Um fim de tarde, uma praça, um espetáculo:
uma leitura dos aspectos dramatúrgicos no teatro de rua
Michelle Nascimento Cabral | Cleyton de Sousa Braga
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-22, dez. 2023
“todo relato é um relato de viagem – uma prática do espaço” (Certeau, 2012, p.
183). Aproximando esse pensamento ao de André Carreira, temos uma provável
leitura do espaço público/urbano da peça
Final da Tarde
, já que o teatro de rua se
configura nas transições das vivências pessoais com os espaços e lugares da
cidade, como já dissemos no primeiro parágrafo desse tópico. O espetáculo de rua
aqui estudado se molda conforme as performances do grupo e as participações
dos transeuntes; elas se misturam e constroem a dramaturgia da peça.
Assim, pensando a partir de uma dramaturgia que emerge da própria cidade,
Marcelo Brito (2017) nos alerta sobre a potencialização da cidade na construção de
processos artísticos e na produção de significados:
A cidade deve proporcionar não somente o espaço funcional, mas
também o banal, o acidental, o secundário. Suprimir o espaço do uso da
cidade é tirar a poesia do cotidiano, pois esse uso pode ser poético,
artístico. E cada lugar independentemente das condições de uso precisa
ser ocupado, vivido em todas as suas possibilidades: funcionais, e lúdicas.
E é nessa vivência que revela a vida na cidade com suas tensões,
contradições, pausas, movimento e poesia (Brito, 2017, p.27).
Mas essa relação não se limita apenas entre o espetáculo e o público. Há
ainda a cidade. Os espaços e lugares se transfiguram a partir das ações narrativas6,
seja dos atores ou das outras pessoas que caminham nesses pontos públicos e
param para assistir o espetáculo. Seus olhares se misturam com a arquitetura
construída para adequar-se à modernidade atual7. Nós temos uma forte expressão
tecnológica, prédios cada vez mais altos e até luxuosos, e uma vida extremamente
acelerada. Ainda assim, o teatro de rua traz consigo uma capacidade de interação,
6 No livro
A invenção do cotidiano: artes de fazer
, Michel de Certeau (2012) coloca que o espaço é o todo e diz
respeito ao meio que nos envolve. Já o lugar traz um sinônimo de localização, de um ponto específico,
delimitado, de um espaço. Esses apontamentos, a nosso ver, quando ligados ao teatro de rua e às ações
narrativas que são construídas a partir dos espetáculos (ou como diria Michel de Certeau, dos relatos de
espaços/viagens), nos levam a pensar essa modalidade teatral como uma ponte, que liga as nossas vivências
(os receptores/leitores) às estéticas teatrais (os emissores/artistas). Desse modo, podemos entender o
teatro de rua como a configuração de uma leitura do público, que de forma subjetiva, imagética, faz as suas
interpretações. Há uma ressignificação, e não apenas do que está sendo apresentado nos espaços e lugares
da cidade, mas há também uma transformação desses próprios espaços e lugares, revelados no olhar do
público.
7 Sugerimos a leitura do artigo
Espaço cênico/espaço urbano: reflexões sobre a relação teatro-cidade na
contemporaneidade
, de Ricardo Cardoso. Nele o autor discute sobre “as inter-relações entre o teatro e a
cidade”, propondo “uma retrospectiva histórica que entrelaça a cidade ao teatro” (Cardoso, 2005, p. 39). O
autor coloca que foi a partir dos anos 70 que as cidades realmente se deslocam, crescendo, devido as
mudanças de ordem ambiental, econômica, política, social. O autor relaciona tais mudanças com o teatro
de rua, dizendo que uma edificação teatral pode ser desde um tablado posto na rua até outros espaços,
modificando os olhares daqueles que param para assistir aos espetáculos de rua.