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Quem zomba de quem? Dos bufões de hoje
às técnicas revisitadas
André de Paiva Cavalcanti Alencar
Ana Caldas Lewinsohn
Para citar este artigo:
ALENCAR, André de Paiva Cavalcanti; LEWINSOHN, Ana
Caldas. Quem zomba de quem? Dos bufões de hoje às
técnicas revisitadas.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 46, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0104
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André de Paiva Cavalcanti Alencar | Ana Caldas Lewinsohn
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-19, abr. 2023
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Quem zomba de quem? Dos bufões de hoje às técnicas revisitadas
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André de Paiva Cavalcanti Alencar
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Ana Caldas Lewinsohn
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Resumo
O presente artigo tece algumas reflexões acerca do lugar da bufona e do
bufão na sociedade, a partir da acepção do termo, além de discutir questões
relacionadas à ética na performance bufa. Passando por autores e artistas
como Beth Lopes, Henry Bergson, José Tonezzi, Leo Bassi, dentre outros,
friccionam-se camadas do riso zombeteiro, atrelando-o ao reconhecimento
histórico e social dessas figuras, a fim de introduzir uma problematização das
técnicas desenvolvidas pelos pedagogos franceses Jacques Lecoq e Philippe
Gaulier, atentando para as suas implicações nos processos criativos.
Palavras-chave
: Bufonaria. Performatividade. Riso. Técnica.
Who mocks whom? From today's buffoons to revisited techniques
Abstract
This article aims to share reflections on the buffoons’ place in society, based
on the meaning of the term. In addition, it discusses ethical issues in buffa
performance. Supported by authors and artists such as Beth Lopes, Henry
Bergson, José Tonezzi, Leo Bassi, among others, this text rubs many layers of
mocking laughter, linking it to the social and historical recognition of these
figures in order to introduce a problematization about the techniques
developed by the French pedagogues Jacques Lecoq and Philippe Gaulier,
focusing on their implications over creative processes.
Keywords
: Buffoonery. Performativity. Laughter. Technique.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Philipe Pereira Borba de Araújo,
Doutorando em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB, Mestre em Linguagem e Ensino
pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG, Graduado em Letras pela Universidade Federal de
Pernambuco UFPE.
2
Mestrando em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialização em
Literatura Brasileira e Interculturalidade pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicamp). Graduação
em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ator e pesquisador do grupo Teatro Miçanga.
paivandre16@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8470611458566720 https://orcid.org/0000-0002-2872-8090
3
Atriz e diretora. Professora adjunta do curso de Licenciatura em Teatro e do Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da UFRN. Bacharel em Artes Cênicas, Mestre em Artes e Doutora em Artes da Cena pela
Unicamp. Realizou Pós-Doutorado LUME Teatro (Unicamp). É coordenadora do LabMask Laboratório de
Experimentos em Atuação e Máscaras da UFRN. ana.caldas@ufrn.br
http://lattes.cnpq.br/0090264123376586 https://orcid.org/0000-0002-1646-5270
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¿Quién se burla de quién? De los bufones de hoy a las técnicas
revisitadas
Resumen
El presente artículo reflexiona acerca del lugar de la bufona y el bufón en la
sociedad, a partir de la acepción del término, además de discutir cuestiones
relacionadas con la ética en la actuación cómica. Pasando por autores y
artistas como Beth Lopes, Henry Bergson, José Tonezzi, Leo Bassi, entre
otros, se friccionan capas de la risa burlona, vinculándola al reconocimiento
histórico y social de estas figuras, con el fin de introducir una
problematización de las técnicas desarrolladas por los pedagogos franceses
Jacques Lecoq y Philippe Gaulier, prestando atención a sus implicaciones en
los procesos creativos.
Palabras clave
: Bufonería. Performatividad. Risa. Técnica.
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Ser bufão hoje em dia cenário real e campo poético
Quando ouvimos o termo “bufão” associado a personagens fora do cenário
artístico, percebemos uma relação imediata com algo que é incivilizado, fora do
padrão, desbocado. Não se trata de um apontamento com base científica; apenas
gostaríamos de trazer dois exemplos de personagens da nossa sociedade para os
quais se utiliza, por vezes, esse termo com a carga adjetival a que nos referimos.
Um é o mendigo, mais precisamente um mendigo louco que fala sozinho, se veste
de maneira desalinhada, frente ao qual os passantes ficam temerosos, talvez por
receio de serem abordados de forma incômoda, de serem intimidados na frente
de outras pessoas, quando não o ajudam com algum dinheiro. O outro é o
político
,
mais precisamente um político que diz o que pensa. Um ótimo exemplo deste
último, no cenário nacional, é o ex-presidente Jair Bolsonaro, que tanto foi
intitulado de bufão entre os anos de 2016 e 2022.
É de se intrigar a constatação de possíveis semelhanças entre essas duas
personagens, tão distantes socioeconomicamente, que as fazem receber uma
mesma denominação. É evidente que o uso da palavra, enquanto fala ou escrita,
em qualquer comunidade linguística, é uma ação em constante mutação, livre,
capaz de gerar multiplicidade de sentidos e contradições. Os termos “palhaço” e
“palhaçada” exemplificam bem isso: o tom muitas vezes pejorativo no uso dessas
palavras distancia-as de sua etimologia e de sua história. Tal emprego dos termos
revela, por conseguinte, o olhar desprestigiado da sociedade moderna ocidental,
que atribui ao riso, à comicidade e ao artista cômico papel de menor importância,
frente ao que ela considera mais elevado, como a seriedade, a ordem e o
progresso.
No caso do
bufão
, é preciso admitir que algo condizente com a sua origem
quando se associa o termo a certos comportamentos das personagens
supramencionadas. Friso bem:
certos comportamentos
. Coadunamos com o
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professor Philippe Gaulier
4
, cujo pensamento reforça o lugar de onde vêm os
bufões, destacando sua condição de oprimidos e marginalizados na sociedade.
Nesse sentido, o uso da palavra associada aos mendigos, aos loucos, aos que
perambulam na rua destoando das pessoas “civilizadas” e “bem vestidas” é
notadamente coerente quando se pensa a ancestralidade do bufão. Ao
exemplificar os bufões dos dias de hoje, Gaulier destaca os “loucos, deficientes
mentais, homossexuais, ciganos, aidéticos, negros” (Gaulier, 2016, p. 103),
representações dos que foram
expulsos
do paraíso na sociedade francesa e
europeia.
O diretor de teatro e ator Joaquim Elias (2018), em
No encalço dos bufões
,
dedica o seu prólogo a figuras de sua infância: o
Missianão
, “espécie de versão do
‘homem do saco’ […], a quem as mães recorriam como estratégia para assustar as
crianças quando elas se tornavam insuportáveis” (Elias, 2018, p. 8); o
Zétomove
,
um “delirante senhor” que “morava atrás de um bambuzal” e que dividia o quintal
de sua casa com a do vizinho (Elias, 2018, p. 9), dentre outros “desajeitados […],
mendigos e aleijados”, nos quais, apesar dos seus sofrimentos, percebia uma
“alegria de viver” e uma “disposição para o risco que implicava estarem vivos”
(Elias, 2018, p. 12).
No caso do político com comportamentos “bufonescos”, é preciso distinguir,
primeiro, se foi o bufão que entrou na política, ou se o político usou de
bufonaria
para se promover. Ricardo Lucena e José Tonezzi (2017), no artigo
Bufonaria e
processo civilizador
, atribuem ao deputado federal Tiririca
5
a função de “novo
bufão”, incrustado na instância de poder (Lucena, Tonezzi, 2017, p. 196). Sem nos
atermos a esse exemplo específico, consideramos importante destacar, acerca da
conduta no meio político, a distinção entre bufonaria e
malandragem
, colocada
pelos autores. Com vistas a alcançar ou manter a popularidade, o “malandro”
possui um caráter dissimulador, cujo ato “visa à obtenção de vantagens pela
4
Fundador da École Philippe Gaulier, que funciona em Paris, uma das mais importantes instituições de
palhaços do mundo, Gaulier foi discípulo de Jacques Lecoq e é hoje um dos maiores mestres na arte da
palhaçaria.
5
Francisco Everardo Oliveira Silva, conhecido pelo codinome Tiririca, foi cantor e humorista, eleito quatro
vezes como deputado federal, sendo em 2010 o mais votado do Brasil. No referido artigo, os autores fazem
menção a uma reportagem da revista Piauí, edição 68, de maio de 2012.
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produção e uso de inverdades” (Lucena, Tonezzi, 2017, p. 193)
6
. E acrescentam:
Por seu turno, diferentemente do malandro, o bufão age de maneira
natural e direta, recusando-se ao comportamento esperado. Mostra-se
como contraponto aos costumes e regras. Por denotar desfaçatez para
com o seguimento da ordem socialmente estabelecida, os atos de um
bufão ajudam na confusão para o bom entendimento do termo. Diferente
do malandro, que simula propositadamente, o bufão é um ser verdadeiro,
que provoca riso e ironia por escancarar o que de inquietante e
hipócrita nas relações humanas (Lucena, Tonezzi, 2017, p. 193).
Georges Minois (2003), sobre o riso no século XX, acentua bem como “os
meios políticos conseguem exterminar o cômico, tornando-se eles próprios
cômicos” (Minois, 2003, p. 596), a respeito do que as propagandas eleitorais são
uma amostra exemplar. Nesse caso, o riso passa a ser uma estratégia malandra
de imprimir popularidade ao personagem político. Em outros casos, a mesma
finalidade é almejada por meio de outra estratégia, tão malandra quanto: mostrar-
se verdadeiro e desbocado, ainda que a sua verdade e insensatez verbal revele um
discurso de ódio, que reitera uma visão colonizadora, racista, machista e
homofóbica, e que suas ações procurem desestabilizar a estrutura democrática.
Se, por um lado, o comportamento e o discurso do ex-presidente soavam de
maneira “natural” e nada diplomática, “recusando-se ao comportamento
esperado” de um chefe do executivo, por outro, sua proximidade com setores mais
conservadores da sociedade, sob o discurso ideológico que ressalta valores como
Deus, pátria e família, denotam uma simulação proposital em se promover
enquanto presença diferenciada na esfera política nacional, quando, na verdade,
reforçava velhos “costumes e regras”.
Não pretendemos aqui problematizar a utilização do termo “bufão”, sugerindo
que tomemos maiores cuidados com o seu uso, para não incorrermos na mesma
“injustiça” que ocorre no caso do termo “palhaço”. É preciso reconhecer que a
dimensão absurda de alguns comportamentos do ex-chefe do executivo brasileiro,
como brincar com a falta de ar dos acometidos pela doença da Covid-19, ou
homenagear o ex-coronel Brilhante Ustra, reconhecido pela justiça brasileira como
6
Os autores não deixam de sublinhar que o termo “malandro” apresenta conotações diversas, existindo,
inclusive, um “malandro do bem”, com caráter poético.
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torturador (quando Bolsonaro era deputado federal), são ações que ironicamente
tornam compreensíveis que se atribua a ele a denominação de bufão, pelo seu
caráter inusitado. No entanto, é crucial atentar para o propósito embutido nessas
ações. Ao atribuir a esse estrategista o título de bufão, é como se considerássemos
que um falso bobo da corte assumira o papel de rei. Ocorre que, nessa ocasião,
não um simples comportamento desregrado cuja “presença parece ser
suficiente”, como se referem Lucena e Tonezzi (2017, p. 196) ao deputado Tiririca;
nem há, sob a máscara do rei, um
subalterno
se contorcendo de prazer enquanto
zomba do poder e de sua lógica insana, “te confundindo pra te esclarecer”, como
brinca Tom na canção Tô, de 1976. Esse falso bufão tem propósitos bem
definidos.
É importante aqui destacar alguns conceitos acerca do termo “bufão”. Patrice
Pavis (2015), em seu
Dicionário de Teat
ro, o destaca como “princípio vital e corporal
por excelência”, que “guarda, na verdade, a lembrança de suas origens infantis e
simiescas” (Pavis, 2015, p. 35). Ao tratar da cultura cômica na idade média, Mikhail
Bakhtin (2010) refere-se aos bufões como “veículos permanentes e consagrados
do princípio carnavalesco na vida cotidiana (aquela que se desenrola fora do
carnaval)”, situando-se na fronteira entre a vida e a arte (Bakhtin, 2010, p. 7). Sua
figura remonta aos mimos da Grécia Antiga, aos tipos das comédias atelanas e da
Sátira Menipeia, ao bobo da corte, aos
jongleurs
que atuavam nas feiras no
medievo
7
, e cuja natureza se aproxima dos palhaços sagrados no sudoeste norte-
americano e do hotxuá entre os Krahôs do Tocantins, como aponta Mario Fernando
Bolognesi no artigo
Palhaços e outros cômicos: do sagrado ao profano
(Bolognesi,
2017).
A compreensão dessa natureza infantil, telúrica, carnavalesca, na concepção
do seu imaginário, é importante para pensar no “espírito” motivador do bufão,
movido pelo desejo da carne, das coisas terrenas e por si mesmas sagradas. Seu
desregramento é percebido justamente por ser ele um ser que não se adequa ao
ambiente institucionalizado. Adentrando o campo da arte, por sua vez, quando
podemos distinguir intencionalidades no trabalho autoral de determinados
7
No livro
No encalço dos bufões
, Joaquim Elias (2018) traça uma trajetória dessa figura na cultura ocidental,
estabelecendo paralelos entre o bufão e alguns tipos e personagens da antiguidade e do período medieval
na Europa.
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artistas, é importante o reconhecimento da origem dos bufões, como destaca
Gaulier. Para além desse estado descabido diante dos padrões, uma postura
transgressora por parte de quem sente determinadas injustiças.
Nessa perspectiva, com um posicionamento provocativo, situando-se,
inclusive, na fronteira entre a vida e a arte, Leo Bassi (EUA/ESP)
8
é um ótimo
exemplo entre os artistas contemporâneos. Em entrevista ao pesquisador André
Ferreira
9
, Bassi conta como fundou a sua
Igreja Patólica
, depois das perseguições
e atentados que sofreu durante a temporada do espetáculo
La Revelación
e do
processo no qual foi acusado de “injustiça” e blasfêmia:
[…] descobri todo um nascer de coisas nesse momento. A primeira coisa
era a ignorância e a estupidez deste pequeno mundo da extrema direita.
E não havia o perigo de lutar contra essa gente para a liberdade de
expressão, mas, por outro lado, era tão estúpido, uma luta inútil, era como
lutar com crianças porque seus argumentos são inexistentes. Então
comecei a pensar como posso argumentar seriamente com estas
pessoas quando seus argumentos não eram nada sérios, eram
totalmente irracionais. Então pensei que a melhor maneira de responder
isso era fazer uma coisa irracional eu também, e humorística. Então fazer
tudo que eles faziam... de sua intolerância... de usar a ideia de um pato
de plástico, utilizando então os mesmos argumentos, as mesmas
palavras… (Bassi apud Ferreira, 2018, p. 315).
Bassi é referenciado pela pesquisadora e professora Vanessa Bordin como
um dos “artivistas”, por adotarem “uma forma de vida condizente com aquilo que
pregam utilizando a arte como instrumento para provocar transformações sociais
a partir de suas convicções” (Bordin, 2013, p. 101). Em sua dissertação O
jogo do
bufão como ferramenta para o artivista
, ela recorre aos tipos bufônicos elencados
por Jacques Lecoq
10
: o bufão místico, ou profeta, como ela se refere, em que traz
como referência Reverend Billy (EUA), em que se “profana a imagem do
8
Nascido em uma família circense tradicional, Leo Bassi vive hoje na Espanha e se autodenomina bufão.
Desde a década de 1970, afastou-se dos picadeiros do circo e passou a desenvolver um trabalho autoral a
partir do jogo cômico. Dentre as suas principais obras estão
Instintos Ocu
ltos (2011),
Bassibus
(2004 a 2014),
La Revelación
(2006) e
Igreja Patólica
(2012).
9
A entrevista encontra-se anexa à dissertação de André Luiz Ferreira,
Bufonaria e política a partir de Leo Bassi
(2018).
10
Jacques Lecoq foi o fundador da
École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq
. Na obra O corpo poético
(2010), organizada a partir de entrevistas concedidas pelo professor, é possível acompanhar o trabalho
pedagógico realizado no curso, que atravessa da
mimodinâmica
à
geodramática
. No capítulo dedicado aos
bufões, Lecoq aponta para três territórios de onde eles surgem: o mistério, o grotesco e o fantástico.
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televangelista”, que “se confunde com um astro de rock”, “denunciando atitudes
de uma sociedade capitalista de consumo” (Santos, 2020, p. 22); o bufão
fantástico, referenciando Guilhermo Gómez Peña (MEX/EUA), cujo
linguajar
blasfematório
ao realizar suas críticas busca “romper com barreiras e definições
sociais, como identidade cultural, gênero e sexualidade” (Santos, 2020, p. 23); e o
bufão grotesco, que tem Leo Bassi como referência.
Outro importante artista bufão contemporâneo, presente no cinema, é o
comediante inglês Sacha Baron Cohen. Destaco aqui o longa-metragem
Borat
, de
2007, em que atua como um jornalista do Cazaquistão que viaja pelos Estados
Unidos entrevistando pessoas de diversos segmentos da sociedade. Mesclando
acontecimentos ficcionalizados e outros realizados sem a ciência dos personagens
envolvidos, o filme apresenta traços marcantes do espírito bufo, como o sarcasmo
e o deboche, revelando os preconceitos enraizados na sociedade norte-americana
que se externam quando são provocados pelo personagem, confundindo, muitas
vezes, o (tele)espectador, quando não se distingue o artista por trás da máscara
bufa, que tem por divertimento parodiar o (sistema) opressor.
Na cena teatral e televisiva brasileira, vale destacar a figura da Dercy
Gonçalves (1907-2008), não por um ativismo direcionado, mas por uma existência
que por si só instaurava um posicionamento reivindicativo, ao se firmar enquanto
artista mulher, que subvertia o “fracasso” em potencialidade cômica. Nela também
se observa um limiar tênue entre a ficção e o real, a ponto de não distinguirmos
quem é a artista e onde começa a bufona. Sua definição enquanto pessoa artista
bufa, cuja separação entre a realidade e o palco é quase imperceptível, foi
defendida por Virgínia Namur (2009) em sua tese
Dercy Gonçalves: o corpo torto
do teatro brasileiro
. A autora destaca três personalidades que compunham a
artista: a Dolores (seu nome de nascimento e que remonta a Dercy antes de se
tornar artista, com seus “moralismos e dores”), a própria Dercy (com suas
“inseguranças transitórias e polissêmicas”) e a bufona (com suas “determinações
fulgurantes, exibicionistas ou chocantes”), formando uma “entidade triplanar, mas
indissociável e única” (Namur, 2009, p. 290).
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A ética bufônica no teatro
Bya Braga (2017), no artigo intitulado
Figuras Bufônicas: Cultura Material de
Ator e Outros Bichos
, chama a atenção para a problemática social na qual se insere
a memória cênica da figura do bufão, reiterando como o seu modo de
expressividade estética transita entre realidade e ficção. A figura do bufão, segundo
a autora, “sinaliza discursos diferenciados e pode, portanto, colaborar para o
fortalecimento da ação humana para além do ato artístico. O Bufão pode
contribuir, assim, para determinados modos de ativismo social” (Braga, 2017, p. 38),
como as referências trazidas por Bordin em sua dissertação exemplificam bem.
Roberta de Mello Casa Nova (2017), por sua vez, em
A Estratégia do Prazer ou
o Prazer da Estratégia
, destaca o caráter amoral dessa figura, sem lados e sem
bandeiras. Ao discorrer sobre a própria experiência na criação e no
desenvolvimento de uma cena, ela relata como o seu apreço pela temática
explorada na dramaturgia e a ideia de que compreendia tudo o que construía
cenicamente a fez perder a leveza em sua
performance
, tornando-se mais
“militante” e menos “sedutora” aos olhos do público. Além da leveza, a autora
ressalta o prazer e a liberdade como elementos imprescindíveis no processo
criativo do bufão. E destaca, como armadilha, a vontade de defender causas
políticas:
Se levarmos em conta o forte teor de crítica social inerente ao discurso
de um bufão, não podemos negar a reverberação política que tal discurso
provoca, porém o ator deve estar atento para não transformar sua
performance em ato de militância. A liberdade do bufão reside no fato de
que ele não faz (e não quer fazer) parte da vida em sociedade, ele não
tem necessidade de nós e de nós não quer nada. É isso que lhe a
liberdade de rir de tudo (Casa Nova, 2017, p. 100).
Sem nos atermos à distinção evidente entre os termos “ativismo” e
“militância”, tais apontamentos nos levam à reflexão sobre o papel do bufão na
arte contemporânea. Existe, em primeiro lugar, esse “papel”? Por outro lado,
como distinguir o artista do seu bufão? Teria aquele a necessidade de um
engajamento político afirmado e este a indiferença frente à sociedade? É possível
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a indiferença quando um bufão se coloca no mundo? A única certeza latente: a
presença desse corpo-discurso disforme (seja grotesco, profético ou fantástico) é
política por si só. O estado desse corpo carregado de cicatrizes reflexo das
mazelas e incongruências de uma sociedade avessa à percepção do outro – é, por
si só, provocativo. No entanto, é sob a derrisão que essa figura opera; e é enquanto
festa que se personifica; ela ri, apesar de tudo. Daí a necessidade de leveza,
apontada por Casa Nova.
Beth Lopes (2017), em
Bufonaria: Tradição e Contemporaneidade
, aponta para
os dilemas que perpassam o processo de investigação de muitas atrizes e atores
nessa linguagem, e para a visão algumas vezes “equivocada” por parte da plateia:
A despeito da reação negativa que o bufão possa provocar no público,
considerando que ele debocha de tudo e de todos, e quebrando todas as
regras, é que ele nos desafia a duvidar dos valores instituídos na
sociedade: a religião, o poder, a sexualidade. Isso nem sempre é bem
recebido, tendo em conta que, em tempos de posturas “politicamente
corretas”, muitas vezes ele pode ser incompreendido não pelo público,
mas também pelos próprios atores que em seus “purismos” se digladiam
entre o certo e o errado. Nem sempre fica bem claro que o “politicamente
incorreto” dos bufões pode revelar [...] a verdade omitida e calada (Lopes,
2017, p.20).
É evidente que o artista pode, e até deve, ter a consciência desperta a fim de
pensar sobre determinadas causas que não devem ser ignoradas, inclusive pelo
reconhecimento histórico e social dessa figura, a fim de não cair na armadilha de
um humor que acentua preconceitos e estruturas majoritárias. O documentário
O
riso dos outros
(2012), dirigido por Pedro Arantes, toca bem nessa problemática.
Com enfoque nos comediantes de
stand-ups
, o filme levanta reflexões, por
exemplo, sobre quem é a vítima de uma determinada piada, de quem estamos
rindo, ou se é característica necessária para um verdadeiro comediante ser
politicamente incorreto. Incorreto para quem?
Embora o bufão não seja um
stand up comedian
, ainda que um
stand up
comedian
possa ser um bufão, o filme nos leva a concluir, acerca da comicidade,
que o interesse em agradar e fazer um grande público rir, ainda mais quando não
problematizamos de quem estamos rindo, não deve reger o impulso criativo do
artista bufônico ou
clownesco
. A piada pronta, carregada de estereótipos, que
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retroalimenta uma estrutura patriarcal, machista e homofóbica, descaracteriza um
dos aspectos mais incisivos do escárnio, que é o seu poder desestruturante e
subversivo. Passar a mão no traseiro do guarda não é tão fácil quanto no de um
mendigo, como comenta um dos entrevistados no documentário.
Henry Bergson (2018), em
O riso:
Ensaio sobre o significado do cômico
,
destaca a
função social do riso
. Acentuando que o cômico se dirige à
inteligência
pu
ra, e que, portanto, não comicidade quando a “vítima” desperta piedade,
temor ou simpatia, o autor reforça que “os personagens da vida real não nos fariam
rir se não fôssemos capazes de assistir às suas aventuras como a um espetáculo
que vemos do alto de nosso camarote” (Bergson, 2018, p. 96). Nessa relação de
equivalência entre palco e realidade, revelam-se interesses subjacentes ao riso,
tanto nas comédias quanto na vida.
[…] mesmo no teatro o prazer de rir não é um prazer puro, isto é, um
prazer puramente estético, absolutamente desinteressado. A ele se
mistura um pensamento de fundo, pensado por nós pela sociedade,
quando não o pensamos por nós mesmos. Nele entra a intenção não
declarada de humilhar e, por ela, é verdade, de corrigir, pelo menos
exteriormente (Bergson, 2018, p. 96).
Além disso, o autor acredita, ainda, que o distanciamento entre o que é risível
e aquele que ri não revela necessariamente o caráter imoral de uma determinada
personagem, senão antissocial:
A verdade é que, a rigor, a personagem cômica pode estar em total
acordo com estrita moral. Falta a ela entrar em acordo com a sociedade.
[…] Um vício flexível será mais difícil de ridicularizar do que uma virtude
inflexível. É a rigidez que é suspeita para a sociedade. […] Qualquer um
que se isola se expõe ao ridículo, porque o cômico é feito, em grande
parte, desse próprio isolamento. Desse modo se explica que o cômico
seja quase sempre relativo aos costumes, às ideias - em uma palavra,
aos preconceitos de uma sociedade” (Bergson, 2018, p. 97).
O fato de que algumas piadas provocam o riso em um determinado grupo de
pessoas e em outros não, como fica evidente no documentário mencionado,
reflete, no mínimo, o quanto a sociedade brasileira não corresponde a um grupo
homogêneo do qual destoam alguns
marginalizados
dos quais rimos, mas à
existência de grupos diversos, com os seus valores e os seus discursos. A última
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eleição presidencial, em 2022, reitera inclusive a polarização dessa sociedade,
dividida em sua maioria por duas vertentes ideológicas. É evidente que Bergson
traz uma abordagem, de certa forma, descritiva sobre o riso, acentuando seu
funcionamento e o seu papel nas relações sociais, destacando a dramaturgia
cômica europeia como imaginário referencial. No entanto, pensar a comicidade no
Brasil do século XXI, e sobretudo a bufonaria, é atentar sobre a presença dessa
figura ancestral em nossa sociedade heterogênea; é atentar para as vozes das
minorias, silenciadas por séculos.
O bufão é antissocial, logo, potencial “vítima” do riso dos outros, na
perspectiva bergsoniana. Mas ele aceita e joga com essa condição, não faz e não
quer fazer parte da sociedade (como mencionou Casa Nova). Quando parodia os
“homens de bem”, “sociáveis”, o bufão reflete as mazelas dessa ala majoritária.
Sua fala, “ao mesmo tempo proibida e ouvida” (Pavis, 2015, p. 35), carrega, para
além da superfície das palavras, um desejo blasfemo. De “vítima”, ele passa a
manipulador do escárnio. Esse “ser humano em estado bruto” (Lopes, 2005, p. 17)
é, sim, amoral, livre para atirar seu discurso sem pudores nem bandeiras, mas sua
origem do gueto, da “periferia”, da escória, reforça o destino da sátira. Não é
reforçando preconceitos que ele se mobiliza, senão expondo-os, destroçando as
camadas de sociabilidade que os escondem.
As técnicas e os seus desdobramentos
Quando Jacques Lecoq propôs aos alunos, no estágio em que trabalhavam a
bufonaria na
École Internationale de Théâtre
11
, que eles utilizassem vestimentas,
enchimentos e adereços para compor um outro corpo, distanciando-os de sua
própria fisicalidade, ele visava instaurar um clima mais fecundo para que os alunos
pudessem zombar uns dos outros. Lecoq conta-nos que, num dos exercícios de
paródia, pedia-se que alguém fosse ao público fazer um “discurso sensato” e que,
a partir daí, um outro se colocava diante do público também, imitando o orador.
Era uma etapa seguinte à da imitação do outro em sua maneira de caminhar, de
falar, de gesticular etc. Nessa próxima etapa, em que se imitava o discurso do
11
A
École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq
foi fundada em 1956 por Lecoq e funciona até hoje em
Paris.
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colega, zombava-se inclusive de convicções profundas, procedimento que “atingiu
muito rapidamente uma forma de maldade, difícil de assumir”, e que levou o
professor a concluir que aquele que zomba deveria se distinguir daquele que era
motivo de zombaria – “ele tinha de ser outro” (Lecoq, 2010, p. 180).
Por meio dessa transformação corporal, nesse corpo reinventado e
artificial, de repente eles se sentiam mais livres. Ousavam fazer coisas
que jamais teriam feito com seus próprios corpos. Nesse sentido, o corpo
inteiro tornava-se máscara. Diante desses corpos bufonescos,
personagens parodiados aceitavam mais facilmente que “loucos”
zombassem deles; era mais inconsequente. Não havia conflito algum
entre o bufão e aquele de quem ele zombava (Lecoq, 2010, p. 180-181).
Philippe Gaulier (2016), que fora aluno de Lecoq e que depois criou sua própria
escola, utilizava-se também de exercícios similares no estudo do bufão. Em
O
atormentador: minhas ideias sobre teatro,
o autor elenca quatro etapas nesse
processo
.
É importante destacar que, apesar de trazer alguns procedimentos
didáticos
, Gaulier não costuma explicar regras ou aplicar métodos de criação,
como constata Casa Nova, a partir de sua experiência e dos relatos de seus ex-
colegas quando cursou a escola
12
. Feita a ressalva, vamos às etapas por ele
sugeridas: divertir-se imitando outro; buscar três modelos de “pilantra”; buscar o
próprio bufão, “suas deformações físicas, que ajudarão a descobrir o prazer do
jogo, da paródia, da alegria de vir a público dizer a verdade aos burguesinhos de
bunda perfumada” (Gaulier, 2016, p. 103); e buscar o bufão dos dias de hoje.
No Brasil, as técnicas francesas de Lecoq e Gaulier influenciaram muitas
artistas, pesquisadoras e pesquisadores que trabalharam ou trabalham com a
bufonaria, tais como Beth Lopes (USP), Claudia Müller Sachs (UFRGS), Joice Aglae
(UFBA), Bya Braga (UFMG), Marianne Consentino (UFPE), Vanessa Bordin (UEA),
Joaquim Elias (MG), José Tonezzi (UFPB), dentre outras. É provável que todas elas
tenham tido a experiência, em seus processos de criação ou em sala de aula, de
investigar a corporeidade grotesca a partir da utilização de enchimentos e
artefatos para composição de deformações físicas. Para além desse
procedimento, é possível identificar também algumas problematizações acerca da
12
Roberta de Mello Casa Nova menciona a sua experiência na École Philippe Gaulier no artigo já mencionado
A estratégia do prazer ou o prazer da estratégia
(2017).
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técnica, visando novas perspectivas a partir das experiências e peculiaridades de
cada impulso artístico e vital, refletindo, como bem aponta Elias, a “multiplicidade
de formas às quais [o bufão] se presta” (Elias, 2018, p. 21).
Em conversa informal na ocasião da XI Jornada de Pesquisa em Artes Cênicas
e II Colóquio de Pesquisa em Artes nas Escolas, realizada em novembro de 2022
na UFPB, a pesquisadora Nykaelle Barros (2017)
13
comentou que vem trabalhando,
em suas oficinas, outras proposições criativas na construção dos corpos bufões,
partindo de outras indicações, em que ao invés de serem acessados os tipos
aleijado, corcunda, gordo
14
, entre outros, investigam-se os bichos asquerosos. Em
outra experiência, dessa vez no III Colóquio de Mascaramento da Cena Expandida,
que ocorreu
on-line
em maio desse mesmo ano, deparamo-nos com outras
possibilidades que vêm sendo desenvolvidas por pessoas que estão pensando e
performando no universo bufo. Matheus Silva (UFMG) trouxe, por meio de uma
comunicação performativa, um pouco de sua
Adivinha Diva
, uma “bufona
cyborg
bicha”, em que ela desenvolve na prática o conceito de instauração, de Étienne
Souriau
15
. Segundo ela, com base no autor, “instaurar é fazer com que essas
existências mínimas que nos habitam existam mais”
16
. Aline Marques apresentou
parte de seu projeto de mestrado na UFRGS, onde propusera a criação de um
monólogo em que a criação de sua nova bufona se daria sem o uso de “recursos
concretos convencionalmente envolvidos na construção do corpo-máscara do
bufão” (Marques, 2022, p. 8), diferentemente do que ocorrera nas suas outras
criações – da bufona Celoi e do garoto Valdorf
17
.
Em sua dissertação,
Esculhambada: um modo bufo de criação
, Marques
13
Nykaelle Aparecida Pereira de Barros é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal da Bahia (PPGAC-UFBA). Em 2017, defendeu sua dissertação de mestrado, intitulada
Técnica de bufão: possibilidades teórico-práticas para o ator contemporâneo
, pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN).
14
Na investigação do corpo bufão, a partir das técnicas de Lecoq e Gaulier, os atuantes utilizam-se de
enchimentos e artifícios que os caracterizam dessas formas.
15
Referência feita por Matheus Silva em sua comunicação. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=3cJ_oAfLACM&t=8426s>. Acesso em: 10 dez. 2022.
16
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3cJ_oAfLACM&t=8426s>. Acesso em: 10 dez. 2022.
17
Em sua dissertação, Aline Schneider Marques discorre um pouco sobre o processo criativo da bufona Celoi,
com a qual integrou o espetáculo
As bufa
(2008 a 2015) e do bufão Valdorf, com o qual realizou o solo bufo
homônimo (2016).
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(2022) propõe um cruzamento entre a bufonaria e a atuação em primeira pessoa,
acentuando a urgência em trazer aquilo que a move no momento presente, e
demonstrando interesse em acessar esse modo por meio de outros caminhos,
que não o da dilatação física com base nos recursos convencionais advindos das
técnicas francesas. Segundo a autora, cabem à bufonaria algumas “atualizações e
problematizações no sentido de estabelecer diálogos com práticas
contemporâneas” (Marques, 2022, p. 52).
Em todas elas, portanto, é nítida a problematização acerca do
comprometimento ético e estético envolvido no modo de criação do
mascaramento bufo. Silva inclusive, caracteriza como reivindicativa sua postura
performática, em favor da causa LGBTQIA+. Barros, ao buscar outras formas de
acessar o grotesco, atenta para o cuidado sobre o corpo do outro e sobre a
receptividade a respeito do que é satirizado. Aline Marques, ao investigar sua
bufona atuando em primeira pessoa, além de transitar do teatral para a
performatividade, e de evidenciar esse mesmo cuidado com a comicidade que é
desenvolvida no próprio corpo e no jogo com a plateia, acentua o caráter
multifacetado do humano. Se considerarmos que o trabalho do bufão é tão
pessoal quanto o do
clown
, inserindo-se na mesma lógica de “criar seu próprio
clown
”, como sugere Cláudia Müller Sachs (2017, p. 73), e lembrando que Aline tem
dois bufões (a Celoi e o Waldorf), anteriores ao seu processo mais recente, esse
último aspecto parece corroborar com o conceito de instauração, apresentado por
Matheus. São diferentes Alines que nela habitam, e que ela vai redescobrindo,
fazendo existir mais cada uma delas, por meio de cada processo investigativo.
Considerações finais
Ao entrar em contato com técnicas bufônicas na linguagem teatral, é
importante a percepção do nosso lugar e das nossas feridas. Adentrar esse
universo requer o despojamento das convicções, o contato profundo com a
própria imperfeição. É pela exposição de si mesmo e pelo desejo de blasfêmia que
a bufona ou o bufão se move. Os questionamentos e atravessamentos aqui
desenvolvidos nos levam a pensar sobre o lugar de fala que ocupamos, enquanto
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seres-artistas na sociedade. Refletir sobre o próprio lugar, portanto, é crucial
quando se propõe investigar a bufonaria, devido à carga de pessoalidade envolvida
e à busca por encontros fronteiriços.
Cientes de que caberia uma discussão mais aprofundada sobre o termo
“lugar de fala”, bem como sobre o tema da identidade que perpassa esse conceito
e tudo o que foi apresentado aqui, ativemo-nos a uma breve introdução acerca da
problematização das técnicas do bufão, que vem sendo levantada por
pesquisadoras brasileiras nos últimos anos. É de extrema importância, portanto,
discutir e atualizar as técnicas, atentando sempre para a origem dessa figura
ancestral, numa interação constante entre artistas, pesquisadores e todos os que
se interessam pela comicidade e que reconhecem na estética desenvolvida uma
relação direta com a ética presente no discurso bufo.
Se observarmos os bufões contemporâneos mencionados neste artigo,
verificamos que suas performances não passam necessariamente pela
deformação física ou pelo uso de artifícios para transformar o corpo. No teatro, os
trabalhos de Nykaelle Barros e Aline Marques reforçam esse redirecionamento.
Não se trata de se contrapor às técnicas desenvolvidas pelos pedagogos franceses,
mas de ampliar as possibilidades de investigação das deformidades, e reconhecer
na diversidade estética bufa o caráter múltiplo de sua expressão, sem perder de
vista o prazer de existir e o de zombar, escrachada ou ironicamente, como forma
de crítica e revelação das hipocrisias da sociedade.
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Recebido em: 30/01/2023
Aprovado em: 17/04/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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