1
Projeto
Geringonça
e suas coisas:
intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Para citar este artigo:
HENNING, Julia. Projeto
Geringonça
e suas coisas:
intermedialidades na dramaturgia do circo.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2,
n. 47, jul. 2023.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102472023e0301
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
2
Projeto
Geringonça
e suas coisas
1
: intermedialidades na
dramaturgia do circo
2
Julia Henning
3
Resumo
Neste artigo foi apresentado o modo como as mídias estão presentes e se
relacionam no processo artístico Geringonça, proposto pelo coletivo circense
brasiliense Instrumento de Ver a partir da identificação e criação de categorias que
permitiram apontar as intermedialidades propostas. Foi escolhido o conceito de
mídia como modo de expressão e objetos que organizam, transportam, guardam ou
alteram a nossa percepção de mundo e atuam como meios para a produção de
sentido, dentro da perspectiva da intermedialidade. Foi considerada ainda a
importância do estudo de diferentes procedimentos criativos circenses para propor
pistas voltadas à compreensão da escrita e dramaturgia do circo. A partir da
pesquisa pudemos perceber que a escrita do espetáculo de circo coloca as
intermedialidades em evidência, ressaltando o contraste entre diferentes mídias, em
uma equivalência de importâncias.
Palavras-chave
: Circo. Mídia. Intermedialidade. Dramaturgia do circo.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Marina Farias Rebelo, bacharel, mestra e
doutoranda em Letras/Português pela Universidade de Brasília (UnB). marinafariass@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4504387417797921
2
Este artigo resulta em 73% de partes da dissertação de mestrado de Julia Henning Campos Piedade. Poéticas
circenses contemporâneas: intermedialidades e o coletivo Instrumento de Ver. 2018. 173 f., il. Dissertação
(Mestrado em Arte) - Universidade de Brasília, Brasília, 2018, disponível em:
https://repositorio.unb.br/handle/10482/34260.
3
Mestre em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Especialização em Gestão Cultural pela Serviço
Nacional de Aprendizagem Comercial. Graduação em Psicologia pela UnB.
julia.henning.campos@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9320033684550985 https://orcid.org/0000-0003-2661-8565
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
3
Project Geringonça and its things: intermedialities in circus
dramaturgy
Abstract
In this article, it was presented how the media are present and related in the
artistic process Geringonça, proposed by the Brazilian circus collective
Instrumento de Ver from the identification and creation of categories that
allowed to point out the proposed intermedialities. The concept of media was
chosen as a mode of expression and objects that organize, transport, store
or change our perception of the world and act as means for the production
of meaning, treated within the perspective of intermediality. It was also
considered the importance of studying different circus creative procedures
to propose clues aimed at understanding circus writing and dramaturgy. From
the research we could see that the writing of the circus show puts the
intermedialities in evidence, emphasizing the contrast between different
media, in an equivalence of importance.
Keywords
: Circus. Media. Intermediality. Circus dramaturgy.
Proyecto
Geringonça
y sus cosas: intermedialidades en la
dramaturgia circense
Resumen
En este artículo, se presentó cómo los medios están presentes y relacionados
en el proceso artístico Geringonça, propuesto por el colectivo circense
brasileño Instrumento de Ver a partir de la identificación y creación de
categorías que permitieron señalar las intermedialidades propuestas. Se eligió
el concepto de medio como un modo de expresión y objetos que organizan,
transportan, almacenan o cambian nuestra percepción del mundo y actúan
como medios para la producción de significado, tratados en la perspectiva de
la intermedialidad. También se consideró la importancia de estudiar
diferentes procedimientos creativos circenses para proponer pistas
encaminadas a la comprensión de la escritura y la dramaturgia circenses. De
la investigación pudimos ver que la escritura del espectáculo circense pone
en evidencia las intermedialidades, enfatizando el contraste entre diferentes
medios, en una equivalencia de importancia.
Palabras-claves
: Circo. Medios. Intermedialidad. Dramaturgia circense.
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
4
A partir de um insistente interesse pelos objetos na pesquisa artística do
coletivo Instrumento de Ver, venho pensando os procedimentos criativos do circo
e sua dramaturgia a partir da materialidade da cena. Esse interesse nasceu com a
pesquisa
Geringonça
, iniciada em 2016, e teve como objetivo estudar objetos e
suas relações com o movimento. Desde então, todas as criações do coletivo
Instrumento de Ver ficaram influenciadas por essa temática. Dada a relevância do
projeto, revisito neste artigo parte do trabalho realizado na pesquisa de mestrado
que teve este projeto do coletivo como tema.
O projeto
Geringonça
4
foi idealizado e realizado durante todo o ano de 2016.
Este período previu um espaço livre para experimentação de procedimentos
criativos, sem compromisso com a criação de um espetáculo. Os resultados foram
apresentados ao longo da pesquisa, em diferentes meios: 1) cena, em três ensaios
abertos; 2) vídeo, que acabou resultando na criação de filme curta-metragem; e 3)
textos publicados em um blog
5
, que ao final compuseram uma revista virtual.
A pesquisa foi organizada em três laboratórios. O “Laboratório 1” teve o
objetivo de explorar materiais e princípios de movimentação em instalações
móveis autônomas, a partir do estudo de princípios físicos (por exemplo: polias
para redução de esforço, peso e contrapeso, molas, elásticos, dentre outros). O
“Laboratório 2” foi voltado para pesquisa e experimentação do movimento e da
relação com objetos cotidianos a partir de procedimentos criativos da dança, da
improvisação, da acrobacia circense e da manipulação de objetos, assim como as
possibilidades subjetivas das relações entre os artistas e os objetos. O “Laboratório
3” teve como foco a pesquisa e experimentação de criação de cenas e textos em
diálogo com o meio audiovisual, aprofundando ainda mais as possibilidades
subjetivas das relações entre os artistas e os objetos.
Os três ensaios abertos ao público finalizaram cada laboratório e
aconteceram em diferentes locais de Brasília: “Ensaio nº.1” no Espaço Cultural
4
Geringonça
(2016). Ficha técnica: Direção Artística: Daniel Lacourt; Pesquisa de movimento: Daniel Lacourt,
Julia Henning, Maíra Moraes e Vinícius Martins; Pesquisa Sonora: Luiz Oliviéri; Pesquisa de vídeo: Cícero Fraga;
Pesquisa de dança: Édi Oliveira de Carvalho; Produção Executiva: Maíra Moraes e Joana Macedo; Produção
Geral: Julia Henning e Gabriela Onanga; Realização: coletivo Instrumento de Ver.
5
Blog Geringonça
, em: www.instrumentodever.com/geringonca. Acesso em: 19 mar. 2023.
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
5
Direito, na Vila Telebrasília; “Ensaio da Concordança” ao ar livre, no Parque Olhos
D’água; e “Ensaio Coisa com Coisa”, ao ar livre, no gramado da via conhecida como
Eixão, na altura da Asa Norte.
Chamados de pesquisadores, os artistas envolvidos no projeto foram Daniel
Lacourt, Julia Henning, Maira Moraes e Vinícius Martins, em processo colaborativo
dirigido por Lacourt. A motivação principal foi explorar as particularidades do
processo de criação no circo para que pudéssemos identificar métodos e
procedimentos criativos específicos do coletivo Instrumento de Ver. O diretor,
pesquisador e coreógrafo de dança contemporânea Édi Oliveira de Carvalho,
convidado a contribuir na definição de metodologias de pesquisa, foi crucial para
o direcionamento temático. Como ele próprio descreve em entrevista concedida
a esta autora,
Minha colaboração no projeto abriu, para mim e para o grupo, a
compreensão de que o objeto como tema gera possibilidades
tentaculares, que apontam para vários caminhos de pesquisa, que podem
se entrecruzar e dialogar entre si. O objeto pode ser suporte para a
criação de movimento, mas pode ser, também, centro de uma
exploração/construção dramatúrgica, independente ou com o artista. A
partir do contato com o objeto é possível gerar poéticas, textos,
coreografias, etc. Ele não precisa resignar-se à função de instrumento
que, longe de ser uma função menor, não é a única possível para as
“coisas” (Carvalho, 2018).
Além de Édi Oliveira de Carvalho, o diretor de vídeo Cícero Fraga participou
de alguns ensaios, ajudando a direcionar nosso interesse para o tema das relações
com os objetos. Além de assistir a alguns ensaios, com o objetivo de uma criação
audiovisual, dialogou conosco na plataforma de troca de referências que criamos
em rede social e assistiu aos ensaios abertos. A pesquisa o inspirou para a criação
de um filme em formato de curta-metragem chamado
O Homem Banco
(2018)
6
,
também desdobramento do projeto. Desde então, a pesquisa Geringonça
influenciou todas as produções do grupo até hoje. Firmamos a identidade artística
do coletivo Instrumento de Ver explorando, de muitas formas, o tema da relação
6
O filme estreou em 2018 e desde então já foi selecionado pelo Áustria National Film Festival em Viena, e
para o Cinalfama Lisbon International Film Awards, em Lisboa, Portugal, além de ter vencido os festivais
Short to the Point, na Romênia, o Five Continents International Film Festival na Venezuela. Foi escolhido
também como melhor curta experimental no festival online Largo Film Awards e selecionado para a Mostra
Brasília do 51º Festival Internacional de Brasília do Cinema Brasileiro. Trailer
O Homem Banco
:
https://vimeo.com/207783252.
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
6
com os objetos e utilizando os procedimentos de criação como linha de pesquisa
dos novos trabalhos do grupo, tanto na prática quanto nas reflexões teóricas.
Para analisar o processo criativo
Geringonça
, tomei emprestado o conceito
de mídia. Este termo foi popularizado em sua acepção como mídias de massa
(derivada do termo em inglês
mass media
). Ampliando o alcance desse sentido
corrente, porém, utilizei o conceito proposto por teóricos da comunicação,
passando por pesquisadores das artes cênicas, que o articulam como ferramenta
possível para o estudo de processos criativos de espetáculos.
O aspecto que mais me cativou nesta proposta foi a materialidade que o
conceito traz. Abordar os processos criativos do coletivo a partir de um olhar claro
sobre a materialidade do que está ali, em cena, me pareceu ser uma perspectiva
coerente com as próprias defesas estéticas do coletivo Instrumento de Ver,
conforme percebi ao longo da pesquisa. Vale mencionar que, de forma usual, o
coletivo demonstrava afinidade com o termo, utilizando-o de forma corrente
em seus processos criativos para se referir a diferentes suportes de criação, como
texto, vídeo, cena, música, dentre outros. Aprofundei-me então no conceito, que
se mostrou útil para o diálogo com os procedimentos criativos que propomos no
grupo.
Em interlocução com diversos pesquisadores, emprego aqui o conceito de
mídia como meio, algo material que faz a ponte da comunicação. Comunicação
não no sentido hermenêutico que aborda os signos como mensagens codificadas
que devem ser interpretadas, mas sim no sentido de trânsito, ligação, partilha. O
conceito de mídia, portanto, abrange tudo o que seja ponte entre o que se expressa
e o que é recebido. Nessa abordagem, podemos também considerar o corpo como
mídia, além dos objetos e da música em cena, dos vídeos projetados e de tudo
que compõe o espetáculo.
Outra acepção oportuna é entender a mídia como o suporte em que algo é
apresentado: um texto escrito em papel, uma projeção de um filme, ou uma
coreografia em que a criação se mostra. Para tanto, apresento a definição proposta
por Marta Isaacsson (2018, p. 27), pesquisadora em artes cênicas da Universidade
do Rio Grande do Sul, de que, as mídias são “as matérias pelas quais a partilha do
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
7
sensível se concretiza”. Entendo, aqui, as mídias como modos de expressão e
objetos que organizam, transportam, guardam ou alteram a nossa percepção de
mundo, participando como meios para a produção de sentido.
Faz parte da minha escolha, portanto, olhar para as maneiras como as mídias
estão presentes e se relacionam nos processos criativos do coletivo Instrumento
de Ver. A partir da materialidade, proponho um olhar para o espaço criado nessa
relação, dentro da perspectiva da intermedialidade, isto é, do estudo da relação
entre diferentes mídias. Adalberto Müller (2012, p. 169) propõe a intermedialidade
como o “campo do conhecimento que estuda as interrelações de diferentes mídias
em um universo midiático bem amplo”. De acordo com o pesquisador,
a intermedialidade se define, grosso modo, como a relação que se
estabelece entre diversas mídias e produtos midiáticos, e que estes
estabelecem entre si, através de processos de adaptação, citação,
hibridação, etc., ressaltando a medialidade de sua constituição e do seu
sentido (Müller, 2012, p.170).
A intermedialidade mostrou-se, portanto, uma boa ferramenta para lidar com
a multiplicidade de relações que estão presentes no circo. Além disso, o conceito
foi fiel ao meu espanto em olhar para o objeto da pesquisa e percebê-lo muito
diverso. Considerando que intermedialidade é o que está entre as mídias, todo
espetáculo, portanto, é intermedial, já que está o tempo todo colocando as mídias
em relação. O conceito de intermedialidade pode ser operativo no estudo dos
espetáculos ao orientar o olhar para os processos e indicar a reflexão teórica que
o próprio coletivo Instrumento de Ver propõe no desenvolvimento de criação e
em cena.
A infinidade de relações intermediais possíveis na cena, me levou a
identificar, na análise do processo criativo, os diferentes recursos e efeitos
intermediais apresentados. Tomando como referência a criação de categorias
operativas para análise dos espetáculos, propostas pelas autoras Gabriela
Monteiro e Marta Isaacsson, elaborei categorias de análise adequadas para cada
momento da pesquisa Geringonça: o processo e a cena. Os objetivos são investigar
quais procedimentos e metodologias podem ser empregados na criação circense
e entender as intermedialidades propostas.
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
8
Intermedialidades no processo de criação
O projeto
Geringonça
foi idealizado como uma pesquisa que previa como
resultados não só as cenas circenses, mas também textos e vídeos, ou seja, uma
mesma pesquisa se desdobrando em diferentes mídias. Desde partida, esse
direcionamento caracterizou o projeto Geringonça como uma proposta de formato
e metodologia intermedial. A ideia foi colocar todos os artistas criadores
compartilhando os mesmos processos criativos desde o início do projeto. Além
disso, os artistas circenses tinham a liberdade de utilizar qualquer mídia, mesmo
que não tivessem domínio de suas técnicas específicas. Dentro do processo, além
das cenas circenses, fizemos vídeos, poesias, pequenas esculturas e instalações.
No processo criativo as cenas não eram encerradas em si mesmas,
independentes da estrutura do espetáculo, como em uma apresentação ao
público. Em todos os ensaios abertos, a movimentação, as coreografias e os textos
(apresentados como falas ou escritos), foram recursos para a dramaturgia. A
relação com os objetos guiou o processo de forma primordial. A criação da
movimentação acrobática, inclusive, surgiu a partir da relação com os objetos
(circenses ou não) e foi direcionada por essa relação.
Um dos objetivos mais importantes do projeto
Geringonça
foi o de identificar
métodos e procedimentos criativos específicos do grupo. Durante todo o processo,
foram utilizados métodos criativos intermediais. Além de propor a criação em
diferentes mídias, cada concepção também tentava colocar em evidência suas
próprias medialidades, ou seja, a reflexão sobre a mídia utilizada era ressaltada
dentro do próprio material criado e seus limites eram apontados. Durante a
realização da pesquisa, pude identificar quatro procedimentos criativos
intermediais muito úteis para a geração de material: 1) as composições; 2) a
produção de textos e imagens que dialogavam com a sala de ensaio; 3) os
improvisos; 4) a pesquisa e experimentação das medialidades dos objetos.
As composições são exercícios livres com enunciados limitadores, pequenas
tarefas preparadas fora do espaço de ensaio ou em um momento específico do
ensaio reservado para isso, que podem ser trabalhadas individual ou
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
9
coletivamente, e apresentadas aos outros participantes. Geralmente os
limitadores enunciados são relacionados a algum tema, têm uma duração entre
cinco e dez minutos e a liberdade para usar qualquer mídia: texto, coreografia,
desenho, instalação, bricolagem; e qualquer suporte: cena, vídeo, escritos, objeto.
As composições trazem ideias que são desenvolvidas em cenas, imagens ou se
desdobram em novas ideias.
A composição é uma ótima ferramenta de criação colaborativa, pois, mesmo
que não seja aproveitada, reverbera no processo, mesmo que só como referência
criativa para outras composições, do mesmo artista ou de outros. É também uma
forma de diálogo artístico, pois cada um pode se expressar e trazer possibilidades
para o processo a partir da linguagem que estamos trabalhando: a criação artística
intermedial ancorada nas artes circenses, mas aberta e porosa aos procedimentos
criativos de outras artes.
A flexibilidade para utilizar diversas mídias e suportes permite explorar uma
ampla variedade de intermedialidades e é reforçada no enunciado das
composições. Durante o processo criativo do projeto
Geringonça
, por exemplo,
desenvolvi uma performance/instalação usando uma televisão de tubo como tela
para projetar a imagem de uma boca de cabeça para baixo, recitando uma poesia.
Para projetar a imagem, criei um mecanismo caseiro utilizando uma caixa de
sapatos, uma lupa e meu celular. Posicionei-me de cabeça para baixo atrás da
televisão, escondendo a cabeça. Neste exemplo, posso dizer que a
intermedialidade é evidenciada quando destaco uma parte do corpo - neste caso,
a boca projetada na tela - como uma lupa. A sobreposição do objeto e do corpo,
que resulta em uma imagem do corpo deformado, também é um efeito da
intermedialidade. Além disso, a intermedialidade questiona os limites da televisão
enquanto mídia, que efeito da lupa e o projetor visível inverteram a função do
aparelho, transformando-o de um decodificador de imagem em um receptor,
resultando em uma nova percepção da mídia.
O segundo processo criativo do projeto Geringonça envolveu a produção de
textos, que se mostrou inteiramente intermedial. O
blog
serviu como plataforma
para exposição do que ia sendo escrito durante o processo, que mais tarde foi
selecionado para a revista virtual. Além disso, mantivemos uma plataforma de
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
10
diálogo na rede social
Facebook
para compartilhar referências e produzir
conteúdos, incluindo textos, vídeos e fotografias. A produção de textos seguiu dois
caminhos: alguns foram criados em exercícios em sala de ensaio e posteriormente
publicados no blog; outros foram publicados em resposta a alguma provocação,
utilizados na cena ou não. A colaboração de Édi Oliveira de Carvalho intensificou a
produção de textos, já que a intermedialidade entre dança e escrita é tema de sua
pesquisa. Em entrevista a esta autora, afirmou:
Também foi muito interessante trabalhar, junto com os pesquisadores,
produção textual poética motivada pela descrição dos objetos, em várias
camadas (físicas, funcionais, afetivas, memorialistas, etc.), por meio de
exercícios de improviso com a palavra, o que gerou textos poéticos
potentes e tocantes, dos quais alguns foram usados nos ensaios abertos
seguintes (Carvalho, 2018).
Neste contexto foram criados o
Manifesto Coisista
7
e diferentes textos que
compuseram os ensaios abertos e conduziram a criação do roteiro e a narração
do filme curta-metragem
O Homem Banco
(2018), dando diferentes sentidos para
as imagens.
Outro procedimento criativo utilizado em sala de ensaio foi a prática de
improvisação, que consiste em exercícios com duração determinada ou livre, cujo
objetivo é explorar as relações e soluções em tempo real, que surgem a partir de
uma ou mais regras. Foram propostos vários improvisos corporais, individuais ou
em grupo, nos quais as mídias de cada objeto eram testadas, recontextualizadas
e questionadas continuamente. Esses improvisos eram relacionais, permitindo que
os participantes interagissem com um ou mais objetos, reinterpretando sua função
original e explorando suas possibilidades de movimento, imitação, adaptação e
encaixe. Por exemplo, em cada laboratório, quando um novo objeto era
introduzido, um exercício de improviso era realizado para apresentá-lo, podendo
ser apresentado no tempo verbal que o participante preferisse e com liberdade
para que qualquer pessoa pudesse tomar seu lugar, possibilitando o trânsito entre
ficção e realidade. Édi Oliveira de Carvalho propôs diversos exercícios de
investigação e pesquisa da intermedialidade dos objetos, estabelecendo uma
7
Manifesto Coisista
. Disponível em:
http://www.instrumentodever.com/geringonca/ysprp3ahzvtvk61dtrxlfjpsxc0yfk. Acesso em: 28 jan.2023.
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
11
metodologia abrangente e sistemática para esse processo criativo. Segundo ele:
Direcionamos a pesquisa nesse curto mas intenso período para
aprofundar as relações possíveis entre os corpos dos artistas
investigadores e dos objetos, isolando e pesquisando suas características
físicas tais como o peso, a velocidade, o trajeto do deslocamento
(circular, sinuoso, retilíneo, fragmentado, etc.), o tempo de duração da
ação do objeto, como ele respondia à gravidade em queda, e como se
movia, em liberdade, após o estímulo inicial do contato humano. Depois,
deslocamos essas propriedades para os corpos dos artistas, para
observar e identificar as possibilidades de exploração de movimento e
quais possibilidades expressivas poderiam surgir desse deslocamento
(Carvalho, 2018).
Essa contribuição de Édi Oliveira de Carvalho trouxe, para o campo da
reflexão metodológica do projeto, diferentes maneiras de colocar em evidência as
intermedialidades entre corpo e objeto, muito provocadas pelo diálogo com
procedimentos investigativos da dança contemporânea, assim descritos por ele:
A dança também tinha, na dramaturgia dos ensaios, a função de isolar os
corpos ou de uni-los (corpos dos artistas e corpos dos objetos), de definir
os momentos dos focos de atenção, ou os espaços de ação. Muitas vezes,
nos ensaios abertos, o foco migrava dos corpos inanimados dos objetos,
para os corpos dos objetos em ação, ou em dança, ou em composição
espacial em movimento, outras vezes o foco deslocava-se dos objetos
inertes para os corpos objetificados dos artistas em dança, como quando
os quatro artistas executavam uma movimentação em que seus corpos
se encaixavam e se impulsionavam, como se formassem uma grande
engrenagem, ou uma grande
Goldberg Machine
8
feita de corpos humanos.
A dança, por vezes, tinha a função, nos ensaios, de alinhavar as relações
entre artistas e objetos e entre artistas e artistas, e, por mais que a
pesquisa tenha aproximado essas realidades físicas tão distintas, a dança
as distinguia, visto que objetos e artistas, por serem fisicalidades tão
diferentes entre si, dançavam, cada qual, como suas existências
permitiam (Carvalho, 2018).
A presente relação do coletivo Instrumento de Ver com procedimentos
criativos diversos, como a dança, a escrita de textos, a criação audiovisual e em
outras mídias é radicalizada no processo criativo Geringonça, provocando
inúmeras intermedialidades. Nesta pesquisa, retomo os ensaios abertos,
8
Uma máquina de
Rube Goldberg
é uma máquina que executa uma tarefa simples de uma maneira
extremamente complicada, geralmente utilizando uma reação em cadeia, em efeito dominó. Essa expressão
foi criada em referência aos mecanismos desenhados entre 1907 e 1915 pelo cartunista americano,
engenheiro e jornalista Rube Goldberg, autor de charges que ilustravam diversos dispositivos com essa base
de funcionamento.
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
12
apresentações abertas ao público nas quais reunimos o material criativo e, assim,
colocamos em cena as intermedialidades propostas.
Os ensaios abertos
Para possibilitar a compreensão da análise das intermedialidades, recorri ao
recurso de descrição das cenas realizadas nos ensaios abertos. A descrição
mostrou-se um exercício interessante para a pesquisa, pois, na tentativa de
rememorar as cenas e deixá-las vivas para quem lê, muitos detalhes mostraram-
se importantes para a identificação das intermedialidades presentes. Convido a
leitora ou o leitor a mergulhar na cena a partir das descrições que apresento nas
seções que se seguem.
Ensaio nº1 : pra que simplificar se podemos complicar?
Em um pequeno teatro nos fundos de uma marcenaria, em Brasília, fica o
Espaço Cultural Direito. aconteceu o Ensaio nº1, que começava com a
entrada do público em um espaço circundado por uma grande máquina de
Rube
Goldberg,
apelidada de geringonça, preenchendo o espaço cênico com objetos. Os
objetos eram pedaços de madeira de diferentes tamanhos e formatos, cestos de
plástico, grandes galões de plásticos, correntes de ferro, entre outros.
A cena começava quando tocava o celular do artista Vinícius Martins. Este
celular tinha um papel fundamental na ativação da reação em cadeia pois, quando
vibrava, a sequência de mecanismos e objetos era iniciada. Nessa reação em
cadeia, havia um grande estilingue que liberava uma corrente que deslizava
empurrando um skate até ele encostar em pedaços de madeira que se batiam em
um efeito dominó, empurrando bolinhas que corriam em trilhos, enquanto uma
vela queimava uma corda, acionando o distorcimento de um elástico, no qual
pendia um pedaço de pau com uma televisão na ponta. Ao terminar de distorcer,
o pedaço de pau tocava um carrinho que então se movia por uma pequena rampa
até empurrar claves de malabarismo em uma trajetória semicircular. O
mecanismo dessa geringonça culminava em acender uma luminária alta, ao lado
da qual a artista pesquisadora Maíra Moraes esperava a luz para ler um texto em
Projeto Geringonça e suas coisas: intermedialidades na dramaturgia do circo
Julia Henning
Florianópolis, v.2, n.47, p.1-25, jul. 2023
13
um pedaço de papel. Os textos lidos foram os mesmos que dialogaram conosco
no decorrer do processo, que falavam sobre “coisa”: de definições da
wikipedia
a
poesias de Manoel de Barros, além do
Manifesto Coisis
ta, texto escrito
coletivamente pelo elenco e que acabou por se tornar um direcionador conceitual
da pesquisa.
Após a leitura do primeiro texto, iniciava-se um momento de improvisação
estruturada, em que os intérpretes criavam uma nova geringonça em cena.
Durante essa fase, eles podiam alternar entre ações como ler textos, falar sobre
suas relações com os objetos encontrados durante o processo, executar uma
coreografia, (sozinhos ou em sincronia com os outros) ou conduzir uma dança pré-
estruturada em contato com o outro. As diferentes peças que compunham a
geringonça eram numeradas e a ordem estava definida, mas a precisão e
manipulação dos objetos causava uma tensão elevada e um grau de risco para o
funcionamento da máquina. Ao final, assim que a geringonça estava finalizada, era
acionada.
No primeiro ensaio aberto, o coletivo escolheu trabalhar com objetos que
seriam descartados, os quais foram coletados durante o processo, nos meses
anteriores. Durante a montagem das geringonças, os objetos eram dispostos no
palco e, quando não estavam sendo utilizados, eram guardados em caixas ou
engradados ao fundo do palco. A coreografia era realizada em meio a uma grande
variedade de objetos, e a manipulação desses elementos era considerada uma
parte importante do processo criativo, que os objetos eram vistos como
parceiros de cena. Além disso, a criação também explorou a ideia do risco
envolvido em construir algo em cena, bem como a ressignificação dos objetos por
meio dos textos e das formas como eram apresentados.