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Mapas e Desejos: os Universos de
Ensaio para uma Cartografia
e
O Escuro que te Ilumina
no teatro de Mónica Calle
António Figueiredo Marques
Para citar este artigo:
MARQUES, António Figueiredo. Mapas e Desejos: os
Universos de Ensaio para uma Cartografia
e
O Escuro
que te Ilumina
no teatro de Mónica Calle.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis,
v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0109
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Mapas e Desejos: os Universos de
Ensaio para uma Cartografia
e
O Escuro que te Ilumina
no teatro de Mónica Calle
António Figueiredo Marques
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-29, dez. 2022
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Mapas e Desejos: os Universos de
Ensaio para uma Cartografia
e
O Escuro que te Ilumina
no teatro de Mónica Calle
António Figueiredo Marques
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Resumo
O artigo estuda a viragem performativa no teatro de Mónica Calle – Casa
Conveniente, em que a fala, aparentemente excluída, e a dramaturgia do
corpo, em exacerbamento, se tornarão um modo de texto ausente. Para
tal, comparam-se dois espetáculos,
Ensaio para uma Cartografia
e O
Escuro que te Ilumina
ou as
Últimas Sete Palavras de Cristo
, e seus
universos de criação. Propôs-se uma cartografia performativa resultante
dos mapas espaciais e subjetivos desses universos, efetuando uma
historiografia da companhia, discutindo uma espectadoria da estética da
encenadora e textualizando as experiências do corpo. Através de uma
abordagem autoetnográfica, imergiu-se, de modo teórico e prático, no
pulsar, no desejo, na resistência física e espiritual e na dialética singular-
coletivo características do trabalho artístico de Calle. Em regimes de
escrita distintos, o artigo divide-se em duas partes: em I analisam-se as
fases de criação dos dois universos e em II desenvolve-se um ensaio
comprometido de investigador-performer.
Palavras-chave
: Cartografia performativa. Dramaturgia do corpo.
Resistência. Evangelhos. Mónica Calle.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por António Figueiredo Marques.
2
Doutorando em Comunicação e Artes e investigador do grupo Performance e Cognição do ICNOVA -
Instituto de Comunicação da NOVA, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de
Lisboa, 1069-061 Lisboa, Portugal. Mestre e licenciado na área das Ciências da Linguagem. Este trabalho
é financiado por Fundos Nacionais através da FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito
da bolsa de doutoramento SFRH/BD/129111/2017 e COVID/BD/152367/2022, e no âmbito da unidade de
investigação UIDB/05021/2020. afigueiredomarques@fcsh.unl.pt
https://orcid.org/0000-0003-4334-2126
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no teatro de Mónica Calle
António Figueiredo Marques
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Maps and Desires - the universes of
Ensaio para uma Cartografia
and
O Escuro que te Ilumina
in Mónica Calle’s theatre
Abstract
This paper inquiries the performative turn in the theater of Monica Calle Casa
Conveniente, where the speech, apparently excluded, and the dramaturgy of the
body, in exacerbation, will become a mode of "absent text". To this end, two
performances are compared,
Ensaio para uma Cartografia
and
O
Escuro que
te Ilumina
ou as
Últimas Sete Palavras de Cristo
, together with its creative
universes. Developing a historiography of the company, discussing a
spectatorship of the aesthetics of this theatre-maker and textualizing the
experiences of the body, we come to suggest that a performative cartography is
the result of the spatial and subjective maps of these universes. Based on an
autoethnographic approach, we have immersed (in a theoretical and practical
way) in the drive, the desire, the physical and spiritual endurance and in the
singular-collective dialectic features of Calle’s artistic work. Using distinct
writing regimes, the paper is divided into two parts: in I, the creation phases of
the two universes are analyzed and, in II, a committed essay as a researcher-
performer is sketched.
Keywords
: Performative cartography. Dramaturgy of the body. Endurance.
Gospels. Mónica Calle.
Mapas y Deseos: los universos de
Ensaio para uma Cartografia
e
O Escuro
que te Ilumina
en el teatro de Mónica Calle
Resumen
El artículo estudia el giro performativo en el teatro de Mónica Calle Casa
Conveniente, en el que el discurso, aparentemente excluido, y la dramaturgia del
cuerpo, en exacerbación, se convertirán en una modalidad de texto ausente”.
Para ello, se comparan dos espectáculos,
Ensaio para uma Cartografia
y
O
Escuro que te Ilumina
ou as
Últimas Sete Palavras de Cristo
, y sus universos de
creación. Se propuso una cartografía performativa resultante de los mapas
espaciales y subjetivos de estos universos, realizando una historiografía de la
compañía, discutiendo una espectaduría de la estética de la directora y
textualizando las vivencias del cuerpo. A través de un abordaje autoetnográfico,
se sumergió, de forma teórica y práctica, en la pulsión, en el deseo, en la
resistencia física y espiritual y en la dialéctica singular-colectiva características
del trabajo artístico de Calle. En distintos regímenes de redacción, el artículo se
divide en dos partes: en la I se analizan las fases de creación de los dos universos
y, en la II, se desarrolla un ensayo comprometido de investigador-performer.
Palabras-clave
: Cartografía performativa. Dramaturgia del cuerpo. Resistencia.
Evangelios. Mónica Calle.
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Ensaio para uma Cartografia
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no teatro de Mónica Calle
António Figueiredo Marques
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Introdução
Casa Conveniente é uma companhia de teatro sedeada em Lisboa,
Portugal, com direção artística de Mónica Calle, fundada em 1992, com a
encenação de
Virgem Doida
, inaugurando uma nova ideia de teatro no
panorama português junto com outras estruturas. Afastando-se dos preceitos
do teatro de conservatório e ensaiando uma metodologia mais experimental,
Calle cria trabalhos de palco adaptando Tchekhov, Beckett, Brecht, Heiner
Müller ou textos não dramáticos, como no primeiro espetáculo com texto
homónimo de Rimbaud (cf. Brilhante et al., 2016).
Este artigo tem como âmbito dois espetáculos da Casa Conveniente:
Ensaio para uma Cartografia
(2017)
3
e
O Escuro que te Ilumina
Ou as Últimas
Sete Palavras de Cristo
(2021)
4
que, embora distintos, têm uma substância
comum: a resistência física e a superação espiritual.
Com foco nesses dois universos, este artigo tem três principais
objetivos: contribuir para uma historiografia dos trabalhos recentes da
companhia (sensivelmente de 2015 a 2021), efetuando um levantamento das
fases do processo de criação; desenvolver uma espectadoria da estética de
Mónica Calle
5
; e textualizar as experiências do corpo e das sensações,
convocando a ideia de “conhecimento corporizado”/”epistemologia da
prática” (Spatz, 2015)
6
, perspectiva que pode ser epitomada como “a técnica
é conhecimento que estrutura a prática” (Spatz, 2015, p.1).
Como horizonte teórico, é inegável a importância do conceito fundador
de “teatro pós-dramático" do teórico alemão Hans-Thies Lehmann (2017) que,
após a alegada morte do drama, sublinha a importância das dimensões
3
Cf. https://www.tndm.pt/pt/calendario/ensaio-para-uma-cartografia/
4
Cf. https://www.culturgest.pt/pt/programacao/monica-calle-o-escuro-que-te-ilumina/
5
O mesmo propósito, exercitando a enunciação como uma forma dramatúrgica também em Marques (no
prelo).
6
embodied knowledge/epistemology of practice. Technique is knowledge that structures practice. (Tradução
nossa)
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visuais, cinéticas e musicais na performance. Para
reprise
, Sarrazac contrapõe
o seu “drama-na-vida” (2011, p.39-40) e o “sujeito rapsodo” conferido pela
montagem (2011, p.51-54). Destacam-se também duas teorias
complementares: o “texto ausente” (Danan, 2018, 2020) que se aprofunda na
ideia de “escritores de palco” (Tackels, 2011).
A escrita de palco, enfatizando a fuga do “textocentrismo”, inscreve
quaisquer materiais presentes na cena (luz, som, arquitetura, corpo,
movimento, ritmo, líbido, energia) numa modalidade de escritura cénica
global de modo que, na verdade, “o palco precede o livro” (Tackels, 2011, p.73).
o texto ausente, deixando aquele de ser a base do trabalho teatral, anuncia
uma mudança de função do próprio texto: sofre uma dissolução ou torna-se
assombração, podendo, contudo, vir à tona a espaços (Danan, 2020, p.18). É
uma destruição do texto como garante de uma nova elaboração (Danan,
2020, p. 22), pelo que será esta ausência que anima o próprio espetáculo
(Tackels, 2011, p. 23).
De uma forma necessariamente aberta,
Cartografia
performa dois textos
ausentes:
- Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses, Brecht;
- A boa alma, Luís Mário Lopes.
De modo análogo, no universo de Escuro, são ausentados os textos:
- O Escuro que te Ilumina, José Riço Direitinho;
- Evangelhos bíblicos.
Recorrendo ao título de um dos espetáculos, esta investigação
relaciona-se com as ideias de cartografia sentimental (Rolnik, 2011), tendo em
conta o percurso não apenas geográfico daqueles. Do ponto de vista
metodológico, utiliza-se a escrita na primeira pessoa característica da
autoetnografia, o que confere um carácter subjectivante e ensaístico a esta
reflexão. Trata-se de uma análise que reflete “minha própria construção de
sentido, minhas parcialidades e interesses e minhas próprias limitações”.
Assim, através dessa reflexividade, estão “conhecedor e conhecido
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6
intrinsecamente interligados” (Pelias, 2022, p.121)
7
, colocando num continuum
os elementos “corpo, papel, palco” (Spry, 2011)
8
.
A observação (e participação) autoetnográfica tem “um olhar que, ao se
voltar para o processo de criação, não separa o fazer artístico do fazer
investigativo (Dantas, 2016, p.177) de tal modo que a “autoetnografia vem se
consolidando como uma escrita de si, que permite o ir e vir entre as
experiências pessoais e as dimensões culturais, buscando reconhecer,
questionar e interpretar as próprias estruturas” (Dantas, 2016, p.173). Além
disso, segue-se uma abordagem comparada ancorada num espírito crítico de
“espectador profissional” (Pais, 2014) e de performer, ambos papéis que o
autor acumula.
Este artigo não será canónico quanto às regras da academia, mais por
contingência do que por propósito. O que se pretende é refletir sobre as
modalidades do ofício performativo, analisando os processos em questão,
desse modo, operando desvios conscientes de um certo modelo hegemónico,
mas não estanque. A proposta das artes cénicas,
arts vivants
, é de que tudo
está em movimento como Richard Schechner (2022) discorre numa recente
entrevista; nada é por princípio compartimentado. É esse espírito que
pretendo transportar, contaminando esta escrita na esteira da investigação
artística (Coelho, 2020). Está dividido em duas partes: I estabelece uma
análise cartográfica comparando os universos dos dois projetos artísticos,
numa constelação mais vasta do que apenas o espetáculo concluído. Propõe-
se também uma deslocação semântica com “viajem”. A parte II instala um
ensaio comprometido sobre O Escuro que te ilumina através de um olhar
íntimo.
I Cartografia e Cronologia
Casa Conveniente tem vindo a desenvolver uma dramaturgia do corpo
7
my own sense-making, my own biases and interests, and my own limitations. knower and known
intrinsically interlinked. Tradução nossa do original em inglês. (Tradução nossa)
8
body, paper, stage. (Tradução nossa)
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Ensaio para uma Cartografia
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O Escuro que te Ilumina
no teatro de Mónica Calle
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com variados elencos em que a fragilidade e a resistência são o fundamento
matriz. Neste
Escuro que te Ilumina
surgem novamente os locais de
incerteza, beira do perigo, nudez, música como motriz, comunidade, que os
quinze intérpretes em palco visitam no seu corpo e nas suas vibrações. Locais
de uma trajetória carnal e emocional que são também um mapa de um
percurso e de um tempo.
Com efeito, entrelaçam-se várias temporalidades: as últimas palavras
de Cristo enunciadas dois milénios; a composição barroca de Haydn
alusiva aos seus sofrimentos e mensagem; a história da Casa Conveniente e
dos indivíduos aqui implicados. Todas alinhadas numa ideia que veio a ganhar
forma e se materializou nestas apresentações. É, portanto, um trabalho
processual que, de forma mais imediata, resulta de uma oficina que teve lugar
nas semanas anteriores.
Assim, tal como o antecedente
Ensaio para uma Cartografia
tem uma
cartografia, desenhemo-la também para este Escuro dado que os dois
partilham uma relação de percurso, tanto temporal, como espacial e de
pessoas, num movimento englobante de periferia e centro, de acumulação
de espaços e de intérpretes. Estamos, portanto, frente a dois universos com
extensões a jusante e a montante dos dois espetáculos, que são exibições,
mas não limitações.
Dois universos distintos, mas que comunicam,
Escuro e Cartografias
erguem-se da força da resistência, da paisagem coletiva com as suas
erupções do singular, em que uma e outra são pergunta e resposta,
complementares e dependentes. Corpo e música disputam-se, como uma
contenda de quem oferece a quem; e será daí que brota a energia vital,
crescente ou esbatida, em dinâmica com a orquestração. As composições,
uma clássica barroca (Haydn em
Escuro
), outra moderna do século XX
(
Bolero
de Ravel em
Cartografia
), convocam o âmbito do erudito que se
imiscui com o profano do corporal e da materialidade, através de uma
circularidade na encenação. Ambos os trabalhos são pensados para um
período temporal longo (o que também será uma distensão de cartografia)
que, embora culmine, não se esgota nas apresentações públicas.
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8
Uma cartografia, de forma literal, pretende desenhar o espaço o que
também significa fazer corresponder os espaços, locais e geografias a uma
identidade/alteridade, a um trânsito, uma população, um conceito
9
. Por
analogia, podemos fazer também uma cronologia: é nessa medida que
importa localizar um Cais do Sodré ainda sem gentrificação (sede da
companhia até 2012) e uma Zona J (a partir de uma quebra, recomeço), locais
de Lisboa que a Casa Conveniente cartografou.
São propostas cénicas engendradas nas periferias: com pouco dinheiro
ou nenhum, grupos populacionais marginalizados, não atores junto com
atores, artistas que saem do conforto do seu
métier
próprio. Contudo, são
sempre curiosamente periferias arbitrárias: a Zona J está bastante ao centro
do mapa de Lisboa, aliás, como uma ilha delimitada, e o Cais do Sodré,
mesmo antes da gentrificação, sempre congregou fluxos de comércio,
viajantes-marinheiros, ligando as zonas orientais e ocidentais da cidade, porta
de entrada pelo rio.
Cartografia, além da sua relação filogenética com a Geografia (e no fundo
com a História) é também uma metodologia de pensamento com frequência
usada na filosofia das artes, na senda da abertura do caudal deleuziano-
guattariano. A teoria desta cartografia (Passos et. al., 2009; Fonseca & Kirst,
2003; Park, 2014; Nold, 2009; O’Rourke, 2013) é variada
10
sendo basilar a
cartografia sentimental de Suely Rolnik (2011, p.23): “Para os geógrafos, a
cartografia […] é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que
os movimentos de transformação da paisagem”.
Para uma cartografia será necessário a viajem
11
, o ímpeto antropofágico
e a negociação dos sentidos. Cartografia tem a estratégia antropofágica (e
notemos essa mesma condição da eucaristia em que comemos o corpo e o
9
Tendo em conta os
Border Studies
(Wilson & Donnan 2012), cartografar implica escrever uma fronteira
constructo que tanto separa, como une.
10
Por exemplo, um panorama rico no domínio da ciência da informação geográfica:
https://gistbok.ucgis.org/bok-topics/cartography-and-art; e um ensaio visual sobre o processo de
pesquisa: https://www.oarplatform.com/response/cartography-research-process-visual-essay.
11
Por inspiração derridiana, por exemplo, no par
différence-différance
(Derrida s/d, p.27-69) que incorre
numa operação de desvio mudo e, portanto, rastos cartográficos.
Viajem
como variação dentro da
viagem
.
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Ensaio para uma Cartografia
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sangue dele) de absorver quem encontramos nas nossas viagens. Viajem que
está sempre a mudar em função do erro, das deslocações, das fugas. Tem
uma vontade, de comer, pulsão desejante, repulsa turbulenta, de vitalidade e
não de moralidade. Uma congestão de sentidos, como instabilidade, angústia,
regresso, espiral, membros gaguejados e linguagem amputada que cria os
movimentos de des/re/territorialização, e toca o medo. Viajem deriva de
possibilidades em função do invisível.
Cartografia
e
Escuro
, dois universos em que o corpo parece substituir a
palavra, desenham determinados mapas: cartografia espacial, desfazendo o
que se considera periferias e centros e, devido à itinerância das
apresentações, reorganiza uma geografia do país, des/centralizando capitais
e localidades. Desse modo, aqui dentro teremos a cartografia de cidade,
sendo inicialmente o trabalho desenvolvido nas franjas, culminando nos
teatros institucionais (TNDMII em
Cartografias
, Culturgest em Escuro), porém
voltando novamente a Chelas, e passando por espaços noturnos de lazer.
Este fluxo espacial, pede necessariamente uma tal cartografia
emocional porque intersubjetiva, dado que relaciona distintos grupos, as
densidades de cada pessoa envolvida, que entra e sai do elenco, distensão e
concentração. Tudo isto virá a resultar numa cartografia performativa.
Performance e performativo aqui entendidos como o agir, o comportamental
que põe em relação eus e outros, que põe em marcha o invisível, o indelével
e que, por isso mesmo, instrui e enforma as pessoas, os tempos, os lugares.
Uma dada cartografia que envolve os públicos (espectadores, participantes,
intervenientes, cúmplices, transeuntes inesperados), as instituições
(associações, teatros, financiamentos, festivais) e, nessa medida, será uma
“cartografia crítica que se transforma, como o corpo, afinal”, como nos diz
Raposo (2017, p.3) num ensaio problematizando os feminismos e a
descolonização dos saberes. Continuando: “Desta experiência nômade e de
errância, usando diferentes elencos, em salas de teatro ou espaços muito
variados, constrói-se um mapeamento criativo para a constituição de uma
nova casa, um novo lugar, até chegar à Zona J em Chelas” (Raposo, 2017, p.3).
Ora, será esta cartografia uma composição definidora de lar, de identidade e
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de amizades.
Em termos específicos, uma cartografia possível residirá na disposição
e no relacionamento entre estes acontecimentos, datas e referências
(sobrepostos, contraditos, reformulados), num emaranhado coreográfico. De
trás para a frente, tem-se:
Universo Ensaio para uma Cartografia
1. Zonas Não Vigiadas
Ou Os Sete Pecados Mortais
(a partir de Brecht) Ou
Ensaio para uma Cartografia
, sete espetáculos de 9 a 15 de dezembro de
2014, Lisboa: 1.
Preguiça
, Teatro Meridional; 2.
Orgulho
, Companhia Olga
Roriz; 3.
Gula
, Negócio/ZBD; 4.
Cobiça
, Latoaria; 5. Ira, Teatro da Comuna;
6.
Luxúria
, DNA; 7.
Inveja
, Artistas Unidos.
2.
Os 7 Pecados Ensaio para uma Cartografia
, Cineteatro Louletano, Loulé,
14 de novembro de 2015, integrado no Festival Verão Azul organizado pela
associação Casa Branca.
3.
Ensaio para uma Cartografia
, Espaço LX Jovem, Chelas, 20 de novembro
de 2015.
4.
Ensaio para uma Cartografia
, Black Box, Montemor-o-Novo, 13 de fevereiro
de 2016.
5.
Ensaio para uma Cartografia
(
ou os sete pecados
), Mala Voadora, Porto, 19
e 20 de março de 2016.
6.
Ensaio para uma Cartografia
, Teatro Nacional D. Maria II, de 23 de março a
9 de abril de 2017 [ESTREIA].
7.
Ensaio para uma Cartografia
, Centro Cultural Olga Cadaval, Sintra,
integrado no Festival LEFFEST, 17 e 18 de novembro de 2017.
8.
Ensaio para uma cartografia
, Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, de 11 a 29
abril de 2018.
9. Teatro Municipal Rivoli, Porto, 3 e 4 maio de 2018, integrado no Festival
DDD, Dias da Dança.
10.
Ensaio para uma Cartografia
, Zona Não Vigiada, Chelas, 16 de junho de 2018.
11.
Ensaio para uma Cartografia
, Centro Cultural Vila Flor, Guimarães, 15 de
junho de 2019.
12.
Ensaio para uma Cartografia
, Gebläsehalle, Landschaffspark, Duisburg-
Nord, Alemanha, integrado na Trienal de Ruhr, de 6 a 9 de setembro de
2019.
13.
Ensaio para uma Cartografia
, Clube Lux Frágil, Lisboa, de 12 a 14 de
setembro de 2019.
14.
Workshop
-audição para
Carta
, com chamada aberta até 16 de agosto de
2020 para instrumentistas do género feminino, em duas etapas. Processos
interrompidos e reajustados à pandemia.
15.
Carta
, Teatro Nacional D. Maria II, 13 e 14 de janeiro de 2021, restantes
sessões canceladas por motivo de pandemia.
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Por ser longa e ramificada, não é fácil fazer uma listagem completa das
várias fases do universo
Cartografias
pelo que este será não apenas um
exercício necessariamente revisível, como também incompleto. E ingrato
mas justo.
Este movimento cartográfico tem por base uma crise definidora na
história da Casa Conveniente: perda de financiamento público e perda de um
local de trabalho. A precariedade de não ter dinheiro nem casa. Podemos
também situar duas bases de trabalho temáticas
: A Boa Alma
, texto de Luís
Mário Lopes (2020), que tem por mote
Os Sete Pecados Mortais dos
pequeno-burgueses
de Brecht (2007).
Pensado inicialmente como sete espetáculos ao longo de sete anos
(2014-2021) em torno das ideias de recomeço, fragilidade e erro, como
alavancas da resistência e de superação, este universo/espetáculo torna-se
uma rede de afinidades, com epicentro de Chelas (lugar e conceito de
zonas
não vigiadas
), que percorre algumas cidades do país e, após o seu sucesso,
enceta uma carreira internacional que veio a ser interrompida pela pandemia.
Podemos perceber três fases nesta caminhada: I) desde o início até 2016,
onde a relação com o texto de Brecht é maior e, por vezes, visível no título,
passando por Lisboa, Loulé, Chelas, Montemor-o-Novo e Porto; II) de 2017 a
2019, devido à aprovação da crítica e da programação, após a estreia oficial
no TNDMII, leva-se a cabo uma digressão de uma montagem amadurecida,
experimentando salas e formatos; III) aumento de elenco com
instrumentistas do género feminino e declinação do conceito das
Cartografias
num outro espetáculo, Carta, antecedido por um workshop que funcionou ao
mesmo tempo como audição.
Na fase I, faltaria aferir as condições e períodos de ensaios que serão
fulcrais para entender com profundidade como se chega à versão maturada,
aclamada pelo público e pela crítica, que marca a entrada na fase II. Esta
segunda fase caracteriza-se pela itinerância e sistematização de uma
construção, participando em circuitos maioritariamente institucionais
circulando pelo país e iniciando uma internacionalização que ficou a meio.
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Carta
, com a fase III, entra numa dimensão maior, em número de intérpretes
e em dimensionamento do próprio espetáculo, ampliando a noção de
intimidade característica das fases anteriores. Porém, deixa de ter elementos
externos, nomeadamente a música gravada dos ensaios de Bolero conduzida
por maestros famosos (característica definidora na fase maturada anterior),
sendo que o que existe materialmente em palco é produto das atrizes e
instrumentistas que se investem na sua performance.
Universo O Escuro que te Ilumina
O universo de
O Escuro que te Ilumina tem as seguintes fases
:
1.a.
Workshop Coffeepaste
: O que é um herói I? 6 e 7 de abril de 2019.
1.b.
Workshop Coffeepaste
: O que é um herói II? 27 e 28 de abril 2019,
Fórum Dança, Lisboa.
2. a.
Workshop
Casa Conveniente/Zona Não Vigiada:
O Escuro que te
Ilumina I
, de 22 a 27 de julho de 2019, com apresentação final do
processo, em Chelas. Com referências a José Riço Direitinho e Bruno
Candé.
2.b.
Workshop
Casa Conveniente/Zona Não Vigiada:
O Escuro que te
Ilumina II
, de 8 a 10 de novembro de 2019, com apresentação final do
processo e mais três apresentações de 15 a 17 de novembro de 2019,
em Chelas. Com referências a José Riço Direitinho e Bruno Candé.
3.
Workshop
e Espetáculo
O Escuro que te Ilumina ou as Últimas Sete
Palavras de Cristo
, com
workshop
de 26 a 30 de abril 2021 e
apresentações de 5 a 9 de maio de 2021 na Culturgest. Com
referências à composição de Joseph Haydn,
As Últimas Sete Palavras
de Cristo na Cruz
, e aos evangelhos cristãos.
4.
Workshop
e Espetáculo
O Escuro que te Ilumina ou as Últimas Sete
Palavras de Cristo
, com ensaios/
workshop
de 21 a 25 de maio 2021 na
Culturgest e apresentações em 27 e 28 de maio de 2021, na Praça da
Liberdade em Almada. Com referências à composição de Joseph
Haydn,
As Últimas Sete Palavras de Cristo na Cruz
, e aos evangelhos
cristãos.
Frequentei os
workshops
O que é um herói? II
e
O Escuro que te Ilumina
II
que passo a descrever brevemente. No Herói II, a prática consistia num
Mapas e Desejos: os Universos de
Ensaio para uma Cartografia
e
O Escuro que te Ilumina
no teatro de Mónica Calle
António Figueiredo Marques
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exercício prolongado de ativação do corpo e, indiretamente, da consciência
para o detalhe em função do todo. Trabalhava-se a presença através da
repetição, sentindo o grupo como um corpo coletivo. Repetia-se a frase
coreográfica, estando todos os participantes em linha. Partindo da posição
em pé, baixar-se, tirar um sapato, erguer-se, baixar-se, tirar o outro sapato,
erguer-se, tirar uma peça de roupa, deixá-la cair, agarrar os pertences do
chão, elevá-los à altura da barriga, dar um passo em frente, largar os
pertences, e repetir a sequência, vestindo ou despindo roupa.
A partitura devia ser realizada por todos em uníssono, onde a
personalidade singular se destacava nos pormenores num todo uniforme.
Fazíamos linhas na vertical avançando em diante e recuando, ao som de
música variada. Por fim, utilizámos também a voz em breves improvisações
a falar e a cantar.
Esta oficina teve lugar numa sala-estúdio no Fórum Dança, Lisboa, e foi
promovida pelo Coffeepaste. De acordo com o que Mónica me explicou, a
primeira edição teve os mesmos moldes. Entendo aqui um início, ou pelo
menos um prenúncio, do universo de
Escuro que te Ilumina
devido à prática
sistemática da frase coreográfica, à qual se junta a indagação de uma carga
pessoal, ainda que subtil. Devo notar, no entanto, que Calle não considera
esta oficina como integrante neste universo; julgo compreender os seus
motivos.
No
workshop Escuro II
, senti que entrava num
processo in media res
,
dado que na primeira edição se tinha desenvolvido trabalho aprofundado
entre xs participantes.
Tivemos sessões em três formatos: 1. sessões de leitura de trechos do
livro
O Escuro que te Ilumina
, de José Riço Direitinho (2018), no café do
Amândio no bairro do Armador, em Chelas, onde também estavam os
clientes regulares; 2. reuniões de mesa, numa associação na mesma zona,
onde narrámos episódios individuais sobre o confronto entre escuro e luz, a
partir dos quais cada participante fez um exercício a solo, trabalhando luz e
música, mais direcionado para o trabalho de corpo do que à oralidade; e 3.
Mapas e Desejos: os Universos de
Ensaio para uma Cartografia
e
O Escuro que te Ilumina
no teatro de Mónica Calle
António Figueiredo Marques
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ensaios e apresentações num campo de futebol público na praça central, em
Chelas, realizando a frase coreográfica descrita atrás, de dia e de noite ao ar
livre. Mantinha-se a sequência de movimentos da partitura com pequenas
mudanças.
O mote temático é explicitamente o livro de Direitinho, que empresta o
título a esta oficina, e debate, em tom confessional, um retrato da solidão e
da sexualidade, encruzilhada do encontro entre luz e sombra. Daqui é
possível fazer uma referência cruzada ao último solo de Calle,
Rosa
Crucificação
12
.
O
workshop
teve também como referência a surpreendente
recuperação de Bruno Candé Marques, ator regular da companhia, após um
grave acidente. Posteriormente, em 25 de julho de 2020, Candé foi
assassinado, vítima de um crime racista. Assim,
O Escuro que te Ilumina ou
as Últimas Sete Palavras de Cristo
é também uma homenagem a Bruno e,
por extensão, uma afirmação antirracista.
No seu todo, este workshop é uma tessitura bem mais densa e pede
maior iniciativa subjetiva. De facto, num ambiente menos protegido (do que
seria num estúdio com linóleo) e trabalhando densidades emocionais, num
local que não é o típico dos universos da ficção, nomeadamente o espaço
público, a sensação é de risco, de aflorar a excitação. Além disso, não fosse
uma mobilização de grupo, cada performer não estaria ali sozinhx neste labor,
pelo que é preciso uma base alargada e transversal para esta entrega;
contudo, o mergulho no abismo é fundamentalmente solitário.
Uma estrutura tripartida do universo de
Escuro
poderá ser: I) o
workshop
Herói
(1.a e 1.b), ainda afastado das ideias centrais da circunscrição atual,
nomeadamente o mote do livro de Direitinho, mas presentes em forma
embrionária. II) desenvolvimento de uma metodologia e corpo de trabalho
profundos com xs performers residentes (
workshops
2.a e 2.b) enfatizando
de forma pessoal os motes de “escuro” e “luz” no espaço exterior. III)
12
Apresentado de 24 a 26 de setembro de 2020 no Teatro S. Luiz, Lisboa. Em contraste com os
trabalhos de coletivo, Calle revisitou sete solos no ciclo
Este é o Meu Corpo
: cf. Marques (2020).
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no teatro de Mónica Calle
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depuração em torno do motivo religioso onde se acrescentam a composição
de Haydn e um elenco não profissional mediante a frequência do último
workshop
, com apresentação pública formal na Culturgest, Lisboa, e em
Almada, numa praça pública.
Os dois projetos,
Cartografia
e
Escuro
, têm um fôlego comum que é a
extensão, em grupo e no tempo. Do ponto de vista formal e temático, a
matéria, ou seja, forma e conteúdo, é organizada de modo que as metáforas
de fragilidade e resistência galguem o plano do concreto, ou vice-versa.
Ambos são processuais, recolhendo e abandonando (mas não
completamente) referências e influências uma forma de antropofagia. Por
exemplo,
Cartografias
virá a afastar-se de um Brecht explícito ao aproximar-
se de Ravel, ou
Escuro
desembaraça-se de uma partitura física mais
estruturada para comportar uma fluidez expressiva e incorporar o
ensinamento cristão. Os dois universos permitem leituras com base no
singular vertical e na partilha horizontal, desenrolando-se com o ritmo da
música clássica onde o corpo é uma linguagem fundamental.
Uma característica forte em
Cartografias
, linha que
Escuro
não segue, é
a dimensão do feminino, com os seus matizes de agenciamento político e de
sororidade, questionando o
locus
da história da arte. São corpos em exclusivo
femininos manifestados na íntegra, e por contraponto, em
Escuro
,
desvendam-se em distintas velocidades os corpos e os fazeres, quer
femininos, quer masculinos, donde as pulsões mais são entrançadas e os
géneros mais insidiosos. Põem-se em cena mulheres e homens, bem como
as suas polaridades, ora se aproximando, ora se afastando.
Cartografias
deve-
se mais a um aqui-e-agora projetado no rigor, no erro e na superação, ao
passo que
Escuro
se ata a um plano simbólico, onde não são alheias
religiosidade e catarse.
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Ensaio para uma Cartografia
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no teatro de Mónica Calle
António Figueiredo Marques
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II
O Escuro que te Ilumina ou as Últimas Sete Palavras de
Cristo
O Escuro que te Ilumina ou as últimas Sete Palavras de Cristo
.
Apresentação em: Culturgest, Lisboa. Foto de: © Rita Carvalho
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no teatro de Mónica Calle
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O Escuro que te Ilumina ou as últimas Sete Palavras de Cristo
.
Apresentação em: Culturgest, Lisboa. Foto de: © Rita Carvalho
1.
Após a viragem performativa (Fischer-Lichte 2019), que é também uma
nova viragem ao corpo, não mais metáforas; a arte está imbuída do desejo
de verdade, do real material (Foster 1996; Martin 2015). Isto porque o que
vemos nestes espetáculos coletivos de Calle, sempre colados aos termos de
“resistência”, “força”, “vulnerabilidade”, não são exatamente artifícios
artísticos encenados. Não se trata de uma equivalência entre realidades
(metafóricas) porque o corpo está, de facto, em exaustão: só não cai porque
há alguém que o segura; está, em concreto, em fragilidade, nem roupa veste
e o frio regela e queima. Dor é dor, chão é chão, mesmo que aqui escritos
neste texto.
Também “escuridão” e “iluminação”, programáticos presentes no
título, são tangíveis. Uma tal dramaturgia visual que, como a pintura
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renascentista, usa um
chiaroscuro
incisivo, que ao mesmo tempo revela e
extingue. É uma soberba expressão de luz, adequada ao motivo religioso que
aqui ganha novo fôlego (e novo fôlego confere ao universo do Escuro),
trabalhada por Daniel Worm. Motivo do conflito entre espírito e carne,
perdição e salvação, unicidade e composicionalidade – uma luz dialética que
percorre e gera contrastes, uma luz transcendente que concretiza a matéria,
os músculos, a arquitetura. E, não esqueçamos, uma luz que surge dos
nossos episódios de medo, de temor, agonia, desassossego. Com efeito, esta
era a pista deixada por Mónica no
workshop O Escuro que te Ilumina
, cuja
segunda edição eu frequentei: o que existe em cada umx de nós que, do
escuro, nos deu amparo? Que revelação nos trouxe a ânsia? Mais do que
atração de opostos, como aporias existenciais, o fundamento é o amor que
nutre a dor. Dizia, pois, que já não há metáforas, pelo que o que permanece
é uma existência secreta no cerne da presença dx performer. Uma vitalidade
e uma opacidade que se inflamam no sujeito que se expõe e desnuda.
2.
Do meu trabalho de espectador “profissional”, destaco uma terça-feira
de ensaios, gelada, quase ninguém pelas ruas, e a apresentação de sexta-
feira, com prenúncio de fim de semana e plateia lotada (a meio, devido à
pandemia).
Estamos no exterior, no anfiteatro ao ar livre, ao lado do imponente
edifício da Culturgest em Lisboa, duas vias ladeiam esta arena. Não temos as
cadeiras de veludo da sala principal, nem sequer a bancada da sala-estúdio.
De repente, tudo pode tomar a nossa atenção, um zumbido, uma luz, o
movimento das folhas nas árvores. E, de facto, tomará.
Sem nos apercebermos logo, forma-se em nós, no público, um medo
que toma forma na muralha de gente a definir-se ao fundo. Talvez uma
primeira linha de fronteira. É agora que começa o
espetáculo
, pensaríamos:
não há volta atrás. Muralha de gente que, de início quieta, investe sobre nós,
avança até se tornar quase quente diante do nosso bafo abafado. Estou certo
de que foi nesse momento que coloquei as mãos dentro dos bolsos do
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casaco comprido.
Desfiam-se as várias cenas que desafiam todo o mundo exterior, a pele
nua contra a luz, os pés contra o chão, os olhos contra os faróis dos carros,
a roupa descida contra a música. Em prolongamento ou diálogo com a
música de Haydn, o ritmo impresso ascende e descende o vagar ou a
destreza. Olhamos com uma minúcia de detalhe que nunca conseguimos
cumprir porque irrompe uma mão, uma alça, um casaco, um púbis, e
voltamos a percorrer os quinze corpos de êxtase e fogo, um a um, que
continuam numa barriga, numa coxa, numa mecha de cabelo. Doçura que se
volve força, que se muta em estrondo, que se num menear. São vetores
de pormenores que apelam ao nosso sentido mais visceral, que respondemos
no público com respiração mais forte ou um frémito cúmplice.
Eu, cúmplice, se estivesse ombro a ombro com estes corpos, estaria a
destilar febre e modéstia? O que sou eu com estas pessoas? frente àquelas?
O que é, no meu corpo e na minha língua, Cristo? Abandono, orgulho, fé?
Irremediavelmente é preciso suar. Vencer o frio e o pejo. Sinto os grumos
da terra na sola dos pés, sinto o cheiro dos mundos à minha volta. Como nas
oficinas, imagino que estou numa ponta da fileira de corpos, e percebo essa
perda. Estico o braço à minha direita e não ninguém. Na outra direção,
sinto o toque de trinta ombros, quinze pélvis, sessenta membros, quatro
vulvas, trinta joelhos… Sentir que me sentem enquanto passo a mão numa
nuca, me apertam pelas ancas. Todxs estamos ligadxs por um fio tátil
invisível. A pele é como um grande órgão extenso que reage toda a um arrepio
ou a uma carícia. A violência no nosso martírio e consolação, invisto-a em
cada peça de roupa arrancada onde depositei com estima uma emoção, uma
memória. Ela, à medida que reaparece e expande, ela, a cada vez que me
baixo, ela, a dor no joelho direito desde 2014, ela que sobreviveu a
fisioterapia,
amo esta dor no joelho amo esta dor no joelho
. E, de repente,
o turbilhão existe. Veste casaco, despe calças. Uma condensação exata no
instante. Só o turbilhão existe, só assim se encara um público. Ergui, por fim,
uma cidade que é apenas minha e é partilhada.
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Persigo os outros, tocam-me braços, roubo sapatos, partilho uma
camisa. Volto a mim. E sei que é o frio que valida a experiência que aqui
vivemos.
Volto a mim, sentado na cadeira dura. Sinto o frio a entrar pela roupa e
nos ossos. Ponho as mãos nos bolsos. Os atores semidespidos, de músculos
em tensão ou distensão. É este frio que nos une. E a espaços, debelando-se
nesta trama da inquietação, vemos o corpo destes atores, desencontrados e
encontrados entre si, a ceder para dentro. Aquilo que era uma crucificação,
um despojamento de matéria, uma alegria ou raiva, é engolido em todas as
suas células. Uma entrega dá-se à inteireza da paisagem. Nesse momento, o
acontecimento, ou seja, o extraordinário pormenor, passa pela paisagem, um
conjunto de todo em que as suas partes já não podem nunca ser individuais.
a frase coreográfica que vem dos workshops: o corpo em pé, que se
baixa, descalça, levanta, tira uma peça de roupa e retoma. Esta frase simples
de trabalho de estúdio assoma agora para a rua, retrabalhada, ressignificada.
Uma frase que interrompe o curso normal da vida no espaço exterior e que
irá, espontaneamente, fazer parte das coisas todas, banais, que acontecem
na paisagem urbana e noturna.
Tal uma banalidade desejante, o jogo da nudez faz-se com a total
limpidez da pele e é por isso que, contendo, transcende o erótico. Um carnal
animal, humano que se faz numa expansão em todas as direções numa aura
crescente: que podemos dividir em chão, horizonte e ar. O corpo que está
ligado ao telúrico das forças terrestres, o corpo que está em contacto com
os outros corpos ao nível das mãos e do rosto, e o corpo que ainda se eleva
acima do olhar.
Ligado à terra, o corpo ajoelha-se, deita-se, prostra-se, em promessa ou
aniquilamento, como Miguel Ferrão Lopes ou Renée Mussenga Vidal.
Enlaçados com repulsa ou fascínio, os corpos entre si engolem o de Carla
Madeira, e temem e perseguem o de Isac Graça, ou a solidão da procura de
Guilherme Barroso quando o grupo está longe, posição que se extrema
quando Carolina Varela é abandonada aos seus fantasmas. Por contraste, os
corpos roçam-se em José Miguel Vitorino que cantará uma voz miudinha e
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cortante ou ainda o gáudio transbordante de Sofia Dinger a encabeçar uma
torrente de gente. E o corpo eleva-se ou dissolve-se: os braços abertos de
Renée que se esticam até à sombra nas árvores ao alto, ou o ver para dentro,
de olhos fechados, de Tiago Costa Mansilha em que os outros são uma
envolvência superior em dilatação. Estes três níveis, baixo, alto e médio, têm
correspondência ao infra/sobre/natural do qual fazemos irremediavelmente
parte, tal como Cristo, filho humano do divino, que sofre, ama e bebe vinho.
Porém, a pele, as articulações, as barrigas, os genitais, os pelos, os olhos,
as veias são sempre corpo. Esse que ansiamos, lambemos, escondemos,
apertamos, em suma: desejamos, ainda que, por vezes, com asco. Pese
embora a carga do simbólico e do divino, esta matéria incandescente de que
somos feitos é orgasmo e frio. Observamos com toda a atenção as mamas
em forma de pera, uma talvez mais descaída do que a outra, as pilas em bico,
circuncidadas ou não, os testículos recolhidos, os púbis aparados, os ventres
deliciosos, as coxas em esforço, as virilhas macias, as ancas mais
proeminentes, os lábios da vulva rosados ou carnudos, um montículo
saliente, toda a curva anatómica que aparece e desaparece. Desaparece e
aparece pelo magnífico recorte de luz e pelo agir de cada intérprete que se
cede, baixa, recolhe roupas, oscila o tronco, se inclina para trás. Um entrever
onde fermenta o desejo, tal a margem do texto, como nos lembra Barthes
(1980).
E são também corpos em sofrimento, em tensão, em resistência.
Nódoas negras num braço, tornozelos e pés arranhados, a cara tisnada do sol
durante as tardes de ensaios, um pouco de terra que pode chegar aos
espectadores sobreprotegidos. Corpos, indivíduos indefinidos (messias ou
ladrões?) que encetam uma realidade. São, por isso, corpos verdadeiros, isto
é, não são máquinas de ginásio ou consumidores das enzimas de frasco.
3.
Tendo em conta as fases a que aludi atrás na cartografia do Escuro, este
espetáculo vem de um crescendo. Vagamente iniciado em abril de 2019, ainda
num
workshop
noutros termos (e título), vem a assumir uma
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conceptualização e uma prática mais próximas da atual sob o mote
escuro
que te ilumina
. Àquela frase coreográfica inicial, soma-se a bagagem pessoal
onde continuará a máscara individual – por referência ao livro de Direitinho
e, por fim, adicionando-se a dimensão histórico-religiosa dos profetas. O
projeto desagua num exercício cruzando resistência física, despojamento
espiritual e encontro afetivo. Desse modo, estas camadas sobrepostas
resultarão então numa variação, sobre os mesmos temas e lugares,
inclinando-se explicitamente para a relação com o divino. Variação que, na
sua camada musical, se declina na composição de Joseph Haydn (1732 -
1809),
As Últimas Sete Palavras de Cristo na Cruz
(
Die sieben letzten Worte
unseres Erlösers am Kreuze
no original alemão). O que acarreta também uma
depuração: as várias formas de escuro e iluminação concretizam-se na
redenção espiritual, que se deve à capacidade humana de abraço. Sou uma
humana de força metafísica. Entre escuridão e iluminação, estamos no
paradoxo do sensível.
Feito de clamor e piedade, este oratório de Haydn entrelaça-se de modo
exímio na dança dos sujeitos. É um desenho de som em paralelo com o dos
corpos, de tal forma que o corpo se converte noutro instrumento, de tal
modo que os quinze corpos são uma orquestra com variados naipes. Aliás,
nas cenas em que não música é como se continuássemos a ouvi-la,
sentindo a vibração das cordas, os movimentos dos instrumentos, a dança
dos acordes pressentidos.
A composição de Haydn de 1786 (com posteriores versões) foi
originalmente uma encomenda para o Oratório de la Santa Cueva, em Cádis,
feita por Don José Sáenz de Santa María, por ocasião da Sexta-Feira Santa e
aborda as sete últimas palavras ou frases do filho de deus na cruz. Que se
seguem:
1. Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem (Lucas 23, 33-34).
2. Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso (Lucas 23, 39-43).
3. Mulher, eis o teu filho! Eis a tua mãe! (João 19, 26-27).
4. Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? (Mateus 27, 46 e
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Marcos 15, 34).
5. Tenho sede! (João 19, 28-29).
6. Tudo está consumado (João 19, 30).
7. Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito (Lucas 23, 44-46).
Evocando tanto uma dimensão sacra como profana, o sentido destas
palavras atravessa o exercício coletivo deste Escuro. A primeira frase fala do
perdão ilimitado e universal, trazendo para a discussão a tensão entre
limitações e ilimitações: absolvição tanto do que é possível, mas também do
incorrigível. Nesse perdão estará não o escuro, como também quem nos
feriu e ainda o perdão a nós próprios. Note-se a subversão que José
Saramago fez em
O Evangelho segundo Jesus Cristo
(1998), aceitando o
perdão universal, mas substituindo “Pai” por “Homens” – o que demonstrará
uma possível concomitância (ou contraste) entre o divino e o humano.
A frase segunda contém a ideia de ascensão, um crescimento espiritual,
como passagem ritual que se deve ao atravessar das tormentas. A terceira
frase, sendo também uma declaração de presença, existência uma
aparente trivialidade que implica uma assunção funda –, coloca a tónica na
relação de confiança, exortando a confiar nos outros, e uns aos outros. Releva
a importância do cuidar, como se nos perfilhássemos e apadrinhássemos
todos.
A quarta frase visa o abandono completo da dimensão humana,
condição essencial para descobrir a luz e a nós próprios. Estar à mercê, na
agonia, no escuro para chegar à salvação. A quinta frase remete para a(s)
necessidade(s) do corpo, ressalvando a condição humana de falta, de busca,
para um melhoramento.
A consumação, na sexta frase, implica tanto a ciclicidade (nascimento,
crescimento, morte) como a vida eterna, ressurreição. Toda essa experiência
do ser é dada, é dádiva, oferecendo-se o sujeito a si próprio, como uma forma
de vitória. Com a sétima frase e com a morte do filho, o resultado final é a
espiritualidade e a reunião, a confiança de nos entregarmos, acarretando que
estaremos sempre dependentes do divino e, no fundo, uns dos outros.
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Todas as frases poderão ter uma leitura ou mais metafísica ou mais
social: pode ter-se deus como uma entidade ampla, superior e no âmago, ou
o divino estará na força do conjunto onde o individual sai sublimado e
engrandecido. Com efeito, estas enunciações atribuíveis à pessoa ou figura
de Cristo são pedras angulares desta montagem enquanto forças
ampliadoras do si e da metafísica, relacionamento entre sofrimento e vitória,
abandono de todas as coisas e merecimento da totalidade e, por isso,
traduzem os nucleares conceitos de resistência e fragilidade tão bem
espelhados na dança profana dos corpos que atingirão a redenção, a paz, o
mistério inaudito. Cada uma das sete palavras desencadeia uma cena
protagonizada pelas/os atrizes/atores profissionais acompanhada por um dos
andamentos de Haydn. Os elementos oriundos do workshop mais recente,
Pedro Portela, Diogo Oliveira, Rui Dias Monteiro, Miguel Coutinho, Andreia
Araújo e Julien Bonnin, são a prova viva dos desafios (in)solúveis, da própria
condição de superação, e trazem uma dimensão de “real”, permitindo cruzar
o quotidiano com a efabulação estética.
4.
Se as palavras de Cristo são transversais e medulares na construção
deste
Escuro
, outras criações contemporâneas são como um substrato.
Nesse sentido, façamos dialogar esta montagem com imagens icónicas do
fazer corporal, nomeadamente
Kontakthof
(1978, 2000 de Pina Bausch)
pensando na fileira de gente que assoma e quanto à manipulação do corpo
pelos performers. Além disso, podemos perceber ecos do fundamental
Parades and Changes
(1965, de Anna Halprin, em colaboração com Morton
Subotnick) que utiliza e reutiliza as ações simples do quotidiano e criou uma
dada forma coreográfica identificável, e ainda suas reformulações como
Parades and Changes
, Replays (2008, de Anne Collod, em diálogo com Anna
Halprin e Morton Subotnick)
13
.
Iniciada nos trabalhos oficinais em Chelas, o universo do
Escuro
engloba também outra variação: a influência do exterior. No espaço social e
13
Cf. https://www.numeridanse.tv/en/dance-videotheque/parades-changes-replays
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coletivo, na rua, nos parques e praças, o exercício teatral toma um novo valor;
saindo da ficção burguesa, (co)existe no tecido das turbas. E isto é um
especial requinte nesta época de vigilância e segurança pandémicas. No
workshop
em 2019, vários transeuntes ficavam a ver a marcha dançante que
fazíamos no campo de futebol. Talvez com um misto de surpresa e
perplexidade, perante o que não era um ato fortuito, mas de expressa
vontade.
No exterior, a tenacidade agudiza-se, faça chuva ou faça sol, condições
atmosféricas (quais fossem) em que realmente dançámos na rua, e que se
tornaram também elas parte do cenário, ou até intérpretes. O vento, a que
Mónica alude na entrevista Casa Forte
14
na Culturgest, foi fortemente uma
presença. Dançava nas árvores, nos performers, nas roupas, estando ali e
agora em concreto, mas transportando-nos também para as viagens
emocionais que assombram cada sujeito.
Ao viajar e ao pôr em relação, este trabalho de Calle tem menos a ver
com uma forma fixa e completamente definida, na medida em que se aclara
no arrepio das vésperas porque nunca está efetivamente acabado. Daí
também a importância de Mónica revisitar os solos (Teatro S. Luiz, Lisboa, e
Teatro Nacional S. João, Porto, 2020), continuando o inacabado. sempre
um salto de que pode significar estatelar-se ao ridículo, colmatado com
a convicção da entrega, que se relaciona com um espírito militante, se assim
se puder chamar, de continuidade, de consolidação, de aprimoramento. Uma
militância que é: as coisas são todas as coisas ao mesmo tempo, onde se
inclui uma atitude: é o olhar de cada um que define a monta do percurso.
É um trabalho que tem por convicção (quer os trabalhos a solo, quer os
grandes coletivos, com atores e não atores) a formação de públicos e o
envolvimento de comunidades e que valida uma descentralização das
cartografias possíveis.
Descrevendo o processo, tive como objetivo trazer à tona o que dura e
endurece, porque a performance é aquilo que permanece (Schneider 2011), é
14
Cf. Vídeo https://bit.ly/3hQNtyD.
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um esboço de ação, uma cartografia, até que outro desejo surja e se dilua.
Espero que esta escrita comporte uma viajem, sem locomoção, e que a
linguagem possa ser também um mapeamento. Assim, observamos um
texto, um conceito, uma máxima, a tornar-se outro texto, sendo o segundo
uma poética somática. Com efeito, através de uma leitura íntima e pessoal,
o meu intuito é desenhar uma semiose do corpo.
Mapeando, percorreram-se distâncias e semelhanças entre os universos
de
Cartografia
e de
Escuro
, sendo o primeiro espetáculo criado a partir de um
momento de crise da Casa Conveniente e o segundo relativo à abnegação
entre espírito e carne. Em ambos se tem uma consubstancialidade, onde
corpo e palavra se tecem num texto único, ora ausente, ora presentificado.
Sem uma moldura de interpretação estável, sem fronteiras absolutas, as
artes contemporâneas abonam os hibridismos e desmancham para fora e
para dentro territórios sensíveis e saberes instáveis que buscamos
cartografar
15
.
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Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, no âmbito da bolsa de doutoramento SFRH/BD/129111/2017 e COVID/BD/152367/2022, e
no âmbito da unidade de investigação UIDB/05021/2020.
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Recebido em: 29/08/2022
Aprovado em: 14/10/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br