1
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata
Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice
Marcus André Vieira
Para citar este artigo:
FELICE, Thereza De; VIEIRA, Marcus André. Palavras
praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques
Lacan.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 48, set. 2023.
DOI: 10.5965/1414573103482023e0208
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
2
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan1
Thereza De Felice2
Marcus André Vieira3
Resumo
O presente artigo propõe uma analogia entre a dança, os gestos e a escrita de Hijikata
Tatsumi artista japonês, criador do butô entre os anos 1950 e 1980 e a escrita tal
como abordada pelo psicanalista francês Jacques Lacan, especialmente a partir de
sua noção de
gozo
, atrelada a uma abordagem específica da noção de corpo. Para
tal, debruçamo-nos sobretudo no modo como Hijikata criou o butô, bem como em
seu sistema de notação, chamado
buto-fu
, aproximando-o da teoria psicanalítica,
notadamente daquilo que Lacan abordou, com a caligrafia japonesa, como o que
chamamos de escrita de
gozo
. Tratamos, neste artigo, dos conceitos envolvidos,
lançando mão de metáforas e ilustrações lacanianas, como a do
litoral
, tomando
Hijikata como guia e âncora prática para a teoria que se configurou como objeto da
pesquisa.
Palavras-chave
: Hijikata Tatsumi. Jacques Lacan. Escrita. Gozo. Corpo
Practiced words, feet in the mud: Hijikata Tatsumi and Jacques Lacan
Abstract
This article proposes an analogy between the dance, gestures and writing of Hijikata
Tatsumi Japanese artist, creator of butoh between the 1950s and 1980s and
writing as approached by the French psychoanalyst Jacques Lacan, especially his
notion of
jouissance
, linked to a specific approach of the notion of the body. To this
end, we focused mainly on the way Hijikata created butoh, as well as on his notation
system, called
buto-fu
, bringing him closer to psychoanalytic theory, notably to what
Lacan approached, with Japanese calligraphy, as what we call
jouissance writing
. In
this article, we deal with the concepts involved, making use of Lacanian metaphors
and illustrations, such as the
litoral
, taking Hijikata as the guide and practical anchor
for the theory that was configured as the object of the research.
Keywords
: Hijikata Tatsumi. Jacques Lacan. Writing. Jouissance. Body.
1 Este artigo resulta em 13% de partes da Dissertação de Mestrado de Thereza De Felice denominada
: Gestos
litorais: considerações sobre letra, Lacan e Pina Bausch
. Defendida no Programa de pós-graduação em
Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), em 2018.
2 Doutora em Psicologia clínica: psicanálise, clínica e cultura Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Psicanalista. therezadefelice@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/4306650064680176 https://orcid.org/0000-0001-9660-499X
3 Doutor em Psicanálise Université de Paris VIII. Professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-Rio). Psicanalista. marcus@litura.com.br
http://lattes.cnpq.br/7087141060845700 https://orcid.org/0000-0002-0383-8218
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
3
Palabras practicadas, pies en el barro: Hijikata Tatsumi y Jacques Lacan
Resumen
Este artículo propone una analogía entre la danza, la gestualidad y la escritura de
Hijikata Tatsumi artista japonés creador del butoh entre las décadas de 1950 y
1980 y la escritura abordada por el psicoanalista francés Jacques Lacan,
especialmente desde su noción de goce, atraída por un abordaje específico de la
noción de cuerpo. Así, nos centramos principalmente en cómo Hijikata creó el butoh,
así como en su sistema de notación, denominado
buto-fu
, acercándolo a la teoría
psicoanalítica, en particular a lo que Lacan abordó, con la caligrafía japonesa, como
lo que llamamos escritura de goce. En este artículo abordamos los conceptos
relativos, haciendo uso de metáforas e ilustraciones lacanianas, respecto a el
litoral
,
tomando a Hijikata como guía y ancla práctica para la teoría que se configuró como
objeto de la investigación.
Palabras-clave
: Hijikata Tatsumi. Jacques Lacan. Escritura. Goce. Cuerpo.
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
4
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques
Lacan4
Uma pessoa que não caminha, mas foi feita para caminhar; uma pessoa
que não vive, mas foi feita para viver; uma pessoa que não está morta,
mas foi feita para estar morta, deve, apesar dessa total passividade,
paradoxalmente, expor a radical vitalidade da natureza humana.
(Hijikata Tatsumi, 1961)
Introdução5
São muitas as acepções sobre o corpo na cultura, na psicologia, na filosofia, e
também na dança e na psicanálise. Encontramos, entre estas duas últimas, um campo
de ressonância: a apresentação de um corpo a partir de suas modalidades de gozo, tal
como o psicanalista Jacques Lacan o aborda.
O corpo, assim entendido, manifesta-se, seja sob a forma de um gozo enquadrado
uma satisfação compartilhada pelos seres de fala e referida ao Outro (do social, da
cultura, das diferentes formas de famílias; o Outro da linguagem)6 , seja naquilo que
escapa à forma, aos enquadres previstos; que fica à margem, no litoral da linguagem.
Chamaremos, com Lacan, o primeiro de gozo fálico e o segundo de gozo feminino, gozo
suplementar ou gozo do corpo.
O campo entre as manifestações de corpo de Hijikata Tatsumi artista japonês e
revolucionário da dança dos anos 1950 aos 1980 e as manifestações de corpo que
interessam à psicanálise, do ponto de vista do gozo, será trabalhado e demonstrado a
partir da aproximação de ambos à escrita. Nossa hipótese é de que encontramos, na arte
de Hijikata e também na possibilidade, aberta por Lacan, de tomar a linguagem sob sua
forma escrita (ainda que seja na fala), testemunhos do corpo que manifesta isso que
chamamos de um gozo fora do enquadre fálico, gozo feminino. Em outras palavras,
4 Artigo revisado por Alice Alberti Faria Mestre em Ciências da Literatura e Literatura Comparada, pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bacharel em Letras português e literaturas, pela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
5 Este artigo compõe uma pesquisa mais ampla, produzida no contexto do Doutorado em Psicologia clínica:
psicanálise, clínica e cultura (PUC-Rio), financiada com bolsa concedida pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ao qual agradecemos pelos auxílios.
6 Lacan coloca a letra “A” maiúscula à frente da palavra
Autre
, traduzida para o português como “grande Outro”
ou, simplesmente, “Outro”, para designar uma alteridade especial, diferente da alteridade semelhante, a
quem nos endereçamos cotidianamente. Este grande Outro, vamos entendê-lo como o “tesouro dos
significantes” (Lacan, 1960/1998, p. 821), ou seja, o acervo de linguagem prévio a uma existência, no qual
alguém já nasce imerso, “nem que seja sob a forma de seu nome próprio” (Lacan, 1957/1998, p. 498).
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
5
supomos, na escrita de Hijikata e na escrita, tal como abordada por Lacan especialmente
a partir de sua noção de letra , uma escrita de gozo, litoral, conforme a metáfora
lacaniana usada nos anos 1970.
Topamos, na escrita de Hijikata, com palavras praticadas7 que encontram passagem
no espaço, através da criação de seu butô e de seu sistema de escrita,
buto-fu
. Na escrita
de Lacan, deparamo-nos com um gozo que se imprime no lugar de um vazio não mais
tão vazio assim.
Encontramos testemunhos de uma dança que não mortifica os pés. Uma escrita
que não mortifica a letra. Possibilidades para uma psicanálise que vivifique o corpo,
supondo, aí, uma escrita de gozo.
Nosso objetivo é recolher, na escrita de Hijikata, a demonstração do vivo do gozo, no
entrelace que faz entre dança e escrita. Pensamos ser possível aprender, do ponto de
vista da psicanálise, com esse passo que, no lugar de conformar-se para ocupar e saturar
o espaço, encontra passagem no vazio, apresentando um gozo escrito no corpo.
Escrita e corpo em Hijikata
Hijikata Tatsumi (1928-1986) foi um artista japonês, fundador da dança que
ficou conhecida como butô e, segundo Morishita (2015), foi um revolucionário da
dança. Hijikata “proclamava o inútil do corpo sem objetivo” (Uno, 2018, p.29).
Colocava o corpo em cena como fonte e destino de sua revolução, recusando, de
saída, os pares e oposições que organizavam (e organizam) o mundo e arte. A ele,
importava “reviver e redescobrir uma carne que estivesse aberta como a
linguagem que, simultaneamente, ele forjava” (Uno, 2018, p.32).
Suas percepções sobre a linguagem e a constituição do corpo ressoam com
a ideia fundamental para a psicanálise de que o corpo é marcado pela palavra, e
que esse encontro com a palavra imprime nossos modos de satisfação e gozo,
nos termos de Lacan. Trata-se da marca imperceptível pelos sentidos, pelo saber,
mas que faz todo o movimento da vida acontecer.
7 Agradecemos imensamente à prof. do Departamento de Artes Cênicas da UFMG, Carla Andrea Silva Lima,
por nos oferecer essa expressão que parece traduzir de maneira tão pertinente aquilo de que se trata na
escrita de Hijikata. Estendemos os agradecimentos à psicanalista Ana Lucia Lutterbach Holck, com quem o
diálogo foi fundamental para que os desdobramentos aqui propostos pudessem percorrer um fio.
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
6
A gênese de seu corpo se encontra na natureza de sua terra natal, sempre
presente, através de uma luz ofuscante e um vento extenuante, de
sombras invisíveis e do mofo imperceptível de suas lembranças,
principalmente no nível dos sentidos (Uno, 2018, p. 32).
O modo de Hijikata produzir sua revolução era propondo um novo modo de
dançar, que não fosse dando ordens ao corpo; que não fosse seguindo a
cartografia das tradições e organizações simbolicamente estáveis. Propunha
explorar e abrir essa “gênese do corpo em outra dimensão comunicativa. [...] Queria
torturar as palavras e explorar o sentido e as frases deformadas a fim de abrir os
sentidos e o corpo” (Uno, 2018, p. 32).
Sua escrita e seu corpo eram mais que depositários de palavras úteis e
conformadas; estavam aí para ser abertos e manipulados. Escreveu sobre si, sem
que possamos dizer que havia ali exatamente uma autobiografia. Escreveu
notações do butô, sem tampouco podermos dizer que ali se registrava uma dança.
Numa idade ingrata, escolhi ser dançarino com a vontade de possuir algo
muito gido e acreditei que a dança alemã era a mais gida, o que me
trouxe até aqui hoje. Era como se o corpo inteiro se transformasse numa
arma perigosa, como se os nervos fossem rompidos por um certo
movimento e sua música começasse a acompanhar a dança, o sexo não
mais enferrujasse, com um ácido inoxidável inscrito num teatro que não
mais lamenta a submissão. As articulações como varas, os passos como
um molde, pelos que não crescem mais, apenas tremem ao vento de vez
em quando, coagulados pelo verniz até o ponto em que é possível conta-
los um a um, um tubo no ânus, a maquiagem aperfeiçoada por uma gota
de veneno, quando a carne deve ser aplainada. [...]
Em 1938, nas regiões de monocultura do nordeste (Tohoku), existia uma
espécie de oclusão anal. O grito (das crianças) estava silenciado na
cultura preservada. Esse grito é um acompanhamento importante da
minha dança hoje. Foi um grito primitivo do qual eu posso rir, hoje, após
doze anos de vida em Tokyo. Eu saboreio esse grito e o fundo de gestos
ritualizados através de minhas observações da vida cotidiana. Eu invento
os passos moldados de nossos dias a partir da terra negra onde dançar
não é voar. Meu mestre de dança é a terra negra do Japão que, na minha
infância, me ensinou a desaparecer (Hijikata apud Uno, 2018, p. 33).
Hijikata testemunhava, em sua escrita e suas performances, uma recusa à
identificação inequívoca à própria história, ao “enraizamento daquele que não
toma distância, que se fecha no peso sentimental e abstrato da terra natal” (Uno,
2018, p.33). Serve-se, por outro lado, dos gritos e gestos que marcaram a terra
sobre a qual pisou, de onde emergiu seu corpo, para fazer nova terra, descontínua,
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
7
ao mesmo tempo que, inegavelmente, construída a partir da anterior. Coloca o
paradoxo entre o que vem do Outro (da cultura, da linguagem, da família) e o que
se pode fazer com isso, não sem o Outro, mas fora de uma série enrijecida, que
mortifica e até mesmo adoece o movimento dos corpos.
O núcleo do butô é formado pela fragilidade e pela errância (Uno, 2018, p. 35).
Os movimentos acontecem na medida em que os gestos se fazem com o corpo a
partir de sua “perfuração”, e não a partir de uma suposta unidade. É um trabalho
que dificilmente poderá ser fixado no tempo e no espaço ao modo linear. Mas há,
ainda assim, uma produção que “se fixa para derreter” (Uno, 2018, p. 36).
Hijikata faz, desse modo, um exercício de decomposição e recomposição:
Ele tinha o hábito de recortar reproduções de pinturas e de guarda-las
em seus cadernos, de seguir os traços de um pintor, de perceber e
comentar o detalhe da imagem, daquilo que poderia fornecer motivos e
materiais para sua dança. [...] É difícil determinar o que todo esse trabalho
trouxe para a criação de sua dança. De qualquer maneira, diante dessas
imagens e figuras, ele observava a gênese da forma e da “errância” do
corpo e dos gestos. Ele retraçava através de sua própria mão essa gênese,
por isso cortava, cercava, decompunha e recompunha as formas como
um exercício singular da dança (Uno, 2018, p. 36).
Trata-se de um processo que recusa o enquadramento formal daquilo que é
errante em nossa constituição. Faz, com isso, uma dança. Isso tudo pleno da
“interferência incessante entre a terra natal e a carne” (Uno, 2018, p. 37).
Hijikata entendia os contornos do corpo como mais deformáveis e
manipuláveis do que a cultura costuma pressupor. Era, como diz Uno,
“extremamente sensível ao que acontecia no corpo, àquilo que pode o corpo, às
mudanças que o corpo pode realmente realizar” (2018, p. 37).
A Dançarina doente
, por exemplo, foi um livro-performance, escrito por
Hijikata, considerado um dos pilares do butô, que não consistia em uma narrativa
de sua infância, nem uma teoria sobre a dança, nem poema ou prosa. Trata-se de
uma escrita poética, certamente aterrada na região em que viveu quando criança,
sem metaforizar ou explicar suas experiências:
Encontramos apenas insetos, fungos, pequenos objetos no interior e
exterior da casa. O que conta é a descrição sem fim de pequenas
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
8
sensações ou percepções de tudo o que tocava ou penetrava o corpo da
infância. A prosa parece ilegível, pois é singularmente fiel ao tempo no
qual os sentidos e as percepções se empilham e flutuam em turbilhão.
Podemos ler esse livro como um longo poema, mas cada palavra e cada
frase sem insistir em sua estética são precisas e se submetem a uma
busca contínua até o fim. [...] Ele restitui o corpo dançando nas
interferências universais entre o turbilhão da natureza e o movimento do
corpo, ao refazer a nese da dança. [...] Não se trata, portanto, de um
relato de memória. Não é um adulto que reconta sua infância, seu
passado. Tudo é presente e tudo passa ao mesmo tempo. Por isso, o
adulto é, simultaneamente, a criança. É como se a criança em Hijikata
chutasse seu adulto e dispersasse a ilusão do tempo essa ordem
ilusória do passado e do presente (Uno, 2018, p. 38).
Hijikata dizia também, com frequência, que deixou sua irmã morta entrar em
seu corpo. Essa mesma irmã lhe dizia que, da tentativa de expressão na dança,
emergia algo que não era possível de se expressar. Segundo Morishita, para
Hijikata, sua irmã foi sua professora de butô (2015, p. 7).
Morishita afirma não ser possível e nem central verificar o que da fala de
Hijikata sobre sua história seria verdadeiro ou fabricado. De todo modo, a leitura
do autor parece bastante precisa quando diz que aquilo que Hijkata “expressava”,
fosse pelas palavras ou pela dança, não deveria ser tomado de maneira direta,
como se explicasse seu butô. Para Morishita, é preciso “ler entre suas linhas”8 (2015,
p. 7), para entender Hijikata e sua arte.
Dito de outra forma, “butô não é uma expressão de uma ideia, usando o corpo
como ferramenta. O butô de Hijikata é mais uma arte do corpo, cuja expressão é
a ‘convulsão da existência’”9 (Morishita, 2015, p. 7). Butô é uma escrita de seu
criador. Assim, Hijikata, como um
koan zen
para seus alunos, iluminava aquilo que
praticava, orientando-os a não se expressarem (Morishita, 2015, p. 7).
Não se pode descrever essa arte pelas formas, conceitos e códigos de que
dispomos convencionalmente. O acesso ao butô se por suas próprias formas e
experiências e, mais precisamente, por sua forma escrita que não se restringe
ao papel, nem, tampouco, passa ao palco como expressão ou representação.
8 [...] to read between his lines. (Tradução nossa)
9 Butoh is not the expression of an idea using the body as a tool. Hijikata’s Butoh, rather, is body art whose
expression is a “convulsion of existence”. (Tradução nossa)
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
9
Como, então, acessar isso que, sob a forma de sua irmã, ocupou o corpo de
Hijikata e se escreveu nas linhas de seu butô? Conforme coloca Morishita: como
se “passa adiante”10 (2015, p. 7) o butô?
Para Hijikata, o butô sobreviveria, paradoxalmente, porque desapareceria
(Morishita, 2015, p. 7). Apesar de sua fugacidade, algo de uma marca permaneceria
– característica daquilo que chamamos de performance.11
Morishita aponta para a insuficiência de aproximações acadêmicas, registros
audiovisuais, escritas descritivas acerca do butô. A escrita de Hijikata não se presta
a tais tentativas de organização documental. Justamente por isso, permite a
passagem daquela marca que permanece, configurando-se como uma escrita
poética, que não se presta à lógica (Morishita, 2015, p. 8).
Na primavera, o vento mostra seu lado muito particular. Ele transformava
a terra em lama e lodo. Hoje ainda vejo, nitidamente, a seguinte imagem:
quando criancinha escorreguei e caí com o corpo todo na lama. Fiquei na
imundice e senti-me tão miserável e mesquinho que emudeci. O tronco
de uma árvore queria soltar um grito de compaixão quando fiquei como
uma presa desamparada. Percebi a dor sair do meu corpo e tomar uma
forma esquisita na lama. Fiquei preso e vi um bebê olhando para mim
com estreitos olhos oblíquos. É isto o meu corpo que voltou para o seu
ponto de partida? De repente, a cabeça do bebê rolava para mim. Sei,
claro, que é absurdo, mesmo assim eu brinquei com a cabecinha rolando
na lama. Por quê, não sei explicar. Mas realmente aconteceu. Por isto,
posso falar disso para vocês.
Quando a gente fica na imundice, vive experiências peculiares. De
repente, a cabeça e os pés transformam-se e nas plantas dos pés abre-
se uma boca que suga a lama. Nós japoneses temos uma relação especial
com nossas plantas dos pés. Será que não andamos como se tivéssemos
inveja da terra por ficar com nossas pegadas? Preciso constatar com toda
ênfase aqui, que meu butoh começou na lama da primavera e não em
alguma relação com a arte tradicional dos templos ou dos escrínios.
Posso afirmar para vocês que minha dança nasceu da lama (Tatsumi
apud Baiocchi, 1995, p. 52-53).
Hijikata nos confronta com uma criança solta no mundo (como todos somos),
na lama, precisando virar-se com isso. Escreve a lama que fala com ele, a partir
da marca de seu corpo. É da lama que Hijikata nasce e morre. Seu corpo se mistura
10 Hand down. (Tradução nossa)
11 Sobre a prática da performance como uma linguagem que se apresenta entre a fugacidade e o rastro, na
contramão de discursos institucionalizados, conferir
Performance como linguagem
(Cohen, 2019).
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
10
ao que desaparece, ao mesmo tempo em que emerge como butô.
Não que não seja possível capturar em suas linhas algo de uma subjetividade,
uma história ou um mundo particular. No entanto, isso não se desenvolve como
central, menos ainda leva a uma organização estável de técnicas de dança.
Impossível apropriar-se do butô como uma forma fidedignamente
reproduzível. Ainda assim, podemos dizer que é existente e resistente. uma
criação que sobrevive sobre a lama; sob o nome do butô; sob o nome de Hijikata.
Sobrevive sob a forma (sem forma) de sua escrita poética, feita de lama.
A história do butô
A primeira performance vista do primeiro trabalho de Hijikata Tatsumi,
Forbidden Colors
/
Kinjiki
, data de maio de 1959. O panfleto que anunciava a
apresentação introduzia Hijikata a partir de algumas de suas referências: Mitsuko
Ando, Kazuo Ohno (a quem considerava como um irmão mais velho, e com quem
desenvolveu o butô) e Jean Genêt (Morishita, 2015, p. 9).
A partir de então, sendo fortemente criticado pela
All Japan Art Dance
Association
, pela radicalidade dos temas e expressões colocados em seus
trabalhos, passou a desenvolver produções teatrais consideradas vanguardistas,
juntando-se a Tsuda Nobutoshi e sua escola, tomando o caminho da arte
experimental (Morishita, 2015, p. 9). Morishita ressalta o difícil processo inicial de
criação do Butô, em que Hijikata oscilava entre aquilo que pensava, o que escrevia
e o que demonstrava, preso a algumas influências da literatura europeia.
Em 1962, Hijikata toma a frente do antigo
Tsuda Dance Studio
, de Tsuda
Nobutoshi, passando a chamá-lo de
Asbestos Studio
. Colaborou com diversos
artistas de vanguarda, o que “mostra que suas atividades haviam se transformado
em um movimento artístico, indo além do gênero da dança. [...] Essas fontes nos
dizem que Hijikata estava absorto em algo ao mesmo tempo anti-arte e anti-
dança”12 (Morishita, 2015, p. 9).
Morishita aponta que, apesar de ser considerado, ao longo dos anos 1960, um
12 [...] shows that his activities had developed into an art movement, extending be- yond the genre of dance.
[...] these sources do tell us that Hijikata was absorbed in something both anti-art and anti-dance. (Tradução
nossa)
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
11
artista de vanguarda, no sentido de que este movimento protagonizava “uma
negação e destruição da tradição”13 (2015, p. 15), Hijikata era, paradoxalmente, mais
afeito às ideias pré-modernas do que modernas. Ainda assim, as técnicas e o
espírito vanguardista, como os do Dadaísmo, são suportes inegáveis do butô.
Como exemplo dessa mistura pré-moderna e vanguardista, Morishita cita
Masseur
(1963), em que Hijikata reúne, em um palco
avant-garde
, mulheres idosas,
tocadoras de um instrumento musical tradicional japonês [
syamise
n], sem
saberem do que se tratava aquela “apresentação”, submetidas a intervenções,
como gritos de Hijikata, “provocando espanto e inquietação entre os
espectadores”14 (Morishita, 2015, p. 15). Além disso, Hijikata também lançava mão
de uma estética pré-moderna no palco, bem como de referências a eventos de
outrora, como feiras e exposições. “Esse era o sabor da vanguarda de Hijikata. [...]
seu pensamento não carregava a ideia de progresso”15 (Morishita, 2015, p. 15),
explica Morishita.
Hijikata Tatsumi e os japoneses: a revolta da carne
foi uma performance solo
de Hijikata, apresentada em outubro de 1968, como uma compilação de seu butô.
Para Uno, certamente emergiu no bojo das “exigências revolucionárias” da época,
mas “enraizadas em uma dimensão mais existencial e corporal” (Uno, 2018, p. 30).
A revolta da carne, como ficou conhecida, “mostrou aos espectadores o poder
esmagador do butô e estabeleceu sua reputação como prenhe de loucura,
violência e erotismo”16 (Morishita, 2105, p. 14).
Tal performance também carrega a marca de um Hijikata que dança.
Morishita descreve seis períodos da vida criativa de Hijikata Tatsumi, de 1958 a
1976.17 E uma das variações que aparecem entre os períodos é justamente essa:
um Hijikata que dança ou não. Antes de performar
A revolta da carne
, Hijikata
13 [...] a denial of tradition and a destroyer of it (Tradução nossa).
14 [...] provoking astonishment and unease among the spectators (Tradução nossa).
15 This was the flavor of Hijikata’s avant-garde. […] there was no idea of progress in his thought (Tradução
nossa).
16 It showed viewers the overwhelming power of Butoh and established its reputation as full of madness and
violence and eroticism (Tradução nossa).
17 Apesar de Hijikata ter vivido até 1986 e ter trabalhado até o fim de sua vida, o autor considera esses dezoito
anos como o período de criação do butô de Hijikata.
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
12
declara: “Vou arriscar minha dança. [...] Chegou a hora de mostrar Hijikata Tatsumi
por Hijikata Tatsumi”18 (Tatsumi, 1968, apud Morishita, 2015, p. 15).
A revolta da carne apresenta ao mundo, assim, o corpo de Hijikata:
Butô como visto em
A revolta da carne
expressava o corpo em si. Hijikata
reduziu seu corpo, jejuando, apareceu no palco com um corpo como uma
estrutura de aço, e performou até o último nível possível da expressão
física, sem buscar um tema fora do corpo, nem qualquer meio de auxílio
fora do corpo. A violência e o erotismo do corpo, a convulsão da sua
existência, eram mostradas em conjunto19 (Morishita, 2015, p. 16).
Podemos entender essa performance solo de Hijikata, em que não outro
tema a não ser seu próprio corpo, reduzido ao risco da carne, como a própria
revolução do butô. Não se enquadrava na vanguarda que destruía a tradição, não
aplicava ao seu corpo o repertório artístico de que dispunha, nem propunha um
novo estilo que pudesse ser replicado por qualquer outro.
A revolução parece residir no fato de que, com todas essas circunstâncias,
que nos levariam quase a pensar esse corpo sem um lugar possível no mundo, foi
justamente dessa maneira que Hijikata se colocou no mundo. Fez-se visto por si,
fora de si. Ainda mais impressionante é que isso tenha concretizado uma imagem
do butô e tenha inspirado muitos artistas a se tornarem seus praticantes. Dito de
outra maneira, Hijikata por si mesmo, fora das séries previstas na arte, criou uma
marca compartilhada no mundo, sem, todavia, “nunca ser passada adiante
exatamente como antes”20 (Morishita, 2015, p. 16).
A escrita do butô
O corpo não se abandona a si mesmo na prática do butô. Abrir mão dos
dualismos que sustentam habitualmente o corpo por exemplo,
tradição/vanguarda não resvala, nesse caso, para um relativismo ou
18 I will risk my dancing. [...] The time has come to clearly show Hijikata Tatsumi by Hijikata Tatsumi (Tradução
nossa).
19 Butoh as seen in <Rebellion of the Body> expressed the body itself. Hijikata reduced his body by fasting,
appeared on stage with a body like a steel frame, and performed to the ultimate level of physical expression,
neither seeking a theme outside the body nor any means of help outside the body. Violence and eroticism
of the body, the convulsion of its existence, were shown together (Tradução nossa).
20 never handed down just as they were. (Tradução nossa)
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
13
espontaneísmo qualquer. Como abordado anteriormente, Hijikata dizia que a
dança não era expressão, derrubando, dessa maneira, tanto a ideia de uma
intencionalidade como a ideia de uma essência a ser buscada no abandono de si
mesmo.
Uma vez colocado no mundo, dessa maneira, sem expressão, sem
representação, sem relativismo, sob a forma do próprio corpo de Hijikata,
prescindindo das formas do corpo orgânico e da arte em geral, a questão da
transmissão do butô se torna central. Para conferir um caminho com
materialidade para a transmissão do butô, evitando o empuxe à improvisação21,
sem conformá-lo a uma técnica, Hijikata criou as notações do butô, buto-fu, nos
anos 1970,
[...] como a base e o método de suas criações (isto é, não-improvisação)
[...]. No butô de Hijikata, as imagens eram perseguidas através das
notações do butô. Eram feitas imagens concretas da dança, em que
técnicas e habilidades lhes davam forma22 (Morishita, 2015, p. 17).
Dessa maneira, Hijikata escreveu inúmeros cadernos com as notações do
butô, que reúnem gestos, movimentos, palavras, imagens etc. Contudo, esses
cadernos foram organizados e disponibilizados ao público depois de sua
morte.23
Enquanto estava vivo, Hijikata falava muito pouco com pessoas de fora
sobre seu método, mantendo-se em silêncio sobre assuntos como a
técnica de criação do butô, métodos de coreografia, ou como conduzir
sessões de prática. Pode-se facilmente imaginar como foi um choque
descobrir a existência e os conteúdos das notações do butô para aqueles
21 Necessário ressaltar que a improvisação é uma técnica específica de dança, não abrangida neste artigo. A
partir daqui, utilizaremos este termo em tradução direta do texto de Morishita, entendendo que o autor o
aplica na intenção de diferenciar o butô de um encadeamento de movimentos e expressões sem roteiro ou
coreografia. Diversamente, Morishita vai localizar o butô com relação ao seu sistema de notações, criado
por Hijkata, que resultava na produção de imagens concretas, conforme acompanharemos em seguida.
22 [...] as the base and method of its creation (i.e., not improvisation) [...]. In Hijikata’s Butoh, images were sought
through Butoh Notation, concrete images of dances were made, and techniques and skills gave form to
them (Tradução nossa).
23 Em 1998, foi criado o
Hijikata Tatsumi Archive
, no Centro de Artes da Universidade de Keio, no Japão, onde
se encontram os cadernos de Hijikata e outras notações do butô, escritas em outras plataformas, o que
abre um importante acesso para que a obra de Hijikata possa ser estudada. Aproveitamos para agradecer
ao professor da Universidade de Keio, Takashi Morishita, e seu assistente, Keiko Nagafuchi, que gentilmente
nos cederam acesso ao livro
Hijikata Tatsumi’s notational butoh
(2015), em língua inglesa, fundamental para
esta pesquisa. Notícias e informações acerca do referido Arquivo podem ser acompanhadas através do site
<http://www.art-c.keio.ac.jp/en/archives/list-of-archives/hijikata-tatsumi/>.
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
14
envolvidos na pesquisa acerca do butô de Hijikata24 (Morishita, 2015, p.
24).
O
buto-fu
comporta uma coleção de palavras faladas por Hijikata e escritas
por seus pupilos25. O intuito dessas notações não era o de codificar sequências
que pudessem ser reproduzidas por outros. Ao contrário, as palavras despertavam
os movimentos (Morishita, 2015, p. 27).
Não se tratavam, tampouco, de palavras aleatórias. Havia um rigor e um
cuidado de Hijikata com as palavras que colocava a trabalho. Entre a fala e a
escrita, havia um gap, próprio à relação entre significante e significado,
amplamente abordada no ensino de Lacan, a partir da linguística. Morishita trata
desse gap, indicando que, nesse processo de notação do butô, não se tratava de
replicar a palavra no papel, mas passar da fala [
parole
] à escrita [
écriture
] (2015, p.
45).
Podemos chamar de palavras praticadas, isso que se encontra na
escrita/dança de Hijikata, porque surgem de um fazer com o corpo e do que se
abre com ele. Temos um trabalho com o corpo, no que ele é tomado como uma
abertura, uma passagem, uma emergência de outra coisa. O corpo pode fazer essa
abertura, mobilizado por Outro corpo, de modo a contornar-se (conformar-se, até),
mas também de modo a emergir como forma sem contorno, sem tanta dualidade.
A escrita dessas palavras praticadas parece fazer passar adiante, como diz
Morishita, isso que emerge como ruptura e descontinuidade.
As palavras praticadas de Hijikata vêm desse lugar de furo no corpo. Não são
palavras de conhecimento sobre o corpo. São palavras que colocam o gesto em
operação – o que não tem a ver com desenvolver certa habilidade para dançar. A
revolução do butô é que não há forma fixa para o corpo.
24 While he was alive, Hijikata barely talked to outsiders about his method, remaining si- lent on such subjects
as techniques of Butoh creation, methods of choreography, or how to conduct practice sessions. It can easily
be imagined how much of a shock learning of the existence and the contents of Butoh Notation was to
those involved in research on Hijikata’s Butoh (Tradução nossa).
25 A relação entre Hijikata e seus pupilos é digna de nota. Morishita aborda tal relação como uma vida em
comunidade” [comunal life], na qual “mestre e pupilo existiam lado a lado, podendo ser considerada como
a condição da criação do butô de Hijikata” [in which master and pupil existed side by side, and can then be
considered a condition of the creation of Hijikata Tatsumi’s Butoh] (Morishita, 2015, p. 24 e 25. Tradução
nossa).
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
15
Para Frant (2016), esse sistema de escrita, criado por Hijikata, opera um
desdobramento do gesto. O movimento ganha a força e a potência de um ato que
o difere de um “apenas mover-se”. O gesto que poderia ficar perdido na
sideração provocada pelo movimento improvisado recupera, com a escrita do
buto-fu, a possibilidade de emergir como ato, como corte.
Ao contrário de outros sistemas de notação em dança (ou mesmo no teatro,
cinema etc.),
[...] o buto-fu não indica passos a serem seguidos, mas trata-se de uma
cartografia de corpos, gestos e movimentos, produzidos a partir de um
emaranhado complexo de colagens, mesclando textos poéticos, citações
literárias e imagens, com centenas de referências iconográficas. [...] Seus
discípulos relatam que ele pedia para que eles também, durante suas
práticas, fizessem suas próprias notações, estabelecendo assim uma
verdadeira prática coreo-gráfica, onde dançar e escrever são atividades
intercambiáveis e onde, não mais o chão, liso, ou a folha em branco
compreendem a plataforma onde a grafia da dança se inscreve, mas sim
o próprio corpo, ou ainda, a pele com todas as suas fendas, furos, buracos
e rachaduras (Frant, 2016, p. 5471; 5473).
Isso quer dizer que, nessa escrita do butô, produz-se um corte, em vez de
continuidade. O movimento o gesto, como ato não se perde e instaura algo
novo. Sobrevive porque desaparece, como disse Hijikata.
Em seus cadernos, Hijikata debruçava-se sobre formas de pintura Goya,
Bacon, Chagall –; formas sem muito contorno. Apareciam também palavras e
imagens como “pântano”, “incêndio”, “campo de concentração” desordem.
Lugares, nomes, objetos, animais, plantas, sensações...26
Somos levados à beira do corpo como emergência da catástrofe. Vamos nos
aproximando do fazer de Hijikata. Vemos inspirações que nada respondiam a
técnicas de dança. Encontramos traços do que se experimenta no corpo a partir
de acontecimentos (artísticos ou não), recolhidos do mundo, que possam, de
alguma forma, ressoar com o universo que o interroga o universo da própria
experiência de emergir como corpo.
De todo modo, para Morishita, mais que o conteúdo dos cadernos de Hijikata,
26 O livro
Hijikata Tatsumi’s notational butoh
(Morishita, 2015) inclui diversas imagens de cadernos de Hijikata,
bem como transcrições e descrições de suas notações. Essas, especificamente, encontram-se na página
27.
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
16
o que importa é sua existência. A feitura desses cadernos, com essas palavras e
imagens, conferem existência ao próprio butô e, assim, algo passa adiante
(Morishita, 2015, p. 17). Dança-se, performa-se ou pratica-se o butô a partir de uma
escrita em causa. Imagens e palavras eram escritas e praticadas como motor de
criação dos movimentos (Morishita, 2015, p. 24).
Fica claro, nesse momento, que os processos de escrita, investigação e
criação de Hijikata caminhavam atrelados. Hijikata nos apresenta, com o butô e
suas notações, à proximidade entre dançar e escrever. Dessa forma, é preciso não
perder a proximidade entre os dois, não tender a reduzir o butô à escrita dos
cadernos ou ao gesto performado, como se fossem separáveis. Essa relação entre
os dois é o que nos possibilita abordar, a partir da perspectiva do gozo, com Lacan,
isso que encontra passagem no
buto-fu
.
Corpo e gozo em Lacan
Do encontro da carne que ainda não se pode chamar de corpo, com o Outro
e suas palavras, é possível recortar-se um corpo que se insere na cultura, que faça
laços, que compartilhe dos saberes comportados por sua língua e se comunique
com seus semelhantes, desde que se enquadre a partir de algumas referências
mais ou menos estabilizadas na cultura. Seguindo algumas cartilhas, constitui-se
um ser falante que e escreve seu mundo, repousando essa possibilidade de
existência compartilhada na cultura sobre uma perda essencial: uma perda de
gozo.
Perde-se, necessariamente, parte de uma experiência excessiva de satisfação
com a linguagem para que se possa falar e entrar na cena do mundo. O que cada
um fará com essa perda fundamental se desdobra em muitas possibilidades,
sempre marcando um modo singular de existência. O percurso que Lacan segue
com a letra27 mostra que essa marca é uma impressão, uma escavação do gozo
no corpo, em torno da qual se instaura um movimento de vida, na tensão entre
27 Uma organização da investigação sobre a letra, no ensino de Lacan, a partir de três aspectos significante,
objeto a e litoral aconteceu no contexto do grupo de pesquisa “A voz e seus limites”, coordenado por
Marcus André Vieira, na PUC-Rio. Esse trabalho coletivo foi decantado no livro
A arte da escrita cega: Jacques
Lacan e a letra
(Vieira; De Felice [org.], 2018), onde se encontram contribuições minuciosas sobre os
desdobramentos dessas três vertentes da letra.
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
17
um gozo perdido e um gozo que aparece como uma vitalidade.
Lacan propôs, a partir de suas fórmulas da sexuação, esquematicamente,
pensar as manifestações do gozo, para os seres falantes, a partir de duas
denominações: gozo fálico e gozo feminino. São duas formas de abordar, a partir
de um recurso à lógica, o modo como a entrada de um ser na linguagem instaura
um movimento, amparado em fantasias, identificações, identidades, mas também
operado por um limite, por algo que perturba o corpo, ao mesmo tempo em que
o vivifica, e que sempre pode romper os enquadres estáveis de uma história.
Como
gozo fálico
, Lacan designou a satisfação da fala, da comunicação
(Lacan, 1972-73, p. 70). O falo é tomado como significante que inaugura uma
cadeia, na medida em que se torna velado (pelo pudor, por exemplo), suprimido.
Essa supressão produz o jogo de oposições em que se movimenta o discurso
(Lacan, 1958/1998, p. 698 e 699), estabilizando algumas balizas simbólicas que
servem como bússolas em nossa cultura.
Para Lacan, somos matéria da estrutura da linguagem. Nossa relação com a
palavra institui nosso ser como ser do discurso, o que abole qualquer ideia de uma
essência psicológica ou biológica que conteria nosso real (Lacan, 1958/1998, p.
695).
Em suma: não real sem discurso. É dessa forma que Lacan pensará a
existência de um gozo do corpo (Lacan, 1972-73, p. 77), ou gozo feminino, que não
segue as coordenadas do falo, mas não fica fora da materialidade da linguagem e
do corpo.
Se o gozo fálico serve às diferenças e às oposições significantes
(homem/mulher, por exemplo), como dissemos acima, para quê serviria esse outro
gozo, cuja satisfação não se encontraria referida ao compartilhamento da
diferença, da oposição ou da comunicação?
Lacan chama também esse outro gozo de “gozo suplementar” (Lacan, 1972-
73, p. 79). Trata-se da experiência de satisfação de um
a mais
¸ “para além do falo”
(Lacan, 1972-73, p. 80). Esse caminho nos leva a pensar na manifestação ou
irrupção desse gozo fora do campo da utilidade, da serventia. Não estaríamos no
registro da comunicação compartilhada, mas, ainda assim, algo desse a mais
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
18
poderia apresentar-se.
Gostaríamos de sublinhar, aqui, no ponto incipiente de nossa pesquisa sobre
o que Lacan chama de gozo feminino, que sua abordagem se única e
exclusivamente pela via da lógica (Lacan, 1972-73, p. 80). Isso porque, segundo
adverte o autor, é impossível abordar esse outro gozo sem um “anteparo” (Lacan,
1972-73, p. 82). E, aqui, justamente, buscamos anteparos para abordar as
possibilidades de manifestação desse gozo com a escrita de Hijikata e a proposta de
Lacan para uma escrita de gozo.
Letra e litoral
Com seus desdobramentos acerca da letra, especialmente nos anos 1970,
Lacan propõe que suponhamos para a escrita seja ela no papel, na fala, ou nos
gestos –, além da negativação fundamental do gozo, a possibilidade de uma
restauração do gozo do corpo, suplementar, como presença material.
A caligrafia japonesa foi campo profícuo para Lacan para falar dessa presença
de gozo na escrita e serve, aqui, como caminho.28 Suas experiências e seu interesse
no Japão, na década de 1970, tiveram enorme influência nos desenvolvimentos
subsequentes de seu ensino, por carregarem um “tantinho de excesso” (Lacan,
1971/2003, p. 20), um tantinho de gozo, o que o levou a diversas metáforas (da letra
como litoral, constelações, rasuras etc.) e à escrita de um texto bastante poético,
chamado “Lituraterra” (1971/2003).
Neste texto, Lacan extrai, dos cursos d’água que vê ao sobrevoar as planícies
da Sibéria, uma dessas metáforas. Aproxima as rasuras ou sulcos que vê na terra
plana, ao traço do calígrafo japonês. Um traço que, referido à escrita oriental, opõe-
se ao traço da escrita ocidental, alfabética. Esta, a alfabética, uma escrita que
articula, em sua rede de significantes, aquilo que serve à comunicação, que se
compartilha no repertório do Outro, que se ordena entre sentidos comuns. O traço
da escrita caligráfica, por outro lado, seria aquele em que se abole o imaginário,
que imprime o que não se articula no sentido o gozo –, mas conta para que toda
28 Além da caligrafia japonesa, apesar de não ser nosso objeto de pesquisa, destacamos a escrita de James
Joyce como uma das principais fontes de Lacan para seguir na abordagem de uma escrita de gozo, o que o
levou à uma teorização muito específica com os nós borromeanos e com aquilo que chamou de sinthoma,
em seu vigésimo terceiro seminário, de 1975-76.
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
19
a articulação alfabética se dê (Laurent, 2010).
a metáfora do litoral surge em seu texto de 1971 para abordar a letra da
escrita caligráfica como um operador possível entre dois registros heterogêneos
simbólico e real, ou saber e gozo –, sem que fosse possível delimitar uma fronteira
bem estabelecida entre eles e sem, tampouco, torná-los recíprocos. Tal qual o
lugar em que se encontram o mar e a areia (ou, podemos dizer, o corpo e a lama),
o litoral lacaniano permite que se vislumbre a possibilidade de dois campos
distintos se encontrarem de outra forma que não a de uma oposição e nem
mesmo a de uma articulação em que um se encaixe no outro. Trata-se de um
encontro cujas fronteiras são fluidas. Lacan propõe que seja possível, nesta
condição litoral, um encontro entre dois campos inconciliáveis saber e gozo –,
na medida em que a significação seja descentralizada e a linguagem ganhe um
lugar material, uma vez abandonada a busca pelo encaixe.29
Apenas quando a água (nessa metáfora, o gozo que nos habita) corre pela
planície, podemos acessar essa vida em nós, indiretamente, pela refração
do sol em seus sulcos. Esta trama literal terá leitura se tocar a alguém.
O Outro, assim, muda de função. o é mais agente da perda, mas aquele
que poderá proporcionar a este traçado um enlace, a cada gesto de
escrita, e não a partir do que dele, em cada um, falta. Essa rede é
chamada por Lacan de “terra de rasuras” (Vieira, 2018a, 91).
Assim, com a caligrafia japonesa, Lacan apresenta um tipo de escrita que não
é conduzida pelos significados, pela mensagem que transmite, e que se produz
nesse espaço litoral. Lacan vai chamar a atenção para a função da mão do calígrafo
na acomodação de gozo promovida em sua escrita: “[...] o singular da mão esmaga
o universal [...]” (Lacan, 1971/2003, p. 20). Em outras palavras, o gesto do calígrafo
produz um efeito de gozo em sua escrita.
Na língua japonesa, Lacan nos ensina que o gesto sem sentido é central, e
não, como nas línguas ocidentais, descartado em prol de uma leitura universal. A
impressão de uma singularidade na caligrafia japonesa se faz “pelo movimento do
corpo que tem o pincel e a tinta como suas extensões” (Andrade, 2015, p. 76). O
gesto traz para a letra caligráfica mais o gozo do que uma subjetividade descritível.
O gesto permite àquele gozo suplementar alojar-se na escrita.
29 Este parágrafo foi extraído de De Felice Souza, 2018, p. 12-13.
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
20
Lacan também aborda o gesto do pintor em seu
Seminário, livro 11: os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise
(1964/2008). Neste momento, no entanto,
ele o faz de modo que o gesto aparece atrelado ao significante, referido à ordem
fálica, na medida em que serviria para designar os lugares das representações
(Lacan, 1964/2008, p. 114-115). Éric Laurent opõe, assim, à pintura do calígrafo, a
pintura renascentista, fornecendo-nos mais um exemplo da diferença entre uma
organização de traços que serve à comunicação e essa outra, em que é o traçado
em si, desprovido dos sentidos, que está em questão.
Esta pintura de calígrafo, onde não se trata, como na pintura do
Renascimento, de descrever o mundo, de ordenar o caos interno, mas de
ordenar por meio de um traço de pincel, de atuar traçando. [...] [é] o
próprio gesto que conta, uma vez que é portador da inscrição desse traço
(Laurent, 2010, p. 80).
Trata-se, no caso do renascentista, por exemplo, de um gesto que serve para
ordenar os traços pelo sentido, que se pode descrever, compartilhar, ler a partir
dos sentidos comuns, pressupondo um vazio essencial e central, que permite a
existência de uma estrutura em seu entorno.30 o gesto do calígrafo, por outro
lado, mostra-se como central neste tipo de escrita, não porque engendre os
significados que poderiam ser lidos a partir dela. Ao não prestar essa escrita ao
jogo dos sentidos, o gesto importa por conter uma dimensão impossível de ser
integrada pelo saber, pelo conhecimento.
Deste ponto de vista, o gesto que delineia a letra e que a inscreve
permanece visível no papel. Ressalta-se como o gesto de escrita é único
para cada mão e não se perde na leitura. Neste caso, a letra interessa no
que encerra e transmite desse gesto singular que a traçou [...]. A série de
traços de uma escrita passa a permitir, então, vislumbrar o gozo singular
nela encerrado (Vieira, 2018b, p. 156).
Vemos que, na perspectiva caligráfica, a singularidade do gozo do corpo
suplementar, feminino escreve-se, e não resta perdida ou inapreensível, uma
vez que o gesto de cada mão “não se perde na leitura”, como diz Vieira. Nas
palavras de Carvalho:
Abre-se, com a caligrafia, a possibilidade de buscar a singularidade não
exatamente no furo da estrutura, mas no
modo único
de traçar a própria
30 Aqui, aludimos ao exemplo de Lacan, a partir de Heidegger, do oleiro que molda o vaso ao redor do vazio;
o vaso, aí, como “objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real que se chama a Coisa,
esse vazio, tal como ele se apresenta na representação” (Lacan, 1959-1960/2008, p. 148).
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
21
letra. O caráter universal de um significante pode, assim, ser superado
não por aquilo que lhe escapa, mas pelo próprio gesto com que a mão o
desenha (Carvalho, 2017, p. 158).
Dito de outro modo,
a caligrafia serve a Lacan porque indica a possibilidade de uma
prática
que não visa ao campo semântico e, como efeito disso,
pode inscrever a singularidade do corpo na escrita; pode torná-la
presente. Assim, ao reconhecermos o papel do gesto na operação
de encontro entre saber e gozo, que abole o sentido, vemos a
escrita operada pela letra-litoral ficar atrelada, necessariamente, a
um
fazer
(De Felice Souza, 2018, p.70).
Trata-se, nas palavras de Jacques-Alain Miller (2012), de uma “pragmática”
com o gozo, ou um trabalho de “manipulação” com o gozo, tornando-o possível,
quando o gesto do calígrafo se inclui na leitura, como parece ser o que ocorre na
escrita japonesa. O gesto, liberado dos sentidos, acomoda em sua própria prática
essa dimensão de real, de singularidade. O
modo de traçar
ganha relevo por ser
portador de gozo. O manejo do calígrafo recupera, assim, a possibilidade de a letra
operar entre a ordem significante e o real:
O calígrafo rompe o semblante para fazer aparecer a opacidade do gozo.
[...] Abre mão da ressonância semântica quando desprovê o significante
de sua forma legível, de seu semblante, para obter num manejo do litoral,
intervindo com a
letra
, para obter uma escrita
ilegíve
l embora plena de
ressonâncias no corpo (Andrade, 2015, p. 153, grifos do autor).
Retomando: a letra pode servir como suporte à construção de sentidos na
cadeia significante, se a tomarmos na perspectiva das letras do alfabeto. Sua
operação com efeito de gozo sua restauração caligráfica –, contudo, poderá
ocorrer se for tomada como possibilidade de escrever aquilo que excede o sentido;
um
a mais
. estamos diante da letra como “operadora de corte e ponte entre
espaços heterogêneos” (Bassols, 2015, p. 143), entre saber e gozo, entre simbólico
e real. A letra da escrita caligráfica, ou a letra-litoral, é um “receptáculo de gozo”
(Lacan, 1971/2003, p. 25), produzido por uma erosão de sentido (Bassols, 2015, p.
143), que permitirá, por sua vez, uma prática.
Podemos pressentir uma aproximação à escrita de Hijikata. Seria possível,
assim, voltar às suas palavras praticadas, como portadoras desse efeito da
restauração do gozo, próprio à caligrafia japonesa, tal como colocado por Lacan?
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
22
O butô de Hijikata com o Japão de Lacan
O que chamamos de corpo, quando este se coloca em movimento? O que
seria uma escrita do corpo, se pensarmos os gestos no lugar da letra, como
possibilidade litoral de restauração do gozo?
As rasuras, visualizadas por Lacan, aparecem na escrita de Hijikata, como
uma tentativa de encontrar palavra, mais poética do que metafórica e, sobretudo,
como uma tentativa de encontrar palavras operatórias. Hijikata buscava palavras
que fossem usadas e efetivamente colocadas a trabalho: palavras que pudessem
ser manipuladas, praticadas. São rasuras que colocam algo em operação.
Podemos dizer que, em vez de proferir e dançar palavras de sentido, as
palavras praticadas do butô, escritas no gesto e no papel, colocavam o vazio (de
sentido, de história, de metáfora) em operação? Podemos chamar essa operação
de uma escrita de gozo?
O trabalho de Hijikata, que pudemos acompanhar especialmente a partir da
criação de seu
buto-fu
, diz de uma outra possibilidade de tomar o corpo e seus
movimentos. Escritos nesse sistema, são movimentos e gestos que vão em
direção a um gozo não contornado/contornável.
Extraímos dessa prática uma pergunta que parece fundamentalmente clínica
para a psicanálise: o que acontece com os gestos que não se incluem em um
corpo que conta com o Outro como suporte (por exemplo, o da técnica, ou o da
fantasia neurótica)? Podemos pensar, com o butô, em outras amarrações possíveis
para o corpo, que não o contorno dual e fálico?
A experiência do butô, da lama de Hijikata, nos leva a pensar um corpo que,
em vez de agir no espaço, é agido pelo espaço. A convocação do Outro, na
operação de conformação do corpo como um eu robusto, é de que, justamente,
se use aquele corpo e aquele eu para agir no espaço. A operação de Hijikata
subverte esse uso do corpo. Torna-se um uso inútil, por mais paradoxal que seja,
do ponto de vista do Outro. Isso descentraliza quem mobiliza o movimento e o
gozo pode tomar lugar.
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
23
Por que não colocar uma escada no próprio corpo e descer dentro dele?
Eu os incentivo a arrancar a obscuridade do corpo e comê-la, mas, em
vez disso, eles [os artistas] liberam o eu para fora do corpo,
externamente31 (Tatsumi, 1968, apud Morishita, 2015, p. 19).
O corpo carrega a marca de um gozo que quer fazer passagem. Na prática de
Hijikata, não é conferindo forma a esse gozo em que essa passagem se ou
seja, enquadrando-o segundo as cartografias do falo –, mas encontrando um
caminho
no
espaço,
no va
zio, de passagem.
Nesse sentido, acompanhamos François Regnault quando aponta que Lacan
coloca, com a letra, alguma coisa
no lugar do vazio
(Regnault, 2001, p. 31). O real
do gozo pode, assim, encontrar outra forma de apresentação. Ao invés de um real
vazio, um gozo negativado, que poderia ser tratado pela via da sublimação
(como no caso do oleiro de Heidegger), podemos vislumbrar, com a letra, um real
que se escreve, ou uma escrita possível para o gozo do corpo.
Se a arte pode, por um lado, organizar uma estrutura, sustentando um vazio
e criando uma organização em torno dele, na perspectiva da letra, como litoral, a
arte poderá organizar-se não pelo que representa do mundo, mas pelo que poderá
encontrar no lugar do vazio.
Supondo, dessa forma, que Hijikata encontra, em sua escrita, uma passagem
para o gozo, apresentada também por Lacan, com a escrita caligráfica,
perguntamo-nos: o que significa operar uma escuta clínica ou a construção de um
corpo-dança a partir dessa possibilidade de restauração do gozo?
Na escrita de Hijikata, encontramos um testemunho desse corpo que não se
captura na experiência de um traçado estável. Habita-se esse lugar de presença
no movimento, sem conduzi-lo. Testemunha-se aquilo que age e esvai o contorno
fálico. Podemos dizer que ele encontra um modo de se movimentar com a
fugacidade do contorno.
Trabalhamos, assim, a escrita de Hijikata como a escrita de seu próprio fazer.
A escrita de um corpo que se torna uma prática, que opera ao modo do litoral de
Lacan. Hijikata nos ensina sobre a presença que pode haver no vazio do corpo
31 Why not put a ladder on one’s own body and go down inside it? I urge them to pluck off the darkness of the
body and eat it. But they instead release the self to outside of the body, externally. (Tradução nossa)
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
24
orgânico, como lugar de passagem, de “passar adiante”, palavras praticadas,
restauradas de gozo.
Referências
ANDRADE, Cleyton.
Lacan chinês
: Poesia, ideograma e caligrafia chinesa de uma
psicanálise. Maceió: Edufal, 2015.
BAIOCCHI, Maura.
Butoh
: dança veredas d’alma. São Paulo: Palas Athena, 1995.
BASSOLS, Miquel. Lituratierra.
Cuadernos del INES
, Venezuela, n.9, Nueva Escuela
Lacaniana, 2015.
DE FELICE SOUZA, Thereza.
Gestos litorais: considerações sobre letra, Lacan e Pina
Bausch
. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-graduação em Psicologia
Clínica, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
CARVALHO, Rodrigo Lyra.
O sujeito suposto saber e a tirania da transparência
. 2017.
180 fls. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Psicanálise,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
COHEN, Renato.
Performance como linguagem
. São Paulo: Editora Perspectiva,
2019.
FRANT, Adriana. Linhas de errância / traços de vida nos cadernos de Tatsumi
Hijikata. In:
XV
Encontro ABRALIC, 2016. Anais eletrônicos do XV Encontro ABRALIC
,
Rio de Janeiro, 2016, p. 5467-5476.
LACAN, Jacques. (1957). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde
Freud. In:
Escritos
. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LACAN, Jacques. (1958). A significação do falo. In:
Escritos
. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1998.
LACAN, Jacques. (1959-60).
O Seminário, Livro 7
: a ética da psicanálise. Rio de
janeiro, Jorge Zahar Ed., 2008.
LACAN, Jacques. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano. In:
Escritos
. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LACAN, Jacques. (1964).
O Seminário, Livro 11
: os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LACAN, Jacques. (1971). Lituraterra. In:
Outros Escritos
. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003.
Palavras praticadas, pés na lama: Hijikata Tatsumi e Jacques Lacan
Thereza De Felice | Marcus André Vieira
Florianópolis, v.3, n.48, p.1-25, set. 2023
25
LACAN, Jacques. (1972-73
). O Seminário, Livro 20
: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008.
LACAN, Jacques. (1975-76).
O Seminário, Livro 2
3: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2007.
LAURENT, Éric. A Carta Roubada e o voo sobre a letra.
Correi
o, São Paulo, n. 65:
EBP, 2010.
MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana Online, São
Paulo, n.7, EBP, 2012. Disponível em:
http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf. Acesso
em: 13 dez. 2022.
MORISHITA, Takashi.
Hijikata Tatsumi’s notational butoh: an innovational method
for butoh creation
. Tóquio: Keio University Art Center, 2015.
REGNAULT, François.
Em torno do vazio: a arte à luz da psicanálise
. Rio de Janeiro:
Contra Capa, 2001.
UNO, Kuniichi.
Hijikata Tatsumi
: pensar um corpo esgotado. São Paulo: N-1 edições,
2018.
VIEIRA, Marcus André.
A escrita do silêncio (voz e letra em uma análise
). Rio de
Janeiro: Subversos, 2018a.
VIEIRA, Marcus André. Do objeto à letra. In: VIEIRA, Marcus André; DE FELICE,
Thereza. (Org.)
A arte da escrita cega
: Jacques Lacan e a letra. Rio de Janeiro:
Subversos, 2018b.
VIEIRA, Marcus André; DE FELICE, Thereza. (Org.)
A arte da escrita cega
: Jacques
Lacan e a letra. Rio de Janeiro: Subversos, 2018.
Recebido em: 13/12/2022
Aprovado em: 12/08/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br