Da rua à encenação: encontros entre dança e cidade
Clara Gouvêa do Prado
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-33, dez. 2022
constituem maneiras de existir, pronúncias do/no mundo. Tais discussões aliam-
se às reflexões de André Lepecki (2012) firmadas nos conceitos de “coreopolícias”
e “coreopolíticas”, expostas pelo autor.
André Lepecki (2012), na direção de reflexões sobre os regimes cinéticos
urbanos e a dança, enfatiza que os arranjos coreográficos urbanos podem ser
vistos em um ambivalente movimento na gestão dos corpos. Ele discute a política
do movimento por meio dos dois conceitos citados acima: “coreopolícia” e
“coreopolítica”. De um lado, aponta a polícia do movimento e suas ordenações,
um coreopoliciamento dos espaços urbanos, formatado para moderar gestos e
ritmos, que visa estabelecer estados de controle, vigilância e estabilizar consensos.
De outro lado, propondo uma coreopolítica, ou seja, a possibilidade de outras
perspectivas de mobilidade e paragens que criam gestos dissonantes e deslocam
a partilha cinética, em consonância com uma “política de chão”
que, atenta à
ressonância constitutiva entre lugares e danças, está igualmente em relação ao
horizonte do chão dos acontecimentos concretos das cidades.
O terreno das cidades não é como uma superfície plana, “o chão é fissurado,
quebrado, frio, doloroso, quente, fedido, sujo. O chão fura, fere, prende, arranha. O
chão, acima de tudo, pesa” (Lepecki, 2017, p.180). A metrópole paulistana reflete
isso, imprime regimes cinéticos muitas vezes de aceleração, privilegiando os
espaços como propriedades, atropelando temporalidades de partilha do comum,
cada vez mais na lógica da especulação imobiliária. Diante disso, pontua Laila
Padovan (2020, p.8):
Assim, quando a dança passa a ocupar outros espaços normalmente
considerados não ideais para seu livre desenvolvimento, habitando ruas
da cidade, paisagens naturais e espaços não-convencionais, ao invés de
se buscar um espaço livre de tropeços ou obstáculos imprevistos, busca-
se colocar o corpo em contato com espaços do cotidiano que vêm
carregados de uma história específica e que nada têm de neutros. Ao
percorrer ruas, construções, praças, becos, ladeiras, vislumbra-se uma
nova relação da dança com seus espaços, não apenas exigindo que os
bailarinos enfrentem chãos sujos, esburacados, ásperos ou cheios de
A noção “política do chão” cunhada pelo teórico crítico Paul Carter, utilizada por Lepecki, percorre reflexões
sobre quais relações profundas regem aquilo que compreende as artes ocidentais de representação. Para
isso o autor abriu discussões sobre o colonialismo e a questão da representação, a questão da ontologia e
a noção do chão. Carter afirma que o colonialismo aplaina os chãos e se afasta deles, e assim deixa de
considerar as marcas e memórias inscritas neles. “Enquanto isso, outros corpos caem e habitam dobras e
fissuras não consideradas. Enquanto isso, o chão sacode e treme, agitando os caídos.” (Lepecki, 2017, p.182)