático, investe nas dramaturgias da dança como eixo transversal
formativo. São incentivos e produções que fomentam, por exemplo, publicações
posteriores e, assim, propiciam que outros projetos de investigação em
dramaturgia realizem um possível movimento de costura ajustada entre a
formação e a criação em dança.
Diante do percurso mencionado é importante pontuar o trajeto que ainda se
construiu no que confere às necessidades de políticas públicas voltadas não
somente para difusão de criações em dança no Ceará, mas a ocorrência de uma
trajetória que se dedicasse a continuar um trabalho em dança nos contextos
técnico e de ensino superior. É com a extinção do Colégio de Dança do Ceará em
2002 que as demandas relativas aos espaços públicos de formação foram
solicitadas e insistentemente reivindicadas como políticas de Estado pela classe
artística da dança cearense ao longo da primeira década dos anos 2000.
Foi a partir dessas lutas por investimentos para a dança que hoje, mais de
vinte anos depois, contamos com cursos em equipamentos públicos pertencentes
aos três níveis de governo: municipal, estadual e federal. Trata-se de uma trajetória
artístico-pedagógica continuada que, uma vez percorrida, confere aos/às discentes
oportunidades de estudos desde a infância à graduação. São cinco cursos formais
pautados por relações de ensino-aprendizagem de dança sempre tecidas desde
as suas urgências éticas, políticas e estéticas imbricamento que aqui
classificamos de po-ética. Se dramaturgia da dança no percurso formativo
daquele/a artista grande chance de que haverá po-ética essa é a hipótese
testada no presente texto. Na dança, é pela dramaturgia que se entende a viragem
15 Localizada no centro da cidade de Fortaleza, a Escola Pública de Dança da Vila das Artes é um equipamento
público municipal de referência nacional no que se refere à formação em dança para crianças e
adolescentes. O caminho formativo de seu Curso de Formação Básica em Dança conta com a duração de
seis anos e possui um projeto político pedagógico implicado na compreensão dos fazeres contemporâneos
em dança, buscando promover e incentivar a criação de jovens artistas na cidade. Com carga horária de
mais de 2.000 h/a, o curso atende principalmente, crianças da rede pública de ensino e com baixa renda.
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ético-política da estética.
Dentre os cinco cursos de formação existentes hoje em Fortaleza, um, como
visto, está ligado ao poder público municipal, dois, por sua vez, ao poder público
estadual e dois, ao federal. À exceção da Formação Básica da Escola Pública de
Dança16, instância citadina, os estudos sobre a dramaturgia da/na dança aparecem
como componente curricular nos currículos de todos os outros, sendo eles: Cursos
de Bacharelado e de Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará
(UFC); Curso Técnico em Dança (CTD) da Porto Iracema das Artes Escola de
Formação e Criação do Ceará; Curso Técnico em Dança (CTD/CCBJ) da Escola de
Cultura e Artes (ECA) do Centro Cultural Bom Jardim CCBJ. São quatro contextos
distintos de atuação, cada qual ao seu modo, que reservam espaço nos estudos e
fazeres dramatúrgicos para o exercício do questionamento e da criação de sentido
nas danças que por eles passam.
Pontuar esse aparecimento artístico-pedagógico da dramaturgia da/na dança
traz a reflexão sobre como ela pode ser compreendida enquanto ponto de possível
virada de chave no processo discente. Isso parece acontecer quando o regime de
investigação proposto nas relações de ensino-aprendizagem exercita um regime
de
perguntação
acerca do sentido das/nas produções em dança (criadas ou em
processo de criação) levadas para a sala de aula. Trabalhar nessa perspectiva
reverbera em camadas discursivas que são sociais, políticas e culturais das
pessoas que ali estão. O que, por sua vez, reverberam nas obras, mais
especificamente nos estados de corpo (Louppe, 2012) em condição de
performance. Ao investirem nos fazeres sensíveis do corpo, atentas à produção de
acontecimento na dança, as/os discentes são atravessadas pela dramaturgia, não
como um fazer externo, instrumental ou técnico. A noção de ação (drama) é aqui
implicada, porém, desmente qualquer fenomenologia da consciência em favor de
uma metafenomenologia do corpo (Gil, 1996). Entremeada no tecido
desembainhado do vivido, a experiência do corpo torna-se experimentação de
corpo, não é algo que tão somente se vive, mas que se age.
16 São componentes curriculares: Técnica Clássica; Abordagens Contemporâneas em Dança; Elementos da
Música; Danças Tradicionais e Populares; Danças Urbanas; História da Dança; Ateliê de Repertório; Introdução
à Análise do Movimento; Composição Coreográfica; Trabalho de Conclusão de Curso.
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Apostar nessa direção artístico-pedagógica considera caminhar na direção do
investimento em outras camadas da relação entre corpo e coreografia nas
criações discentes, que até ali talvez não fossem vislumbradas na relação entre
corpo e coreografia; relações que agora ressoam a discursividade do movimento,
tomando-o enquanto modo de estar e agir no mundo: ética na poética. Acerca
dessa aposta, a dramaturgista Synne K. Behrdt (2016, p. 253) diz: “Essa conexão
com o discurso produz uma grande variedade de novas abordagens na dança e
pressiona as concepções clássicas de coreografia, colocando em primeiro plano o
conteúdo e o debate crítico acerca do trabalho”.
Nas Graduações em Dança da UFC, o trabalho acima mencionado se realiza
no componente curricular "Dramaturgias da dança: passagens", obrigatório para os
cursos de Bacharelado e de Licenciatura, que surge no quinto semestre, de um
total de oito, da trajetória discente. no caso dos Cursos Técnicos em Dança,
tanto da Porto Iracema das Artes quanto do Centro Cultural Bom Jardim, o
componente curricular "Dramaturgia da dança I" aparece no início do segundo de
dois anos de formação. São informações curiosas, pois permite pensar que a
dramaturgia da dança aparece exatamente no meio do caminho do percurso
artístico discente. Cabe aqui, uma paráfrase do poema de Drummond (1930, s/p):
no meio do caminho tinha uma dramaturgia da dança! Mas por qual motivo seu
aparecimento se coloca justamente no meio da coisa? Ao se pensar
dramaturgicamente esses percursos formativos, pode-se intuir que haja uma
aposta na construção de sentido a ser criado, agora, não mais sobre a pessoa que
por eles trafega, mas com a pessoa que os coconstroem. O caminho passa por
um tropeço (Lepecki, 2016) crucial que pode agregar, então, como explicita Sandra
Meyer (2010): a incerteza e a instabilidade natural das coisas à aprendizagem.
É um empuxo que, muitas vezes, pode ser pensado como indo de encontro
à coreografia: um choque, uma batida, ou mesmo uma queda capaz de desorientar
o jogo compositivo sensível do corpo que dança. Deste choque, busca-se, no fazer,
um exercício que, segundo Berhrdt (2016), se dê a reconhecer a dramaturgia como
esse espaço de trabalho onde se testam os limites da criação no que ela pode
perceber, imaginar e articular. Intui-se, então, que sua presença em meio às
trajetórias formativas, e mais precisamente no meio delas, atue como um possível
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lugar de articulação/composição entre a desestabilização das certezas relativas à
criação em dança e a ampliação das bordas dos processos de criação, que alarga,
portanto, o campo de possíveis do fazer coreográfico. Dança como campo
expandido é um conceito que ressoa Rosalind Krauss (1984) e que será ouvido
incessantemente nas po-éticas dançadas quando a dramaturgia bate à sua porta.
Tanto no âmbito das graduações quanto no dos cursos técnicos em Dança
um modo de operação do ensino-aprendizagem nos componentes/módulos de
dramaturgia da dança agenciados pela dupla de autores deste texto que aqui cabe
nota. Nesse trabalho, procura-se fazer ressoar a firme posição da dramaturgista
Cvejic (2016, p.103):
Minha suposição é de que podemos começar a falar sobre a
dramaturgia em dança […] quando aceitarmos que ela não é uma
necessidade, que um(a) dramaturgista de dança não é necessário/a. Em
vez de estabelecer uma definição normativa, gostaria aqui de explorar
funções, papéis e atividades relacionados à dramaturgia como
experimento, quando o/a dramaturgista torna-se o suplemento
constitutivo de um modo experimental de criação um(a) cocriador(a)
de um problema.
Assim, as aulas de dramaturgias da dança ministradas nesses contextos não
se colocam como expositivas de um conteúdo que apontasse e afirmasse o que
é (de fato) a dramaturgia da dança, ou que abordasse uma suposta história linear
do dramaturgismo desde a sua gênese ocidente-orientada. Então, por onde
começar? Essa é questão filosoficamente (des)orientada, a mais grave, a mais
interessante, e a mais desconcertante que a dramaturgia nos apresenta.
Noemi Jaffe (2016), em seu
Livro dos começos
17, nos pistas da resposta
adequada a essa pergunta: “por qualquer começo”. O começo qualquer pistas
sobre o compromisso ético tomado de antemão de tomar a dança de fato como
campo expandido e que, por isso, desiste sempre e a cada vez, a cada encontro,
de definir o que a dança é e consequentemente do que ela deva ser. Assim,
comportamentos compositivos podem ser desenvolvidos em qualquer meio,
materialidade ou suporte, sendo a cena e a videodança os mais recorrentes nos
17 Este livro nos foi apresentado por Andrei Bessa e trazido ao grupo de estudos inspirando e tornando
operativo o modo como compúnhamos dramaturgicamente os encontros sobre dramaturgia no primeiro
ano de funcionamento do grupo de estudos ‘Dramaturgia: o que quer e o que pode o corpo?’.
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contextos formativos aqui abordados. Instalação, fotografia, aula, intervenção
urbana, trabalhos in situ, desfile de modas, performance, conferência dançada,
redação de manifestos, até mesmo posts do/no Instagram, etc. são passíveis de
interseccionar a criação em dança. Assim, perguntar-se sobre o começo significa
denegar a gênese em favor da genealogia, necessariamente crítica, do começar.
Todo começo já começou.
Essa tomada de posição é sobretudo política e de grande importância para o
trabalho proposto, pois não trata-se de uma exposição de conhecimentos, mas de
uma composição de co-movimentos, um por-com ou um pôr em contato que
traz o metálogo de Jussara Xavier e Sandra Meyer (2016) –, um jogo de relações
onde cada qual compõe com cada outro/a numa mutualidade duplamente
compartilhada. Tenta-se estabelecer uma escuta sensível à dramaturgia da aula
tecida a partir dos processos de criação do/a discente. Nesse processo, questões
imanentes ao seu próprio movimento de fabulação sobre as materialidades com
as quais trabalha – no caso cênico, por exemplo, a dramaturgia da luz, do espaço,
do figurino, do corpo, etc. – são propostas, entrelaçadas, percebidas.
Insistir nesta política formativa em dança na sala de aula convoca pensar a
compreensão da dramaturgia da dança também como um processo de fabulação
crítica na e da criação. Neste modo operativo do fazer (já) fazendo, coloca-se no
campo do visível, por sua vez, as questões que emergem no/do próprio processo
de criação discente e que até ali não eram vistas por eles/elas devido ao seu grau
de autoimplicação com o trabalho. É um movimento que requer certo
deslocamento para as bordas de fora do processo para poder visualizar as
dimensões éticas e políticas até ali não necessariamente dimensionadas na
ocupação puramente estésica do processo. São dimensões de criação e
articulações de sentido que carregam o corpo que dança em sala de aula, mas
que são ao mesmo tempo por ele carregadas. Neste trabalho de dupla banda, a
perguntação dramatúrgica ou dramaturgista aponta para o exercício crítico acerca
das articulações de sentido que se precipitam dentre as camadas compositivas,
ou planos de composição (Lepecki, 2012), nesse processo de formação, intenso
processo de vida, pelo qual passam as pessoas. Assim, podemos ir ao encontro
do que propõe André Lepecki para quem:
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[...] o exercício de questionamento que a dramaturgia vai estabelecer para
cumprir sua promessa de colaborar com a composição não é entre
escrita e ação física. Na verdade, o que nutre a dramaturgia para a dança
e na dança é a tensão estabelecida entre múltiplos processos de
pensamentos não-escritos, difusos e errantes e múltiplos processos de
atualização desses pensamentos (Lepecki, 2016, p.64).
Pensar nestes processos em sala requer estar em estado de atenção às
demandas sensíveis diante das atualizações desses pensamentos de criação, uma
vez que os exercícios de criação são apresentados e reapresentados repetidas
vezes pelos/as discentes como uma espécie de ateliê ao longo do tempo em que
se estende o componente curricular. O intuito é que, pelo exercício do seu fazer
em dança e a partir do trabalho no seu
capital corporal
(Gadelha, 2016), possam
emergir questões sobre dramaturgia não somente específicas aos trabalhos, mas
que provoquem e apontem discussões de uma crítica da própria durante o
processo de criação.
Partir dessa perspectiva dramatúrgica requer pontuar uma questão: quando
a dramaturgia da dança emerge nos projetos políticos pedagógicos aqui
convocados é porque a dramaturgia da dança é algo que se ensina? A resposta é
não. Por uma série de razões e de tomadas de posição, dramaturgia não se ensina.
Não um suposto manual de instruções que instrui como fazer uma boa
dramaturgia para um dado trabalho de composição (muito embora curadore/as
de importantes festivais de dança contemporânea depositem sobre o/as
dramaturgistas uma tal aposta). Dramaturgia não se ensina, pois o olhar discente
que, em sala de aula, coloca-se diante do/a professor(a), num grau de expectativa
sobre um lugar pré-estabelecido ou um território consolidado, ou ainda um
passo a passo de como pensar corretamente a construção de sentido na criação,
é insistentemente desinvestido. As pedras dramatúrgicas no meio dos caminhos
que se bifurcam, trifurcam, multifurcam em sala fazem o corpo tropeçar e a ação
do tropeço convoca-o a atentar-se a essa política do chão, que é também uma
política cognitiva, tal como proposto por André Lepecki (2013, p.77), aqui
convocado novamente.
A política do chão nada é mais do que isto: um atentar agudo às
particularidades físicas de todos os elementos de uma situação, sabendo
que essas particularidades se coformatam num plano de composição
entre corpo e um chão chamado história. [...] os modos como as danças
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fincam seus pés no chão que as sustentam; e como diferentes chãos
sustentam diferentes danças transformando-as, mas também se
transformando no processo.
Trabalhar pela via do processo de criação nos espaços das graduações e dos
cursos técnicos em dança de Fortaleza/CE é provocar o corpo, para a partir dele,
nele e por ele falarmos de construção de sentido. Trazer a palavra aposta, pela
perspectiva da dramaturgista Bojana Cvejic, é uma imagem pertinente aos fazeres
docentes em sala de aula. Trata-se de uma aposta no exercício de experimentação
do corpo que dança, esse mesmo que está sendo no momento do seu fazer,
pois que “na dramaturgia, praticamos especulação. Somos apreendidos pelas
coisas antes de compreendê-las. Aprendemos a fazer e dizer ‘vamos pensar
novamente’, pois não sabemos agora, mas teremos sabido até lá” (Cvejic, 2016,
p.108). Estaríamos, a cada aula, levantando uma aposta no futuro da criação, ou
parafraseando Luciano Bendin Costa (2017), propondo dançar como quem imprime
um futuro estranho ao mundo.
Como aposta de futuro, um exercício docente em trabalhar a dimensão
da dramaturgia e situá-la na estreita relação com o repertório estético da pessoa
discente. Nesse percurso, compreende-se o jogo ético-político precipitado nas
relações formativas em sala de aula no que diz respeito, especificamente, ao modo
de trabalho em dramaturgia da dança exercido nas graduações em dança da UFC
e dos Cursos Técnicos em Dança: colocar em ação o trabalho dos/nos sentidos
produzidos por aquilo que faz parte do repertório estético de quem dança, o
que se realiza antes ou fora dessas instituições e que, muitas vezes, é escondido
ou escamoteado pela firme, mesmo que equivocada, crença discente de que suas
danças não atendem à suposta demanda formal do componente curricular.
Acessar esse lugar requer investimento de tempo na relação docente-
discente em sala de aula: uma relação de parceria e confiança sempre ameaçada.
Trata-se de um trabalho que não ocorre de um dia para o outro, muito menos nas
primeiras aulas. Não se sabe ao certo quando essa aposta irá de fato operar
sentido da criação, mas há, a cada aula, uma dimensão de futuro colocada em
jogo a cada vez que se discutem as práticas dramatúrgicas no seu próprio
exercício. É interessante pensar em como essa virada de chave ético-política na
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estética ocorre também numa breve caminhada para tomar um café no intervalo
da aula, tornando a dimensão dramatúrgica como um acontecimento de sentido
(percebido) e acontecente também fora da sala.
Certo dia, ao sair de um intervalo no componente de Dramaturgia da Dança
dos cursos de dança da UFC, ainda agora em 2023.1, conversava com um aluno
sobre seu processo apresentado em aula. Era um trabalho cuja composição
flertava com a improvisação de movimentos, a pesquisa de gestualidades e uma
possível interação com o público. Até aí, nada mais vago. Pois é. O processo de
criação fora apresentado algumas vezes, recebeu comentários da turma e dos
professores com o intuito de fazer da obra um ateliê coletivo de perguntação-
composição dramatúrgica. A aposta, nesse investimento, é que o/a discente
perceba cada vez mais a dimensão daquilo que o seu processo propõe. Ao vê-lo
dançar, mesmo sabido e conhecido todo o investimento seriamente empregado
na proposta cênica, intuía que não era muito bem aquilo que aquele aluno desejava
dançar. Sim, a dramaturgia também é intuitiva. Alguma coisa pairava sobre aquela
mostra de processo em sala de aula que evidenciava que havia algo de outra
ordem discursiva do movimento que queria chegar.
Foi, entretanto, numa conversa no café, logo após algumas de suas
apresentações, que ouvi: "É porque eu tenho uma drag chamada Alú Aqua e acho
que é isso que eu quero fazer! Queria saber se poderia trazer para próxima aula."
Ao ouvir a colocação, pensei e disse: "Bingo!". Neste momento, a dramaturgia
operou no sensível da relação, compôs sentidos no sensível do discurso e o mais
importante desse movimento: a tomada de posição adveio do próprio aluno.
ele poderia trazer sua proposta estética para a sala de aula no sentido de fazer de
sua drag, uma po-ética dramatúrgica.
Considerações finais
Ao trazer o exemplo da
Drag
deste aluno assim duplamente que ele/ela se
define) e sua tomada de posição dramatúrgica, logo, discursiva do corpo, é que
podemos aqui pensar também numa relação ética performativa da/na estética.
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Pensar ética como composição performativa pouco ou nada tem a ver
com a passagem de um conteúdo moral de sentido, entretanto tal
composição está ligada a uma operação e à produção de um efeito. A
ética performativa não tem seu referente fora ou antes de si, mas
transforma uma situação por sua atuação (Alencar, 2012, p.53).
Alú Aqua é um rico exemplo do que acontece nesse trabalho em sala de aula.
O investimento dramatúrgico no capital corporal discente, porém, perpassa por
inúmeras circunstâncias e contextos nos quais essas danças acontecem. Seja no
funk
, no brega
funk
, na quadrilha junina, no
k-pop
e tantas outras danças, quando
elas aparecem em sala nos componentes de dramaturgia da dança, o trabalho
realizado é um regime de perguntação sobre o sentido do seu fazer no seu fazer.
Nestas relações de ensino-aprendizagem que foram aqui tematizadas, não
se trata, pois, da apresentação e da apreciação do processo apresentado sem que
haja nele um processo crítico vivido pelo/a discente no contexto de sala de aula.
O que acontece é que, ao trazerem suas danças, um campo de tensionamento
opera pelas constantes perguntas que emergem no mesmo momento em que
suas danças se apresentam. A dramaturgia, neste caso, ocupa-se em dar atenção
aos elementos ora visíveis, ora invisíveis, aos discursos que até ali não eram
vislumbrados, aos problemas que até ali permaneciam intocados. De certo modo,
um lugar confortável e quase dado para essas danças acontecerem nos seus
contextos de origem.
[...] a ética funcionará, e aqui encontramos a importância do performativo
na noção de coreografia social, tal qual um espaço onde as possibilidades
sociais são ensaiadas e executadas. Logo, ela nos propõe entender o
agenciamento histórico da estética como algo não meramente formado,
mas também formador da dinâmica histórica (Alencar, 2012, p.55).
Em sala, as experiências/experimentações realizadas, atravessadas pelo
dissenso da perguntação dramaturgista, compõem uma tessitura sensível com o
movimento dançado do/as discentes, ao se perceberem corpos e corpas que
dançam n(o) mundo (em) suas po-éticas.
Referências
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Recebido em: 30/06/2023
Aprovado em: 09/09/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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