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Entrevista com Walter Carlo (Teco)
Entrevista com Walter Carlo (Teco)
Concedida à Alex Machado e Rafael Gonçalves
Para citar este artigo:
MACHADO, Alex; GONÇALVES, Rafael. Entrevista com
Walter Carlo (Teco). [Entrevista concedida a Alex Machado
e Rafael Gonçalves].
Urdimento -
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v.1, n.46, p.1-20, abr. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101462023e0501
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Entrevista com Walter Carlo (Teco)
Entrevista concedida a Alex Machado e Rafael Gonçalves
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-30, abr. 2023
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Entrevista com Walter Carlo (Teco)
1
Alex Machado
2
Rafael Gonçalves
3
Resumo
A entrevista com Walter Carlo buscou obter dados sobre possíveis distinções
entre os processos de aprendizagem, criação e performance vivenciados no
circo entre as décadas de 1940 e 1990 (período em que atuou como artista)
e os oferecidos em escolas profissionalizantes, em especial a Escola Nacional
de Circo Luiz Olimecha (ENC), onde foi professor entre 1995 e 2018. Abordou,
ainda, aspectos singulares da vida, da formação e do trabalho em circo no
período mencionado, como a dificuldade no acesso à educação formal, as
metodologias e características do ensino artístico na itinerância, assim como
os espaços de trabalho para além das lonas. O depoimento traz, ainda,
informações sobre a integração de elementos de diferentes artes na cena
circense de então e os recursos mais validados por este artista e seus
contemporâneos nos modos de criação e inserção de seus números no
mercado, oferecendo um registro da memória e da produção artística,
cultural e social do circo brasileiro.
Palavras-chave:
História do circo. Circo itinerante. Pedagogia circense.
Processos de criação circenses.
1
A entrevista é parte da dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) em 2022, intitulada: Você
Treina ou Ensaia:
questões no campo circense que repercutem nos processos de aprendizagem/criação/performance na
Escola Nacional de Circo Luiz Olimecha
,
de Alex Machado.
2
Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Especialista em
Atividades Acrobáticas do Circo e da Ginástica (PUCPR). Bacharel e Licenciado em Artes Cênicas (UNIRIO).
Instrutor Circense (ENC-Montreal) e Circense especializado em acrobacias aéreas (ENC-Brasil). Artista
circense, professor, diretor e pesquisador. alextrapezista@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/7528523544215278 https://orcid.org/0000-0002-2270-5648
3
Especialista em Ciências da Performance Humana pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Graduado em Fisioterapia pela Universidade de São Paulo (USP). Atua como fisioterapeuta na Escola
Nacional de Circo Luiz Olimecha. rafael.goncalves@funarte.gov.br
http://lattes.cnpq.br/6057054645142038 https://orcid.org/0000-0001-9727-4689
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Entrevista concedida a Alex Machado e Rafael Gonçalves
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-30, abr. 2023
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Interview with Walter Carlo (Teco)
Abstract
The interview with Walter Carlo sought to obtain data on possible distinctions
among the learning, creation and performance processes experienced in
circus between the 1940’s and 1990’s (period in which he acted as an artist)
and those offered in professional schools, especially the Luiz Olimecha
National Circus School (ENC) where he was a teacher between 1995 and 2018.
It also addressed unique aspects of circus life, education and work in the
mentioned period, such as the difficulty in accessing formal education, the
methodologies and characteristics of artistic teaching in itinerancy and the
workspaces beyond the big tops. The statement also brings information about
the integration of elements from different arts in the circus scene and the
resources most validated by this artist and his contemporaries in the ways of
creating and inserting his acts in the market, offering a record of memory and
artistic, cultural and social production of the Brazilian circus.
Keywords
: Circus history. Traveling circus. Circus pedagogy. Creational
processes in circus arts.
Entrevista con Walter Carlo (Teco)
Resumen
La entrevista a Walter Carlo buscó obtener datos sobre posibles distinciones
entre los procesos de aprendizaje, creación y actuación vividos en el circo
entre las décadas de 1940 y 1990 (período en el que se desempeñó como
artista) y los ofrecidos en escuelas profesionales, especialmente la Escuela
Nacional de Circo Luiz Olimecha (ENC) donde fue docente entre 1995 y 2018.
También abordó aspectos singulares de la vida, la formación y el trabajo en
el circo en el período mencionado, como la dificultad para acceder a la
educación formal, las metodologías y características de la enseñanza artística
en la itinerancia y los espacios de trabajo para allá de las carpas. El
comunicado también trae información sobre la integración de elementos de
diferentes artes en la escena circense y los recursos más validados por este
artista y sus contemporáneos en las formas de crear e insertar sus actos en
el mercado, ofreciendo un registro de memoria y producción artística, cultural
y social del circo brasileño.
Palabras-clave
: Historia del circo. Circo itinerante. Pedagogía circense.
Procesos de creación del circo.
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Entrevista concedida a Alex Machado e Rafael Gonçalves
Florianópolis, v.1, n.46, p.1-30, abr. 2023
4
Walter Carlo (Rio de Janeiro, 1931 Juiz de Fora, 2021) foi artista da 4ª. geração
da família Carlo. Teco, como era conhecido, é o apelido vindo de seu palhaço Teco-
Teco. Malabarista, acrobata, ator e excêntrico musical, foi criado no Circo Olimecha
onde aprendeu os primeiros passos acrobáticos com seu pai, Guilherme Carlo
4
,
estreando nos picadeiros com números de dândis
5
e escada livre. Durante muitos
anos formou, com os irmãos Jorge
6
, Edgar
7
e Aldo
8
, a trupe de malabares Irmãos
Carlo. Trabalhou ainda no Circo Garcia, Circo Coliseu Argentino e Circo Norte-
Americano, entre outros, além de programas de TV, cassinos e espetáculos
teatrais. Com sua esposa, Wilma Fekete
9
, formou uma dupla cômica de
excêntricos musicais
10
. Foi professor da Escola Nacional de Circo Luiz Olimecha
(ENC) entre 1995 e 2018.
Walter fez parte da primeira geração de circenses oriundos das lonas
itinerantes que passaram a lecionar seus conhecimentos, modos de produção e
de ética do trabalho para indivíduos que não mais vinham das ancestrais dinastias
de circo (Silva. P., 2021; Silva, E., 2011). Artistas como Walter passaram por
profundas transformações entre os recursos pedagógicos, referenciais estéticos e
meios de produção de sua arte que experienciaram nos períodos de sua formação
e atuação artística, e os que passaram a empregar em suas atividades para além
das grandes carpas. Precisaram reelaborar e criar metodologias que
contemplassem as novas especificidades do ensino circense fora dos circos e do
âmbito familiar para uma diversidade de fins, de propostas cênicas e maneiras de
4
Guilherme Carlo (Rio de Janeiro, 1887- Rio de Janeiro, 1946). Foi acrobata, domador, aramista, músico, ator
e
clown
. As informações de nascimento e, quando cabível, falecimento dos artistas mencionados nesta
entrevista foram obtidas em parte no site www.circodata.com, cotejadas com outros documentos ou com
relatos de outros circenses.
5
Número de acrobacia, geralmente em dupla e de tom cômico. Para melhor visualização, consultar
https://www.youtube.com/watch?v=wku2lUtGOt0&list=RDkj5VmtsDw3k&start_radio=1. Acesso em: 25 jan.
2023.
6
Jorge Carlo (Rio de Janeiro, 1924 Rio de Janeiro, 2007). Malabarista, acrobata, trapezista, mágico e
ventríloquo. Fez ainda números de báscula e dândis.
7
Edgar Carlo (Rio de Janeiro, 1927 Alagoas, 1964). Malabarista e acrobata. Conhecido também como Toco.
8
Aldo Carlo (Rio de Janeiro, 1934). Malabarista e acrobata.
9
Wilma Fekete (Pernambuco, 1940). Paradista, acrobata, multi-instrumentista, malabarista e atriz.
10
É possível ver Walter Carlo e Wilma Fekete apresentando o número de excêntricos musicais cômicos em
que utilizam guizos em https://www.youtube.com/watch?v=hTeP0fBokEk. Acesso em: 13 jan. 2023.
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se realizar um espetáculo e/ou uma performance nesta arte.
Artistas-pedagogos como Walter (e poderíamos citar outros tantos, como
Delisier Rethy
11
, Ângela Cerícola
12
, Pirajá Bastos
13
ou Latur Azevedo
14
)
proporcionaram ou proporcionam a seus alunos uma pluralidade e
transversalidade de conteúdos e saberes que imbricam conhecimentos artísticos,
tecnológicos, pedagógicos, empresariais, vivências do
métier
e valores que
imiscuem, ainda, trabalho e vida. Do mesmo modo, estabeleceram ou
estabelecem diálogos (não sem discordâncias e atritos) com novas formas e
estilos de se fazer circo, enriquecendo os referenciais de seus artistas-estudantes
com um misto de informações e experiências que singularizam a pedagogia
circense em locais que abrem espaço para artistas formados e com carreiras
trilhadas nas lonas itinerantes.
A entrevista foi elaborada e realizada de modo semiestruturado/semiorientado
(Queiroz, 1991) seguindo princípio de entrevista temática, ainda que bastante
atravessada por aspectos de história de vida - uma vez que era com base nos
relatos e fatos pessoais que os temas eram abordados (Alberti, 2013; Queiroz, 1991).
O roteiro buscou entremear as histórias e experiências pessoais com as opiniões
sobre formação, criação e performance circenses tanto nos processos que Walter
Carlo vivenciara quanto nos que orientou em suas atividades docentes,
proporcionando dados que permitem estabelecer distinções, similaridades e
interações entre os procedimentos, recursos e referenciais experienciados por
Teco e os vivenciados por artistas-estudantes em espaços como a ENC.
11
Maria Delisier de Oliveira Rethy (São Paulo, 1939). Paradista, patinadora, volante de mão a mão e de percha
e acrobata aérea. Trabalhou no circo Garcia, e teve uma profusa carreira internacional. Foi uma das
proprietárias do circo Sul Africano. É professora da ENC desde a sua fundação em 1982.
12
Ângela Maria Cerícola (Rio de Janeiro, 1957). Aramista, trapezista, malabarista, acrobata e atriz. Graduada em
pedagogia pela Universidade Castelo Branco. Trabalhou nos circos Sul-Africano, Rossato e Circorama, mas
principalmente no circo de sua família, o Circo Trapézio - hoje uma das proprietárias, ainda em atividade
pelo estado do Rio de Janeiro. Foi professora da ENC entre 2006 e 2017.
13
Pirajá Bastos (Minas Gerais, 1936). Acrobata de báscula, cama-elástica, solo e icários além de homem-foca.
Trabalhou nos circos Garcia, Olimecha e da família Stevanowich. Foi proprietário do Circo Picadilly. É
professor da ENC desde 1994.
14
Latur Azevedo (Minas Gerais, 1957 - Rio de Janeiro, 2022). Foi aramista, acrobata, trapezista de voos, globista
e domador. Trabalhou no circo de sua família, Irmãos Azevedo, e foi proprietário do México Zoo Circus.
Trabalhou, ainda, nos circos de Antonio Francowich, Mário Robattini e no Circo Show América. Foi professor
da ENC entre 1997 e 2019.
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Entrevista concedida a Alex Machado e Rafael Gonçalves
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Ao longo da entrevista são apresentadas informações adicionais que podem
auxiliar a compreensão de termos técnicos ou elementos característicos do
universo circense. Da mesma forma, são trazidos dados que visam complementar
ou contextualizar alguns pontos mencionados pelo entrevistado, ampliando assim
a abrangência dos materiais levantados.
As conversas foram realizadas em diferentes dias, o que acarretou idas e
vindas de temas, assim como alguns assuntos aparecem repentinamente.
Optamos por manter, tanto a entrevista quanto em sua transcrição, o tom informal
e descontraído com o qual foi realizada. Quem conheceu Teco pode sentir sua
presença no modo como narra suas histórias, e quem não teve esse prazer e esse
privilégio pode experienciar a forma alegre e carinhosa como contava sua vida e
se relacionava com aqueles que o cercavam.
Como eram seus treinos quando você trabalhava no circo?
Walter Carlo
- Você fala na minha infância? As famílias se reuniam pela manhã.
O aquecimento era em volta do picadeiro. A gente corria, fazia uma corridinha,
depois começava a parar de mão. Fazia parada de mão na cadeirinha umas
cadeiras de circo mesmo, de madeira com uma ripa. Enfiava a mão na ripa, o pai
ajudava no esquadro
15
: sobe [as pernas], segura, abaixa e levanta, abaixa e levanta.
Esse é o aquecimento. Depois da parada de mão a gente começava a fazer o solo:
cambotinha
16
, cambotinha atrás, parada e cambotinha, a sequência que a gente
faz aqui [na ENC]. Suplê
17
, aquelas coisas todas. E depois ele ensinava o flic-flac
18
.
15
[9] Posição em que as pernas são mantidas a 90º em relação ao tronco. Pode ser executado com as pernas
unidas ou afastadas. Para melhor visualização, consultar Tutorial: Subida à força na parada de mãos -
Press to Handstand - YouTube. Acesso em: 16 jan. 2023.
16
Modo como muitos circenses itinerantes chamam cambalhota ou rolamento.
17
Reversão à frente ou atrás com as pernas afastadas no plano sagital. Forma aportuguesada de
souple
ou
soupless
que, em francês, significa flexível. Para melhor visualização consultar link disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=qgv2-uxf9NI&t=32s. Acesso em: 04 jan. 2023.
18
Salto acrobático. Pode ser dividido em duas fases de execução: na primeira, de pé, faz-se um salto para
trás arqueando o corpo com os braços estendidos na linha das orelhas até que as mãos toquem o solo,
passando pela posição de parada de mão. Na segunda fase os ombros fazem uma repulsão contra o solo
e o corpo assume uma posição de canoa até que os pés aterrissem no chão. Para melhor visualização
consultar Bortoleto (2008, p.31-34) ou link disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=3tnmnpLOy5s. Acesso em: 04 jan. 2023.
Entrevista com Walter Carlo (Teco)
Entrevista concedida a Alex Machado e Rafael Gonçalves
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Como você já aprendia a parar de mão, você fazia meio flic-flac.
E ia pra parada de mão?
E ia pra parada. Daí saía a corveta
19
. A gente aprendia corveta, o falsete
20
, tudo
isso a gente aprendia antes, porque aqui [na ENC] não tempo pra aprender nada
disso. Aprendia tudo antes. Depois juntava com a parada de mão. Fazia meio flic-
flac, caía em parada de mão, fazia o restante do flic-flac, que era a corveta.
Então era um pouco diferente do que se ensina hoje aqui...
Era bem diferente, aqui não dá para fazer isso porque isso é muito demorado.
Porque a gente começava de garoto, entendeu, e aqui é adulto
21
. Aqui tem que
pegar na marra, virar na lonja
22
e vai mandando brasa. Com outra pessoa ajudando
é mais fácil aprender.
Então era mais fácil na sua época, com a idade pequena, já começava...
É porque naquela época ele não tinha ajudante. Meu pai era sozinho.
Era ele quem ensinava tudo?
Tudo!
Era muito pesado o treinamento?
19
A partir da parada de mãos, pode ser realizada de dois modos: ou a flexão dos joelhos com rápida extensão
para trás, ou a extensão da lombar com lançamento das pernas estendidas para trás. Um ou outro modo
serão acompanhados de uma repulsão dos ombros contra o solo, proporcionando o regresso dos pés ao
chão. Para melhor visualização consultar o link https://www.youtube.com/watch?v=P4voeDen8DU Acesso
em: 05 JAN. 2023.
20
Movimento preparatório para rondada. Trata-se da elevação de uma das pernas para dar um sobrepasso e
impulsionar o corpo para a rondada. Para melhor visualização consultar Bortoleto (2008, p.26-28) ou
link
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4Y6VS62j54I Acesso em: 05 Jan. 2023.
21
Em 2015 o curso de formação da ENC passou a ser subsequente ao ensino médio, a partir do acordo de
colaboração feito com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Com
isso, a idade mínima de ingresso passou a ser, de modo geral, entre 17 e 18 anos. Entre 1982 (ano de abertura
da ENC) e 1999 a faixa etária permitida para realização do curso era entre 10 e 19 anos, havendo algumas
exceções. A partir de 1999 não havia mais idade máxima para ingresso. Em 2006 foi elaborado um novo
regimento interno na instituição, que passou a exigir a comprovação de ensino médio cursado para emissão
de diploma o que acarretou alteração na idade mínima para o curso, que passou a ser em torno dos 14
anos.
22
Sistema de segurança utilizado em aulas de diversas modalidades circenses. Consiste em um cinto com
uma ou duas cordas que passam por roldanas ou são manuseadas diretamente pelo professor. Pode ser
utilizada para auxiliar na realização de um movimento ou para evitar que o praticante caia.
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Pra criança era, né? A gente ficava com medo porque doía a munheca. “Vai dar
rondada flic-flac!” dava rondada flic-flac, aquela coisa. Mas a especialidade
minha nunca foi salto.
Era o quê?
Quando meu pai era vivo, ele queria que eu estudasse, e eu fui o que estudei
mais na família. Porque [no] circo, o pessoal quase não estuda. Tem a minha irmã
23
que nem terminou o primário. Ela tava com vergonha, porque já tinha seio grande,
tinha muita idade, saiu do colégio. Eu ainda terminei o primário, fiz admissão,
comecei o ginásio. Mas quando começou o ginásio, eu não gostava de estudo
[risos]. Depois que o meu pai morreu, eu saí do colégio. Meu pai não me ensinou
malabarismo não, quem me ensinou malabarismo foi meu irmão mais velho.
Ah, tinha hierarquia: o pai, o irmão mais velho...
Depois que meu pai morreu, quem assumiu a direção da família era o mais
velho. Tinha a minha mãe ainda, mas era o mais velho que tomava decisões, os
ensaios. Porque nós erámos crianças, comecei a aprender malabares com ele.
Inclusive [quando] eu jogava malabares, tinha mania de andar para frente. Ele
amarrou uma corda nas minhas costas e na minha roupa também: “Você não vai
andar agora. Joga malabares, mas não anda”. Então comecei a aprender aqui
mesmo, na Praça da Bandeira, na década de [19]40. Tinha o Circo Dudu, o antigo
Circo-Teatro Dudu. Minha mãe gostava de vir assistir às peças, tinha uns
dramalhões bonitos. Primeiro era drama, depois tinha variedades: comicidade,
malabarismo, mágico. A parte mais forte eram os dramas do Circo Dudu.
Eles separavam então o teatro das variedades?
É, não tinha picadeiro, era tipo um teatro mesmo. Era um circo com palco e
tinha cadeiras de cinema. Era tudo de madeira, com um pranchão no chão e
tal. Não tinha picadeiro, era a variedade. A segunda parte ele não queria muita
23
Norma Carlo (Rio de Janeiro, 1928 Rio de Janeiro, 2013). Foi equilibrista, malabarista, acrobata e icarista.
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coisa, queria humorista, um malabares, um mágico, coisa curta. Quer dizer, o povo
assistia aquele dramalhão, muita gente [depois] saía. A variedade que tinha era
muito pequena. O dramalhão acabava era 11 e tanto, quase meia-noite, ainda ia
assistir aquele malabareszinho? [risos]
O treino de hoje, aqui na ENC, é mais pesado do que no circo?
Eu acho mais pesado. No circo era muito mais leve. Por exemplo, a gente não
tinha trapézio pra todo mundo puxar braço. O que meu pai mandava fazer? Vai
pra debaixo da arquibancada e vai puxar o braço. E ele mesmo, muitas vezes,
ajudava na parada de mão...
Vocês não ficavam exaustos igual os alunos daqui?
Não porque o velho falava: “Vamos!” [faz um gesto e uma expressão de ordem].
Aí tinha que ir...
E, depois, ele morreu cedo. Morreu com 59 anos. quem começou a me
ensinar malabares, aqui no Circo Dudu, na Praça da Bandeira, foi meu irmão mais
velho. Comecei a ensaiar com ele, ensaiei dândis com ele. Então ele que começou
a [me] ensaiar a acrobacia, malabares, foi meu irmão mais velho, chama-se Jorge
Carlo. E o nome do meu avô era George Carlo. E ele, meu irmão, era Jorge porque
parece que um irmão do meu pai também era Jorge, que faleceu cedo. A família
era muito grande, minha família vem tudo do exterior, a parte do meu pai. Meu pai
era carioca, mas ele parecia um inglês. Era loiro, olhos azuis - não tem nenhum
filho de olhos azuis e loiro [risos]. Grandão, jogava malabares pra caramba, e as
claves, era uma clave toda de madeira maciça. Eram grandes, ele tinha uma mão
grandona, jogava na frente do espelho e não quebrava o espelho. Era muito bom
malabarista. E fazia um número cômico de escada diabólica
24
: ele entra de cômico,
passa por debaixo de uma mesa, faz uma porção de cascata cascata é truque
que o cara faz graça. Ele botava uma tábua aqui - nós chamamos de bata. Ele
24
Um raro registro deste número pode ser visto em
https://web.facebook.com/chicleteeaescadadiabolica/videos/1610735732504529/?_rdc=1&_rdr. Acesso em:
05 jan. 2023.
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batia naquela bata, vinha na cabeça dele. Depois ele subia na escada, a escada era
encaixada numa mesa que tem quatro furos, botava o pino, ele subia. Quando
subia, escorregava de novo, depois ele subia, a
partner
25
jogava o chapéu pra ele,
ele ia pegar o chapéu. Quando ela batia a palma, ele largava o chapéu. Então era
a comicidade que havia. Aí, ele fazia o movimento, depois terminava de cair da
escada.
Mas, continuando a minha fala, era adolescente com meu irmão, nós
montamos um quarteto de malabares, os quatro irmãos. Era os dois mais velhos,
eu que era o terceiro, depois tinha o mais novo. Nós fizemos um quarteto de
malabares, e com esse quarteto de malabares nós faturamos bastante porque os
circos grandes começaram a olhar esse número e [a nos] contratar. O Garcia era
o maior circo do Brasil. Tinha elefante, feras, zebras, e tinha só números bons, de
categoria. Trazia gente de fora. Ele gostava de gente jovem fazendo número
bonito. Nosso número foi e foi sucesso. Nós fomos trabalhar em Belo Horizonte,
em 1949, eu tinha 17 anos, por aí. Eu me lembro que quando nós fomos trabalhar,
fomos à cachê, ganhamos quinhentos cruzeiros na época - que era um dinheiro
bom, dava pra pagar o hotel. Nós pagamos o hotel e ainda sobrava pra mandar
pra mamãe
26
. Nesse dia teve uma cantora chamada Dolores Duran, que morreu
jovem, era uma belíssima cantora. Nós trabalhamos no
show
dela. Tinha orquestra
do Ruy Rey
27
, que era uma orquestra famosa na época, e nós trabalhamos antes
do
show
dela. Fomos à cache. Fizemos o número, todos os colegas de circo
estavam assistindo, porque não tinha
show
, só
show
de rádio.
Vocês abriram o
show
da Dolores Duran?
Nós abrimos o
show
dos cantores. O único número de variedade foi o nosso,
e agradou pra caramba, foi um sucesso. “Biz! Biz!”. Aí depois, quando ele contratou
a gente, que começamos a trabalhar, começou a cair
28
para caramba [risos]. E
25
Artista ou auxiliar do espetáculo que auxilia quem está se apresentando.
26
Etelvina Vilamajor Carlo (Argentina, 1896 Rio de Janeiro, 1955). Foi trapezista.
27
Domingos Zeminian (São Paulo, 1915 Rio de Janeiro, 1995). Foi cantor e ator. Teve muito sucesso com
repertório latino e caribenho, especialmente entre as décadas de 1940 e 1960, além de músicas
carnavalescas.
28
Refere-se ao erro, à queda das claves de malabares, durante a apresentação.