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Cidade e experiência estética: ocupar as ruas,
para ocupar os currículos
Abimaelson Santos
Para citar este artigo:
SANTOS, Abimaelson. Cidade e experiência estética:
ocupar as ruas, para ocupar os currículos.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0113
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Florianópolis, v.3, n.45, p.1-30, dez. 2022
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Cidade e experiência estética: ocupar as ruas, para ocupar os
currículos
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Abimaelson Santos
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Resumo
nas relações formativas contemporâneas a necessidade atitudinal e
epistêmica de se fazer da cidade um espaço para que a experiência estética
possa existir e, assim sendo, uma das maneiras para que tal premissa
educativa, que resvala diretamente na formação de novos espectadores,
possa se consolidar enquanto área de conhecimento e campo de experiência
seria a ocupação regular dos espaços públicos por ações estéticas diversas,
desse modo, as Universidades não estão fora deste contexto. Assim, de
maneira ensaística, o trabalho a seguir levanta algumas reflexões sobre as
potências formativas que a cidade pode oferecer na construção de artefatos
estéticos e, ainda, algumas possíveis relações entre currículo, cidade e cultura
na formação artística.
Palavras-chave
: Cidade. Experiência estética. Teatro. Formação de
professores.
City and aesthetic experience: occupy the streets, to occupy the
curricula
Abstract
In contemporary formative relationships there is an attitudinal and epistemic
need to make the city a space for the aesthetic experience to exist and,
therefore, one of the ways in which such an educational premise, which slips
directly into the formation of new spectators, can be consolidated as an area
of knowledge and field of experience, it would be the regular occupation of
public spaces by different aesthetic actions, thus, Universities are not outside
of this context. Thus, in an essayistic way, the following work raises some
reflections on the training potential that the city can offer in the construction
of aesthetic artifacts and, also, some possible relationships between
curriculum, city and culture in artistic training.
Keywords
: City. Aesthetic experience. Theater. Teacher training.
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Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Brenda Stefanine Diniz Silva. Graduada
em Licenciatura em Letras Português e Espanhol pela Faculdade Santa Fé.
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Doutorado em Artes pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP). Mestrado em Cultura
e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Graduação Licenciatura em Teatro pela UFMA.
Professor da Universidade Federal do Maranhão. abimaelsonteatro@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/3688097486981308 https://orcid.org/0000-0001-5178-4552
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Ciudad y experiencia estética: ocupar las calles, ocupar los
currículos
Resumen
En las relaciones formativas contemporáneas existe una necesidad
actitudinal y epistémica de hacer de la ciudad un espacio para que exista la
experiencia estética y, por tanto, una de las formas en que tal premisa
educativa, que se desliza directamente en la formación de nuevos
espectadores, puede consolidarse como área de conocimiento y campo de
experiencia sería la ocupación regular de los espacios públicos por diferentes
acciones estéticas, por lo que las Universidades no quedan fuera de este
contexto. Así, de manera ensayística, el siguiente trabajo plantea algunas
reflexiones sobre el potencial formativo que la ciudad puede ofrecer en la
construcción de artefactos estéticos y, también, algunas posibles relaciones
entre currículum, ciudad y cultura en la formación artística.
Palabras Clave
: Ciudad. Experiencia estética. Teatro. Formación docente.
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No caminho entre as estações da e da Barra Funda, no metrô de São
Paulo, vê-se uma microcidade subterrânea e passageira que se movimenta e se
modifica a cada estação, a cada entrada e saída; modifica-se a cada usuário que
abre uma embalagem de um enlatado qualquer e, com as mãos, enfia na boca
uma porção da sua refeição. Um outro, como que em uma corrida consigo mesmo,
ávido de tempo, faz da brecha entre as portas do vagão do trem uma passagem,
uma conectividade entre o ir mais rápido e a pausa na respiração de quem chegou
a tempo, mas a tempo de que?
De dentro da Estação da Sé, a caminho da Barra Funda, por volta das 18h, os
lirismos cotidianos se apresentam em curvas dramáticas, desenlaces, por meio de
heróis trágicos e de um coro de transeuntes, surgem protagonistas, antagonistas
e corifeus; com eles, as catarses do dia a dia como em um drama que se desenha
no presente, no entanto, com personagens épicos, o corpo em narrativa, corpos
em dramaturgia. Neste horário do fluxo, são em torno de 670 mil usuários, quase
que uma ópera de trabalhadores, uma massa de transeuntes cheia de histórias e
narrativas para compor aquilo que se chama cidade. Poderia ser uma dramaturgia
de Hauptman, como em
Os Tecelões
ou, quem sabe, uma cena de rua, como em
Duas Moedas
, de Brecht, mas é a cidade em sua contínua composição coreográfica
de tempos e espaços.
Quando se observa São Paulo, de dentro da estação de metrô, percebe-se
uma cidade de gente de tudo que é jeito. Na verdade, o contrário; uma cidade de
tudo que é jeito vestido de gente, pois talvez seja essa a questão: entender que
uma cidade é feita de tudo que é jeito que se veste de gente todos os dias, em
que os vários locais se interligam com os vários globais, onde os contrastes e as
camadas visuais de gênero e raça, por exemplo, que se apresentam a todo instante
em vestimentas, indumentárias e adereços corporais, tensionam as
normatividades que tentam ser impostas por uma publicidade homogeneizadora.
A estação, nesse sentido, não é passagem, mas ocupação, um espaço contínuo
dos modos de ser cidade e de interligações entre o global e o local.
algum tempo, mais precisamente a partir dos anos setenta, no Brasil, a
ideia de local, identidade fixa e nacionalismo cultural passaram a ter outras
significações no que tange às composições societárias das cidades. O local deixou
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de se resumir àquilo que é nosso a algo específico desta ou daquela cidade, ilha,
região ou vilarejo, não se restringe mais a um recorte singular da atividade cultural,
ainda que de fato seja uma manifestação cultural particular de determinado lugar.
Assim, as práticas culturais específicas de um lugar, bem como seus ofícios
manuais e seus modos de produção, por menor que seja a cidade, também são
partes significativas de uma perspectiva global de produção de cultura e as
características culturais de uma dada região ajudam a alimentar as composições
societárias e estéticas no mundo.
Se os corredores culturais, por exemplo, criados nas cidades em
desenvolvimento financeiro na segunda metade do século XX eram as vitrines que
apresentavam ao mundo uma produção de cultura que se expandiu em direção
às novas tecnologias, por meio de festivais, bienais, imersões culturais e
residências artísticas, nos dias atuais, de modo geral, não se faz necessário sair de
determinada região e ir até essas cidades e a esses corredores culturais para se
ter acesso às produções de cultura que impulsionam uma rede de saberes,
formatos e novidades experimentais. As coisas se encontram em movimento e
aquilo que é local, global se torna, logo, as cidades são como grandes estações de
trem, onde habitam jeitos de tudo enquanto é gentes, cada uma com suas
especificidades, mas em alguma medida conectadas por uma ideia coletiva de
produção cultural.
As cidades se tornaram uma espécie de rede de conexões cyber/presentes,
existindo um pouco de cidade em todo território corpóreo e corpo em toda
dimensão da urbe. Nesse sentido, tornou-se ela própria — a cidade — corpos em
constante movimento relacional de expansão, refração, interação e em
composição de marcas, afetos, memórias e construção de narrativas, como em
um passeio gastronômico pelos diversos sabores do Centro de São Paulo ou como
em uma imersão imagética pelas vielas do Centro de São Luís e seus casarões
históricos. As cidades, tão distintas, tão particulares e ao mesmo tempo em
constantes conexões, tornam-se, aos seus modos, campos de experiência
estética.
Assim, no que tange às operações artísticas na cidade, se por um lado a
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importante Bienal de Artes de São Paulo, que desde de 1951 aglutina no coração
cultural da América Latina a cada dois anos uma efervescência de produções
visuais, performativas e audiovisuais que ajudam a alimentar um corredor cultural
no Brasil, por outro lado do país, em Macapá, no Amapá, um grupo de artistas
transformam o Norte em outro eixo de criação com as produções artísticas
desenvolvidas durante a
Tecnobarca
, que por sua vez tem importância cultural
para aquela microrregião similar aos impactos da Bienal de Artes para a cidade de
São Paulo, tanto do ponto de vista da produção em si quanto da manutenção das
pesquisas de linguagens e suas reverberações educativas.
Desse modo, enquanto a Bienal de Artes é uma imensa galeria com inúmeros
pavilhões de produções estéticas que movimentam a cena cultural no coração da
América Latina, a Tecnobarca é um ateliê, uma galeria itinerante em formato de
residência artística que acontece durante duas semanas no Arquipélago do
Bailique um conjunto de oito ilhas situadas entre o Rio Amazonas e o Oceano
Atlântico, distante doze horas de barco da capital — onde artistas passam quinze
dias desenvolvendo diversos trabalhos de produção, apresentação e debates
culturais em arte contemporânea nas comunidades ribeirinhas.
O que essas iniciativas têm em comum? Elas buscam compreender a cidade
como plataforma de criação, produção e fruição artística. Para alguns, uma
dimensão macro da relação entre arte, cidade e experiência, como na Bienal de
Artes de São Paulo; para outros, como no Tecnobarca, no Amapá, uma relação
micro dessa potência que são as imersões artísticas na cidade. Entretanto, para
ambos, as conexões estéticas que as cidades oferecem, lugares tão distintos, mas
conectados por uma ideia, pelo desejo artístico de ocupar a cidade, de vê-la de
dentro, a necessidade de criar movimentos estéticos nos nichos das próprias
cidades.
Assim, perceber as cidades de dentro parece um modo de compreender
como elas acontecem artisticamente, observando como seus nichos de produção
reverberam, seguem e retornam ao cotidiano das pessoas, constroem novos fluxos
e contrafluxos estéticos, conexões e diversos modos de experiências artísticas
dentro daquilo que a cidade oferece, bagunçando os limites entre o dito local e o
dito global.
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O local costuma estar em outro lugar. A mais célebre música cubana, o
dozón
, agora se ouve e se dança mais no México do que em cuba. [...]
Num concerto do grande jazzista argentino Mono Villegas, em plena
efervescência do nacionalismo folclórico dos anos sessenta, alguém do
público levantou a mão e perguntou: “por que você não toca alguma coisa
nossa?”. O Mono perguntou: “e você, compôs o quê?”. “Eu nada”. “Eu
também não, então como quer que eu toque alguma coisa nossa?”
(Canclini, 2008, p. 60).
Desse modo, se durante muito tempo os Festivais da Canção Popular (1965)
e o
Rock in Rio
(1985) foram as grandes referências brasileiras de festival de música
e diversidade cultural no país, há de se convir que os festivais se espalharam por
todo o território nacional fazendo interlocuções entre o dito local e o dito global.
Em São Luís MA, por exemplo, o Festival de Música BR-135 transforma a ilha em
centro, o distante em abraço, o virtual em agito frente aos olhos, uma vez que “em
tempos da interdependência mundial, a pergunta não é como construir alfandegas
impenetráveis, mas sim, como utilizar os recursos tecnológico-culturais para
melhor atender às necessidades de diferentes grupos” (Canclini, 2008, p. 60).
No entanto, esse campo de experiência estética que se constrói por meio da
inserção de detritos visuais, composições corpóreas e diversas gravuras textuais e
sonoras não ocorre de forma harmônica, plana ou sem poros. Como pressupõe
Certeau (2014), as operações societárias na cidade, como as que advêm das
linguagens artísticas, por exemplo, são construídas quase sempre numa zona de
conflito, uma vez que antes de ser um lugar para a habitação das práticas do
sensível, as cidades são um projeto em prol de uma organização totalizante.
A cidade, à maneira de um nome próprio, oferece a capacidade de
conceber e construir o espaço a partir de um número finito de
propriedades estáveis, insoláveis e articuladas uma na outra. Neste lugar
organizado por operações “especulativas” e “classificatórias”, combinam-
se gestão e eliminação. De um lado, existem uma diferenciação e uma
redistribuição das partes em função da cidade, graças a inversões,
deslocamentos, acúmulos etc.; de outro lado, rejeita-se tudo aquilo que
não é tratável e constitui, portanto, os “detritos” de uma administração
funcionalista (anormalidade, desvio, doenças, morte etc.). Certamente, o
progresso permite reintroduzir uma proporção sempre maior de detritos
no circuito da gestão e transforma o próprio déficit (na saúde, na
seguridade social etc.) em meios de densificar as redes da ordem. Enfim,
a organização funcionalista, privilegiando o progresso (tempo), faz
esquecer a sua condição de possibilidade, o próprio espaço, que passa a
ser o não pensado de uma tecnologia científica e política [...]. A cidade se
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torna o tema dominante dos legendários políticos, mas não é mais um
campo de operações programadas e controladas (Certeau, 2014, p.160-
161).
A extensa, porém necessária, reflexão supracitada aponta com certa lucidez
para alguns conflitos que constituem as estruturas das cidades. Se, por um lado,
a ideia de gestão aparece como lugar institucional que determina as operações
sociais e as funções da cidade para o progresso, por outro viés emergem desvios,
detritos, modos de operações sociais que escapam da normatividade imposta e
se apresentam como brechas para a própria existência coletiva e que se afirmam
em combinações quase impossíveis de serem geridas à luz do progresso financeiro
e pela própria instituição cidade. Ações urbanas que subtraem a lógica da ordem
institucional e são operacionalizadas numa dada marginalidade da existência
ocorrem às margens da coisa pública.
Neste ponto, para refletir sobre tais conflitos que são da ordem da cidade,
acredita-se ser necessária a aproximação com a ideia de
lugar
e
espaço
proposta
por Certeau (2014), quando este considera lugar como o ambiente da ordem, como
o campo institucional; a esfera política e de poder que determina os modos de
operação dos sujeitos. Sendo assim, um lugar nunca será um lugar qualquer, mas
a compilação de elementos que norteiam os modos de ser, uma vez que os
projetos arquitetônicos das cidades modernas, por exemplo, são pensados,
geralmente, para manter um adestramento coletivo onde as praças são pensadas
para serem mais um território de passagem que um espaço de ocupação.
Já a ideia de espaço se concretiza e pode ser composta pelos modos que os
sujeitos operam suas relações societárias e constroem seus afetos e suas
experiências na cidade. O espaço seria algo que se encontra no corpo, na ação,
nos detritos imagéticos que constituem a cidade, nesse sentido, o espaço existe
quando o lugar se torna praticado; quando inserção de operações societárias
que orientam a própria ideia de espaço para uma funcionalidade polivalente,
experimental, múltipla, permitindo um jogar-se ao risco. Uma habitação outra que
talvez nem se saiba qual, mas que seria possível de ser inventada (Certeau, 2014).