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Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo: uma
leitura dos aspectos dramatúrgicos no teatro de rua
Michelle Nascimento Cabral
Cleyton de Sousa Braga
Para citar este artigo:
CABRAL, Michelle Nascimento; BRAGA, Cleyton de Sousa.
Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo: uma leitura
dos aspectos dramatúrgicos no teatro de rua.
Urdimento
– Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4,
n. 49, dez. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0206
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Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo:
uma leitura dos aspectos dramatúrgicos no teatro de rua
Michelle Nascimento Cabral | Cleyton de Sousa Braga
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-22, dez. 2023
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Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo: uma leitura dos
aspectos dramatúrgicos no teatro de rua1
Michelle Nascimento Cabral2
Cleyton de Sousa Braga3
Resumo
O teatro de rua é o objeto de análise neste trabalho. Deste modo, na intenção
de pensarmos sobre alguns aspectos dramatúrgicos das ocupações cênicas
no espaço público, ele assume como objetivo principal fazer considerações a
respeito do teatro de rua como instrumento de reflexão. Para isso, partimos
da observação do espetáculo
Final da Tarde
, do Grupo Teatro de Caretas,
ponderando relações dessa modalidade teatral com os ambientes da cidade.
Nossa base teórica está, principalmente, nos textos “Reflexões sobre o
conceito de teatro de rua”, de André Carreira (Teatro de rua); “Relatos de
espaço”, de Michel de Certeau (
A invenção do cotidiano
) e “Final da tarde”, da
atriz Vanéssia Gomes (Cicatriz).
Palavras-chave
: Teatro de rua. Espaços públicos. Ocupações cênicas.
Espetáculo
Final da Tarde
. Dramaturgia.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Raquel Pereira dos Santos. Graduada em
Letras Língua Portuguesa e Espanhola - Ufma. Especialista em Língua Portuguesa - Unyleya. Mestra em
Letras - Leitura e Cognição - Unisc.
2 Pós-doutorado pela Universidad de Zaragoza, Espanha. Doutorado em Comunicação Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrado em História Comparada pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduação em Bacharelado em Artes Cênicas pela Universidade Federal
do estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora Ajunta da graduação e pós-graduação em Artes Cênicas
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). michelle.ncf@ufma.br
http://lattes.cnpq.br/3682376794834169 https://orcid.org/0000-0002-1581-810X
3 Mestrado em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Mestrado em Letras pela Universidade
Federal do Maranhão (UFMA). Especialização em Literatura Brasileira pela UEMA. Graduação em Letras
Português pela Faculdade Atenas Maranhense (FAMA). Graduação em Licenciatura em Teatro pela UFMA.
Professor do Instituto Federal do Maranhão (IFMA). amadeusa.10@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/7073517034506538 https://orcid.org/0000-0003-0021-4175
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A late afternoon, a square, a show: a reading of the dramaturgical
aspects in street theater
Abstract
Street theater is the object of analysis in this work. By this way, with the
intention of thinking about dramaturgical aspects of scenic occupations in
public space, it assumes that the main objective is to make some
considerations about street theater as an instrument of reflection. About this,
we start observating the show Final da Tarde, by Grupo Teatro de Caretas,
pondering relations of this theatrical modality with the city environments. Our
theory base is mainly found in the texts “Reflexões sobre o conceito de teatro
de rua”, from the André Carreira (Teatro de rua); “Relatos de espaço”, by
Michel de Certeau (A invenção do cotidiano); and “Final da Tarde”, by actress
Vanéssia Gomes (Cicatriz).
Keywords
: Street theater. Public spaces. Scenic occupations. Final da Tarde
Show. Dramaturgy.
Un atardecer, una plaza, un espectáculo: una lectura de los
aspectos dramatúrgicos en el teatro de la calle
Resumen
El teatro de calle es objeto de análisis en este trabajo. Así, con la intención
de pensar aspectos dramatúrgicos de las ocupaciones escénicas en el
espacio público, tiene como objetivo hacer algunas consideraciones sobre el
teatro de calle como instrumento de reflexión. Para eso, partimos de la
observación del espectáculo Final da Tarde, del Grupo Teatro de Caretas,
reflexionando sobre las relaciones de esta modalidad teatral con los
ambientes de la ciudad. Nuestra base teórica se encuentra principalmente en
los textos “Reflexões sobre o conceito de teatro de rua”, de André Carreira
(Teatro de rua); “Relatos de espaço”, de Michel de Certeau (
A invenção do
cotidiano
); y “Final da tarde”, de la actriz Vanéssia Gomes (Cicatriz).
Palabras clave
: Teatro de calle. Espacios públicos. Ocupaciones escénicas.
Espectáculo
Final da Tarde
. Dramaturgia.
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O teatro e o espaço público: uma introdução
O fenômeno teatral na rua existe
desde o advento da própria cidade.
(André Luiz Carreira, 2005, p. 21).
A premissa deste artigo está apoiada em considerarmos que o teatro de rua
implica uma fonte de reflexão, visto o seu caráter de abordagem mais elementar:
o de representar uma encenação em um espaço público e aberto. Entendemos
que essa modalidade teatral pode nos levar a repensar a forma de como olhamos
e percebemos os procedimentos cênicos do teatro quando ligados aos lugares da
cidade. Passa a ser visto não somente como uma cenografia, mas como uma
dramaturgia. Isso nos possibilita construir um olhar mais atento em relação à
própria cidade, notando que o teatro e o espaço público são lugares da
representação “e das trocas entre atores e espectadores, entre o drama e o lugar
da cena” (Christine Boyer apud Lima, 2008, p. 7).
Nossa hipótese, portanto, se configura em aceitar que o teatro de rua é um
forte condutor de aproximação entre os atores e as pessoas passantes. Ele pode
levar o público a refletir sobre temáticas variadas e que estão presentes no
cotidiano de todos nós. Isso nos leva a questionar: Como pensar o teatro nas ruas?
Nestas um trânsito maçante de pessoas. barulhos, automóveis, animais, etc.
Contudo, a dificuldade que está por trás dessa ação, a de apresentar um teatro na
rua, possibilita formas várias de encenar um espetáculo. Isso, talvez, carregue uma
problemática ainda maior: Quais os limites da liberdade de expressão? E quem
define tais limites? Como as pessoas reagem a uma encenação de teatro em
espaços públicos? Diante dessas perguntas é possível notar atos sócio-políticos
muito significativos nessa modalidade de teatro. Então, ela traz em si uma
ressignificação dos espaços urbanos e cênicos.
O autor André Carreira coloca o teatro de rua como “uma modalidade teatral
que se demarca pela ‘teatralidade, porque as características que o definem se
relacionam mais com o fazer teatral e com a utilização do espaço’” (André Carreira
apud Cabral, 2017, p. 20). Ou seja, o pesquisador sugere que para um teatro ser de
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rua é necessário: 1) a existência de múltiplas interferências das ruas que dão
condições para o tempo teatral; 2) o espaço cênico desse tipo de teatro e o âmbito
urbano serem ressignificados que nos permitem possibilidades expressivas e
também de apropriação teatral; e 3) o público do teatro de rua ser acidental e
constituir-se em um fato artístico (Cf. Cabral, 2017). E é dessa forma que
compreendemos o teatro de rua.
Na reflexão dessa modalidade teatral que se relaciona diretamente com a
cidade, o pesquisador Marcelo Sousa Brito (2017) nos uma importante
contribuição quando traz para a análise desses “modos de fazer” imbricados com
a cidade e o conceito de lugar. Esse lugar que é espacial, mas também se insere
no corpo de seus habitantes. Em outras palavras, habitar a cidade é também
habitar-se: “a apropriação do lugar como experiência proporciona ao indivíduo
outra forma de se relacionar com o corpo e a cidade". E enquanto o cotidiano das
grandes cidades vai suprimindo o espaço do uso na vida diária, “deixamos de viver
a cidade, de viver os lugares e de nos relacionarmos com o outro” (Brito, 2017,
p.27).
Diante desse preâmbulo, nosso objetivo principal é fazer algumas
considerações a respeito de como o teatro de rua pode assumir um caráter
reflexivo. Para isso, partiremos da observação do espetáculo
Final da Tarde
(2014),
do Grupo Teatro de Caretas4 (Fortaleza - CE), discorrendo sobre alguns aspectos
dramatúrgicos que a peça nos apresenta, no âmbito da atuação na rua e a
ocupação do espaço público. Ou seja, destacaremos na análise ponderações entre
o teatro de rua e os lugares e ambientes da cidade. Estes são os caminhos a seguir
na nossa apreciação crítica.
Assim, o interesse em realizar este estudo veio muito das inquietações
descritas nos primeiros parágrafos deste artigo, o que nos levou a buscar um
4 De acordo com Vanéssia Gomes, “o Grupo Teatro de Caretas ao longo de sua trajetória, desde a sua fundação
em 1998, já teve diversas formações. Hoje [2021] o grupo é constituído por um núcleo formado por Non
Sobrinho, Vera Araújo, Rebeka Lúcio, Juliana Santana, Isabele Teixeira e por mim, Vanéssia Gomes. Ao longo
de nossa trajetória, trabalhamos também com muitos colaboradores convidados para integrar processos de
pesquisa, criação e elenco nos espetáculos” (Gomes, 2021, p. 31). Suas criações são resultantes de processos
colaborativos; o Grupo se apresenta fortemente num movimento autoral, criando e organizando enquanto
grupo teatral. “O Grupo Teatro de Caretas, ao longo de sua trajetória, realizou quinze espetáculos, cinco
performances
, além de leituras dramáticas, demonstração de trabalhos e trocas de experiência com outros
artistas e grupos de teatro” (Gomes, 2021, p. 50).
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pouco mais sobre o assunto. Autores, como Lídia Kosovski (no texto “A casa e a
barraca”, 2005) e Zygmunt Bauman (no capítulo “Tempo/Espaço”, do livro
Modernidade Líquida
, 2001) foram moldando nosso pensamento para a construção
deste trabalho. Porém, as referências que tomaremos por base maior dentro da
discussão serão: “Final da tarde (2014)”, de Vanéssia Gomes (2021); “Reflexões
sobre o conceito de teatro de rua”, de André Carreira (2005), presente no livro
Teatro de Rua
(de Ana Carneiro e Narciso Telles); “Relatos de espaço”, de Michel
de Certeau (2012).
Estas obras/autores comungam do mesmo pensamento. Certeau, por
exemplo, nos diz que as demarcações, os locais, os “gestos” e as “‘recitações’ de
caminhos e paisagens” ajudam a criar articulações e manipulações, sugerindo
narrativas no teatro de rua (Certeau, 2012, p. 193-194). Carreira afirma que, dentro
das “muitas tentativas de definição do teatro de rua”, é possível notarmos que elas
partem “da identificação das relações com o público”; de certo, de “uma noção da
condição social deste relacionamento” (Carreira, 2005, p. 24). É essa ideia de
lugares, espaços e público em interação com a própria dramaturgia de
Final da
tarde
, “um espetáculo que trata sobre uma família” (Gomes, 2021, p. 153), que
discutiremos neste trabalho. Uma peça onde qualquer pessoa pode se encontrar
em alguma das cenas.
Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo
Vejo o espetáculo Final da Tarde [...]
produzindo experiências a céu aberto.
(Vanéssia Gomes, 2021, p. 161)
André Carreira (2005) diz, em
Reflexões sobre o conceito de teatro de rua
,
que este teatro, seja em qualquer tentativa de se estabelecer uma definição,
sempre está associado às relações de aproximação com o público. E ao nos
depararmos com a peça
Final da Tarde
nós podemos notar essas interações. Não
apenas por estar sendo apresentada na rua, em meio ao público que passa
naquele dado momento, mas pelo que ela representa: desde o “processo de
pesquisa e criação” tomar “como premissa a cidade como dramaturgia”, pensando
“a cidade não como um todo, mas como um lugar híbrido, com diversos sentidos,
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com suas camadas de tensão e normalmente inóspito para o teatro” (Gomes, 2021,
p. 158).
Esse olhar, de alguma forma, ao caráter da peça condições para que o
público interaja e possa se ver durante a narrativa. Ora, a montagem conta a
história de uma mulher (que é a personagem principal), marcada por conflitos na
vida familiar. E mesmo que nos dias atuais passemos por vivências amarradas ao
capital, ao lucro, às redes de
software
ou “da modernidade sólida à fluída”
(Bauman, 2001, p. 146), são as interações humanas que ainda movem
substancialmente o ser humano. Tanto que uma hipótese que o espetáculo
levanta é: por menor que seja, qual família, mesmo que se considere solidificada,
não passou por alguma discórdia?
E os conflitos dessa personagem de
Final da Tarde
são muitos: com o marido,
por sua infelicidade no seu casamento ela se casou aos 13 anos, porque havia
engravidado5; com a sua mãe, por esta acreditar que, se sua filha se casasse com
um “homem maduro” e com 31 anos completos, seria bom para a menina; e com
a filha travesti, por querer saber desta o que faz pelas ruas da cidade e o porquê
de estar tão magra. Vale destacar que a peça tem como base uma pesquisa de
2014, tendo como tutor do processo de pesquisa e criação o diretor e professor
André Carreira. Tem ainda neste trabalho, no papel de Whildislane, a mulher, a
personagem principal, a atriz Vanéssia Gomes. Segue uma imagem da atriz em
cena:
5 Destacamos que no Art. 1.517º (CAPÍTULO II Da capacidade para o casamento) do Código Civil brasileiro diz
que “o homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou
de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil” (BRASIL, 2014, p. 175). E no Art. 1.520º
nós temos: “Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (Art.
1.517º), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez” (Brasil, 2014, p. 175).
Mas, desde 2019, quando foi sancionada a Lei 13.811/19 (para suprimir as exceções legais permissivas do
casamento infantil), menores de 16 anos são proibidos de se casar, em qualquer circunstância. A nova
redação do Art. 1.520º passa a ser: “Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu
a idade núbil, observado o disposto no Art. 1.517º deste Código” (Brasil, 2019, p. 1).
Entretanto, ao atentar nossos olhares para o cenário do casamento infantil entendido como a união, formal
ou informal, entre uma pessoa de idade inferior a dezoito anos com um adulto no Brasil, encontramos os
seguintes dados, conforme o artigo
Casamento infantil no Brasil
: “Cerca de 36% das mulheres com idade
entre 20 e 24 anos casaram-se antes dos 18 anos e aproximadamente 88 mil meninas e meninos com
idades entre 10 e 14 anos estão em uniões consensuais, civis e/ou religiosas, dados que colocam o país em
1º lugar na América Latina e em quarto lugar no mundo em incidência de casamento precoce” (D’andréa
et
al
, 2021, p. 1), perdendo apenas para Índia, Bangladesh e Nigéria.
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Figura 1 A atriz Vanéssia Gomes, no papel de Whildislane
Foto: Marina Cavalcante
Em seu livro
Cicatriz: desmontagem de uma trajetória em teatro de rua
,
Vanéssia escreve um capítulo sobre o espetáculo. Nele, a atriz conta que as
orientações e os trabalhos iniciaram a partir de um projeto A cidade como
dramaturgia, uma experiência de atuação na rua, que fora aprovado e teve “apoio
institucional durante seis meses” (Gomes, 2021, p. 147). Segundo ela, era, pois,
o momento para integrar um processo com o objetivo de criar um
espetáculo para trabalhar [...] cidade como dramaturgia [...]. Nosso
caminho de pesquisa teve como premissa não pensar a cidade como
espaço cenográfico, mas como texto que é escrito e lido de maneira
concomitante. Onde a história compartilhada produz no público um texto
que, ao vivenciar a cena, cria a possibilidade dela se multiplicar, se
desdobrar, reverberando de diversas formas no público. [...] criamos
materiais com intensidade para que algo acontecesse. Estes princípios
regeram as experiências realizadas no processo de criação (Gomes, 2021,
p. 149).
Como podemos notar, desde a sua base, o espetáculo
Final da Tarde
trazia
em sua dramaturgia o contato direto com o público em meio à cidade. Arranjos
que se moldavam no interior da peça e, quem sabe, na própria construção da
mulher, que era esposa, era filha e era mãe. Afinal, ao assistirmos as cenas, elas
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nos dão aberturas de interpretação. Um exemplo está dentro da ressignificação
de um tempo presente com algumas lembranças vividas e/ou até construídas a
partir da narrativa da personagem Whildislane (ou como gostava de ser chamada,
Whilde
). É pelo seu discurso que podemos conhecer, mesmo que por alguns
fragmentos, essas imagens, vivências e memórias da protagonista.
Uma das possíveis leituras que podemos tirar dessa personagem é o próprio
fator social sendo representado em sua figura: uma mulher que aparenta ter
sofrido muito durante toda a sua vida, para que pudesse ter um pouco de
dignidade: ainda criança foi quase que dada pela sua mãe ao homem que viria a
se casar; passou pela dificuldade em criar e educar os seus filhos, sem contar a
perda de dois deles. Casos que se misturam com a realidade de ouvintes dispostos
a apreciar um espetáculo de rua. Nas palavras de Evelyn Lima: “O teatro é uma
criação artística em que o fato social e o fato artístico tornam-se coincidentes. A
representação existe num local onde duas coletividades se encontram” (Lima,
2008, p. 12).
Coletividade esta que segue atravessando não apenas as ruas da cidade, os
locais de via pública, as praças e os monumentos, através de quem vive as
personagens ou por quem acompanha as cenas, que esteja próximo ou longe
delas, mas que atravessa pela própria ideia e conceito do teatro de rua. O social e
o público tornam-se um só. Leitura que se fundamenta no pensamento de André
Carreira e de Michel de Certeau. O primeiro diz que “a cidade e seus fluxos
conformam uma base dramatúrgica. [...] O ambiente se modula com uma
durabilidade relativa, pois sua dinâmica interna sempre conduz a novas
conformações” (Carreira, 2008, p. 67). E completa:
Quando um grupo teatral se lança à aventura da rua está criando um
texto espetacular que tem uma trama relacionada com a dinâmica da
cidade. A proximidade ou a distância com pontos nodais ou marcos
urbanos representa a intensificação de diferentes aspectos do
espetáculo e a formulação de significados. Isso implica dizer que o teatro
de rua não pode ser interpretado sem que se considerem as relações
existentes entre cena e zona urbana ocupada (Carreira, 2008, p. 70).
Ideia que se completa com a de Certeau, ainda que este direcione a sua fala
para os “relatos de espaço” e suas “metáforas” (transportes coletivos), dizendo que
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“todo relato é um relato de viagem uma prática do espaço” (Certeau, 2012, p.
183). Aproximando esse pensamento ao de André Carreira, temos uma provável
leitura do espaço público/urbano da peça
Final da Tarde
, já que o teatro de rua se
configura nas transições das vivências pessoais com os espaços e lugares da
cidade, como dissemos no primeiro parágrafo desse tópico. O espetáculo de rua
aqui estudado se molda conforme as performances do grupo e as participações
dos transeuntes; elas se misturam e constroem a dramaturgia da peça.
Assim, pensando a partir de uma dramaturgia que emerge da própria cidade,
Marcelo Brito (2017) nos alerta sobre a potencialização da cidade na construção de
processos artísticos e na produção de significados:
A cidade deve proporcionar não somente o espaço funcional, mas
também o banal, o acidental, o secundário. Suprimir o espaço do uso da
cidade é tirar a poesia do cotidiano, pois esse uso pode ser poético,
artístico. E cada lugar independentemente das condições de uso precisa
ser ocupado, vivido em todas as suas possibilidades: funcionais, e lúdicas.
E é nessa vivência que revela a vida na cidade com suas tensões,
contradições, pausas, movimento e poesia (Brito, 2017, p.27).
Mas essa relação não se limita apenas entre o espetáculo e o público.
ainda a cidade. Os espaços e lugares se transfiguram a partir das ações narrativas6,
seja dos atores ou das outras pessoas que caminham nesses pontos públicos e
param para assistir o espetáculo. Seus olhares se misturam com a arquitetura
construída para adequar-se à modernidade atual7. Nós temos uma forte expressão
tecnológica, prédios cada vez mais altos e até luxuosos, e uma vida extremamente
acelerada. Ainda assim, o teatro de rua traz consigo uma capacidade de interação,
6 No livro
A invenção do cotidiano: artes de fazer
, Michel de Certeau (2012) coloca que o espaço é o todo e diz
respeito ao meio que nos envolve. o lugar traz um sinônimo de localização, de um ponto específico,
delimitado, de um espaço. Esses apontamentos, a nosso ver, quando ligados ao teatro de rua e às ações
narrativas que são construídas a partir dos espetáculos (ou como diria Michel de Certeau, dos relatos de
espaços/viagens), nos levam a pensar essa modalidade teatral como uma ponte, que liga as nossas vivências
(os receptores/leitores) às estéticas teatrais (os emissores/artistas). Desse modo, podemos entender o
teatro de rua como a configuração de uma leitura doblico, que de forma subjetiva, imagética, faz as suas
interpretações. uma ressignificação, e não apenas do que está sendo apresentado nos espaços e lugares
da cidade, mas também uma transformação desses próprios espaços e lugares, revelados no olhar do
público.
7 Sugerimos a leitura do artigo
Espaço cênico/espaço urbano: reflexões sobre a relação teatro-cidade na
contemporaneidade
, de Ricardo Cardoso. Nele o autor discute sobre “as inter-relações entre o teatro e a
cidade”, propondo “uma retrospectiva histórica que entrelaça a cidade ao teatro” (Cardoso, 2005, p. 39). O
autor coloca que foi a partir dos anos 70 que as cidades realmente se deslocam, crescendo, devido as
mudanças de ordem ambiental, econômica, política, social. O autor relaciona tais mudanças com o teatro
de rua, dizendo que uma edificação teatral pode ser desde um tablado posto na rua até outros espaços,
modificando os olhares daqueles que param para assistir aos espetáculos de rua.
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dada por cada um que se imobiliza sob um olhar atento, transformando oposições
e estilos vários em arte, em reflexão.
Outra ideia a se destacar em nossa leitura, além do espaço, é a de tempo. A
peça não demarca o tempo cronológico. Ela caminha pelo tempo psicológico.
Apresenta-nos ora o casal em conversa (quando eles estão deitados), em um
tempo supostamente presente:
Figura 2 Os atores Non Sobrinho (Manuel) e Vanéssia Gomes (Whilde) e o público
Foto: Marina Cavalcante
Ora a protagonista com a sua mãe (sentada em uma cadeira), num tempo
que se mostra como sendo o passado:
Figuras 3 e 4 A atriz Vera Araújo, no papel de Dalila, mãe de Whildislane, e o público.
Foto: Marina Cavalcante
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Ora em um tempo que pode ser lido como o futuro, que é quando a mulher
sai da cena do seu próprio casamento, deixando apenas o vestido “pendurado” nas
mãos da sua mãe e do marido. É como se no futuro não existisse nada além de
um mero vestido de casamento:
Figura 5 Os atores Non Sobrinho (Manuel) e Vera Araújo (Dalila) e o público.
Fonte: Grupo Teatro de Caretas
Da relação entre o espaço e o tempo, citamos Lídia Kosovski. Segundo a
autora, “a demarcação do espaço, como a do tempo” são pontos “fundamentais
para toda e qualquer configuração social do ser humano. Deste modo espaço e
tempo são considerados [...] como categorias
a priori
do entendimento” (Kosovski,
2005, p. 9). Isso significa que, de alguma forma, o tempo narrado seja cronológico
ou psicológico – e o espaço físico – de leitura e de apropriação – da peça
Final da
Tarde
acaba funcionando como um ponto de vista em relação ao ponto observado.
E de que jeito isso pode acontecer?
Este ponto observado pode se configurar como o mundo de quem assiste. A
peça, nesse sentido, caracterizará um ponto de vista do mundo circundante e
social de cada pessoa que para no local da apresentação. Ainda que tratemos de
estar em contato com a mesma peça, em determinado lugar, o espaço e o tempo
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são de múltiplos olhares, que são muitas pessoas. Como disse Kosovski, ao
demarcar o espaço e o tempo configuramos o social do ser humano. Tal
configuração, por estar ligada à subjetividade, nos possibilidades de
compreender o espetáculo individualmente. Uma hipótese viável, uma vez que as
personagens apresentam aspectos muito próximos da nossa realidade; e cada um
tem um olhar.
Vamos apreender a dramaturgia de
Final da Tarde
. O espetáculo começa com
um casal deitado no chão (notemos isso na Figura 2). Falam sobre um de seus
filhos... sendo bem pontuais: de como criá-lo e educá-lo. Junto disso também
conversam com algumas pessoas sobre o respeito no seio das famílias. Alguns
param. Seria curiosidade? Por gostar de arte? Se não, por qual motivo?
outros, passam... Seria por pressa? Falta de interesse? Ou Medo? Como dissemos
no parágrafo anterior: o espetáculo é o mesmo, mas as reações são várias. O
espaço e o tempo de cada pessoa são únicos, mesmo diante do mesmo objeto de
análise.
Figuras 6 e 7 A reação do público na cena do casamento, com o ator Beto Meneis
(fotógrafo) fazendo o registro. Fonte: Grupo Teatro de Caretas.
Sobre isso, Zygmunt Bauman diz:
O perigo mais tangível para o que chama de ‘cultura pública’ está [...] na
‘política do medo cotidiano’. O espectro arrepiante e apavorante das ‘ruas
inseguras’ mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da
busca da arte e das habilidades necessárias para compartilhar a vida
pública (Bauman, 2001, p. 110).
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De acordo com o pensamento de Bauman, temos a considerar que muitas
pessoas, por não pararem e não assistirem
Final da Tarde
, não queriam viver a
experiência proposta pelo Grupo Teatro de Caretas com este espetáculo: uma
prática de atuação cênica baseada na proximidade (e intimidade) entre público e
atores. Como disse Vanéssia Gomes: ele modifica os estados da audiência/público.
Em suas palavras: “interessava ao processo a produção de uma experiência
conjunta, onde o espetáculo produzisse intensidade e modificasse o estado de
quem o assiste, possibilitando a produção de experiências” (Gomes, 2021, p. 160).
Ideia que se completa com a de Michelle Cabral, em dizer que o teatro de rua
é “comunicacional”. Ela coloca que, nesse teatro,
o artista/emissor e o público/receptor podem, no processo
comunicacional, trocar de lugar, invertendo posições e transformando a
mensagem/espetáculo. Assim, este espectador do teatro de rua poderá,
a partir do jogo da encenação, intervir, modificar e subverter a ordem,
tornando-se neste momento de interatividade coautor da obra e da
mensagem (Cabral, 2017, p. 155).
Portanto, o elemento central da peça em observação é a interação. Desde o
início, a mãe se aproximou das pessoas, perguntou se tinham filho e se
conversavam com eles; se outra pessoa era pai; se outra conversava com os seus
pais. Uns respondiam; outros apenas sorriam, e se afastavam; outros balançavam
a cabeça, dizendo “sim” ou “não”.
Outro momento pontual de interação acontece de forma até um tanto
natural: é quando a filha8 (nascida com o nome de batismo de Adalberto) entra
em cena e começa a cantar. Prontamente, é acompanhada por alguns na plateia:
8 A Constituição da República Federativa do Brasil, no TÍTULO I Dos Princípios Fundamentais, em seu Art. 3º,
fala sobre o que constitui como objetivos fundamentais da nossa República. Um deles é “promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
(Brasil, 2014, p. 16). Antes tínhamos a Lei nº 7.716/89 Define os crimes resultantes de preconceito de raça
ou de cor. Conforme o Art. 1º, “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de preconceitos de
raça ou de cor” (Brasil, 1989, p. 369). Ou seja, desde o ano de 2014 os crimes de homofobia estão abrangidos
pelo conceito de “racismo social” da Lei 7.716/89. Mas tal discussão é longa e ainda bastante problemática.
Aqui não vamos aprofundá-la. Contudo, é necessário pensar sobre o assunto.
Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo:
uma leitura dos aspectos dramatúrgicos no teatro de rua
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Figuras 8 e 9 O ator Non Sobrinho (
Ofélia das Águas
), cantando, e o público.
Fonte: Grupo Teatro de Caretas.
Vale destacar que a personagem Ofélia das Águas sofre preconceitos: é por
seu corpo magro ou por algo que ela mesma vive ou viveu. Em dado momento da
peça, ela diz sentir muito sobre o que os outros comentam a respeito da sua
felicidade atual, ainda que tenha sofrido em sua infância. Inclusive, sobre isso, teve
a tentativa do seu próprio pai de possuí-la. E a nossa realidade não é tão diferente
da ficção de
Final da Tarde
. Embora aconteça a participação do público, ajudando
a personagem travesti a cantar, ainda alguns olhares e sorrisos que
demonstram preconceitos homofóbicos diante da sua fala.
Contudo, ainda que ocorram discriminações e perseguições, no Brasil, dos
anos de 1980/90 para os dias de hoje, podemos notar atenções maiores ao que
tange aos assuntos da homofobia e transfobia, como na Lei 7.716/89. Entretanto,
se nos recordarmos da história da civilização, encontraremos exemplos de
preconceitos, discriminações, perseguições, violências e criminalização da
homossexualidade e transexualidade ao longo dos tempos. Embora essas ações
sejam tipificadas como crime, elas continuam a acontecer. Mas tal discussão é
necessária. Ainda é uma temática que precisa de muita atenção e informação por
parte de todos nós.
E sob um olhar mais amplo, é possível notar a relação que entre o próprio
teatro com a cidade, que esta, na peça, encontra-se para além de cenário, sendo,
portanto, a própria dramaturgia. É como André Carreira nos apresenta:
Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo:
uma leitura dos aspectos dramatúrgicos no teatro de rua
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A concretização desta transgressão se faz evidente em diferentes ordens.
Em primeiro lugar, o teatro de rua transgride o caótico deslocamento de
rua, pois, ao romper ainda que seja momentaneamente com o uso
cotidiano da rua, recria o espaço da rua e inventa uma nova ordem. Ao
mesmo tempo impõe um câmbio aos cidadãos que caminham pela rua:
de simples pedestres passam a exercer o papel de espectadores
(Carreira, 2005, p. 29-31).
Notamos que as ideias desses autores comungam. Partindo desses
apontamentos e aproximando o teatro de rua à leitura da cidade, em seus espaços
e lugares, encontramos com o pensamento de Michel de Certeau, quando diz que
a cidade é “feita de lugares paroxísticos em relevos monumentais. O espectador”,
nesse sentido, “pode ler aí um universo que se ergue no ar” (Certeau, 2012, p. 157).
E é isso que ocorre na peça: o espaço é recriado a partir do que as personagens
apresentam e de como público interage com eles. É nesse diálogo que os espaços,
os lugares e a dramaturgia vão se moldando, conforme a leitura de cada um.
Figuras 10 e 11 A personagem Whildislane interagindo com o público.
Fonte: Grupo Teatro de Caretas.
São espectadores. Mas, antes de tudo, são seres que refletem sobre a vida,
de um modo geral: sobre questões políticas, ao entender o comportamento e a
relação do pai e/ou da mãe com a filha travesti (Adalberto/Ofélia), onde o pai não
sabe nem aceita e a mãe procura cuidar; sobre questões socializadas, dadas pela
comunicação entre os atores/personagens e o público; sobre questões ideológicas,
levando o público a desenvolver ideias que, por ventura, estejam enraizadas ou
levando o público a refletir sobre os comportamentos humanos. Diante disso,
Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo:
uma leitura dos aspectos dramatúrgicos no teatro de rua
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podemos entender que o teatro de rua determina a ocupação de um lugar
importante, mostrando-se transgressor.
Acrescentamos, na discussão, o que Michel de Certeau (2012) pensa a
respeito do lugar (nós tratamos a respeito desse pensamento na Nota 6). Para o
autor, um lugar distribui meios de comunicação nas relações pessoais. E, na peça
Final da Tarde
, deparamo-nos com vários lugares o chão de uma praça, os
bancos, um bar. Vemos que, em todos esses lugares, pelo menos uma
participação direta do público: tem aquele que responde à mãe; aquele que sorri
da filha; aquele que levanta o copo de bebida; e tem aqueles que estão para tirar
a foto com um dos recém-casados. Todos têm uma participação. Completando,
com base na fala de Michelle Cabral (2017): é a ideia de que tanto os atores como
o público presente são coautores da peça e da mensagem ali narrada /passada.
Dentro dessa ideia, pontuamos uma consideração de Zygmunt Bauman. Este
diz que “há muitos lugares nas cidades contemporâneas a que cabe o nome de
‘espaços públicos’. São de muitos tipos e tamanhos” (Bauman, 2001, p. 103),
operando efeitos que se ajustam pelas transformações devidas do espaço usado.
A praça pública, palco do teatro de rua, se molda e se constrói. Oferece às pessoas
uma aproximação não apenas com a temática e/ou as personagens de
Final da
Tarde
, mas com o próprio espaço. E este espaço, ainda que de início se apresente
fragmentário, está de certa forma articulado: os atores e os transeuntes
conversam – e refletem – nesse fluxo de diversidades.
Figuras 12 e 13 O público chocado/admirado com o (possível) final da peça
Final da Tarde
.
Fonte: Grupo Teatro de Caretas.
Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo:
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Diante do apresentado e discutido neste tópico, de frisar, antes das nossas
considerações finais, que, ainda que possamos ver na rua manifestações artísticas
que não se propõem de forma direta como uma prática que coloque o público
para pensar no cotidiano, como em alguns casos em que instituições, públicas
e/ou privadas, organizam espetáculos em palcos fechados, mesmo sendo em um
espaço público, a essência do teatro de rua é sempre transgressora. Segundo
André Carreira (2005), isso ocorre por conta do jogo cênico que existe: as pessoas
saem da esfera subjetiva e individual para penetrar nas estruturas da vida social.
E esse jogo se configura em romper a chamada ordem vigente social.
Nas palavras do autor:
O jogo, quando evolui de sua esfera de fenômeno subjetivo individual e
penetra as estruturas da vida social, se faz transgressor, porque a
mobilização da energia lúdica coletiva questiona os códigos e as regras
sociais estabelecidas. Ao se materializar na superfície do ser social, o jogo
se plasma em manifestações culturais de ruptura da ordem vigente
(Carreira, 2005, p. 29).
Uma tarde além do horizonte: considerações finais
Pudemos observar9 que o público é colocado em meia roda, seguindo as
cenas de
Final da Tarde
. Na peça em apreciação, do Grupo Teatro de Caretas,
vários assuntos que se costuram: questões que se aproximam da plateia e
misturam realidade e ficção. Como disse Vanéssia Gomes: “partimos para a rua
com o objetivo de descobrir quais histórias emergiam no contato com a cidade,
no encontro com outras pessoas” (Gomes, 2021, p. 149). Ou seja, nós temos uma
mãe que perde um filho logo após o nascimento dele; depois a perda de outro,
que era gêmeo. O filho vivo que, antes tinha apenas nome de batismo Adalberto,
agora, sendo uma travesti, tem nome e sobrenome: Ofélia das Águas.
ainda outros personagens, como o marido e a mãe dessa mulher que
perdeu os filhos. Ele é um homem aparentemente áspero, que reclama da mulher,
que, segundo ele, ela que não dá educação nem orienta o filho para, no mínimo,
respeitar seus pais. Ele ainda reclama do filho, chamando-o de “menino todo
9 O espetáculo
Final da Tarde
, do Grupo Teatro de Caretas (Fortaleza - CE), analisado no artigo, está no canal
do YouTube “Teatro de Caretas”. Ressaltamos ainda que este espetáculo resulta de uma pesquisa, realizada
a partir do Laboratório de Criação da Escola Porto Iracema das Artes, em 2014.
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estranho”, provavelmente pela sua ignorância, pois não encontra um termo
apropriado para justificar as mudanças de comportamento desse filho. Em sua
defesa, de pai conservador, isso tudo acontece porque passa o dia no trabalho. E
toda a culpa seria da mulher.
Isso talvez ocorra pelo desconforto que pode causar em certos círculos
familiares. É isso que a peça nos dá: falar sobre o comportamento familiar.
Assuntos muito presentes em nossa contemporaneidade: educação, respeito,
sexualidade. São imagens que o espectador em cena e também recria a partir
dessa observação. Sobre isso, Michelle Cabral nos diz: “a imagem, no teatro de rua,
tem uma dimensão sensorial que entra pela visão e se amplia graças aos demais
sentidos, aumentando nossa percepção de um corpo-cidade” (Cabral, 2017, p. 174).
Assim, por mais que o teatro de rua nos uma leitura coletiva de uma
determinada temática, são as impressões pessoais que permitem interagir com
ele.
Fala que se completa na de André Carreira, quando diz que as imagens
funcionam como elementos que dão impulso à construção de
sequências de ações dramáticas. Neste tipo de procedimento funciona
uma lógica que toma das imagens urbanas os elementos de operação do
espaço. Disso nasce a matriz para a construção espetacular, de tal forma
que o diálogo com estas estruturas constitui a própria fala do espetáculo.
[...] O ator que invade a rua e incomoda o transeunte está deformando as
linhas que definem a cidade e desta forma exige que nosso olhar suponha
uma nova escritura que sustenta o fenômeno espetacular. O cidadão que
transita nestes espaços compõe um elemento do próprio espetáculo e
ao mesmo tempo representa seu público potencial. [...] Uma vez invadido
o espaço de uso cotidiano, o público não voluntário se frente à
questão de aceitar o acontecimento e tratar de desvendar seus códigos
ou simplesmente se distanciar. De todas as formas aquela porção da
cidade que é invadida terá suas regras modificadas e o cidadão será
convocado para a tarefa de espectador. Não um espectador que se define
pela passividade e pela distância, mas sim por uma proximidade (Carreira,
2008, p. 74 e 75).
na mãe da protagonista, vemos a noção do tempo atravessando o diálogo.
Ela sugere um casamento arranjado, remetendo-nos a um comportamento
ultrapassado; ainda que em dadas famílias seja possível de se encontrar esses
casamentos: de um homem mais velho (com 31 anos) com uma menina (de 13
anos). Contudo, é um contexto moldado, conforme as necessidades do ser
Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo:
uma leitura dos aspectos dramatúrgicos no teatro de rua
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humano. É a modernidade de que fala Zygmunt Bauman. Para o autor, “a
modernidade é, talvez mais que qualquer outra coisa, a história do tempo: a
modernidade é o tempo em que o tempo tem uma história” (Bauman, 2001, p. 128-
129).
São presenças, como a da mãe da personagem principal, que atravessam os
nossos tempos. Vivências que se misturam dentro de um tempo e do espaço
cênico da rua, e que, de alguma forma, configuram aspectos sociais e políticos do
ser humano; como antes dissemos, quando usamos o texto
A casa e a barraca
(2005), de Lídia Kosovski como referência. São vivências que são reforçadas com
a participação do público. Porque Whilde, ao contar suas histórias, pontuando a
perda dos seus filhos, faz com que as pessoas expressem, seja num comentário
baixinho para a pessoa do lado ou, por sua face ou olhar, as suas opiniões.
Em sua narrativa, a mulher conversa com o público e revela que apenas um
dos seus filhos está vivo. Quando criança era, supostamente, um menino alegre.
Conversava com a mãe. Mas depois, crescido, se batiza com o nome de Ofélia.
Fazendo uma rápida leitura desta, vemos que carrega um sobrenome que é um
elemento essencial na vida de todos nós: a água. E Ofélia nos remete a uma
personagem da obra
Hamlet
, de William Shakespeare; uma mulher jovem,
desiludida amorosamente, que comete suicídio10 (Hamlet, 2014). É como se
Final
da Tarde
nos alertasse também para captar sua provável essência: refletir sobre
o suicídio; tão presente nos dias atuais, seja em família mais nobre ou nas de baixa
renda. Claro que essa é uma das muitas e possíveis leituras.
É uma força que o teatro, de um modo geral, tem de ser político,
questionador, pensante; onde o teatro de rua parece intensificar esses
pensamentos. Citando mais uma vez André Carreira, autor que assina direção e
dramaturgia do espetáculo
Final da Tarde
, temos que essas abordagens
“reafirmam o caráter político do fenômeno teatral na rua”, onde “grupos atuam ao
ar livre [...], ‘encenando e comentando fatos da atualidade com um afã crítico e
polêmico’” (Carreira, 2005, p. 22). Assim, diante do que foi apresentado e discutido
neste trabalho, podemos destacar, de um modo geral, que a peça em apreciação
10 Em
Final da Tarde
a Ofélia tem o sobrenome “das Águas”; onde pode ser lembrado de como em Hamlet
Ato IV; Cena VII a personagem Ofélia morre, afogada, num suposto suicídio.
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e o próprio teatro de rua podem ser considerados como meios reflexivos. Veículos
que nos ajudam a buscar compreender assuntos presentes em muitas famílias.
Eles nos levam a pensar o teatro desdobrado em inúmeras formas de encenação.
E a peça faz isso: provoca envolvimento com as situações apresentadas, com
as personagens e suas tramas. Traz, inclusive, um diferencial e experimenta o
teatro de rua sem aviso prévio da história. E como não propriamente um palco,
os que assistem não têm a referência de um roteiro tradicional, com um início e
um fim; a peça, na verdade, nem utiliza outros elementos formais da prática
teatral: a exemplo da luz ou um cenário montado. Apresenta um trabalho que
pode ser observado e criticado frente a uma sociedade que, a cada dia que passa,
cai em um abismo sem fundo, quase sem volta, considerado sem liberdade de
pensamento e opinião mais embasada e fiel. Essa é uma realidade do teatro de
rua.
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Recebido em: 27/12/2022
Aprovado em: 25/11/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
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Revista de Estudos em Artes Cênicas
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