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A dramaturgia de um puerpério: uma
videodança a partir da Técnica Klauss Vianna
Jaqueline Barbosa Pinto Silva
Jussara Miller
Para citar este artigo:
SILVA, Jaqueline Barbosa Pinto; MILLER, Jussara. A
dramaturgia de um puerpério: uma videodança a
partir da Técnica Klauss Vianna. Urdimento Revista
de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 48,
set. 2023.
DOI: 10.5965/1414573103482023e0301
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A dramaturgia de um puerpério: uma videodança a partir da Técnica Klauss
Vianna1
Jaqueline Barbosa Pinto Silva2
Jussara Miller3
Resumo
Este artigo apresenta o processo criativo e a construção da dramaturgia da
videodança
parTida
, por meio da Técnica Klauss Vianna (TKV) de dança e educação
somática. A videodança foi realizada por ambas as autoras, uma que dança em
processo de maternagem e a outra que a orienta no processo de criação. O processo
criativo na TKV considera a processualidade como princípio, a improvisação como
técnica e a labilidade como característica da coreografia. A dramaturgia emerge a
partir da mobilidade e combinação desses fatores e dos demais elementos cênicos,
incorporando a vivência singular de cada corpo que dança. A videodança revela a
partida lenta de um corpo que foi parido de outro, e o aprendizado de ambos os
corpos a viverem partidos. A pesquisa criativa em TKV se mostra aqui como uma
ação política e a revela como metodologia possível para um artivismo materno.
Palavras-chave
: Videodança. Técnica Klauss Vianna. Processo criativo. Dramaturgia.
Arte materna.
The dramaturgy of a puerperium: a videodance based on the Klauss Vianna
Technique
Abstract
This article presents the creative process and the construction of the dramaturgy of
the videodance
parTida
based on the Klauss Vianna Technique (TKV) of dance and
somatic education. The videodance was performed by both authors, one who dances
in the process of mothering and the other who guides her in the creation process.
The creative process at TKV considers procedurality as a principle, improvisation as
a technique and lability as a characteristic of choreography. Dramaturgy emerges
from the mobility and combination of these factors and other scenic elements,
incorporating the unique experience of each body that dances. The videodance
reveals the slow departure of a body that was born from another, and the learning
of both bodies to live apart. The creative research in TKV is shown here as a political
action and reveals it as a possible methodology for a maternal artivism.
Keywords
: Videodance. Klauss Vianna Technique. Creative process. Dramaturgy.
Maternal art.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Brisa Morena Ribeiro Matos, graduada e
licenciada em Teatro pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), e por Arina Fonseca Alba, mestre em
tradução pela École Supérieure d'Interprètes et de Traducteurs (ESIT) de l’Université Sorbonne Nouvelle, e
graduada em Letras pela Universidade Federal da Paraíba.
2 Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Ciência Política (UnB). Graduada
em Direito e em Gestão de Políticas Pública (UnB). jaqueline.bps@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9143808459793125 https://orcid.org/0009-0006-4728-5295
3 Doutora em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Artes (Unicamp). Graduada
em Dança (Unicamp). Professora da graduação em Dança (Unicamp), e da pós-graduação lato sensu em
Técnica Klauss Vianna na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP).
contato@salaodomovimento.art.br
http://lattes.cnpq.br/7418721784948015 https://orcid.org/0009-0005-3382-4940
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La dramaturgia de un puerpério: una videodanza basada en la Técnica Klauss
Vianna
Resumen
Este artículo presenta el proceso creativo y la construcción de la dramaturgia de la
videodanza
parTida
a partir de la Técnica Klauss Vianna (TKV) de danza y educación
somática. La videodanza fue realizada por ambas autoras, una que baila en el
proceso de maternidad y la otra que la guía en el proceso de creación. El proceso
creativo en TKV considera la procedimentalidad como principio, la improvisación
como técnica y la labilidad como característica de la coreografía. La dramaturgia
surge de la movilidad y combinación de estos factores y otros elementos escénicos,
incorporando la experiencia única de cada cuerpo que baila. La videodanza revela la
lenta partida de un cuerpo que nació de otro, y el aprendizaje de ambos cuerpos a
vivir separados. La investigación creativa en TKV se muestra aquí como una acción
política y la revela como una metodología posible para un artivismo maternal.
Palabras clave
: Videodanza. Técnica Klauss Vianna. Proceso creativo. Dramaturgia.
Arte materno.
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Maternidade, artes do corpo e pandemia
Nossa história acaba por se
inscrever no nosso corpo
(Angel Vianna, em prefácio de Miller, 2012, p. 9)
Este trabalho faz parte da pesquisa de doutorado em Artes Cênicas na
Universidade de Brasília/UNB sobre o artivismo materno na pandemia. três
reflexões importantes que embasam essa pesquisa.
A primeira é que a maternidade consiste em uma perspectiva social própria,
em relação à perspectiva de gênero (Valente, 2022). Não obstante, também
consiste em um tema interseccional, não podendo ser desvinculado de outras
perspectivas, sobretudo o próprio gênero, raça, classe, deficiência, idade (Biroli,
2015; Zanello
et al
, 2022).
A segunda reflexão é que as artes, sobretudo corporais, como dança,
performance e teatro, contribuíram de maneira significativa para a emergência de
novos atores sociais e novas subjetividades, entre eles as mulheres e as mães, e
para a crítica da representação tanto cênica quanto política (Carlson, 2017). As
mães são representadas até hoje de forma romantizada e sexualizada pela mídia
(Sarlo, 2018). Principalmente, desde a década de 1960, junto à segunda onda
feminista4, a arte tem questionado a maternidade como lugar de opressão,
submissão à sociedade patriarcal, sendo o papel de mãe incompatível com outros
papéis sociais, e a posicionado como maternagem,
locus
de agência, colocando na
agenda políticas públicas que modificassem as estruturas socioeconômicas para
que se garantisse às mães e, consequentemente, às crianças existência digna
(Macêdo, 2017).
A exemplo, podem ser citados os trabalhos do coletivo
Mother Art
, formado
em 1973 por Suzanne Siegel e outras artistas mães que se uniram para confrontar
a rejeição da maternidade naquele contexto, e realizaram séries de performances
em que abordaram explicitamente tarefas domésticas e maternas, como o
4 A segunda onda feminista é marcada pela revolução sexual a partir da criação da pílula anticoncepcional, da
ampliação do direito de divórcio e do avanço do movimento LGBT (lésbicas,
gays
, bissexuais, transexuais)
que multiplica as possibilidades de configuração de famílias (Ribeiro
et al
, 2021).
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Laundry Works
(1977)5 e o
Woman’s Building
(1973-1991)6. Também vale mencionar
Mierle Laderman Ukeles, com o trabalho
Manifesto para a Arte de Manutenção
7;
Susan Hiller, com o trabalho
Ten Months
(1977-79)8; Mary Kelly, com
Post-Partum
Document
9; LaToya Ruby Fraizer, com
Notion of Family
10; e Zineb Sedira, com
MothernTongue
(Língua Materna)11.
No Brasil, cabe citar também alguns exemplos como Ligya Clark, com a
instalação
A Casa é o Corpo: Penetração, Ovulação, Germinação, Expulsão
(1968);
Lia Robatto, com a peça
Dona Cláudia
(1978); e Anna Muylaert, com o filme
Que
horas ela volta?
(2015). Esses trabalhos, embora sejam muito distintos em tempos,
formas e conteúdos, em uma análise da história da arte feminista e da história do
artivismo político, possuem os seguintes pontos comuns: uma inovação estética
nas artes do corpo, a partir da subversão no processo criativo, do uso da
comicidade ou ludicidade para abordar dramas e da promoção de interação com
o público, chamando-o à ação e à atividade; um trabalho crítico e um engajamento
político a partir da experiência individual de maternidade das autoras, com toques
de autocura e utopia, remediando o passado a partir da imaginação de outras
realidades possíveis; a promoção de visibilização da maternidade e/ou do cuidado
como questão afeta a todas as pessoas em algum momento de suas vidas e das
mulheres por trás, ou melhor, à frente desse papel e cujas vidas também
5 Performances
site-specifc
em lavanderias de Los Angeles com duração de um ciclo completo de lavagem,
em que as artistas expunham seus trabalhos e poesias em varais e discutiam política com as mulheres que
estavam na lavanderia.
6 Organização sem fins lucrativos fundada com o objetivo de criar um espaço experimental para promoção
da formação e produção artística de mulheres fora das instituições artísticas tradicionais.
7 Propõe o rompimento dos limites entre a sua vida cotidiana como mulher e mãe e seu papel como artista,
por meio de intervenções diretas no contexto social e urbano.
8 Instalação fotográfica com texto, em que Hiller registrou diariamente tanto as mudanças no seu corpo
quanto estados psicológicos durante a gravidez, por meio de fotos e escrita em diário. São dez imagens
composta cada uma de 28 fotografias correspondendo a 28 dias (relação com ciclo lunar) e mostram o
mesmo enquadramento de close-up da barriga gestante.
9 Livro produzido em Londres entre 1973 e 1978 e publicado em 1983, em que Kelly documentou sua relação
diária com seu filho.
10 Livro com autorretratos da família de Frazier em sua cidade natal, Braddock, Pennsylvania, em que ela
explora a relação íntima com sua mãe e sua avó, Grandma Ruby (1925-2009), refletindo também problemas
como o racismo e injustiça econômica que enfrentam naquele contexto.
11 Instalação com imagens e depoimentos de três gerações da família da artista, representadas por ela mesma,
sua mãe e sua filha, cada uma falando sua ngua materna árabe, francês e inglês. Revela como as
diferenças e conflitos culturais entre elas refletem complexos problemas políticos e históricos.
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importam; e o fato de serem obras produzidas por mulheres mães, que, embora
todas brancas, se apropriam dos instrumentos de produção e os compartilham, a
partir do seu lugar de privilégio com outras mulheres para tratar do tema do
cuidado de forma interseccional.
Por fim, a terceira reflexão é que embora a maternidade seja um tema antigo
como mencionado anteriormente, a pandemia o trouxe à tona com força e com
novas questões. Não raro as videoconferências, ligações, áudios, que tanto fizeram
parte da nossa rotina de comunicação e trabalho em isolamento, eram invadidos
por vozes, choros e gritos de bebês e crianças, antes confinados em creches e
escolas, e que de repente nos lembraram ali naquela ocasião que eles existiam. E
mais, nos lembraram que o cuidado deles, quando ficam exclusivamente ou
majoritariamente a cargo de mães, avós ou outras mulheres da rede de apoio das
famílias (Zanello
et al
, 2022), aprofunda as injustiças sociais existentes e
impedem a efetividade da democracia (Biroli, 2015).
A videodança
parTida
foi feita nesse contexto, por uma doutoranda com uma
bebê no colo, por meio de videoconferências. Iniciada em abril de 2022 e finalizada
em março de 2023, seu processo criativo, por meio da Técnica Klauss Vianna
(TKV), alterou significativamente toda a pesquisa de doutorado e de vida, que antes
era sobre arte e política e passou a ser em arte, política e maternagem. Este texto
apresenta o processo de construção da dramaturgia dessa videodança nessa
situação, a partir da TKV, gestada, parida e criada no corpo, junto com a bebê.
O processo criativo e a dramaturgia na Técnica Klauss Vianna
A Escola Vianna consiste no legado deixado por Klauss Vianna, Angel Vianna
e, o filho deles, Rainer Vianna. De acordo com Miller (2012), Klauss e Angel
desenvolveram uma pesquisa própria de ensino da dança e no pensamento do
corpo nas artes cênicas em geral, com diversas inovações, tais como: o trabalho
dos espaços articulares e apoios nos pés sem sapatilhas, o trabalho técnico
corporal com enfoque somático resultando na percepção e na consciência do
movimento, o trabalho centrado no indivíduo e suas percepções, relações e
conhecimentos, o desapego do espelho e do externo como referência, a busca da
dança e da expressividade de cada um, a relação de pesquisa de movimento
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inclusive na vida cotidiana, a relação não hierarquizada entre professor e aluno,
entre outras.
Para eles, dançar é escutar o corpo, um modo de existir:
Um olhar para dentro, para que o movimento se exteriorize com sua
individualidade, traçando um caminho e dentro para fora, em sintonia
com o de fora para dentro e com o de dentro para dentro, criando assim,
uma rede de percepções (Miller, 2012, p. 135).
Isso configurou para a dança contemporânea brasileira, a partir dos anos de
1990, uma nova dramaturgia corporal, com construção do corpo que Miller (2012)
chama de “corpo vivo ao vivo na cena”: "o momento presente da cena ficou mais
evidenciado, muitas vezes com estratégias de improvisação, surgindo relações
mais permeáveis entre dança, teatro e performance (Miller, 2012, p. 47-48).
Rainer Vianna realizou a sistematização da TKV com a colaboração de sua
esposa Neide Neves. Essa pesquisa, resultante da sistematização, foi aprofundada
de forma acadêmica com o mestrado de Jussara Miller realizado na Unicamp, o
qual apresentou em caráter inédito o registro da sistematização da TKV resultando
na publicação do livro
A Escuta do Corpo: sistematização da Técnica Klauss Vianna
(Miller, 2007), o que se caracterizou como uma colaboração à própria
sistematização.
Alguns princípios da TKV são: a escuta do corpo; autonomia;
autoconhecimento; respeito à singularidade; processualidade; unidade corpo-
mente; não separação entre técnica e criação; referência anatômica para a
pesquisa do movimento; técnica como investigação; repetição sensível e não
mecânica; professor como provocador/facilitador e não como modelo; aula como
pesquisa; dança não dissociada da vida (Miller, 2012).
Esses princípios são vivenciados em três etapas: Processo Lúdico, Processo
dos Vetores e Processo Criativo. A denominação “processo” o caráter de
continuidade, como de fato essas ideias são incorporadas e reincorporadas a cada
dança, a cada contato com os tópicos corporais. A técnica é um meio, nunca um
fim em si mesma.
No Processo Lúdico, o corpo é despertado, provocando a transformação dos
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padrões de movimento por meio de sete tópicos corporais: presença, articulações,
peso, apoios, resistência, oposições e eixo global. É o acordar do corpo pelos “cinco
sentidos especiais, mediante os quais nos relacionamos com o mundo e, ao
mesmo tempo, desenvolvemos e aguçamos o sentido cinestésico” (Miller, 2012, p.
74). Esse sentido, também chamado de propriocepção, compreende a percepção
do corpo no espaço e no tempo e trança informações de ordem não apenas
articular e muscular, mas também táctil e visual, consciente e inconsciente, e traz
a percepção do caminho do movimento, guiada por um sentido interno, e não
exteriorizada (Miller, 2012).
No Processo dos Vetores é abordado o trabalho das direções ósseas que está
mapeado em oito vetores de força distribuídos ao longo do corpo: metatarsos,
calcanhares, púbis, sacro, escápulas, cotovelos, metacarpos e sétima cervical. A
anatomia é utilizada como “recurso para concretizar estratégias de atuação
investigativa do corpo”:
O sistema ósseo-esquelético é o eixo de investigação do corpo sentido
em sala de aula e amplia a pesquisa para a reverberação nas cadeias
musculares, ou seja, cadeias musculares específicas são acionadas a
partir de vetores e de direcionamentos ósseos específicos. Logo, a
anatomia sensível guia o corpo dançante em relação com a força da
gravidade, com o espaço, com o outro, numa gama infinita de escuta,
percepção e fruição da experiência no diálogo constante do interno com
o entorno (Miller, 2012, p.75-76).
O Processo Criativo é resultante das etapas anteriores, pois nesta etapa são
explorados e aprofundados os tópicos corporais e vetores trabalhados
anteriormente utilizando-os como temas para a criação.
As autoras se conheceram em abril de 2020, na condição de professora e
aluna da TKV. Em abril de 2021, iniciaram o processo didático e em abril de 2022
começaram o processo criativo. Nesse período de dois anos, a autora aluna
ingressou no doutorado, engravidou, pariu e deu continuidade às práticas da
academia e da dança. Logo, a TKV atravessou todo esse período de gestação e
puerpério e de pesquisa em dança. Esse histórico é mencionado para enfatizar a
inter-relação entre todos esses Processos - Lúdico, dos Vetores e Criativo e o
imbricamento na TKV entre técnica e criação:
A técnica no modo proposto aqui não desvincula o aprendizado de sala
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de aula do processo criativo; a relação entre ambos os aspectos é direta
e acontece na prática regular do aluno-pesquisador. O processo
técnico tem a mesma flexibilidade e necessidade de investigação que o
processo de criação. A técnica não se fecha em si, mas permite acessar
o corpo para a experimentação de erros e acertos com o foco no
processo investigativo, e não somente no produto artístico, resultando
assim num entrelaçamento entre técnica e criação (Miller, 2012, p. 53).
Nesse sentido, a coreografia emerge de um processo investigativo que não
induz a uma repetição mecânica de passos, mas sim a um caminho de movimento
pautado num mapa coreográfico que possibilita diferentes trilhas a partir da
prática da improvisação. É importante lembrar que "no Brasil, Klauss Vianna
inaugurou o uso de improvisação em cena, procedimento principal do processo
criativo exercido pela Escola Vianna" (Miller, 2012, p.78). A TKV, por meio da escuta
do corpo vivo e presente, de reconhecer o que faz enquanto se faz, é em si uma
prática de improvisação (Miller, 2012).
A TKV, assim, propicia mais que a criação de uma coreografia ou uma cena,
mas “um estado de dança”, em que o movimento aparece como “vetor de
emoções”, não como uma representação mas como “consequência das memórias
e sensações que se instauram e instabilizam o corpo em moção” (Miller, 2012,
p.122).
Nesse sentido, os diferentes movimentos, experimentados por meio da
improvisação a partir do estudo dos tópicos corporais, definem e redefinem a
coreografia a cada repetição sensível, que por sua vez, começam a esboçar a
dramaturgia, sugerindo àquela dança incorporada e reincorporada a cada instante
outros elementos músicas, imagens, roupas, ambientes, textos, entre outros
que contaminam e transformam a coreografia, dando corpo à cena. A dramaturgia,
portanto, emerge, desse processo, de forma fluida, maleável e lábil.
A dramaturgia constitui-se com base em estruturas móveis
combinações de discursos corporais, musicais, fotográficos e textuais
que, no conjunto, compõem a ação cênica. Os movimentos/momentos
são ordenados de maneira livre e investigativa com o objetivo de
proporcionar à coreografia um caráter flexível e transitório (Miller, 2012, p.
144).
Embora o processo criativo tenha que ter uma finalização para ser
compartilhado, ele não termina. A TKV, como dança somática, propõe uma vivência
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do soma em estado exploratório, [...] do corpo lábil, no sentido de transitório,
instável e sempre em transformação, que permite ao artista cênico deixar viva e
ativa a postura da investigação necessária ao processo criativo (Miller, 2012, p.73).
A criação, portanto, emerge da pesquisa e das escolhas que foram tomadas
até aquele momento.
Além disso, nessa perspectiva somática, não é somente o artista que cria a
arte, a arte também recria o artista, sendo um processo intensamente
transformador. Para a autora que se tornou mãe, alterou a sua percepção sobre
ela mesma, sobre a maternidade e sobre a própria pesquisa de doutoramento, que
deixou de ser sobre arte, “a realizada por teóricos, críticos e historiadores, tomando
com objeto de estudo a obra de arte, para realizar análises pontuais, estudos
históricos, meios e circulação, inserção etc.”, para se transformar em uma
pesquisa em arte, “aquela realização pelo artista-pesquisador a partir do processo
de instauração de seu trabalho” e pesquisa sobre (Rey, 2002, apud Miller, 2012, p.
126).
Embora ambas essas abordagens sejam válidas e proveitosas, é importante
lembrar que o contexto acadêmico das artes muitas vezes insiste em negar a
própria arte, “como se o artista não pudesse ser ele mesmo investigador, um
produtor de saberes, mas estivesse sempre fadado a ser um reprodutor de
conhecimento produzido por outro, um pesquisador sobre arte” (Miller, 2012, p.
129).
No entanto, essa experiência somática da TKV de criação, a produção de arte
em si se revelou como produção de conhecimento. Junto com o entendimento do
soma, da não dicotomia entre mente e corpo, teoria e prática, ciência e arte, houve
uma necessidade de coerência entre todos esses campos, o que teve como
consequência a mudança para uma pesquisa em arte, em que a criação foi ao
mesmo tempo entrada e saída do processo, ou seja, o próprio processo.
Nessa criação, a escrita de si foi um recurso utilizado, sendo “a prática da
escrita e a escrita da prática como uma via de mão dupla” (Miller, 2012, p. 127). A
escrita não tinha a intenção de se configurar como uma autobiografia/autoficção
ou representação de si, mas como parte do processo de conscientização e
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mapeamento dos diferentes caminhos de movimento criados a partir da
improvisação.
duras críticas sobre produções artísticas que se constroem a partir de
experiências individuais ou sobre narrativas de si, no sentido que seriam menos
artísticas pelo seu caráter ‘terapêutico e narcisista em torno de obras
autobiográficas, que incomodam por parecerem “uma pretensão ingênua ou
mesmo uma limitação expressiva baseada no contingencial e no anedótico” de
superação de um indivíduo em tempos de exceção’ (Leite, 2014, p. 71).
A pesquisadora Janaína Leite enfrenta esse estigma e argumenta que:
As figurações e escolhas estéticas não são simplesmente uma forma de
expressar o vivido, mas, o próprio espaço de sua elaboração [...], em que
o indivíduo, ao dar forma à experiência, pode entrar em confronto com
as figuras de si mesmo, do passado e do presente, e dar-lhes mobilidade,
movimento (Leite, 2014, p. 71).
Além disso, ela ressalta que os diversos trabalhos contemporâneos que
optam por essa configuração não mais intentam transmitir uma unidade, um
exemplo de vida, de cura, de superação ou de evolução, mas exatamente o
contrário, a característica multifacetada, instável e não linear, “para encontrar
núcleos da experiência humana que se convertam em imagens potentes de nossa
existência política e subjetiva” (Leite, 2014, p. 71). E afirma que essa estética, de se
expor em sua individualidade e vulnerabilidade, tem um maior impacto no público
de conexão e de sensibilidade.
É um ato político as mulheres exporem publicamente suas experiências de
vida, por tantos anos confinadas, por imposição, ao espaço doméstico.
Considerando que gestação, parto e puerpério são temas usurpados por
profissionais e teóricos da saúde (em sua maioria homens), é um ato político
consciente transformar diários de processos criativos que surgem a partir dessas
experiências vividas e sentidas por mulheres em arte e em teses e artigos
científicos públicos.
Não é um trabalho individual, mas um trabalho que parte de uma experiência
individual e que é socializado. Participaram ativamente da criação professoras,
alunas, artistas, que contribuíram para a construção desse corpo cênico, tornando
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o trabalho coletivo. Além disso, as escolhas tomadas por todas foram direcionadas
estética, científica e politicamente para uma causa: a maternagem. Portanto, é um
trabalho artivista.
Sobre a potência política da escrita de si, essa entendida de forma ampla
como narrativa e até mesmo como dramaturgia, Foucault afirma:
O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um
‘corpo’. E é preciso compreender esse corpo não como um corpo de
doutrina, mas sim [...] como o próprio corpo daquele que, transcrevendo
suas leituras, delas se apropriou e fez sua a verdade delas: a escrita
transforma a coisa vista ou ouvida em forças e em sangue” (Foucault,
1992, p. 152).
Como dizem Dhillon e Francke (2016), embora os trabalhos que envolvem
maternagem normalmente surjam de experiências individuais, a ideia não é
construir a experiência de ser mãe como uma subjetividade privilegiada e
autocentrada, mas criar algo que funcione como um convite à ação criativa e
política, para que outras experiências sejam coletivizadas, outras pessoas mães e
não mães sejam sensibilizadas e o cuidado possa ser realmente compartilhado.
A dramaturgia da videodança
parTida
Quando vivemos um processo de transformação profundo, todos os
planos se integram e, então, a essência da nossa produção artística
também se modifica (Fortin, 2004 apud Miller, 2012, p. 73).
A videodança
parTid
a foi resultado do processo criativo de ambas as autoras,
uma que dança em processo de maternagem e a outra que a orienta no processo
de criação. A seguir, esse processo é descrito a partir da perspectiva da autora que
dança em processo de maternagem, em primeira pessoa, considerando
singularidades e as observações feitas sobre a escrita de si que compuseram a
dramaturgia.
No primeiro encontro do processo criativo, foi orientado que tivéssemos um
caderno específico para isso. Escolhi um que ganhei de aniversário e foi feito
artesanalmente por amizades que fiz em um projeto para fortalecimento da rede
de mulheres na instituição em que trabalhávamos. Guardei para uma ocasião
especial e achei que ela tinha chegado. A capa me remetia ao outono, estação em
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que me encontrava naquele momento, em abril de 2021.
Figura 1 Caderno-diário do processo criativo
O curioso foi que a primeira coisa que eu havia escrito em algum momento
anteriormente tinha sido: “por que não consigo criar?” Não lembrava que havia
escrito isso antes e em qual circunstância, mas refletindo sobre o motivo dessa
escrita pensei se era algo realmente meu ou se teria relação com o fato de ser
mulher. Nessa pesquisa, concluí que o mais provável não era que as mulheres
criassem menos, mas que elas não reconhecessem suas criações como criações;
e se reconhecessem, não se sentissem seguras em expor suas criações; e se
expusessem, fossem menos valorizadas e aceitas. Decidi então que independente
do que saísse daquele processo criativo orientado, eu iria expor, e que a minha
dificuldade não era uma questão individual, era um contexto social no qual estava
inserida. Inspirada nisso, rabisquei-a e a reformulei para “o que eu consigo criar?”
Figura 2 - Pergunta disparadora
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Comecei fazendo a curadoria do que havia criado, com novo olhar para
essas criações. Descobri muitos trabalhos inacabados engavetados e talvez uma
preferência pelos bastidores em vez dos palcos, mas naquele momento
questionei: se eu fosse homem, eu teria tanto medo de expor minhas criações?
Teria, inclusive, criado essa mesma quantidade de rascunhos? Mais ou menos?
Durante a pandemia uma das maiores dificuldades foi, nas videoconferências
de todo dia, me ver na câmera e nas gravações. Foi um trabalho aprender a lidar
com a minha própria imagem. Desafiei-me a superar isso fazendo espetáculos,
oficinas, aulas
online
até finalmente criar um espetáculo de dança, solo.
Comecei com medo, mas bem animada, até me ver dançando em gravação.
Dançar é a coisa que mais amo fazer, mas a minha dança, naquele momento em
puerpério, não me pareceu muito apresentável. O primeiro impulso foi desistir e
guardar aquilo junto com os outros rascunhos engavetados. Contudo, no propósito
que havia firmado, comecei a enfrentar as razões desse impulso de não expor
minhas criações, e essa pesquisa funcionou como outro disparador da criação.
Tentei destrinchar minha percepção inicial de “não apresentável” e o primeiro
pensamento que veio foi: “meu corpo não é mais o de uma bailarina”. Mas o que
seria um corpo de bailarina? Na minha imaginação era um corpo magro, definido,
alinhado, o que nunca fui, mesmo antes de ser mãe. Uma mãe poderia ser
dançarina? Não sei se poderia, mas eu queria. Lembrei que a maior parte das
mulheres, inclusive as não mães, não gostam de seus próprios corpos. E que era
contraditório que embora existisse uma pressão social para que as mulheres
engravidassem, também existia a pressão social para que as mulheres
mantivessem seus corpos como se não tivessem engravidado. Isso me fez explorar
ainda mais minhas novas gorduras, minha flacidez, meus seios caídos da
amamentação, minhas costelas e pelve alargadas, meu novo corpo e os meus
movimentos limitados e parciais. No figurino, fiz questão de usar meu sutiã de
amamentação mais confortável, sem sustentação, e minhas calcinhas grandes. Fiz
questão de não usar maquiagem, esmalte ou qualquer tinta. Fiz questão de usar
roupas largas e básicas, todas cinzas. E acabei levando isso para além do processo
criativo, no cotidiano, incorporando e assumindo tudo isso que estava ali, no
espaço privado e íntimo, agora também de forma pública.
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O segundo pensamento que veio na minha investigação foi: “isso não parece
artístico”. Na gravação, havia me expressado livremente, sem tentativa de
representação de qualquer história ou imitação de qualquer gesto previamente
coreografado, mas aquilo não me parecia dança. Então fiz questão de, a partir dos
tópicos corporais da TKV propostos, usar na coreografia movimentos espontâneos,
cotidianos, meus e da minha filha. Carinhos, brincadeiras, gestos, jogos de mãos e
dedos em toda amamentação. Articular, girar, engatinhar, caminhar, correr. Os
movimentos dela eram gatilho para explorar novos caminhos de movimento,
outras danças.
O meu terceiro pensamento foi “isso é muito individual, pessoal; eu deveria
guardar pra mim”. Pareceu o narcisista que Leite (2014) falava. Então, pelas razões
expostas, fiz questão de compartilhar ainda mais esse processo criativo e a
minha própria vida, e isso me trouxe parceiras que também eram mães, que
compartilharam também suas histórias, seus conhecimentos, seus meios de
produção, e tudo isso se somou a esse processo que deixou de ser meu ou sobre
mim.
Assim, as escolhas da dramaturgia foram acontecendo na medida em que
esses enfrentamentos pessoais, da criação em dança no puerpério, iam sendo
feitos. A processualidade, essa qualidade de que nada está findo e dado, tão
intrínseca à TKV, funcionou como ferramenta para atravessar esses momentos de
dúvida, pausa, ócio, esgotamento, ojeriza, doença, incluindo tudo isso que parecia
feio ou estranho, e que vieram a ser também parte da criação. Isso deixou tudo
mais leve, fluido e possível, porque de outra forma talvez não tivesse acontecido
no meu contexto de puerpério.
Foram doze encontros de criação em um ano, um por mês, além de duas
aulas semanais de TKV em que trabalhamos os tópicos corporais do processo
lúdico e do processo dos vetores e os utilizamos como motor e âncora da
improvisação, ou ainda como aprimoramento de uma célula que comporia a
coreografia e a criação como um todo. A cada novo contato com a coreografia, o
roteiro, as imagens e a própria escrita, tudo era modificado, inclusive eu mesma e
a minha percepção sobre essa criação e minha própria pesquisa. Detalho o relato
deste processo criativo dividido nas quatro estações do ano, que foram um
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elemento importante da dramaturgia.
Começamos
no outono
, em que vimos os tópicos corporais da presença e
da articulação, que inclui o movimento total e parcial, e a partir disso criei a
primeira célula. A minha inspiração foram os raios de sol que entravam pela janela
naquela época do ano e as sombras que projetava na parede com a minha mão e
que encantava minha filha ao amanhecer. Os dedos que se confundiam com os
galhos, que também chamavam sua atenção na contraluz para sua visão daqueles
primeiros dias de vida. E como as mãos se parecem com os pés, metatarsos e
metacarpos, que são saboreados igualmente pelos bebês. O branco de um
apartamento recém alugado – teto, parede, chão. Muita luz.
Tinha acabado de me mudar para um apartamento maior pela chegada da
criança que estava cada vez mais expansiva. Foi difícil partir da casa onde pari. No
entanto, logo encontrei os encantos de ocupar diferentes e mais amplos espaços,
de lidar com os espaços abertos e vazios em mim. Lidar com esses sentimentos
de partida – dividida em muitas partes (sensação logo após parir) e saída do meu
ninho – foi o que inspirou o título da videodança e o tom da dramaturgia.
Com o avanço do outono, a luz e o ar esfriaram e o processo criativo também.
Como memorizar movimentos criados em improvisação? Como repetir se eu nem
lembro, nem vi o que fiz? A repetição não anula a espontaneidade da
improvisação? A resposta a todas essas perguntas era a presença, estar
consciente de si, estar em estado de dança como disse Miller (2012).
Aqui incorporei o sentido de improvisar, como técnica de criação, por meio
da qual, se realizado com presença, aprendo novos caminhos de movimento,
caminhos que a cada repetição sensível ganham corpo e se incorporam em mim,
e ganham narrativa. O “reconhecer o que se faz enquanto se faz”, que Miller (2012)
dizia.
Até então eu tinha pavor da repetição, sobretudo naquela condição de
puerpério. O cuidado com um bebê em seus primeiros meses é extremamente
repetitivo. Trocar fralda, ninar, amamentar. O choro, as sílabas. Os objetos, móbile,
chocalho, naninhas. A rotina. Como estar presente e disponível assim? Achava
impossível. O tempo parecia não passar.
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Descobri que a minha aversão à repetição, na verdade, era uma aversão à
ausência de presença, e que eu tinha uma visão superficial e mecânica de
repetição. É mais fácil a presença com novos ou diferentes movimentos. A
presença em movimentos repetidos exige mais atenção, mas também leva a um
aprofundamento e amadurecimento dos movimentos, que apresentam, a cada
repetição sensível, novas camadas de complexidade. É possível, portanto, repetir
sem anestesia, ou seja, com estesia, sensibilidade. Levei isso para a maternidade
também.
A improvisação não é utilizada somente na criação da coreografia mas
também na própria execução dela, tornando-a também lábil, mutável, líquida. No
caso da coreografia na TKV, a dança acontece de forma espiralar, pois a cada
repetição, o movimento acontece em uma nova camada que o diferencia do
mesmo movimento realizado antes. Isso foi útil sobretudo na gravação da
videodança, da qual falarei mais à frente.
No outono trabalhamos ainda peso e apoio. Foi curioso como, apesar de eu
ter ganhado mais peso, me sentia mais leve assumindo e usando esse peso para
o movimento, como nos impulsos, nos giros.
O uso dos apoios também foi muito importante para me reconhecer no meu
novo corpo de mãe, de mulher que gestou e pariu e de cuidadora, e abrir espaços
articulares que estavam fechados e sobrecarregados pelos movimentos do
cotidiano de carregar, amamentar, acolher, aconchegar uma bebê nos braços.
Os apoios precários foram muito educativos para a maternidade. Tudo foge
ao controle, não existe apoio perfeito a não ser o chão, a morte. Por outro lado, os
apoios precários geram situações de desequilíbrios que por sua vez levam a outros
caminhos de movimento. De alguma forma, tenho convicção que isso me preparou
para o retorno ao trabalho após o período de licença maternidade, em que fui
obrigada a contar com uma rede de apoio.
No inverno
, peguei COVID-19. Tive quase todos os sintomas. A primeira a
manifestar a doença foi minha filha, que estava com nove meses de idade e teve
febre ininterrupta por 48h, mas depois ficou bem. Foi quando eu fiquei mal, como
se o corpo da mãe pudesse sucumbir após cumprir sua missão. Não conseguia
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me levantar da cama e pela primeira vez me vi sem condições de cuidar e, por
conta dessa doença específica, sem nenhum apoio para cuidar da minha filha. Foi
a pior sensação da minha vida e com certeza essa preocupação fez piorar meu
quadro de saúde, que só melhorou após cinco dias, aos cuidados de minha mãe e
da pediatra, que também era mãe.
Após esse quadro, senti uma tristeza profunda e tive depressão, de uma
forma que nunca havia me ocorrido. Isso me fez refletir seriamente sobre o
cuidado e as relações de gênero, sobre os efeitos da COVID-19 na saúde mental e
na maternidade.
Coincidentemente, nessa estação, trabalhamos os tópicos corporais
resistência, oposição e eixo global. A resistência, além de ter sido vivenciada com
a doença, também foi trabalhada em movimentos nas quinas, no encontro de uma
parede com outra ou com o chão. Em imagem, isso remeteu muito ao
enclausuramento da maternidade em casa, sobretudo durante o frio.
A oposição foi o que me fez abrir espaços, alongar principalmente os braços.
então pude perceber o quanto estavam encurtados e o quanto as minhas dores
eram crônicas. Descobri uma tendinite e uma bursite nos ombros. Sim, estava
sobrecarregada. Percebi que a dor é ocasionada por tensão e a solução
normalmente é o relaxamento. O relaxamento possibilita que o próprio corpo se
reorganize e se cure.
Abrir os braços em oposição me fez lembrar que eu tinha asas. Fez-me
querer voar. Fez-me abrir o peito. Deu-me coragem e alegria. a partir daí
reorganizei toda a rede de apoio, a rotina, meu próprio corpo e o corpo da minha
rede de apoio, que em movimento global, contribuíram para que eu pudesse sair
do ninho, não eu. Tudo isso coincidiu com o engatinhar da minha filha, com o
querer explorar o mundo dela, e consequentemente o meu também. Passei a sair
mais de casa, a pegar sol, a pular corda, andar de bicicleta, nadar, tudo com ela.
Nesse processo aprendi a importância das espirais e dos movimentos cruzados, a
tridimensionalidade apesar da tela bidimensional à qual estava habituada na
pandemia; a relação entre membros superiores e inferiores, ora simétrica, ora
assimétrica; a pausa (que nunca é pausa) e o movimento; a sustentação e a
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flexibilidade.
Em setembro minha filha completou um ano. Junto com essa
retrospectiva, começamos a trabalhar um pouco mais o mapa coreográfico, a
cartografar todos os elementos dramatúrgicos que iam circundando a coreografia
e compondo a nossa criação. Tive dificuldade de colocar tudo em uma folha
porque eram muitas camadas sobrepostas: de tempo (presente, passado, da
música, da memória, do silêncio), de espaço (do meu corpo, da natureza e suas
paisagens da janela, da tela, da sala da casa), dos corpos (meu, da minha filha, dos
objetos, da câmera), dos tópicos corporais da TKV, dos figurinos, da luz, dos
ângulos da câmera, dos enquadramentos, entre outros.
Figura 3 - Primeiro mapa coreográfico (esboço)
O caderno e a escrita linear ficaram muito limitados. Comecei a detalhar cada
uma dessas camadas em cores e espaços diferentes, em post-its, num quadro
branco:
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Figura 4 - Segundo mapa coreográfico
Depois, o quadro também ficou pequeno e digitalizei para o Miro, o que por
sua vez posteriormente foi decupado para uma planilha de Excel, em que as linhas
eram os planos, agrupados em cenas e em atos, e as colunas eram os elementos
da dramaturgia imagem, luz, movimento coreográfico, objetos, sons/músicas,
referências:
Figura 5. Terceiro mapa coreográfico (final)
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Foi nesse processo de construção do mapa coreográfico, isto é, de escrita
desses elementos e relação entre coreografia e todas as outras camadas da
criação música, objetos, figurino, elementos inspiradores, emoções –, que a
dramaturgia emergiu. O puerpério estava ali, do início ao fim, desde o momento
em que me senti partida em mil pedaços no parto até o reconhecimento do novo
corpo que se desenvolvia e do meu novo corpo também. Não foi intencional, mas
ao mesmo tempo, foi como se não pudesse ter sido outro tema.
A partir dos tópicos corporais dos processos lúdicos e dos vetores, a
dramaturgia se estruturou em sete cenas que se dividiram em três atos, que são
os três significados de partida: 1) dividida em partes
big bang
, o início de tudo,
onde luz, sombra, calor e tempestade. Quem é que nasceu? 2) rasgada
não me reconheço no meu papel, recortada, cicatrizada, Frankenstein, sozinha.
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Afinal, quem cuida de quem cuida? 3) ato de ir embora pra onde vou/voo,
andando em círculos atrás de mim mesma, caminhar com as próprias pernas sem
olhar para trás.
Toda a coreografia e dramaturgia foram desenvolvidas pensando na tela,
incluindo os efeitos com a câmera e as possibilidades com vídeos e imagens. Esse
não era o desejo inicial, pois parecia ter menos valor artístico que o presencial e
parecia acentuar o caráter de representação, tirando a labilidade e o improviso da
coreografia. Por outro lado, todo o processo se deu de forma remota e virtual, e
nisso não havia menos realidade ou presença, pelo contrário, essa era a
materialidade da pandemia.
Na primavera
, começamos o processo dos vetores, que poderia não apenas
gerar mais movimentos à coreografia como também potencializar os que
havíamos criado.
Nessa estação, começamos com os vetores de base: metatarsos,
calcanhares, púbis e sacro. Foi essencial para que eu curasse um torcicolo grave,
pois é a partir da firmeza dos apoios com o chão que é possível expandir e relaxar
o resto do corpo. Acordei pés, pernas e quadril que estavam adormecidos, após
longas horas de cadeira de amamentação, com minha atenção mais voltada à
barriga, ao peito, aos braços.
As aulas dos vetores de base coincidiram com os primeiros passos da minha
filha, o que me fez observar esse primeiro momento de equilíbrio e alinhamento
entre pés e quadril, e de desequilíbrio também. Aprendi muito observando-a sob
o prisma dos vetores cair faz parte do levantar e o desequilíbrio gera novos
caminhos de movimento ao equilíbrio. Movimentei os joelhos, sendo eles os
mediadores desses quatro vetores, e me aterrei um pouco. Tivemos eleições e
com as flores da primavera a esperança rebrotou, e minhas costas finalmente
puderam descansar.
Por fim,
no verão
, concluímos o processo dos vetores, com os superiores:
escápulas, cotovelos, metacarpos e sétima vértebra cervical. Mais uma vez percebi
meus membros superiores muito encurtados e alongá-los ampliava o alcance
também dos meus trabalhos, sem esquecer da importância dos vetores de base
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para isso. Retomei as aulas para gestantes e puérperas e meu processo didático
alimentava meu processo criativo e vice-versa. Nas aulas de processo criativo
frequentemente tinha ideias para as minhas aulas para gestantes e puérperas. O
contrário também ocorria: incorporei movimentos e pesquisas de minhas alunas
na videodança.
Lembrava bem que da última vez que havia trabalhado a vetorização da
sétima cervical passei a respirar melhor. Dessa vez, vi como ela foi importante
quando eu amamentava deitada. Tendia a me curvar e a retificar a cervical e a
vetorização possibilitou que eu relaxasse nessa posição, distensionasse e tirasse
o peso do meu crânio sobre meus ombros também, tornando a amamentação
finalmente prazerosa e natural.
O verão também foi o momento de colocar as mãos na massa: fechar
coreografia, dramaturgia, roteiro, equipe, gravar e editar a videodança. Contei com
o trabalho sensível e generoso de três mulheres incríveis além da orientadora: a
diretora, a iluminadora e fotógrafa e a editora.
A primeira pergunta que a diretora me fez foi: qual é a história? Foi difícil
responder que não era sobre mim e sobre não ser representantivo. Como Lepecki
(2012) diz:
É importante frisar o ímpeto não metafórico. Coreografia não deve ser
entendida como imagem, alegoria ou metáfora da política e do social. Ela
é, antes de tudo, a matéria primeira, o conceito, que nomeia a matriz
expressiva da função política (Lepecki, 2012, p. 46).
Compreendido isso e narrado todo o processo de criação, a direção
acrescentou diferentes planos do que havia previsto. E suas escolhas, assim como
as da iluminadora e a editora, integraram a dramaturgia, processo que descrevo a
seguir.
Para as gravações, tentamos o espaço da minha casa, onde foi construído
todo o processo criativo. Mas não houve ângulo para as filmagens, era muito
pequena e eu não conseguiria executar a coreografia de modo que aparecesse
todo meu corpo. Pensamos em alguns estúdios ou instituições, como a
universidade, mas a melhor opção, pela ausência de interrupção e pela intimidade
do trabalho, foi a residência da fotógrafa e iluminadora. Esse espaço também não
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era do tamanho ideal e achei que meu corpo não ficava na distância que imaginava,
que ocupava mais a tela do que eu queria. A editora, no entanto, que havia visto
imagens da coreografia em videoconferência, achou mais interessante a
aproximação do corpo na tela, mostrando o enclausuramento doméstico das
mães.
Também tinha imaginado a gravação pela manhã, para marcar melhor a
iluminação em que havia criado a coreografia. No entanto, o único horário livre das
três era à noite, após 20h. As gravações, portanto, ocorreram em duas noites e
duraram 10h no total.
A iluminação à noite ficou, no fim, mais controlada nesse turno,
considerando que o espaço era um apartamento, que tinha janelas. Foi possível
definir bem as cores da luz para marcar as quatro estações do ano que
compunham a dramaturgia.
Como as gravações ocorreram tarde da noite, horário em que todas
estavam cansadas, algumas cenas, que tinham movimentos mais enérgicos, foram
gravados com músicas. Também os tópicos corporais da TKV contribuíram muito
para a reativação e manutenção do estado de atenção e de dança, facilmente
perdido a cada troca de cena, reposicionamento de câmera, mudança de luz. Eles
funcionaram não apenas como inspiração mas também como âncoras, trazendo
firmeza e ao mesmo tempo flexibilidade para compor em conjunto.
Figura 6 - Auto-orientações para gravação
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Algumas cenas e movimentos foram criados durante a gravação, por acaso.
Teve um momento da gravação, por exemplo, em que a câmera caiu e filmou meu
pé, e a diretora pediu para eu fazer alguns movimentos com o forro. A labilidade
da coreografia na TKV possibilita a improvisação também na cena.
Para a edição, foram enviadas todas as imagens gravadas e todos os vídeos
que tinha da minha filha. O primeiro corte foi uma grata surpresa, pois vi na minha
frente as imagens do que até então era imaginação. Também revi muitas
imagens que não lembrava mais e o vídeo, com a mesclagem da coreografia
gravada com as imagens da minha filha trouxeram essa tonalidade de memória.
As gravações de diferentes ângulos possibilitaram acrescentar cortes que
dinamizaram o vídeo. As imagens também fizeram uma coreografia e essa é a
essência da videodança , que distingue uma simples gravação de um corpo
dançante.
Houve mais ajustes em relação ao áudio. As músicas escolhidas foram
músicas que me marcaram na gestação, no parto e no puerpério. No entanto, eram
muitas e as letras das músicas ofuscavam as imagens. Por isso foram priorizadas
as partes instrumentais, seja excluindo a letra, seja mixando vozes, e trabalhada
extensivamente as transições. As três músicas principais12, relacionadas com três
orixás (Oxum, Nanã e Iansã), pareavam com os três atos. Além delas, foram
escolhidas outras músicas relacionadas para fazer as transições13. Diretora e
editora sugeriram ainda mesclar as músicas com os áudios da minha filha
chorando, rindo, brincando, balbuciando e áudios de vento, tempestade, chuva,
trovão, mar, o que deu fluidez ao áudio como um todo, dialogando com as
imagens.
Essas interações (danças com diretora, fotógrafa/iluminadora e editora),
portanto, aprimoraram o mapa coreográfico e deram corpo à dramaturgia.
As pesquisadoras Jussara Miller e Cora Miller Laszlo (2021), mãe e filha, falam
sobre as especificidades dos estados de atenção em danças com a tela, a partir
12 Canto de Oxum, Maria Bethânia (Composição Vinicius De Moraes), Cordeiro de Nanã, Os Tincoãs (Composição
Mateus /Dadinho) e Deixa a Girar Girar, Os Tincoãs (Composição Mateus Aleluia Lima / Heraldo Costa).
13 Todas as músicas que compuseram a videodança estão disponíveis em
https://open.spotify.com/playlist/0uwZcuIGCMPOqTzfcyPelh?si=38244dc390724372. Acesso em: 24 ago. 2023.
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do contexto da pandemia. Destacam quatro estados de atenção consigo mesma,
com o outro, com o espaço e com a cena, que, no caso das videodanças, possuem
uma relação direta com a câmera e os profissionais envolvidos no vídeo:
A maneira como direcionamos a nossa atenção se transforma quando
temos a relação com a câmera mediando a cena, pois além de um
reconhecimento do lugar real, é necessário um reconhecimento do
espaço enquadrado pela câmera para podermos jogar com as
possibilidades de composições cênicas desse espaço. Se a câmera dança
com uma outra pessoa operando esse movimento, a relação de quem
dança em
live
se transforma em diálogo compositivo com o olhar da
câmera que é corpo, e ambos, juntos, compõem a cena dançada no
espaço tridimensional para o espaço bidimensional da tela (Miller e
Laszlo, 2021, p. 76).
O resultado imagético ficou muito melhor do que o que tinha imaginado.
Entreguei imagens captadas em videoconferências e celulares e me devolveram
poesia. Nem parecia meu corpo ou meus movimentos. De fato, o trabalho com os
equipamentos, os ângulos acrescentados de filmagem, a iluminação, a direção,
todos esses elementos deram destaque a esse corpo cênico, que deixou de
ser eu.
Figura 7 - Frames da videodança
parTida
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A videodança14 foi apresentada no dia de abril de 2023, via
Zoo
m. Após a
mostra, respondemos às perguntas do público, sobre o processo criativo. Como
toda cria e criatura tem vida própria, uma semana após a apresentação, fiz um
outro vídeo15 sobre o processo criativo.
A minha sensação, por um lado, foi de alegria, mas por outro, foi como se eu
não estivesse fazendo nada a mais do que eu deveria fazer, como se eu não tivesse
tido opção, como se fosse um destino, como se eu tivesse passado por tudo pra
chegar ali, naquela hora e lugar, como se eu tivesse começado o processo pelo
meio. Não era pra ser sobre maternidade, sequer era pra ser arte, mas tinha como
ser outra coisa, sobre outro assunto? Essa fluidez e autenticidade atribuo tanto à
TKV e à orientadora do processo criativo, quanto à maternidade, qualidade que me
recriou e me fez me apropriar do que sou e do que crio. A maternidade, assim
como a arte, é potência criativa, e não à toa são silenciadas pelo sistema que as
explora.
Minha filha chama Teresa e um dos possíveis significados do nome, advindo
do grego
theros
, é verão. Não tinha percebido antes na construção da dramaturgia,
mas ela aparece de forma nítida na cena final, no verão, observação feita pela
iluminadora. Não fui eu que dei à luz ou a vida, foi ela que me deu.
Após tudo isso, reformulei mais uma vez a pergunta do caderno do processo
criativo. Não se trata de descobrir o que eu consigo criar, mas se estou vendo
aquilo que já está criado. Teresa e a TKV me ajudaram a ter olhos para ver.
Considerações finais
A dramaturgia da videodança
parTida
emergiu a partir de três elementos
importantes do processo criativo embasado na TKV, quais sejam: a
processualidade como princípio, a improvisação como técnica e a labilidade como
característica da coreografia e do corpo que dança. A dramaturgia é estruturada a
partir da mobilidade e combinação dos elementos cênicos, considerando a
vivência singular de cada indivíduo que contribui para a construção do corpo
14 Disponível em: https://youtu.be/3L9yuGTFClw. Acesso em: 24 ago. 2023.
15 Disponível em: https://youtu.be/XbsRAeAX3Ms. Acesso em: 24 ago. 2023.
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cênico, numa rede de relações entre todos os elementos que compõem a cena.
Este texto expôs o processo criativo e a construção da dramaturgia da
videodança
parTida
a partir de danças e escolhas de ambas as autoras – uma que
dança em processo de maternagem e a outra que a orienta no processo de criação,
além de outras artistas, pesquisadoras e mães que participaram dessa
composição dramatúrgica.
Embora iniciado a partir de uma experiência individual, trata-se de um
processo coletivo e colaborativo, que se utilizou da dramaturgia que emergiu para
direcionar a videodança estética, científica e politicamente para uma causa: a
maternagem. Portanto, é também um trabalho artivista, com o propósito de
convidar à ação criativa e política, para que outras experiências sejam
coletivizadas, outras pessoas mães e não mães sejam sensibilizadas e o cuidado
possa ser realmente compartilhado.
Assim, a pesquisa criativa em TKV se mostra aqui como uma posição política
e a revela como metodologia possível para um artivismo materno.
Referências
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
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