1
Um ensino ilustrativo de teatro: raça, gênero, sexualidade
e classe social em livros didáticos
Tiago Cruvinel
Túlio Fernandes Silveira
Para citar este artigo:
CRUVINEL, Tiago; SILVEIRA, Túlio Fernandes. Um ensino
ilustrativo de teatro: raça, nero, sexualidade e classe
social em livros didáticos.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 47, jul.
2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0202
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A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
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Florianópolis, v.2, n.47, p.1-29, jul. 2023
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Um ensino ilustrativo de teatro: raça, gênero, sexualidade e classe
social em livros didáticos
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Tiago Cruvinel
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Túlio Fernandes Silveira
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Resumo
Este artigo analisou se o ensino de teatro tem tensionado as relações de
poder dominantes e seus regimes regulatórios nas 54 obras didáticas
aprovadas no Programa Nacional do Livro e do Material Didático - PNLD de
2021 para o Novo Ensino Médio - NEM, na área de Linguagens e suas
Tecnologias. Buscou-se analisar, por meio da Teoria Queer e dos estudos de
Gênero, se os livros didáticos lançam perspectivas críticas, nos conteúdos e
atividades de teatro, por meio das categorias raça, gênero, sexualidade e
classe social. A análise tem como objetivo auxiliar na elaboração de futuros
livros didáticos, bem como contribuir para a formação de docentes nos
cursos de licenciatura em Teatro. Concluiu-se que, a partir das categorias
elencadas, o ensino de teatro se apresentou meramente ilustrativo nos livros
didáticos.
Palavras-chave
: Livro didático. Novo Ensino Médio. Teoria Queer. Teatro na
Educação Básica. Pedagogia das Artes Cênicas.
1
Revisão ortográfica do artigo realizada por Tiago Cruvinel e Túlio Fernandes Silveira.
2
Pós-Doutorado na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Pós-Doutorado
em Artes Cênicas na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Artes
pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Artes (UnB). Bacharel em Interpretação teatral (UnB).
Licenciado em Artes Cênicas (UnB). Professor de Artes do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) - Campus
Betim, do Programa de Mestrado Profissional em Artes (ProfArtes) e do Programa de Pós-graduação em
Artes (PPG-Artes), ambos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA-UFMG).
tiago.brito.cruvinel@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1147264803853400 http://orcid.org/0000-0002-1808-0753
3
Mestrando em Artes Cênicas na linha de pesquisa Pedagogia das Artes Cênicas do PPGAC da Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC). Licenciado em Teatro pela UDESC. Professor de teatro, produtor
cultural, pesquisador e ator. tulioffernandes@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0497514401052794 https://orcid.org/0000-0002-6747-1443
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Illustrative drama teaching: race, gender, sexuality and social class
in textbooks
Abstract
This article analyzes whether drama teaching has strained the dominant
power relations and their regulatory regimes in the 54 didactic works
approved in the National Book and Didactic Material Program of 2021 for the
New High School, in the area of Languages and their Technologies. We sought
to analyze, from the perspective of Queer Theory and Gender Studies,
whether textbooks launch critical perspectives in drama contents and
activities for issues of race, gender, sexuality and social class. The objective
of the analysis is to assist in the preparation of future textbooks, as well as
to contribute to the training of teachers in Theater degree courses. It was
concluded that from the listed categories that drama teaching is merely
illustrative in textbooks.
Keywords
: Textbook. New High School. Queer Theory. Theater in Basic
Education. Pedagogy of Theater.
Una enseñanza ilustrativa del teatro: raza, género, sexualidad y
clase social en los libros didácticos
Resumen
Este artículo analizó si la enseñanza del teatro ha tensionado las relaciones
de poder dominantes y sus regímenes normativos en las 54 obras didácticas
aprobadas en el Programa Nacional de Libro Didáctico - PNLD de 2021 para
la Nueva Escuela Secundaria - NEM, en el área de Lenguajes y sus
Tecnologías. Se buscó analizar, a través de la Teoría Queer y los estudios de
género, si los libros didácticos presentan perspectivas críticas sobre los
contenidos y actividades teatrales, por medio de las categorías de raza,
género, sexualidad y clase social. El análisis tiene como objetivo ayudar en la
elaboración de futuros libros didácticos, así como contribuir a la formación
de docentes en programas de licenciatura en teatro. Se concluyó que, con
base en las categorías mencionadas, la enseñanza del teatro fue
simplemente ilustrativa en los libros didácticos.
Palabras clave
: Libros didácticos. Nueva Escuela Secundaria. Teoría Queer.
Teatro en la Educación Básica. Pedagogía de las Artes Escénicas.
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Introdução
O ensino de teatro tem tensionado raça, gênero, sexualidade e classe social
nos livros didáticos? O objetivo deste artigo é analisar em que medida os livros
didáticos aprovados no Programa Nacional do Livro e do Material Didático - PNLD
2021, Objeto 2, na área de Linguagens e suas Tecnologia, propõem, nos conteúdos
e atividades de ensino de teatro, questões não normativas que tensionam a
normalidade e as estruturas de poder dominantes e os regimes regulatórios. Para
essa análise, consideraremos a perspectiva da diferença por meio da Teoria Queer
e dos estudos de Gênero, levando em consideração as categorias: raça, gênero,
sexualidade e classe social.
Analisar os conteúdos dos livros didáticos não é uma tarefa fácil. É
importante não cairmos em juízo de valor sobre o trabalho realizado pelas e pelos
colegas docentes. Não se trata aqui de observar a qualidade dos materiais
didáticos, uma vez que sabemos das inúmeras dificuldades envolvidas na
elaboração de um livro didático, com diversos requisitos estabelecidos pelo edital
4
.
Sabemos que, onde foi possível, houve resistência para um ensino de Arte
emancipatório diante dos constantes golpes que a educação pública recebeu no
Congresso Nacional e dos cortes no orçamento do Ministério da Educação
5
. Um
exemplo disso é a retirada de todas as menções às questões de gênero e
orientação sexual da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino
Fundamental e do Ensino Médio, devido à pressão da bancada evangélica do
Congresso Nacional
6
. Na época da homologação da BNCC do Ensino Médio (BNCC-
EM), em dezembro de 2018, alguns jornalistas divulgaram que, embora os termos
“gênero” e “orientação sexual” tivessem sido removidos, a questão da diversidade,
como princípio constitucional, ainda estava presente no documento.
4
Por exemplo, o prazo curto de cerca de 7 a 9 meses para a elaboração de 6 livros, com no máximo 160
páginas cada um, além das negociações desafiadoras com as editoras, que muitas vezes têm um olhar
comercial para as obras. Portanto, acreditamos que todos os livros, com suas especificidades, possuem
qualidades didáticas e representam contribuições importantes para a área de Linguagens e suas Tecnologias.
5
Ver: Silva, 2021.
6
Ver: Balloussier, 2017.
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Acreditamos que o Teatro, como área de conhecimento, é capaz de suscitar
pensamento crítico nas e nos jovens estudantes, dependendo de como é
trabalhado em sala de aula. Ele pode tensionar temas e demandas sociais
contemporâneas por meio do corpo, da cena, dos debates, da fruição e da
experimentação do acontecimento teatral em si. A partir dessas reflexões, nos
questionamos: Os conteúdos de teatro presentes nos livros didáticos utilizados no
Novo Ensino Médio - NEM em nível nacional estão sendo capazes de propor uma
perspectiva diferente? Estão desafiando as estruturas institucionalizadas? Estão
propondo a compreensão de ações contra-hegemônicas?
Atualmente, o ensino de teatro pode ocorrer de forma interdisciplinar dentro
do componente curricular de Arte na Formação Geral Básica, como parte da Área
de Conhecimento de Linguagens e suas Tecnologias, ou nos Itinerários Formativos.
No entanto, é importante destacar que os materiais didáticos para os Itinerários
Formativos não foram objeto de análise do edital de 2021 do Programa Nacional
do Livro e do Material Didático - PNLD que, por sua vez, aponta que serão objeto
de um edital futuro. Por não fazerem parte desse edital, os livros didáticos para os
Itinerários Formativos não estão sendo analisados aqui. Desse modo, iremos
examinar apenas o ensino de teatro para a Formação Geral Básica, com base nos
livros didáticos que foram disponibilizados nas escolas de Educação Básica
brasileiras em 2022.
Para responder ao argumento central apresentado no início desta introdução,
em termos metodológicos, analisamos os conteúdos teatrais dos livros didáticos
a partir daquilo que foi definido pelas autoras e autores das obras como sendo
ensino de teatro, bem como a arte da performance e as artes circenses que focam
na arte clown
7
. É importante ressaltar que nossa análise não se trata do ensino
das artes cênicas em geral, mas especificamente do ensino de teatro. Assim
sendo, nos concentramos apenas nos conteúdos relacionados ao ensino de teatro,
com enfoque nas categorias de análise (raça, gênero, sexualidade e classe social),
com base na Teoria Queer e nos estudos de Gênero como pressupostos
epistemológicos. Na seção “Categorias de análise”, apresentaremos como
7
Entendemos que a
performance
pode ser vista como uma arte da cena. Além disso, incluímos na análise a
palhaçaria como parte dos conteúdos de teatro, desde que esteja relacionado ao trabalho das atrizes e
atores.
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conduzimos a pesquisa, utilizando exemplos concretos retirados dos livros.
O edital de seleção de obras de 2021 do PNLD aprovou nove coleções de
livros didáticos
8
para a área de Linguagens e suas Tecnologias, cada uma contendo
seis livros para as alunas e os alunos, totalizando 54 livros didáticos para essa área
do Novo Ensino Médio. Com o objetivo de analisar os conteúdos de teatro
presentes nessas obras ou seja, assuntos, temas e atividades que são abordados
com certa profundidade e não apenas menções ou notas sobre o teatro
9
constatamos que 11 dos 54 livros não apresentam conteúdos relacionados à
linguagem teatral (seja ausência total ou apenas menções superficiais).
Por esse motivo, realizamos a análise dos conteúdos de teatro presentes em
43 livros didáticos aprovados no PNLD 2021. Em relação a esses 43 livros didáticos,
observamos o seguinte: 24 deles apresentam conteúdos e atividades relacionados
ao teatro, porém não abordam as relações de poder (raça, gênero, sexualidade e
classe social) de forma a tensioná-las. outros 19 livros contêm conteúdos e
atividades de teatro que de alguma forma tensionam as relações de poder, como
será evidenciado em nossa análise abaixo. A seguir, contextualizaremos o PNLD
2021 e apresentaremos as categorias de análise.
PNLD 2021
A importância dos livros didáticos nas escolas está relacionada ao acesso
democrático a conteúdos atualizados e contextualizados, servindo como uma
ferramenta pedagógica para as professoras e os professores no ensino em sala de
aula. Eles não devem ser seguidos rigidamente como um manual, mas sim como
um suporte que inspira e compartilha conteúdos, atividades, imagens visuais e
experiências sobre determinados assuntos ou temas das áreas de conhecimento.
8
As nove coletâneas de livros didáticos aprovadas pelo edital 2021 do PNLD para a Área de Conhecimento
Linguagens e suas Tecnologias são: Estações Linguagens (Barros
et al
., 2020), Identidade em Ação
(Guimarães
et al
., 2020), Interação Linguagens (Sotero et al., 2020), Práticas de linguagens (Melo
et al
., 2020),
Moderna Plus (Abaurre
et al
., 2020), Palavras de Linguagens e suas tecnologias (Bergamini
et al
., 2020),
Multiversos - Linguagens (Campo
et al
., 2020), Se Liga nas Linguagens (Ormundo
et al
., 2020) e Ser
Protagonista (Pougy, 2020).
9
Optamos por realizar um recorte enfocando as questões que são abordadas de forma aprofundada,
excluindo conteúdos mencionados de maneira superficial e também quando são utilizadas imagens de
espetáculos apenas como ilustração.
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Além disso, os livros funcionam também como um importante material de base
para professoras e professores recém-formadas/os e também como parte da
formação continuada do trabalho docente.
O PNLD, criado em 1937, é responsável por realizar a avaliação e a aquisição
de obras didáticas gratuitamente para as escolas públicas de Educação Básica nas
esferas federal, estadual e municipal. Para nossa análise, estamos focados apenas
no Objeto 2 do edital
10
, o qual examinaremos somente os livros destinados às e
aos estudantes (tendo acesso ao material de forma digital), não levando em
consideração os manuais para professoras e professores.
O Anexo V do edital apresentava os critérios para avaliação do Objeto 2,
listamos alguns desses critérios que consideramos relevantes para uma melhor
compreensão das características dos livros didáticos e posterior análise dos
mesmos:
1) Além das competências gerais, competências específicas e habilidades
para o ensino médio definidas pela BNCC, as obras devem assegurar a
aquisição das competências gerais não somente das Linguagens e suas
Tecnologias, mas que esteja integrada com as outras áreas,
principalmente com a de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas;
2) O conjunto dos livros devem abordar práticas de pesquisa social;
3) As obras precisam contemplar todas as habilidades de Linguagens e
suas Tecnologias (com exceção da Língua Inglesa que possui seu material
específico), de Língua Portuguesa e as habilidades específicas do campo
das práticas de estudo e pesquisa e do campo artístico-literário,
totalizando 62 habilidades;
4) Devem assegurar o desenvolvimento pela/o estudante de sua análise
crítica, criativa e propositiva em relação aos temas e princípios éticos
necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano, a
partir do ponto de vista das linguagens;
5) Devem compreender uma valorização e um asseguramento de práticas
científicas e processos de investigação
11
.
Portanto, nosso foco está na análise dos conteúdos de teatro sob a
perspectiva da diferença. Nos interessa refletir sobre a capacidade das atividades
e dos conteúdos selecionados pelas autoras e pelos autores dos livros em
tensionar o ensino normativo de teatro. Considerando que o próprio edital propõe
10
As obras didáticas do PNLD de 2021 foram divididas em cinco objetos diferentes: Objeto 1 (Projetos
Integradores e Projeto de Vida), Objeto 2 (Livros didáticos por área de conhecimento), Objeto 3 (Obras de
formação para professores e gestores), Objeto 4 (Recursos digitais) e Objeto 5 (Obras literárias).
11
Informações retiradas do Anexo V do Edital PNLD 2021. (BRASÍLIA, 2019, p. 71-74).
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o desenvolvimento da capacidade de análise crítica por parte das e dos estudantes
ao longo dos livros, é importante questionar se os conteúdos teatrais estão
contribuindo nesse sentido.
Categorias de análise
Para esta análise, observaremos os conteúdos propostos para o ensino de
teatro, utilizando quatro categorias: raça, gênero, sexualidade e classe social.
Nosso objetivo é analisar se, considerando essas categorias, os conteúdos de
teatro presentes nos livros didáticos do PNLD 2021, Objeto 2, área de Linguagens
e suas Tecnologias, tensionam as estruturas de poder e seus regimes regulatórios.
Essas categorias são definidas a partir da perspectiva das diferenças
propostas pelos estudos de Gênero e a Teoria Queer/Cuir que se opõem às
políticas identitárias que fragmentam as lutas coletivas. Nesse viés, "As teorias e
as práticas queer fazem parte [de] experiências culturais anti-hegemônicas, de
contestação da sociedade normativa e das suas múltiplas formas de exclusão"
(Rea; Amancio, 2018, p. 3). Além disso, para a Teoria Queer, "a identidade tem um
valor estratégico para formular reivindicações radicais, para pautar ações políticas,
mas ela deve ser considerada como uma construção dinâmica e mutável, sempre
historicamente transformada e renegociada, e não como uma realidade estável,
fixa e natural" (Rea; Amancio, 2018, p. 4). Dessa forma, a identidade é "uma
estratégia e não uma essência" (Rea; Amancio, 2018, p. 4).
Neste contexto, em relação à categoria
raça
, não partiremos da perspectiva
da identidade para a análise, pois concordamos com Silvio Luiz de Almeida que,
no prefácio da edição brasileira do livro de Asad Haider (2019) sobre a armadilha
da identidade, afirma que a "política identitária acaba tendo como efeito a
reafirmação da subjetividade colonial e não uma mudança estrutural efetiva" (2019,
p. 12). Ainda nesse sentido, Silvio dirá que: "um negro é um negro por causa do
racismo, e não porque sua negritude não é valorizada ou
reconhecida
; da mesma
forma, um branco também é um branco por causa do racismo, e não devido à sua
brancura" (Almeida apud Haider, 2019, p.12, grifo do autor).
Desse modo, ao abordarmos a categoria raça, nosso interesse reside em
investigar como o ensino de teatro está propondo mudanças nas estruturas
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políticas e econômicas que perpetuam o racismo. Queremos compreender como
o racismo continua a sustentar e a legitimar estruturas violentas de exclusão
social, bem como analisar as propostas apresentadas pelos livros didáticos no
ensino de teatro para desmantelar o racismo.
a categoria
gênero
não será vista como identidade fixa, mas como um
"conceito que abre uma perspectiva não-binária para permitir identificar e
compreender regulações que interpelam os sujeitos, alocando-os em posições
intransitivas de masculino e feminino" (Miskolci, 2021, p. 99). O gênero aqui será
definido, ainda segundo Miskolci (2021, p. 100), como o "resultado de processos
regulatórios contínuos que nos interpelam desde antes do nosso nascimento até
após a nossa morte".
Nessa mesma linha de raciocínio, podemos entender a categoria gênero
conforme proposto por Judith Butler (2014, p. 253) em que ela afirma que "gênero
não é exatamente o que alguém ‘é’ nem é precisamente o que alguém ‘tem’”. A
autora também destaca que: "gênero é o aparato pelo qual a produção e a
normalização do masculino e do feminino se manifestam junto com as formas
intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e performativas que o gênero
assume" (Butler, 2014, p. 253). Dessa forma, buscamos examinar se e como os
conteúdos de teatro presentes nos livros didáticos propõem uma reflexão sobre
a dualidade de gênero e sexualidade.
a categoria
sexualidade
, sob a perspectiva da diferença, nos leva a analisar
as questões a partir de uma crítica à hegemonia, na qual coloca a
heterossexualidade compulsória e a heteronormatividade como normas sociais
(Colling, 2015). Desse modo, a fim de evitar um discurso binário entre
heterossexualidade/homossexualidade, abordaremos a categoria sexualidade
como uma crítica à heteronormatividade, a qual, segundo Miskolci (2007, p. 5),
“expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do
pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da
sociedade”.
A categoria
classe social
diz respeito à hierarquia socioeconômica em um
sistema capitalista e define quem são os proprietários e não proprietários dos
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meios de produção e da riqueza. No entanto, neste contexto, não nos reduzimos
a classe social como uma categoria estritamente econômica, pois, segundo Asad
Haider (2019), a luta contra o capitalismo precisa estar pautada também contra a
supremacia branca. O autor identifica a necessidade de pensar as categorias de
raça e classe de forma conjunta.
Em termos práticos, com base nessas quatro categorias agora definidas,
nosso objetivo não é simplesmente contar quantas pessoas são mencionadas nas
obras, em termos identitários. Em vez disso, buscamos observar os conteúdos
propostos nos livros didáticos desmantelam, no contexto do ensino de teatro, as
estruturas de poder que perpetuam os regimes de opressão aos corpos de
pessoas pretas, mulheres, desobedientes de gênero, dissidentes sexuais e pessoas
em situação de pobreza. Essa abordagem, que podemos chamar de pós-identitária
(Louro, 2020) por meio da Teoria Queer, nos permite evitar as armadilhas do
capitalismo, que constrói imagens publicitárias com base em identidades. Após
definir essas categorias, pretendemos analisar o ensino de teatro sob a perspectiva
da diferença, buscando um ensino que seja não normativo, crítico, emancipatório
e questionador das estruturas de poder existentes.
Análise dos livros didáticos: conteúdos e práticas de ensino de
teatro
Por se tratar de uma grande quantidade de livros e temáticas, selecionamos
alguns casos para mostrar como realizamos a análise dos conteúdos de ensino de
teatro, levando em consideração as categorias raça, gênero, sexualidade e classe
social.
A título de exemplo, no livro
Rotas do Trabalho
(Barros
et al
., 2020c),
pertencente à coletânea
Estações Linguagens
12
, podemos observar algumas
questões em relação ao ensino de teatro. Ao abordar os diferentes tipos de teatro
sob uma perspectiva histórica (como a Ópera de Pequim, o Kabuki, e o Bumba
meu Boi) e arquitetônica (como o palco italiano, o teatro grego e o teatro de arena),
não se questiona sobre os aspectos relacionados aos espaços suntuosos e às
12
Escolhemos utilizar o negrito para os títulos das coletâneas dos livros didáticos e o itálico para o título das
obras didáticas de cada coletânea, intencionando uma maior compreensão e diferenciação das obras.
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grandes produções, que muitas vezes estão associados a marcadores de classe
social. Outro exemplo é quando o livro aborda o teatro de rua e apresenta uma
imagem do Grupo Teatro de Caretas de Fortaleza, mas não discute as
problemáticas apresentadas pelo espetáculo. Nesse caso, a abordagem se limita
a uma visão técnica desse tipo de experiência teatral, sem explorar o impacto
social do espetáculo nas ruas e as noções de raça e classe social que emergem
das temáticas propostas nos centros das cidades.
Diferentes livros também abordam o teatro de rua, mas não o fazem na
esfera social. Um exemplo disso é o livro
Rotas da Cidadania
(Barros
et al
., 2020a),
da coleção
Estações Linguagens
, que apresenta quatro companhias de teatro de
rua: duas brasileiras, a Oigalê e a Imbuaça, e duas latino-americanas, a Teatro
Taller de Colombia e a Yuyachkani do Peru. No entanto, ao analisar essas
companhias, o livro se concentra mais na análise dos figurinos e nas principais
diferenças e semelhanças entre elas, em vez de aprofundar as temáticas
apresentadas pelos grupos. É importante ressaltar que essas companhias têm um
engajamento político de resistência anos e abordam uma variedade de
temáticas que criticam as estruturas de poder. No entanto, no capítulo em
questão, essas temáticas não são apresentadas como ponto central do texto,
perdendo-se a oportunidade de refletir sobre o engajamento político e a crítica
social presentes nas produções desses grupos.
Portanto, nós não incluiremos esses tipos de práticas e conteúdos teatrais
nas categorias analisadas (raça, gênero, sexualidade e classe social), pois eles não
exemplificam de maneira explícita as problemáticas sociais, culturais e
econômicas presentes nos espetáculos. Isso significa que a análise crítica das
obras e sua relação com os problemas da contemporaneidade ficam a cargo das
e dos estudantes. Além disso, é importante enfatizar que as categorias elencadas
não se esgotam em si mesmas e estão divididas aqui para fins didáticos, sem que
uma se sobreponha à outra.
Categoria Raça
A categoria raça é a mais presente nos livros didáticos devido à existência da
Lei 10.639 de 2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e
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Cultura Afro-Brasileira no currículo da Rede de Ensino, especialmente nas
disciplinas de Arte, Literatura e História
13
. Com base nisso, os temas mais
frequentes encontrados nos livros analisados são: Teatro Experimental do Negro
- TEN, coletivos negros de teatro contemporâneo, com destaque para o papel
histórico de atrizes e atores negros pioneiros nas artes da cena do nosso país,
além de espetáculos que abordam a temática dos refugiados e migrantes no Brasil.
O livro
Múltiplas Vozes
(Melo
et al
., 2020b), da coletânea
Práticas de
linguagens
, aprofunda a história e a luta do Teatro Experimental do Negro - TEN
contra o racismo no Brasil, demostrando que a companhia tinha o "propósito de
promover a valorização social da pessoa e da cultura negra por meio da educação
e da arte" (Melo
et al
., 2020b, p. 140). Por outro lado, o livro Identidades (Campo
et
al
., 2020a), da coletânea
Multiversos - Linguagens
, apresenta o TEN de uma
maneira muito breve, com apenas um parágrafo para explicar quem foi o grupo, e
em seguida faz perguntas sem fomentar discussão alguma, focando apenas na
análise de uma imagem do grupo.
O livro
Cotidiano e Diversidade: linguagens, arte e corpo em ação
(Abaurre
et
al
., 2020a), da coletânea
Moderna Plus
, dedica um subcapítulo para explicar sobre
o TEN e a construção do negro na dramaturgia e no cinema brasileiro,
mencionando também a Companhia Negra de Revista, fundada por João Cândido
Ferreira [1887-1956], para destacar que o TEN não foi a única companhia teatral de
atrizes e atores negros no Brasil. Além disso, o livro propõe uma roda de conversa
abordando os seguintes temas: “1. Voc
ê
!
identifica reflexos dessas representações
racistas em peças, filmes e séries atuais? [...] 2. Quais s
ã
o as poss
í
veis formas de
lutar contra o racismo? O que voc
ê
faz e o que ainda pode fazer para combater a
discrimina
çã
o?" (Abaurre et al., 2020a, p. 94). Por fim, propõe outro debate sobre
o tema: "Qual
é
o papel dos meios de comunica
çã
o na consolida
çã
o ou
desconstru
çã
o do racismo? Como as personagens negras s
ã
o retratadas nas
produ
çõ
es a que voc
ê
assiste?" (Abaurre
et al
., 2020a, p. 97). Essas perguntas, se
discutidas com profundidade nas rodas de conversa com as e os estudantes,
podem contribuir para a criação de práticas artistas contra-hegemônicas,
13
Apesar de a lei ter completado 20 anos, entidades e organizações sociais têm criticado a ausência de
representação adequada dos povos negros e de outras minorias nos materiais didáticos, bem como na
fiscalização da lei. Ver: Lacera, 2023.
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decoloniais e antirracistas, auxiliando na formação humana e crítica das turmas
de estudantes.
O livro
Amor
(Bergamini
et al
., 2020a), da coletânea
Palavras de linguagens e
suas tecnologias
, também aborda o Teatro Experimental do Negro - TEN em um
de seus capítulos como um conteúdo teatral. Enfatiza a importância da ocupação
de espaços por pessoas negras, incluindo o espaço teatral, e lança uma questão
interessante para as e os estudantes: “Devemos nos perguntar porque não havia
até então uma presença negra nos palcos teatrais. Trazendo a pergunta para a
atualidade, como se a presença de negros nas novelas e filmes a que
assistimos?” (Bergamini
et al
., 2020a, p. 94). Após explanar o tema, as autoras e o
autor do livro propõem um estudo de recepção baseado em fontes históricas
sobre o TEN na mídia tradicional, com o objetivo de refletir a partir de “uma fonte
jornalística da época e em fontes atuais, analisando como essas matérias
jornalísticas significam as questões étnicas, de gênero, de geração e de classe”
(Bergamini
et al
., 2020a, p. 95).
Ademais, esse mesmo livro (Bergamini
et al
., 2020a) lança uma proposta
significativa de leitura e análise da dramaturgia
A revolta da cachaça
de 1958 com
autoria de Antônio Callado [1917-1997], que faz parte de um conjunto de quatro
peças conhecido como “teatro negro”. O livro enfatiza que a falta de uma voz
autoral negra muitas vezes resulta em representações marginalizadas das
personagens negras - isso porque Antonio Callado era um homem branco. A peça
gira em torno da promessa de um dos personagens de escrever uma peça teatral
na qual Ambrosio, um homem negro, seria o protagonista, usando da
metalinguagem. Ao final da proposta, o livro apresenta várias questões para
reflexão as e aos estudantes, algumas delas sendo: “Como o teatro, a TV e o
cinema podem: - evidenciar a condição do negro na sociedade? - reforçar os
preconceitos historicamente existentes? - promover positivamente a
representação do negro na sociedade?” (Bergamini
et al
., 2020a, p. 103).
No livro
Rotas da Sustentabilidade
(Barros et al., 2020b), da coletânea
Estações Linguagens
, ao se abordar a vida do palhaço Benjamim de Oliveira [1870-
1954], o capítulo não menciona em nenhum momento que ele foi o primeiro
palhaço negro do Brasil. Essa omissão pode ser problemática quando analisada
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criticamente, uma vez que traria à tona questões relacionadas ao racismo no Brasil
e ao trabalho de atrizes e atores negros, questões que persistem até os dias de
hoje. Por outro lado, as autoras e os autores do livro
Múltiplas Vozes
(Melo
et al
.,
2020b), da coletânea
Práticas de linguagens
, destacaram Benjamim de Oliveira
como um pioneiro. O capítulo enfatiza que na época em que "homens e mulheres
negros não eram protagonistas nos palcos, as habilidades de atuação, canto,
dramaturgia, acrobacia e malabarismo fizeram com que Benjamim se tornasse um
dos primeiros palhaços e atores negros a obter notório destaque artístico nos
circos-teatros brasileiros" (Melo
et al
., 2020b, p. 140).
No livro
Diversidade: quem é você no mundo?
(Sotero
et al
., 2020b), da
coletânea
Interação Linguagens
, é lançada uma proposta crítica à hegemonia
como ponto de partida, com o objetivo de questionar a cultura e a diversidade. No
primeiro capítulo do livro, intitulado
Como convivemos com as diferentes
culturas?
, as e os estudantes são confrontados/as com a seguinte pergunta: “E se
nossa cultura fosse diferente?” (Sotero
et al
., 2020b, p. 12). Em seguida, as turmas
de estudantes são provadas a refletirem a partir da peça de teatro
Black Brecht: e
se Brecht fosse negro?
(2015) do coletivo Legítima Defesa. No início do capítulo, é
afirmado que a cultura afro é predominante entre as brasileiras e os brasileiros,
mas não é a cultura dominante no país. Nesse sentido, são levantados os
questionamentos: “Como seria se nossa cultura dominante fosse de origem
africana?” e também “Como seria nosso cotidiano se a cultura dominante fosse
originária dos povos orientais?” (Sotero
et al
., 2020b, p. 12).
O livro didático provoca as e os estudantes a questionarem as
transformações que ocorreriam se uma figura importante da história do teatro,
como Bertolt Brecht, encenador alemão branco, fosse uma pessoa negra. Quais
seriam as mudanças em suas obras teatrais? Quais classes sociais seriam mais
representadas em suas criações? Além do mais, propõe-se que as e os estudantes
escolham uma pessoa que admiram por sua trajetória e reflitam sobre o que
mudaria se essa pessoa não fosse da mesma raça que é. Evidenciamos que essa
proposta visa incentivar uma abordagem crítica e reflexiva desde o início do
capítulo, propondo um estudo baseado em provocações emergentes da
contemporaneidade. Apesar dessa proposta instigante que inicia o capítulo do
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livro, os conteúdos de teatro não são abordados nas páginas seguintes, sendo
focados principalmente na cultura e na arte em geral.
No livro Linguagens na
Aldeia Global
(Guimarães
et al
., 2020), da coletânea
Identidade em Ação
, são apresentadas problemáticas que questionam o ensino de
arte: "Como as fronteiras geopolíticas são tematizadas e problematizadas pela
arte? Quais outras fronteiras existem na arte? Como o improviso cênico pode servir
como maneira de negociar limites dentro da arte?" (Guimarães
et al
., 2020, p. 94).
Para auxiliar as e os estudantes a pensarem sobre essas questões, o livro
apresenta o grupo paulista Teatro de Narradores de São Paulo (SP), que em 2016
criou o espetáculo
Cidade Vodu
. "O objetivo era discutir os sentidos, causas e
impactos da imigração de haitianos para o Brasil, assim como criticar a ocupação
militar no Haiti. [...] Imigrantes haitianos foram convidados a participar como atores
da peça" (Guimarães
et al
., 2020, p. 95). Assim, "[...] a obra tornou-se mais
complexa ao colocar todos juntos, artistas profissionais e amadores, brasileiros e
haitianos" (Guimarães
et al
., 2020, p. 95). Destacamos a importância de as e os
estudantes perceberem, por meio de um espetáculo teatral, como o racismo
estrutural resulta em uma série de violências contra imigrantes negros, enquanto
imigrantes de pele clara, provenientes da Europa, por exemplo, não enfrentam
essas mesmas situações.
O tema da migração também é abordado no livro
Experimenta Dialogar!
(Ormundo
et al
., 2020b), da coletânea
Se liga nas Linguagens
. As autoras e o autor
propõem uma discussão sobre as diferenças entre ser migrante e refugiado,
usando como referência o espetáculo
São Paulo refúgio
(2015) da companhia
Performatron, formada pelas atrizes e pelos atores Conrado Dess, Elise Garcia e
É
riko Carvalho. O livro também convida as e os estudantes a refletirem sobre o
que levam as pessoas a buscar refúgio no Brasil. Além disso, por meio de um
teaser
do espetáculo mencionado, as turmas de estudantes são estimuladas a
observar o potencial de transformação social das ações artísticas e a se colocarem
no lugar das pessoas refugiadas no Brasil, sejam provenientes da República do
Congo, do Haiti ou da Síria.
No livro
Identidade: ser singular e plural
(Sotero
et al
., 2020a), da coletânea
Interação Linguagens
, é explanado às e aos estudantes a adaptação teatral
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realizada pela Cia. Livre de Teatro e pela Cia. Oito Nova Dança, ambas de São Paulo
(SP), que criaram o espetáculo
Os um e os outros
, inspirados no texto teatral
Os
Horácios e Curiácios
de Bertolt Brecht. Nos chama atenção nessa proposta a
citação da fala da diretora da peça, que compartilha o pensamento de Ailton
Krenak, pensador e ativista indígena, sobre quando assistiu ao espetáculo e como
sua visão influenciou a mudança no final da peça. No espetáculo o grupo adaptou
“seus personagens ao imaginário indígena do Brasil e [criou] um jogo entre nossa
atualidade e diferentes passados – da época em que Brecht escreveu a peça e da
história da Roma Antiga (670 a.C.)” (Sotero
et al
., 2020a, p. 62). No entanto, o
pensador indígena considerou a solução de finalização do espetáculo dualista e
ocidental demais, quando propunha que os Horácios conseguissem matar todo o
exército mais forte, os Curiácios. Ele argumentou que essa lógica de extermínio é
dos brancos e não dos povos ameríndios que foram inspirações para a criação da
adaptação teatral do grupo. É interessante observar que o livro destaca um
pensador contemporâneo importante para as questões dos povos originários e
como seu pensamento influenciou a reconfiguração do final da peça teatral.
Entretanto, percebemos que as duas páginas dedicadas a essas questões não são
suficientes para aprofundar o tema.
No mesmo livro (Sotero
et al
., 2020a), é proposta uma análise do coletivo
NEGA, coletivo teatral de mulheres negras oriundo da Universidade do Estado de
Santa Catarina - UDESC. As estudantes e os estudantes são questionados: "Você
passou por alguma situação desconfortável por causa da sua identidade? Como
seria transformar esse episódio em um trabalho artístico? Em que linguagem
poética você escolheria traduzir uma experiência dessa natureza?” (Sotero
et al
.,
2020a, p. 51). Além disso, o livro também apresenta o espetáculo Pentes (2017), do
grupo Embaraça, composto por mulheres pretas residentes em Brasília, que
aborda as discussões raciais em torno do cabelo das mulheres negras brasileiras.
Citam e contextualizam um gesto de resistência conhecido pela comunidade
preta: os punhos cerrados levantados ao alto. Em nossa visão, esse livro didático
um passo importante ao propor reflexões a partir de coletivos de mulheres
pretas e suas criações artísticas de resistência. Ao mesmo tempo, analisamos que
suas contribuições se mantêm prioritariamente no campo da identidade,
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reforçando o empoderamento das pessoas pretas, principalmente mulheres
negras, e a importância social desse fato. Entretanto, notamos que o livro não se
concentra em uma abordagem crítica mais aprofundada sobre racismo, o que
limita a oportunidade para educadoras e educadores e estudantes repensarem
seus privilégios e aprofundarem seu entendimento sobre a natureza estrutural do
racismo em nosso país, bem como sobre as consequências da herança da
escravidão até os dias atuais.
O livro
Culturas
(Pougy, 2020), da coletânea
Ser protagonista
, narra a história
do espetáculo teatral Os orixás do grupo Giramundo que "apresenta ao p
ú
blico os
orix
á
s, explorando a riqueza cultural do povo Iorubá, um dos muitos povos da
Á
frica, e retratando a mistura de suas tradi
çõ
es com a cultura brasileira nos modos
de pensar, ser e agir" (Pougy, 2020, p. 85). É interessante pontuar que esse livro é
o único de todas as coleções que contribui para a desmistificação das religiões de
matriz africana, particularmente do Candomblé, ao abordar o grupo Giramundo e
suas produções. No entanto, não são apresentadas atividades de prática artística
nem propostos debates mais aprofundados acerca da intersecção entre raça,
teatro, orixás e os cruzamentos das culturas brasileiras e africanas.
O livro
Experimenta Atuar!
(Ormundo et al., 2020a), da
coletânea Se liga nas
linguagens
, dedica um subcapítulo à linguagem do teatro, no qual apresenta uma
parte do texto teatral do espetáculo musical
Elza
, escrito pelo dramaturgo Vinicius
Calderoni, dirigido por Duda Maia e com atuação de um coletivo de mulheres
negras. No entanto, a maior parte do texto didático foca nas questões de forma e
linguística da dramaturgia. Ao fim do subcapítulo, contextualiza sobre o diretor e
faz uma pergunta significativa para que, em grupos, as e os estudantes discutam
sobre a autoria de um autor branco que escreve para um coletivo de mulheres
negras: “Vocês acham que Calderoni acertou ao ceder espaço para a voz das
atrizes? É importante que a discussão sobre a mulher negra seja feita com a
participação delas? Um homem branco pode construir o universo dessa peça sem
ouvir essas mulheres?” (Ormundo
et al
., 2020a, p. 63). Ressaltamos também que
o livro não problematiza a resposta que Elza Soares sobre a situação de
vulnerabilidade social na qual as mulheres pretas e homens pretos vivem no Brasil.
O trecho citado da dramaturgia faz referência a um momento em que o
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apresentador Ary Barroso perguntou a Elza, durante um programa de calouros, de
que planeta ela havia vindo e, na ocasião, ela respondeu: "Do Planeta Fome!"
(Ormundo
et al
., 2020a, p. 55). No entanto, o livro não debate a questão da fome e
a relação com o marcador racial associado a ela.
Categoria Gênero
Na categoria gênero, os livros se concentram em uma perspectiva cisgênero,
não se problematizando em nenhum momento o binarismo de gênero. As
discussões presentes nas obras didáticas focam principalmente nas minorias
sociais, em especial nas mulheres negras. Um exemplo disso é o livro
Linguagens
na Aldeia Global
(Guimarães
et al
., 2020), da coletânea
Identidade em Ação
, no
tema Arte, Identidade e Protagonismo. Ele propõe uma reflexão sobre as minorias
sociais, levando as e os estudantes a pesquisarem quem são essas minorias, por
que são consideradas como tal e de que maneiras as linguagens artísticas podem
afirmar a identidade. Assim, o livro apresenta problemáticas que envolvem
discussões de gênero por meio do Coletivo NEGA, cujo "objetivo é valorizar o
protagonismo das mulheres negras como via de reivindicação e debate sobre os
conflitos raciais no país" (Guimarães
et al
., 2020, p. 152). No final do tema, o livro
propõe uma experiência prática significativa, assim como o coletivo NEGA criou
performances e espetáculos teatrais que partem das relações de preconceitos
vivenciadas pelas artistas, as e os estudantes são convidadas/os a criar uma ação
artística que aborde as opressões enfrentadas pelos grupos em relação ao
“preconceito (cor, raça, gênero, nacionalidade, região do país etc.)” (Guimarães
et
al
., 2020, p. 154).
o livro
Múltiplas Vozes
(Melo
et al
., 2020b), da coleção
Práticas de
linguagens
se propõe a "compreender o trabalho de valorização da mulher negra
feito por grupos de teatro" (Melo
et al
., 2020b, p. 120). Para isso, são apresentados
o enredo e algumas imagens dos espetáculos Sangoma, da Capulanas Cia. de Arte
Negra, dirigido por Kleber Lourenço e Reza, da Cia. Orquestra de Pretxs Novxs,
dirigido por Carmen Luz e André Muato. Esses espetáculos têm em comum o
objetivo de retratar o sofrimento e as dores das mulheres negras, especialmente
aquelas que vivem em áreas periféricas, abordando diferentes perspectivas, como
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saúde, educação, econômica, entre outras. Contudo, após apresentar a resenha
dos grupos de teatro, o livro aborda questões muito simplistas, focando apenas
no campo do ilustrativo, com base em duas imagens dos espetáculos, para
problematizar as dores vivenciadas por essas mulheres.
Ainda na esfera da representatividade, esse livro destaca a atriz Ruth de
Souza [1921-2019] como uma pioneira, por ter sido a primeira atriz negra a se
apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Entretanto, o livro não
problematiza a posição da mulher negra nas artes cênicas e nas telenovelas
brasileiras atualmente. Ao final do tema, ressaltamos que uma proposta
interessante de experimentação de criação dramatúrgica coletiva, que aborda
tanto questões de raça quanto de gênero.
O livro
O Corpo se expressa: ação, drama e a força das palavras
(Abaurre
et
al
., 2020b), da coletânea
Moderna Plus
, apresenta as questões de gênero, em
especial os preconceitos enfrentados pelas mulheres pretas em relação aos
padrões de beleza hegemônicos. O capítulo retrata a performance de Renata
Felinto, intitulada
White Face and Blonde Hair
, na qual a artista aborda o racismo
e os padrões de beleza "e propõe uma releitura da
blackface
, prática racista
utilizada no Teatro desde o século XIX, na qual atores e atrizes brancos pintavam
seus rostos de preto para representar personagens afrodescendentes" (Abaurre et
al., 2020b, p. 36). Dentro desse contexto, o livro faz as seguintes perguntas: "Você
tem um corpo ou você é esse corpo? Explique" (Abaurre
et al
., 2020b, p. 36); "Quais
são as características que compõem o ideal de beleza predominante na sociedade
atual? Você se considera dentro desses critérios? Como isso reflete em sua
autoestima?" (Abaurre
et al.
, 2020b, p. 37). Por fim, o livro pergunta: "Pense sobre
a performance de Renata Felinto e a intenção da artista. Você acredita que ela
atingiu seu objetivo? Justifique sua resposta" (Abaurre
et al
., 2020b, p. 37).
No entanto, o capítulo desse livro acaba por não dar conta da reflexão sobre
se temos ou somos um corpo e não apresenta elementos suficientes para que as
e os estudantes possam fazer esse tipo de análise. Além do mais, as perguntas
realizadas parecem minimizar o racismo enfrentado por tantas meninas pretas
nas escolas, por não questionar diretamente a essas meninas sobre os problemas
que elas enfrentam no cotidiano escolar e familiar, por exemplo. A última pergunta
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reduz a arte a um caráter meramente funcional, avaliando se a artista alcançou
ou não seu objetivo, sem explorar de forma mais aprofundada os impactos e
significados da performance.
O livro
Povo e Multiplicidade
(Bergamini
et al
., 2020c), da coletânea
Palavras
de Linguagens e suas tecnologia
s, traz uma sugestão de diálogo em formato de
roda de conversa no subcapítulo sobre teatro de formas animadas. Os autores
levantam a seguinte questão: "Em nossa sociedade, o ato de brincar com bonecas
é
geralmente associado ao g
ê
nero feminino. Por
é
m, como podemos observar no
teatro de mamulengos, h
á
poucas mulheres atuando na manipula
çã
o dos
bonecos. A que voc
ê
atribui essa diferen
ç
a?" (Bergamini
et al
., 2020c, p. 89). Essa
pergunta é relevante e desafia as estruturas de poder cis masculinas dentro das
artes cênicas. No entanto, o livro não fornece subsídios suficientes para que esse
questionamento possa ser respondido de forma mais aprofundada e não
apresenta. Além disso, não são apresentados, por exemplo, outros espetáculos
que abordam essa questão de forma contrária, isto é, companhias de teatro de
formas animadas dirigidas e atuadas exclusivamente por mulheres no contexto
latino-americano e africano. Essa lacuna limita a abrangência da discussão e
impede uma análise mais completa e contextualizada do tema.
Categoria Sexualidade
Na análise dos livros didáticos, é lamentável constatar que as questões de
sexualidade não são mencionadas nos livros didáticos aprovados pelo PNLD de
2021 no que diz respeito aos conteúdos e atividades de teatro. Acreditamos que
isso ocorre devido à ausência das menções sobre gênero e orientação sexual na
Base Nacional Comum Curricular - BNCC por pressão da bancada evangélica do
Congresso Nacional, conforme mencionado no início do artigo. Portanto, as
autoras e os autores dos livros podem ter optado por não incluir esse tema devido
à percepção de que seria conflituoso e difícil de ser aprovado pelo Ministério da
Educação - MEC.
É importante ressaltar que há muitas e muitos artistas dissidentes sexuais e
desobedientes de gênero que tem construído espetáculos e performances que
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desafiam as relações de poder e que poderiam ocupar um espaço nos livros
didáticos. Ao analisar os livros, observamos que o
blackface
é questionado, por
exemplo, mas em nenhum momento é questionado o
transfake
, que ocorre
quando atrizes e atores cisgênero assumem o papel de atrizes e atores trans e
travestis para representarem suas vivências em cena. Essas lacunas revelam a
necessidade de uma abordagem mais inclusiva e diversificada em relação às
questões de sexualidade nos materiais didáticos.
Categoria Classe social
Em relação à categoria classe social, muitos livros abordam os trabalhos de
Augusto Boal com o Teatro do Oprimido, o teatro épico de Bertolt Brecht e as
questões relacionadas ao mundo do trabalho. Para iniciar, no campo das práticas
de Augusto Boal, por exemplo, o livro
Mundo do trabalho
(Melo
et al
., 2020a), da
coletânea
Práticas de linguagens
, propõe as e os estudantes criarem cenas de
Teatro Imagem: “Com base no que estudaram ao longo do capítulo, escolham
algumas situações e problemas ligados ao mundo do trabalho: oportunidades,
trabalho formal e informal, desemprego, legislação, entrevista de emprego,
formação, entre outros”. No entanto, percebemos que as relações de opressor e
oprimido nas situações citadas não são detalhadamente abordadas. É importante
questionarmos: quem são os trabalhadores desempregados? Por qual motivo
essas pessoas não conseguem emprego? O livro não explora essas questões de
forma aprofundada. Além de tudo, não se explica que há uma relação direta entre
a riqueza dos mais privilegiados e a situação de extrema pobreza vivenciada por
muitas pessoas de um país.
o livro
Rotas da Cidadania
(Barros
et al
., 2020a), da coleção
Estações
Linguagens
, aborda a vida e a obra de Augusto Boal e propõe uma prática em que
o grupo deve escolher uma situação social para representar em diálogo com o uso
dos espaços urbanos por minorias. Entretanto, ao analisar esse capítulo,
observamos que não são abordados alguns marcadores sociais relevantes para
essa discussão, tais como: o que é ser minoria no Brasil? A violência urbana tem
raça? Quem são as pessoas mais assassinadas no país? Quais situações sociais de
violência essas minorias estão sujeitas? Onde vivem as minorias? Além de que, em
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alguns casos, as e os estudantes podem nem se reconhecerem como
pertencentes a minorias.
O livro
Cotidiano e Diversidade: linguagens, arte e corpo em ação
(Abaurre
et
al
., 2020a), da coletânea
Moderna Plu
s, apresenta uma prática artística
interessante para se discutir e tensionar as relações de poder entre oprimidos e
opressores. As autoras questionam quando abordam sobre o tema do Teatro do
Oprimido: "O que incomoda voc
ê
? Quais s
ã
o os problemas que voc
ê
gostaria de
transformar em sua cidade, sua comunidade ou na sociedade de modo geral? O
que lhe causa indignação? Vamos investigar formas de refletir e agir criticamente
por meio do Teatro" (Abaurre
et al
., 2020a, p. 92). Dessa forma, através do Teatro
Fórum, criado por Augusto Boal, o livro busca discutir e encontrar soluções para
problemas reais enfrentados pelos grupos de estudantes. Além disso, o
subcapítulo do livro intitulado Teatro e Diversidade pretende identificar formas
políticas e sociais de atuação por meio do teatro, valorizando expressões teatrais
que desconstroem de alguma forma preconceitos historicamente construídos.
O livro
Ciências
(Bergamini
et al
., 2020b), da coletânea
Palavras de linguagens
e suas tecnologias
, também aborda como conteúdo teatral a proposta do Teatro
do Oprimido. As autoras e o autor fornecem um breve contexto sobre o tema e
sugerem a realização de uma prática de Teatro Jornal. Ao final da prática,
questionam as e aos estudantes: “Em que aspectos as cenas apresentadas
marcam um espaço político para a arte?” (Bergamini
et al
., 2020b, p. 118).
Entretanto, não dão subsídios suficientes para que as e os estudantes possam
refletir de forma efetiva sobre essa questão e, assim, não promovem um
tensionamento das relações de poder. Isso acaba focando mais na forma desse
tipo de teatro do que na possibilidade de gerar pensamento crítico por meio dele.
O livro
Experimenta Enxergar!
(Ormundo
et al
., 2020c), por exemplo, da
coletânea
Se liga nas Linguagens
, propõe à e ao estudante que "individualmente,
pense em um problema, bastante objetivo, que voc
ê
tem enfrentado ou que
precisar
á
enfrentar" (Ormundo
et al
., 2020c, p. 114). No entanto, ao abordar os
problemas de forma genérica, sem especificar que nossos desafios atuais estão
relacionados às relações de poder que envolvem raça, gênero, sexualidade e social,
a abordagem se mostra pouco efetiva. Mesmo que as turmas de estudantes
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consigam executar perfeitamente as técnicas propostas pelo Teatro do Oprimido,
executar uma metodologia de forma instrumental não é o mesmo que ser afetado
por ela. Portanto, a metodologia de Boal precisaria ir além do campo tecnicista, de
modo que as pessoas participantes possam construir modos de resistência
coletiva diante das injustiças sociais. Em um momento anterior, o livro chega a
perguntar: "O que voc
ê
entende por opress
ã
o?" (Ormundo
et al
., 2020c, p. 112),
contudo, não propõe uma análise posterior da resposta e não se dedica a explicar
quais situações cotidianas podem ser vistas como opressivas, incluindo aquelas
que podem ocorrer no ambiente escolar e familiar.
em relação ao teatro épico de Bertolt Brecht, o livro
Rotas da Cidadania
(Barros
et al
., 2020a), da coletânea
Estações Linguagens
, apresenta as propostas
de Brecht como oposição ao drama burguês e destaca que a proposta dele é de
um teatro que denuncia as opressões sociais, incentivando um posicionamento na
esfera política e estética. No entanto, o livro não oferece exemplos concretos de
como Brecht fez isso, isto é, apenas cita Brecht sem fazer o devido
aprofundamento das questões emergentes de sua obra no que diz respeito aos
problemas atuais na ordem social e econômica.
O livro
Perspectivas Multiculturais
(Melo
et al
., 2020c), da coletânea
Práticas
de linguagens
, tem a preocupação de mostrar como as companhias teatrais
promoveram o debate sobre as relações de trabalho. Nesse sentido, apresenta o
enredo da peça
Eles não usam black-tie
(1958), de Gianfrancesco Guarnieri,
encenada no Teatro de Arena. O livro enfatiza que: "A peça teve grande sucesso
ao retratar trabalhadores urbanos como sujeitos históricos preocupados em
construir uma sociedade justa e democrática" (Melo
et al
., 2020c, p. 74). No
entanto, apesar dessa abordagem, o livro não explora adequadamente a categoria
classe social, que é fundamental na proposta da peça
Eles não usam black-tie
.
Além disso, os questionamentos presentes no livro não levam as e os estudantes
a refletirem sobre as injustiças sociais presentes em seu cotidiano. O livro não
consegue transmitir a ideia de que, para os indivíduos pobres, as oportunidades de
escolher uma profissão com base em seus sonhos são raras, pois, na maioria dos
casos, a preocupação principal é a sobrevivência.
Percebemos também que, em sua maioria, os livros quando abordam o tema
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do mundo do trabalho relacionado a linguagem do teatro, o fazem de uma forma
não crítica, mas sim ilustrativa, explorando a interligação com temáticas como
Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, trabalho informal, escolha profissional,
entre outras. No entanto, eles não lançaram um olhar crítico sobre a realidade das
trabalhadoras e dos trabalhadores pobres, nem abordaram a manutenção das
desigualdades sociais que sustentam o poder hegemônico.
o livro
No mundo do trabalho
(Campos
et al
., 2020b), da coletânea
Multiversos - linguagens
, apresenta uma proposta interessante para se discutir a
questão do trabalho na sociedade contemporânea. Compartilha parte do texto
teatral da peça
A comédia do trabalho
, da Companhia do Latão, que aborda o
desemprego e o capital especulativo das grandes empresas como tema central.
São propostas diversas questões para as e aos estudantes responderem sobre o
mundo do trabalho, baseadas na temática e nas características da peça teatral. O
livro se destaca ao indicar perspectivas e propor análises dos signos e da própria
linguagem teatral em meio a essa temática do trabalho, e não propriamente o
contrário, utilizando o teatro como ferramenta.
Nesse mesmo livro, as autoras e os autores propõem o estudo do teatro a
partir da temática de uma peça teatral de caráter político e colocam em discussão
principalmente o tema do desemprego, como é exemplificado pela fala de uma
atriz dentro da peça: “[...] Depois de meses de ensaio, tentando achar graça do
capitalismo financeirizado, tentando rir dos problemas como o desemprego, não
tivemos escolha senão fazer uma tragédia: a tragédia do trabalho. Chamamos de
comédia apenas para atrair mais público” (Campos
et al
., 2020b, p. 14). Ademais, é
proposto também que as e os estudantes realizem uma crítica teatral: “Para fazer
uma boa crítica, é necessário ser um espectador que vai além da cena e do teatro
como entretenimento. O crítico reflete sobre o cotidiano e o que a peça teatral diz
sobre ele, da mesma maneira que dialoga com a bagagem histórica e as influências
artístico-literárias que compõem a montagem” (Campos
et al
., 2020b, p. 19). A peça
teatral discutida no primeiro capítulo do livro é o ponto central das discussões,
propondo questões significativas que levam as e os estudantes a refletirem sobre
as relações de poder no mundo do trabalho.
Um ensino ilustrativo de teatro: raça, gênero, sexualidade e classe social em livros didáticos
Tiago Cruvinel | Túlio Fernandes Silveira
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-29, jul. 2023
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Considerações finais
Diante do questionamento inicial se “o ensino de teatro tem tensionado raça,
gênero, sexualidade e classe social nos livros didáticos?”, concluímos que a
ausência de questões relacionadas a essas categorias analisadas nos livros em
menor ou maior grau torna o ensino de teatro meramente técnico e ilustrativo,
deixando de lado dimensões que consideramos importantes para o ensino de
teatro no mundo contemporâneo.
Ao analisar os atuais 54 livros didáticos aprovados no PNLD de 2021 na
perspectiva dos conteúdos de teatro, observamos uma ênfase na categoria raça,
porém com pouca reflexão sobre o racismo estrutural e formas de criar ações
antirracistas. A categoria gênero está focada na perspectiva cisheteronormativa,
sem abordar qualquer forma de desobediência de gênero. A categoria sexualidade
é completamente ignorada, como mencionado, e a categoria classe social não é
abordada na perspectiva da interseccionalidade, ou seja, não são considerados os
marcadores de raça e gênero, por exemplo, para tratar das questões sociais
enfrentadas por mulheres pretas, travestis e periféricas.
Entendemos que não se deve elaborar livros didáticos sem abordar raça,
gênero, sexualidade e classe social em uma perspectiva não-normativa no mundo
contemporâneo. Se quisermos seguir os critérios do anexo V do PNLD 2021, que
visa à construção da cidadania e do convívio social republicano, é preciso levar em
consideração também os grupos vistos como subalternos (negros, indígenas,
mulheres cis e trans, travestis, LGBTQIAP+). Afinal, de que cidadania estamos
falando quando excluímos pessoas negras, mulheres cis, trans e travestis,
desobedientes de gênero e dissidentes sexuais, dentro de uma perspectiva
interseccional? Como valorizar práticas científicas e processos de investigação em
Arte, por meio de princípios éticos, criativos, críticos e propositivos, que não
excluem os diferentes em relação à norma?
Com esta análise, percebemos que os conteúdos de teatro quando presentes
nos livros didáticos para o Novo Ensino Médio muitas vezes privilegiam uma
exposição ilustrativa dos aspectos teatrais, na perspectiva de promover um
contato com a linguagem teatral pelas e pelos estudantes. Sendo assim, acabam
Um ensino ilustrativo de teatro: raça, gênero, sexualidade e classe social em livros didáticos
Tiago Cruvinel | Túlio Fernandes Silveira
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perpetuando um ensino normativo do teatro, focando em suas técnicas e formas.
Em outros momentos, por exemplo, quando mencionam nos conteúdos de teatro
atrizes negras e atores negros, não discutem as questões sociais e políticas
relacionadas ao racismo estrutural. Ao passo que, em alguns momentos,
conseguem criar pequenas fissuras e instigar um pensamento reflexivo não
normativo ao indicar práticas artísticas a partir de conteúdos ou rodas de
conversas com debates sobre o racismo.
Ressaltamos a importância da professora e do professor em subverter a
lógica do regime branco cisheteronormativo, propondo práticas que tensionam as
estruturas de poder a partir das categorias raça, gênero, sexualidade e classe
social. Acreditamos que este artigo pode contribuir para as discussões acerca da
elaboração de livros didáticos com vista ao novo PNLD 2024-2026, bem como
servir de material para as disciplinas dos cursos de licenciatura em teatro, que visa
a formação de professoras e professores para um ensino crítico, emancipador,
decolonial, antirracista, desobediente e dissidente de gênero e sexualidade.
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Recebido em: 08/03/2023
Aprovado em: 26/05/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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