Dançar intempestivamente - Notas sobre micropolíticas do movimento
Ana Rita Nicoliello
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-22, jul. 2024
embora toda dança, afinal, seja coreográfica nesse sentido, inclusive a
improvisação. Como nos lembra Juliana Moraes (2019, p. 371):
Ao pensar coreografia como uma disposição à composição corpo-espaço-tempo
para além dos limites tradicionais, obras de fora do circuito da dança passaram
a partilhar do conceito, assim como atividades situadas além dos campos
artísticos, como atesta a incorporação do conceito de coreografia pela
computação (coreografia de serviços em
web
consiste em modelos de
orquestração de dados, por exemplo).
Se é assim, obras de artes visuais, como performances e instalações que
lidam com a orquestração e composição de corpos, sejam dos artistas ou dos
próprios espectadores, possuem um componente coreográfico (Moraes, 2015). É
coreográfico o movimento dos pedestres nos centros urbanos, os trajetos
costumeiros, os deslocamentos das populações sobre a superfície da Terra, as
viagens, as migrações, as expatriações, as deportações. São coreográficas as
manifestações, os ajuntamentos e as ocupações; enfim, todo gesto e movimento
humano podem ser compreendidos por um viés coreográfico, até mesmo aqueles
de um corpo parado – talvez essa tenha sido a grande descoberta da dança pós-
moderna14. E indo além, podemos arriscar dizer que mesmo os movimentos não-
humanos podem ser tomados numa perspectiva coreográfica. Não é a toa que a
obra
Birds
, de David Hinton, foi premiada com o
Best Screen Choreography
em
2000 no festival de videodança
IMZ Dance Screen
.
De todo modo, se compreendemos a coreografia como com-posição da
rítmica dos lugares, fica mais claro porque insistimos em pensar a íntima
imbricação entre dança e política. André Lepecki (2012), invocando Andrew Hewitt,
salienta que essa relação não é apenas metafórica, mas material. A coreografia,
segundo esses autores, é a “matéria primeira, o conceito que nomeia a matriz
expressiva da função política”, justamente, porque eles entendem a política, não
como um conjunto ideológico de negociações para a construção de um suposto
bem comum, mas como a “disposição e a manipulação de corpos uns em relação
aos outros” (Hewitt, 2005, p. 11,
apud
Lepecki, 2012, p. 46), ou como “intervenção
no fluxo de movimento e nas suas representações” (Lepecki, 2012, p. 56). A política,
o que ela faz efetivamente, é orquestrar, coordenar, manipular, determinar o
14 Sobre a questão da pausa e para uma crítica da definição da dança como arte do movimento,
cf.
Lepecki
(2006) e Penuela (2018).