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Fissuras urbanas: a atuação das sedes Luz do
Faroeste e Teatro de Contêiner no território da Luz
Sara Fagundes Oliveira
Para citar este artigo:
OLIVEIRA, Sara Fagundes. Fissuras urbanas: a atuação
das sedes Luz do Faroeste e Teatro de Contêiner no
território da Luz.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0106
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Fissuras urbanas: a atuação das sedes Luz do Faroeste e Teatro de
Contêiner no território da Luz
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Sara Fagundes Oliveira
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Resumo
O presente trabalho discutiu a criação de fissuras espaço-temporais no
sistema hegemônico capitalista/colonial, e por consequência, no território
pelo qual ele se (re)configura a cidade –, por meio de sedes de grupos
teatrais. É por essa perspectiva que este texto investigou criação e atuação
da Luz do Faroeste e Teatro de Contêiner respectivamente sedes dos
grupos teatrais Pessoal do Faroeste e Cia. Mungunzá no território da Luz,
localizado na região central da cidade de São Paulo.
Palavras chave
: Sedes de grupos teatrais. Cidade. Fissuras espaço-temporais.
Urban cracks: the agency of the headquarters Luz do Faroeste and
Teatro de Contêiner in the territory of Luz
Abstract
This paper discussed the creation of space-time cracks in the hegemonic
capitalist/colonial system, and consequently, in the territory through which it
(re)configures itself - the city -, through the headquarters of theater groups.
From this perspective, this text investigated the creation and performance of
Luz do Faroeste and Teatro de Contêiner - respectively the headquarters of
the theater groups Pessoal do Faroeste and Cia. Mungunzá - in the territory
of Luz, located in the central region of the city of São Paulo.
Keywords
: Headquarters of theater groups. City. Space-time cracks.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Ibi Monte Figueiredo Azevedo (desde 2021
o revisor faz uso de nome social e sua comprovação de currículo está no nome anterior de registro,
disponível no link: http://lattes.cnpq.br/4847118658016388
2
Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em
Artes pela mesma instituição. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC). Professora Substituta do Departamento de Belas Artes Teatrais (BAT) da Escola de
Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) nos cursos de Cenografia e Indumentária.
Arquiteta, cenógrafa, iluminadora, professora e pesquisadora. sara.fagundes@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/0578287804082746 https://orcid.org/0000-0001-5021-6430
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Fisuras urbanas: la actuación de las sedes Luz do Faroeste y Teatro
de Conteiner en el territorio de Luz
Resumen
El presente trabajo discutió la creación de fisuras espacio-temporales en el
sistema hegemónico capitalista/colonial y, en consecuencia, en el territorio a
través del cual se (re)configura –la ciudad–, a través de las sedes de los
grupos de teatro. Desde esta perspectiva, este texto investigó la creación y
actuación de Luz do Faroeste y Teatro de Contêiner – respectivamente sede
del grupos de teatro Personal do Faroeste y Cia. Mungunzá en el territorio
de Luz, ubicado en la región central de la ciudad de São Paulo.
Palabras clave
: Sede de grupos de teatro. Ciudad. Fisuras espacio-
temporales.
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Como reagir a uma realidade que constantemente aprisiona e comprime?
Como criar fissuras em um sistema que parece hermético? Como combater e
reagir aos condicionamentos do modo de produção capitalista/colonial que
cotidianamente violenta corpos e espaços? O filósofo e economista John
Holloway, em
Fissurar o Capitalismo
(2013), reflete sobre as possibilidades de
reação à seguinte situação: estamos em um quarto e gradativamente as paredes
começam a nos comprimir. Como reagir? Para o autor, algumas pessoas se
recusariam a enxergar o avançar dessas paredes, outras o denunciariam e criariam
uma forma radical de combate à essa compressão que no futuro daria fim às
paredes, e por fim, aqueles que golpeando as paredes tentariam criar fissuras no
que pareceria inquebrável. A última postura, a dos golpeadores, consistiria no
método da fissura:
O método da fissura é o método da crise: queremos entender a parede
não a partir de sua solidez, mas de suas fissuras; queremos entender o
capitalismo não como dominação, mas a partir da perspectiva de sua
crise, suas contradições, suas fraquezas, e queremos entender como nós
mesmos somos estas contradições (Holloway, 2013, p.13).
Dentro desse contexto, o autor apresenta uma série de ações que poderiam
se configurar como fissuras no sistema, abrindo perspectivas para outros mundos
possíveis: “Dos indígenas em Oventio, Chiapas, que criam um espaço autônomo
de autogoverno e o defendem todos os dias contra os paramilitares que o
assediam” à “dramaturgia em Viena, que decide usar suas habilidades para abrir
um novo mundo àqueles que assistem suas peças” (Holloway, 2013, p.12), são
formas de reivindicar possibilidades de existir que não se pautem pela opressão
exercida pelo capital.
Quando pensamos especificamente sobre a lógica capitalista que se impõe
no contexto latino americano e, portanto, no Brasil, os estudos de Anibal Quijano
sugerem uma indissociação da matriz capitalista de poder de duas outras esferas:
a da colonialidade (entendida como a outra face da modernidade) e do
eurocentrismo (Quijano, 2009). O autor argumenta que
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Com a constituição da América Latina no mesmo momento e no mesmo
movimento históricos, o emergente poder capitalista torna-se mundial,
os seus centros hegemônicos localizam-se nas zonas situadas sobre o
Atlântico que depois se identificarão como Europa e como eixos
centrais do seu novo padrão de dominação estabelecem-se também a
colonialidade e a modernidade. Em pouco tempo, com a América (Latina)
o capitalismo torna-se mundial, eurocentrado, e a colonialidade e a
modernidade instalam-se associadas como eixos constitutivos do seu
específico padrão de poder, até hoje (Quijano, 2009, p.73-74).
Como implicação central da colonialidade do poder, Quijano indica a
imposição de ”uma classificação racial/étnica da população do mundo [...] [que]
opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos, da
existência social quotidiana e da escala societal” (Quijano, 2009, p.73). Ou seja,
quando pensamos sobre as opressões exercidas pelo sistema capitalista no(s)
contexto(s) brasileiro(s) não podemos dissociá-las das violências e opressões às
quais corpos, espaços e culturas negras e indígenas foram e são submetidas. É
por tal entendimento que, no âmbito da nossa realidade, as fissuras contra
hegemônicas precisam, necessariamente, sabotar as estratégias da branquitude
3
.
Para Holloway, o primeiro passo na criação das fissuras seria a negação do
que nos é imposto. Mas o “não” sozinho é um tanto quanto incapaz, por isso,
sugere que a recusa deve ser sempre acompanhada de uma criação na qual
sejamos sujeitos a ideia de recusa-e-criação (Holloway, 2013). Para esta forma
de luta, propõe que necessitamos desenvolver uma nova linguagem: romper o
capitalismo “de tantas formas quanto pudermos, tentando expandir e multiplicar
as fissuras e promover sua confluência” (Holloway, 2013, p.14). Nesse sentido, as
revoluções aconteceriam nos interstícios do sistema: “a única maneira de pensar
em mudar o mundo radicalmente é com uma multiplicidade de movimentos
intersticiais fluindo a partir do particular” (Holloway, 2013, p.15). E essa mudança
tem que ser aqui e agora, ou seja, uma subversão no espaço e no tempo. Decorre
daí a noção de fissura espaço-temporal, pois para o autor, o fissurar passa sempre
por uma ruptura com uma dimensionalidade espaço-temporal hegemônica.
3
Segundo Lia Vainer, a noção de branquitude corresponde a “uma posição racial de dominação em relação a
outros grupos racializados, em que sujeitos considerados brancos obtêm privilégios materiais e simbólicos.
[...] [a] branquitude como lugar racial da superioridade”. (Schucman, 2014, p.111-122)
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O movimento das fissuras é um movimento o apenas contra, mas
também para além da nossa determinação de nossas vidas pelo capital.
[...] A questão central é a contraposição de uma lógica distinta, aqui e
agora, à lógica do capitalismo. [...] [É] um momento no qual as relações
de dominação são quebradas e outras relações criadas (Holloway, 2013,
p.24-33).
O espaço como uma esfera estruturante do social e do político é tanto
território de construção e constituição de sistemas hegemônicos quanto meio de
criar fissuras nesses mesmos sistemas (Lefebvre, 1991). Dentro da discussão sobre
espaço e sociedade, Henri Lefebvre indissocia estas esferas apontando justamente
a condição espacial dos processos sociais - “O espaço (social) é um produto
(social) (Lefebvre, 1991, p.26)
4
. E se, os sistemas hegemônicos se constroem
indissociados do espaço, os enfrentamentos a eles, se fazem, também, por meio
de espacialidades.
Evocamos as ideias de tais autores, pois os interesses destes escritos giram
em torno das possibilidades de fissurar as estruturas urbanas hegemônicas por
meio do teatro, especialmente como espaço como edifício que compõe a malha
e a dinâmica urbana. Em segundo lugar, pois tanto Lefebvre quanto Holloway
compreendem que o espaço é um meio pelo qual tanto se exerce quanto se
subverte o poder ou os poderes. Além disso, ambos se ocupam em pensar
possibilidades de transgredir os modos hegemônicos de realização da vida,
entendendo que a subversão do espaço é uma condição fundamental na criação
de novas formas de existência. E nesse sentido, são reflexões que permitem
ampliar as leituras sobre o espaço teatral e as relações com a cidade.
A Selva das Cidades
Uma polifonia dissonante e caótica, a cidade de São Paulo se constitui das
muitas tensões entre distintas realidades. Uma das grandes expressões brasileiras
das desigualdades sociais, étnico-raciais e de gênero impostas pela dinâmica
urbana capitalista e colonial, as tensões estão não somente na multiplicidade
territorial, mas nas complexidades internas de muitos territórios. E esta é uma das
4
(Social) space is a (social) product. (Tradução nossa)
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principais questões que toma corpo ao pensarmos sobre a Região da Luz,
localizada no centro da cidade.
Tomemos como referência algumas das realidades que coexistem na região:
grandes equipamentos culturais, como a Estação da Luz, Museu da Língua
Portuguesa, Sala São Paulo, etc. centros difusores de culturas de matriz
eurocêntrica (ou seja, culturas especificamente burguesas e brancas) –, instalados
em edifícios monumentais, restaurados e remodelados por arquitetos do
mainstream
; inúmeros imóveis ociosos que fomentam a especulação imobiliária
na região; lutas por moradia que (à duras penas) ocupam alguns desses imóveis
como as ocupações Prestes Maia e Mauá; vítimas das necropolíticas que se
revelam nas centenas de pessoas na rua em situação de vulnerabilidade social;
violentos ataques policiais a estas mesmas pessoas em nome de uma suposta
guerra às drogas – que na realidade é o extermínio explícito da população pobre e
predominantemente negra; constantes e incontáveis projetos de gentrificação e
branqueamento da região – a partir de uma coadunação entre Estado e iniciativas
privadas. A Luz é mais um retrato da desigualdade perversa que, séculos, se
impõe como parte do projeto de sociedade brasileira.
Desde os anos 1970, a Região da Luz tem sido, sucessivamente, submetida a
projetos de “renovação” e “requalificação” urbana para o “combate” a uma suposta
“degradação do centro”. Mas qual a perspectiva de degradação que pauta tais
propostas? Para o urbanista Flávio Villaça, a ideia de decadência ou degradação
dos grandes centros urbanos está associada a ocupação destes territórios por
populações de renda mais baixa (Villaça, 2001), que é predominantemente negra
ou seja, uma perspectiva que revela a segregação racial que estrutura, (não
desde os anos 1970, mas desde 1500) as práticas socio espaciais brasileiras. É
nesse sentido, que tais intervenções, buscaram e permanecem buscando não
a gentrificação mas o branqueamento da Luz
5
(Santos, 2017) isto é, não apenas
5
No que diz respeito ao conceito de branqueamento do território, o geógrafo Renato Emerson Santos aponta
que tal perspectiva pode ser compreendida a partir de três dimensões espaciais, “o branqueamento da
ocupação, com a substituição de não brancos (negros e indígenas) por brancos na composição populacional
de porções do território (através de assentamentos de imigrantes, expulsão ou extermínio dos indesejados);
o branqueamento da imagem do território, com narrativas de histórias locais que se iniciam a partir da
chegada dos brancos, e eliminam a presença de outros grupos enquanto protagonistas de processos
históricos; e o branqueamento cultural do território, com a imposição da primazia de matrizes, signos e
símbolos culturais que constituem e identificam territórios, lugares e regiões.” (Santos, 2017, p.474)
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a ocupação da área por uma população de renda elevada como a criação de
imagens e símbolos que reafirmam a cultura e os privilégios da branquitude e,
sobretudo, a expulsão da população negra do território.
Nas décadas de 1990 e 2000, esse cenário intervencionista se acentuou, em
decorrência do denominado “surgimento da cracolândia”
6
. Neste contexto foram
inaugurados alguns espaços de uso cultural emblemáticos como a Sala São Paulo,
Pinacoteca do Estado e o Museu da Língua Portuguesa. Tais projetos, realizados
por meio de uma Parceria Público Privada, pretendiam criar (e talvez, para alguns,
tenham criado) uma imagem de polo cultural internacional
7
- de modo que a ideia
de internacionalização obrigatoriamente se vincula a filiação euro-americana dos
projetos, ou seja, em tese ao caráter universal associado às proposições que vem
do Norte, com as suas (não ingênuas) aplicabilidades em quaisquer realidades.
Atualmente vigora na região central um projeto grandioso intitulado “Centro
Novo”, e naturalmente a Região da Luz está incluída nele. A intervenção é
ambiciosa e não se cansa de repetir os mesmos jargões e falácias das propostas
anteriores. Nas palavras do arquiteto responsável pelo projeto da vez, Jaime
Lerner, “É uma oportunidade de recordar ao paulistano memórias afetivas
atreladas a esse espaço nobre da cidade, que associações negativas ao longo do
tempo fizeram esmaecer, e reapresentá-lo às novas gerações” (Lerner, 2017).
O que fica explícito tanto pela fala do arquiteto como pelo projeto em si é
que os esforços de “requalificação urbana”, no caso da Região da luz, reiteram a
tese de que o capitalismo se reproduz por meio do espaço, convertendo-o em um
produto a ser devorado pela sociedade espetacular de consumo no caso
brasileiro, pela burguesia branca. E, nesse caso específico, utilizando a ideia de
cultura uma cultura proclamada como universal, mas que é centrada
fundamentalmente em referenciais europeus e estadunidenses como
argumento central de transformação da realidade urbana.
6
“Cracolândia” foi o nome instituído pela própria prefeitura na década de 1990 a uma concentração de
usuários de entorpecentes, especialmente o crack e de pessoas em situação de vulnerabilidade social na
região da Luz.
7
Importante pontuar que os projetos anteriores para a região já se apoiavam na ideia da Luz como um polo
cultural. A inauguração dos referidos espaços apenas deu contornos mais evidentes a ideia que se
ensaiava ao longo de décadas.
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No entanto, enquanto capital e Estado se ocupam de criar espacialidades que
produzem e reproduzem as desigualdades sociais e étnico-raciais no país,
enquanto os edifícios de uso cultural da região reafirmam as mesmas lógicas de
segregação implicadas nestes projetos urbanos seja pela seleção do público a
partir dos ingressos cobrados, pela arquitetura suntuosa que inibe a presença de
corpos não hegemônicos, pelos seguranças que fazem a triagem de quem pode e
quem não pode adentrar tais espaços –, existem possibilidades de, por meio de
sedes de grupos teatrais, criar e fazer confluir fissuras na asfixiante ordem
capitalista e colonial que se impôs como hegemônica. Passemos a elas.
Sede Luz do Faroeste e Teatro de Contêiner fissurar a cidade
Rua do Triunfo, número 301: ao lado do restaurante Amarelinho, no qual todos
os sábados acontece uma tradicional roda de samba, um casarão eclético do início
do século XX abrigou por uma década a sede Luz do Faroeste. Desafiando os
propósitos e usos endereçados aos edifícios culturais da região, a perspectiva de
mudança que foi base para o espaço criado pelo grupo teatral Pessoal do Faroeste,
foi possibilitar meios de enfrentamento aos sistemas hegemônicos, enxergando a
potência das culturas na formação do “cidadão consciente da importância de seu
papel social na transformação da sociedade”.
8
O Pessoal do Faroeste é uma companhia com trajetória de 24 anos na cidade
de São Paulo e é liderada pelo diretor e dramaturgo paraense Paulo Faria. O grupo
sempre esteve sediado na região da Luz, sendo que antes de migrar para a rua do
Triunfo em 2012, ocupava um edifício situado na alameda Cleaveland, nas
imediações do fluxo da “cracolândia”. Ou seja, desde 2002 o grupo se relaciona
diretamente com a realidade complexa da região e o percurso traçado ao longo
das mais de duas décadas de trabalho revela essa vivência. De acordo com Paulo
Faria, “pela cultura e pelo teatro a gente tem tentado abrir uma outra frente, que
é: todas as peças tratam desse endereço, tratam de fatos históricos” (Faria, 2019).
Entre os espetáculos que aconteceram a partir do momento em que se
8
Pessoal do Faroeste, site da companhia. http://www.pessoaldofaroeste.com.br
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instalaram na região
9
, pode-se destacar,
Os Crimes do Preto Amaral
(2006),
Labirinto Reencarnado
(2009),
Cine Camaleão
, a
Boca do Lixo
(2012) que inaugurou
a sede na rua do Triunfo, Homem não entra (2013), Luz Negra (2014),
O assassinato
do presidente
(2017),
Curare
(2018) e o mais recente,
Brancos e Malvados
(2019).
Além dos espetáculos teatrais, a companhia também é uma produtora
audiovisual e transformou-se em instituto. O Instituto Luz do Faroeste nasceu
justamente por uma pulsão do grupo em atuar politicamente nas questões ligadas
à realidade espacial da qual fazem parte, permitindo ao coletivo pensar políticas
públicas para a região e seus usuários. Para Faria a criação do Instituto foi uma
maneira encontrada de efetivar o que já se realizava paralela e conjuntamente aos
espetáculos e produções audiovisuais isto é, uma aproximação do teatro de
outras esferas como direitos humanos, saúde, política e justiça social. O diretor
aponta ainda que por meio do Instituto “a ideia é que esse bairro possa se pensar,
uma vez que ele é um bairro quase invisível por conta de toda a mídia que tem
em torno da ‘cracolândia’” (Faria, 2019).
O Instituto Luz do Faroeste possui dez núcleos com diferentes frentes de
atuação articuladas a partir do território, como gênero, raça, diversidade, saúde,
juventude, cultura, meio ambiente, cidade, cidadania e mobilidade. Os diversos
núcleos apontam, em primeiro lugar, o entendimento do grupo em relação à
amplitude e complexidade das lutas que são mobilizadas no território e a partir
disto, na necessidade de enfrentamento múltiplo e conjunto das muitas faces e
armadilhas da matriz de poder capitalista e colonial. Essa diversidade de frentes
aponta o papel do Instituto como centro pensador e articulador de caminhos
outros para a Luz. Outro aspecto interessante do Luz do Faroeste é que ele
mobiliza a criação e o pensamento a partir de dentro, a partir das pessoas que
fazem parte do território a partir do que Lefebvre chama de espaços de
representação e não a partir da representação do espaço
10
, como é de praxe em
9
Até o ano de 2002 o grupo não possuía uma sede e seus espetáculos se realizavam em outros teatros.
10
Lefebvre propõe uma teoria unitária que pretenda associar o espaço sico, o social e o mental numa tríade,
de modo que os níveis imbricados que se correlacionam de forma dialética seriam: o da prática espacial, o
das representações do espaço e o dos espaços de representação. A prática espacial como aquela que
associa as dimensões urbana e cotidiana espaço percebido , as representações do espaço como o espaço
dos planificadores, arquitetos e tecnocratas espaço concebido e os espaços de representação sendo
aqueles dos habitantes e usuários que produzem obras simbólicas espaço vivido. Ditos de outro modo, o
espaço da materialidade e da sensorialidade, o espaço conceitualizado (ou da conceitualização) e o espaço
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propostas de intervenção urbana com filiação colonial. Nas palavras de Faria,
A gente propôs como se fosse um ministério mesmo. A gente se deu esse
direito de pensar isso aqui como um país, a região como uma cidade,
com todas as dificuldades e os conflitos que ela vive, no lugar onde a
gente está na América Latina, na história que tem esse bairro para a
América Latina (Faria, 2019).
No que diz respeito ao espaço da sede
11
, a edificação que abrigou a companhia
possuía a fachada preservada, com a exceção da porta principal que fora
substituída por uma porta metálica de enrolar e que possui um grafite (uma
câmera e o escrito “Boca do Lixo”)
12
. Ao adentrar o edifício, existia um pequeno
saguão com direito baixo no qual funcionava um bar. E, logo após o balcão
atrás de uma porta vai-e-vem estilo faroeste e de uma cortina vermelha
encontrava-se a caixa cênica, que comportava no máximo cem pessoas.
No âmbito da configuração espacial do edifício, embora existisse de forma
nítida separação entre o dentro e o fora, entre o espaço público e o privado, essa
relação ocorria de forma gradual e sutil, sobretudo se considerarmos a escala do
edifício. Afinal, como afirma Gay Mcauley, a escala de uma edificação revela muito
sobre poder e controle, de modo que “a experiência de escalar um enorme lance
de degraus ou de entrar no prédio através de uma porta enorme pode ser um
lembrete da ausência de poder de um indivíduo” (Mcauley, 2010, p.52). Ou seja, a
sede Luz do Faroeste rompia com outra das características centrais dos
equipamentos culturais da região: a monumentalidade.
Próximo à rua, mas separado dela, o espaço da cena possuía uma
configuração que remete ao palco-rua do Teatro Oficina, tendo em vista sua
característica longitudinal. Ao fundo da caixa cênica, à esquerda, existia uma janela
que dava acesso ao quintal – outra relação inevitável com o Oficina – que poderia
das emoções e dos significados simbólicos que afetam o modo como se experimenta a materialidade
espacial. (Lefebvre, 1991)
11
Cabe ressaltar que as adaptações realizadas no edifício para adaptá-lo à função cênica foram planejadas
pelo próprio diretor, sem um projeto arquitetônico, a partir das necessidades do grupo e das possibilidades
do edifício.
12
Boca do lixo foi uma denominação utilizada para se referir a um trecho da região da Luz na qual está a
Sede Luz do Faroeste ocupada (nos anos 1950) por produtoras cinematográficas.
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(ou não) ser fechada por uma cortina preta, de acordo com as necessidades do
espetáculo. Nesse caso, o teatro não se abria para a cidade como o espaço criado
por Lina Bardi e Edson Elito, mas para a pequena área verde nos fundos do antigo
sobrado. A abertura revelava o desejo de que a caixa cênica se relacionasse com
aquilo que estava fora, mas sendo esse fora o quintal da casa, a janela se tornava
uma espécie de abertura para dentro: para dentro da história e memória daquele
edifício. Ainda na caixa cênica, existia um mezanino em estrutura metálica que
circundava toda a área do pavimento térreo.
No andar superior, acima da caixa cênica e separado dela, com acesso por
uma escada que parte do pequeno saguão/bar, existia uma sala retangular
(seguindo o mesmo formato do pavimento inferior) que também abrigava cena e
funcionava como depósito de cenários, figurinos e equipamentos da companhia.
Deste segundo andar era possível acessar o edifício vizinho, no qual está localizado
o Ateliê Amarelinho.
O Ateliê foi um espaço criado pelo grupo no ano de 2014 que abriga coletivos
artísticos interessados em produzir “ações que possam estar em diálogo direto
com a cidade e com a região da Luz, criando encontros, transversalidades e
permeabilidades entre arte, direitos humanos, política e cultura”
13
. O espaço
possuía acesso tanto por dentro do teatro, como pela rua General Osório. O ateliê
se dividia em três andares de modo que no primeiro funcionava a produção da
companhia e também os ateliês de trabalho desses coletivos no total eram cinco
ateliês. No segundo nível se localizavam dormitórios que abrigavam os artistas
residentes. E no terceiro nível, na cobertura, um espaço de uso múltiplo, no qual
funcionava uma área de convivência com uma cozinha coletiva, local onde
eventualmente aconteciam cenas e festas.
Ao longo da trajetória na rua do Triunfo, incontáveis ações e projetos foram
realizados pelo grupo na sede e elencá-las extrapola o escopo destes escritos. No
entanto, mencionamos aqui algumas dessas atividades ou projetos: bloco
carnavalesco organizado pelo grupo, que sai nos domingos de carnaval desde 2013
pelas ruas da região; distribuição de alimentos a partir da criação dos programas
13
Pessoal do Faroeste, site da companhia. http://www.pessoaldofaroeste.com.br
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13
#FomeZeroLuz e #SopãodaLuz; Bate-bocas - série de conversas abertas ao
público sobre temas que perpassam os espetáculos, e portanto a história da região
e sua realidade; cineclubes; reuniões do Fórum Mundaréu
14
- coletivo que se uniu
para discutir alternativas para a região frente ao projetos de gentrificação e
branqueamento e as posturas violentas contra a população residente da área;
oficinas para o programa De Braços Abertos, desenvolvido durante a gestão de
Fernando Haddad, que consistia em uma política de redução de danos para
usuários de drogas; aulas públicas sobre diferentes temáticas no referido largo e
na sede; reuniões e a disciplina da pós graduação do Diversitas USP Núcleo de
Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflito da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo; balcão de atendimentos
da OAB em direitos humanos para a população vulnerável do território.
A menos de um quarteirão da sede Luz do Faroeste, na esquina da rua dos
Protestantes com a rua dos Gusmões, no ano de 2017 mais uma companhia teatral
fez da Luz seu território estético e político. Com um projeto que dialoga com as
propostas do Faroeste embora trabalhe em outras frentes –, a companhia
Mungunzá inaugurou em março do referido ano o Teatro de Contêiner, buscando
criar na Luz um espaço cultural que fizesse uma ponte entre os artistas do grupo
e os moradores da região.
De acordo com o integrante da companhia Marcus Felipe Oliveira, o desejo
de construir a sede na Luz possui alguns disparadores. O primeiro é que o grupo
já possuía uma relação com a região, pelos anos instalados em um galpão na Rua
Prates primeira sede da Mungunzá e por serem moradores do bairro. O
segundo disparador foram os rumos que o país começou a tomar no final de 2015
e início de 2016 com o prenúncio do golpe político institucional que naquele
14
Grupos e indivíduos integrantes do Fórum Mundaréu: Ação da Cidadania; Centro de Convivência É de Lei;
Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos; Companhia de Teatro Mungunzá; Companhia de Teatro Pessoal
do Faroeste; A Craco Resiste; Defensoria Pública de São Paulo; Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres
(Nudem); Habitação e Urbanismo (Nehaburb); Cidadania e Direitos Humanos (NECDH); Direitos do Idoso e
da Pessoa com Deficiência (Nediped); FLM Frente de Luta por Moradia; Frente Estadual de Luta
Antimanicomial (Feasp-SP); Goma Oficina; IAB-SP Instituto de Arquitetos do Brasil/São Paulo; INNPD
Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas; Instituto Pólis; LabCidade Laboratório Espaço Público
e Direito à Cidade/FAUUSP; LabJUTA Laboratório Justiça Territorial/UFABC; LEVV Laboratório de Estudos
da Violência e Vulnerabilidade Social/Mackenzie; Moradores e comerciantes das quadras 36, 37 e 38 do bairro
Campos Elíseos; Mosaico Escritório Modelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/Mackenzie;
Movimento Integra; Observatório de Remoções; A Próxima Companhia de Teatro; REPEP Rede Paulista de
Educação Patrimonial; Sã Consciência; UMM União dos Movimentos de Moradia.
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momento começava a se construir o
impeachment
da presidenta Dilma Roussef
consolidado em 31 de agosto de 2016. O grupo, que temia ser tomado por um
estado de completa apatia e desesperança, buscava razões para continuar sua
trajetória artística. E por fim, desejavam colocar fim ao ciclo de pagamentos de
aluguéis, saindo “desse mercado em que a gente pega recurso público
15
e entrega
direto para o dono do imóvel, direto para o capital” (Oliveira, 2019).
Com tais inquietações e com o desejo de se deslocarem para “um lugar mais
ativista da cidade” `o grupo juntou o caixa que havia formado, com os até então
oito anos da companhia, e começou a investigar a região buscando nos vazios
urbanos e nas áreas subutilizadas um terreno para a implantação do teatro. Tendo
em vista a burocracia necessária para uma Parceria Público Privada, em que o
município concederia o terreno e a companhia arcaria com a construção do
edifício, o grupo propôs para a prefeitura a concessão do lote por dois meses para
abrigar um festival de performance chamado “Arquiteturando a Cidade”. Durante
esses dois meses o teatro foi erguido e após o término da concessão a Mungunzá
comunicou a prefeitura que com a edificação construída no local eles não
desocupariam o terreno
16
.
Essa concessão do lote e a não desocupação do terreno pelo grupo é um
ponto importante de se abordar, pois revela os privilégios materiais e simbólicos
concedidos a branquitude que reforçam as estruturas hegemônicas:
um grupo de artistas em sua maioria homens, todos brancos, graduados
e pós-graduados, então do tipo, estar aqui desenvolvendo o que a gente
está é possível por causa do nosso lugar de privilégio, então a gente
também precisa dar os créditos ao nosso lugar de privilégio fazendo uma
15
A lei de fomento ao teatro de São Paulo, na qual a companhia foi inúmeras vezes contemplada, prevê que
30% do orçamento destinados aos projetos deve ser gasto com o espaço de trabalho das companhias. É
por isso que o ator se refere ao gasto de verba pública no pagamento dos aluguéis.
16
O edifício teatral é composto por onze contêineres agrupados em dois pavimentos. Os contêineres formam
em planta uma área quadrada. No centro deste quadrado se localiza a área de cena que pode assumir
diferentes configurações como frontal, bilateral, arena e semi arena, uma vez que os assentos não são fixos
e não elevação no piso. Ainda sobre o primeiro pavimento, nas fachadas leste e oeste existe um
fechamento em vidro, o que torna a caixa cênica visualmente permeável, criando uma relação direta entre
o que acontece dentro do espaço e fora dele. ainda neste nível um banheiro público e sem distinção
de gênero , um café e uma sala para reuniões e oficinas. No andar superior um mezanino em U que
circunda a área de cena. As paredes do mezanino guardam os refletores. Ainda no segundo pavimento existe
um camarim, que diferentemente dos espaços tradicionais destinados para este fim, possui fechamento
em vidro, sendo possível de fora do teatro observar os atores se transformando para os espetáculos. À
época da inauguração do teatro a área construída abarcava 40% da área do terreno. Na área externa, nos
60% restantes, além da área verde criou-se um playground feito com galões metálicos, um duomo geodésico
e uma horta coletiva.
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política reversa, mas é possível por causa disso. O nosso tipo de
resistência é uma resistência que trabalha na fissura burocrática do
Estado, por causa do nosso privilégio. Então, se fosse um grupo de origem
periférica ou se fosse um grupo de negros e negras não estaria mais aqui.
Importante que a gente tenha esse lugar senão a gente cai numa
meritocracia do tipo, “ah vendo se organizar e não sei o que, sociedade
organizada consegue se isentar do estado. Não, não consegue. Então é
importante que a gente tenha esse pensamento (Oliveira, 2019).
Estes aspectos mencionados indicam o lugar contraditório em que emerge o
Teatro de Contêiner: um coletivo de artistas teatrais independentes que buscam
construir um espaço artístico-comunitário em um território repleto de tensões e
contradições ao mesmo tempo em que são corpos hegemônicos pousando na Luz
com uma arquitetura bastante aprazível às propostas de “requalificação” região.
Oliveira aponta as diferentes leituras que surgem a partir da inauguração da sede:
[a arquitetura de contêineres] está muito mais relacionada aos nossos
bairros de elite do que aos nossos bairros precários. Então quando a
gente coloca o teatro de contêiner aqui é uma ojeriza consensual entre
todo mundo. Do ponto de vista dos comerciantes a gente vira uma ONG,
do ponto de vista do Estado a gente vira uma ONG de cultura que vai
trabalhar com “craqueiro” (sic), do ponto de vista da população em
situação de vulnerabilidade social é um teatro para os “boys” (Oliveira,
2019).
O entre lugar no qual o Contêiner se ergueu fez com que o grupo refletisse
criticamente sobre sua agência política no território e passasse a desenvolver
meios de enfrentar essas contradições. O pesquisador André Carreira, quando
pensa sobre espetáculos que invadem a cidade ou seja, que se apropriam de
espaços públicos da urbe, aponta que
práticas teatrais que se oferecem em espaços de tensão entre as pessoas
que habitam, caoticamente e perigosamente, lugares que a instituição
governamental pretende recuperar para a cidade, estão obrigadas a
questionar as implicações políticas de suas intervenções neste
processos (Carreira, 2020, p.5).
Embora o autor esteja se referindo a práticas e não a espaços teatrais, a
perspectiva crítica que Carreira indica pode ser transposta para pensarmos sobre
a inserção do Contêiner no território da Luz. Foi, portanto, a partir do
questionamento das “implicações políticas” do projeto que o grupo percebeu que
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dependendo das formas de atuação da sede, o edifício poderia ser mais um dos
dispositivos urbanos de gentrificação e branqueamento da região. Em busca do
enfrentamento das contradições, o grupo repensou o programa arquitetônico do
teatro, que inicialmente conteria apenas a caixa cênica. Incluíram o playground
para as crianças pois embora existam inúmeros equipamentos culturais no
entorno, esses “equipamentos não abrigam essas crianças” (Oliveira, 2019) –, o
duomo geodésico, para levar para o espaço “reuniões, fóruns ativistas, reuniões de
condomínio, tudo o que o teatro não poderia abrigar do ponto de vista do
pensamento, da discussão” (Oliveira, 2019), e a horta comunitária.
Paralelamente a companhia criou algumas ações como a inserção de
moradores do entorno nas atividades funcionais do teatro por exemplo, os
responsáveis pela produção dos alimentos vendidos em festas e eventos no teatro
são os moradores das ocupações da região; o projeto Rua Ex Isto, que promove
uma vez por mês um “sábado de beleza” para pessoas em condições vulneráveis;
a reinserção social de egressos do sistema prisional; passou a abrigar reuniões e
fóruns ativistas como por exemplo as da Craco Resiste e das ocupações de
imóveis desocupados do entorno; entre outras.
Em relação ao público que frequenta os espetáculos, Oliveira aponta que
quando são peças da Mungunzá, os moradores do entorno e pessoas em situação
de vulnerabilidade, se sentem mais à vontade em adentrar o espaço. O ator aponta
que durante a temporada do espetáculo da Companhia, “Epidemia Prata” (2018) –
primeiro trabalho realizado na nova sede –, eram em torno de 15 a 20 pessoas em
situação vulnerável por apresentação – para ele um número significativo.
Apesar do teatro ter gradativamente se transformado em um centro cultural
aberto a todas/es/os, além da arquitetura outro elemento soa contraditório: a
presença de uma cerca em volta de todo o terreno. Quando questionado sobre
este ponto o ator argumenta que
a gente sempre se incomodou muito com ela e a nossa ideia, a princípio,
era descer a cerca gradativamente, descer 30cm a cada seis meses,
então ela cairia na medida da compreensão do projeto. Uma ideia que foi
um pouco abandonada pela gente porque a gente entendeu um pouco a
dinâmica da cidade e viu que a gente não tinha esse avanço do
pensamento urbanístico para esse lugar. E depois a gente começou a
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entender que não necessariamente a gente precisa estar sem a cerca,
enfim, uma coisa não interfere na outra. Teve um episódio que [...] uma
performer no dia da festa da MIT [Mostra Internacional de Teatro] [...], fez
uma performance rasgando a cerca ali. [...] E quem expulsou ela do ato
performático foram os próprios moradores da calçada, dizendo que o
faz sentido você fazer esse rombo na cerca se o portão está aberto
(Oliveira, 2019).
A falas de Oliveira em relação a chegada dos boys brancos no território, em
relação a arquitetura “ excludente” e em relação a existência da cerca ao redor do
terreno indicam que o grupo não nega as contradições sob as quais se erguem o
espaço inclusive porque negá-las seria perpetuar não a lógica meritocrática,
como aponta Oliveira, mas ignorar a dinâmica capitalista/ colonial que se reatualiza
nas cidades e, sobretudo, os privilégios históricos concedidos a branquitude. Por
essa perspectiva, a Cia. Mungunzá assume e parte dessas contradições.
Ao longo dos anos, as formas de atuação do Teatro de Contêiner têm se
expandido. Durante a Pandemia de Covid 19 (inclusive durante o período mais rígido
de isolamento social) a sede confeccionou e distribuiu máscaras para a população
envoltória, além de
kits
de higiene, cobertores e alimentação foram dois anos de
trabalho incessante. Foi também a partir deste contexto que dois outros coletivos
se integram ao terreno com seus próprios contêineres: o Coletivo Tem Sentimento
grupo que busca gerar renda para mulheres cis e trans em situação de
vulnerabilidade do território –, e o coletivo Birico - grupo formado por artistas da
região que buscam visibilizar suas produções artísticas além de formarem novas
e novos artistas. Em fevereiro de 2022 a Cia. Mungunzá inaugurou um estúdio de
gravação e um ateliê pedagógico em novos contêineres instalados no terreno.
Além dessas integrações, embora o teatro sempre tenha abrigado
espetáculos de outros grupos, é possível observar uma mudança de perfil dos
coletivos que passaram a se apresentar no local. De uma predominância de grupos
formados por corpos hegemônicos, o teatro tem sido um palco aliado de artistas
e práticas artísticas negras e LGBTQIAPN+ por exemplo, os projetos realizados
no Contêiner como a mostra “Negra Melodia”, a “Mostra Solo Mulheres”, as
atividades do Chama Festival como
All Ice
convida transmaculinidades”, entre
outros.
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Se a pandemia de Covid 19 não impediu que a Cia. Mungunzá expandisse suas
atividades e ampliasse a integração da sede com outros movimentos artísticos e
sociais – a ponto de o Teatro de Contêiner ser hoje sede de diferentes coletivos –
, a Sede Luz do Faroeste não resistiu a hecatombe. Em setembro de 2020,
enquanto se realizava a distribuição de alimentos para a população vulnerabilizada
do território, o grupo recebeu uma ordem de despejo devido ao atraso no
pagamento de aluguéis. A partir do apoio de outros artistas, intelectuais e alguns
poucos representantes políticos, o coletivo conseguiu uma suspensão da ordem,
para que o grupo tentasse avançar nas negociações. Entretanto, em janeiro de
2022 a ordem de despejo foi cumprida e o grupo deixou o imóvel na rua do Triunfo.
Recentemente, mesmo sem a sede, Faria retomou a campanha #SopãodaLuz, que
havia sido interrompida após a saída do território. Em relação às atividades do
grupo, tanto os ensaios quanto os projetos desenvolvidos no Ateliê Amarelinho,
ambos foram abrigados pela Casa Amarela Quilombo Afroguarany, uma “ocupação
cultural que visa dar voz a cultura afro brasileira integrando as periferias ao centro
da cidade usando a arte como transformador social”
17
.
Considerações Finais
Pensar sobre as dinâmicas de uma cidade com as complexidades de São
Paulo, e especificamente de um território como a Região da Luz, é, sem dúvidas
um desafio que não se esgota na discussão aqui proposta. Tampouco as sedes
trazidas para a reflexão abarcam a diversidade e multiplicidade das lutas e
movimentos sociais que, décadas, se articulam pelo território. Entretanto, a
Sede Luz do Faroeste e o Teatro de Contêiner a partir das distintas frentes e
formas de atuação que se dão por meio do acolhimento, do afeto e da integração
– indicam alguns dos caminhos possíveis para sabotarmos as estratégias urbanas
capitalistas e coloniais.
As rupturas provocadas por ambos os espaços dizem de uma necessidade
desses coletivos artísticos se constituírem, por meio das sedes, como agentes
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Casa Amarela Quilombo Afroguarany, disponível em:
https://web.facebook.com/casamarelaquilomboafroguarany/
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críticos dos projetos de gentrificação e branqueamento que, por meio do espaço
urbano, produzem e reforçam hegemonias. As dimensões étnico-racial e de
gênero não podem ser negligenciadas em ações ou projetos que buscam enfrentar
o sistema hegemônico. E talvez tenha sido a partir deste entendimento que os
grupos ampliaram e tem ampliado seus meios de atuação, se aliando de forma
mais enfática em lutas antirracistas, anti patriarcais e no combate a LGBTfobia.
Nesse sentido, ainda que pesem aspectos contraditórios, tanto o Pessoal do
Faroeste quanto a Cia. Mungunzá, abrem fissuras na espessa parede capitalista e
colonial, que tem na Região da Luz uma de suas representações. E, nesse sentido,
ambas as sedes indicam, especialmente aos grupos hegemônicos branco,
cisgênero e masculino –, formas de se aliar em lutas que permitam imaginar
cidades e sociedades menos excludentes e desiguais.
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Sara Fagundes Oliveira
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Recebido em: 24/08/2022
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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