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Cultura popular e patrimônio:
ecoam vozes do mar e da montanha
Liliane Mundim
Ramon Santana de Aguiar
Para citar este artigo:
MUNDIM, Liliane; AGUIAR, Ramon Santana de. Cultura
popular e patrimônio: ecoam vozes do mar e da montanha.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0105
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Liliane Mundim; Ramon Santana de Aguiar
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-23, dez. 2022
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Cultura popular e patrimônio: ecoam vozes do mar e da montanha
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Liliane Mundim
2
Ramon Santana de Aguiar
3
Resumo
A ocupação e a apropriação do espaço urbano, no campo artístico e estético, se
configuram de maneira plural e multifacetada, comprovando, cada vez mais, a
potência do espaço como um campo aberto à experimentação. Para ampliar esse
diálogo, este artigo visa refletir sobre algumas questões que subjazem a essas
iniciativas que se utilizam do patrimônio em suas múltiplas dimensões - tanto
material como imaterial, e as inter-relações com os fazeres e saberes da cultura
popular e cidade. Como práticas, foram analisados os trabalhos realizados em dois
contextos distintos, porém, com características semelhantes no que se refere às
relações entre arte, cidade e patrimônio: o Coletivo Cantareira, que é um movimento
comunitário empenhado em dar continuidade a algumas tradições e singularidades
da Ilha de Paquetá, RJ, e o Grupo de Teatro São Gonçalo do Bação, constituído por
moradores do distrito rural de o Gonçalo do Bação, na cidade de Itabirito-MG, que,
devido as suas dinâmicas artístico-culturais, constitui-se como um grupo de Teatro
e Comunidade.
Palavras-chave
: Cidade. Patrimônio. Teatro. Comunidade. Memória.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Paulo Roberto Dias dos Santos. Graduado
em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Licenciatura em Português e Inglês (UFMG).
2
Doutora em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestra em Teatro (UNIRIO- 2005). Graduada em Licenciatura em Artes
Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO - 1996), professora do Curso de
Licenciatura em Teatro e do Programa de Pós - Graduação em Ensino de Artes Cênicas - Mestrado
Profissional (PPGEAC- UNIRIO). liliane.mundim@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0974822504254521 https://orcid.org/0000-0001-7770-3861
3
Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) (CAPES-REUNI-
2011). Mestre em Teatro (UNIRIO - CAPES - 2006). Pesquisador colaborador do CHAIA (U. Évora). Do CEMUD
(UEMG). Do Grupo de "Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana" (UNIRIO). Do IELT (UNL, Portugal).
ramonsaguiar@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/8561389675259367 https://orcid.org/0000-0001-8338-8351
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Popular culture and heritage: voices from the sea and the mountain echo
Abstract
The occupation and appropriation of urban space, in the artistic and aesthetic field,
are configured in a plural and multifaceted way; proving, more and more, the power
of space as a field open to experimentation. To broaden this dialogue, this article
aims to reflect on some issues that underlie these initiatives that use heritage in its
multiple dimensions - both material and immaterial -, and the interrelationships with
the actions and knowledge of popular culture. As a background, the works carried
out in two different contexts will be analyzed, however, with similar characteristics
regarding the relations between art, city and heritage: Coletivo Cantareira, which is a
community movement committed to continuing some traditions and singularities of
Ilha de Paquetá, RJ, and the Grupo de Teatro São Gonçalo do Bação made up by
residents of the rural district of São Gonçalo do Bação, in the city of Itabirito-MG,
which, due to its artistic and cultural dynamics, constitutes itself as a group of
Theater and Community.
Keywords
: City. Patrimony. Theater. Community. Memory.
Cultura y patrimonio popular: eco de las voces del mar y la montaña
Resumen
La ocupación y apropiación del espacio urbano, en el campo artístico y estético, se
configuran de manera plural y multifacética; demostrando, cada vez más, el poder
del espacio como campo abierto para la experimentación. Para ampliar este diálogo,
este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre algunas cuestiones que subyacen
en estas iniciativas que utilizan el patrimonio en sus múltiples dimensiones, tanto
materiales como inmateriales, y las interrelaciones con los haceres y saberes de la
cultura popular y ciudad. Como prácticas, fueran analizados los trabajos realizados
en dos contextos diferentes, pero con características similares en cuanto a la
relación entre arte, ciudad y patrimonio: el Colectivo Cantareira, que es un
movimiento comunitario comprometido con dar continuidad a algunas tradiciones y
singularidades da Ilha de Paquetá, RJ, y el Grupo de Teatro São Gonçalo do Bação,
integrado por vecinos del distrito rural de São Gonçalo do Bação, en la ciudad de
Itabirito-MG, que, por su dinámica artística y cultural, se constituye como un grupo
de Teatro y Comunidad.
Palabras clave
: Ciudad. Patrimonio. Teatro. Comunidad. Memoria.
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Muitas são as camadas que atravessam os processos criativos de grupos e
coletivos, cujas abordagens e metodologias são baseadas prioritariamente na
experiência viva e na memória coletiva. No caso do Coletivo Cantareira
4
, o
envolvimento dos participantes não se configura como algo fixo ou permanente,
acontecendo de maneira livre e espontânea. Nesse sentido, o coletivo está sempre
aberto aos que manifestem o desejo de colaborar ou fazer parte das encenações,
como atuantes. Esse modo de produção, que se processa por meio de encontros
presenciais ou até mesmo virtuais, vai sendo costurado em um passo a passo, por
meio de reuniões, ensaios e oficinas. Nestes, são criados, coletivamente, os
roteiros, os figurinos, as músicas que, de forma cooperativa e colaborativa, são
compartilhados, tendo os acordos coletivos como princípio, o que gera, assim,
espaços de voz e protagonismo para as singularidades dos atuantes.
No caso do Grupo de Teatro São Gonçalo do Bação, doravante chamado de
Grupo de Teatro, em seus primeiros espetáculos, o argumento inicial para a
construção dos textos dramáticos e mesmo a realização de ações culturais
diversas, o grupo recolhia histórias, memórias, vivências e contextos de pessoas
do distrito e sua comunidade. Os momentos de escuta eram organizados pelo
grupo em casas de familiares ou em espaços coletivos onde os narradores
(habitantes do distrito) se encontravam e, instigados pelo movimento de
rememorização, comentavam e se completavam narrativas. Ainda na atualidade,
todos e todas que tem alguma história para contar, são bem-vindos. Diferentes
famílias e gerações estão presentes. Não um único narrador. Contribuindo com
sua memória pessoal, os participantes vão construindo a memória coletiva de
episódios da comunidade. Segundo Walter Benjamin (1996, p.211),
4
Liliane Mundim é colaboradora e coordenadora do Coletivo Cantareira desde a sua fundação. O Coletivo
Cantareira foi criado no ano de 2009, na Ilha de Paquetá, por um grupo de moradores e amigos, que se
reuniu de maneira informal para discutir sobre alguns festejos da Ilha e daí em diante iniciou um processo
de recuperação, criação e atualização das tradições, memórias e histórias pertencentes ao acervo
patrimonial imaterial de Paquetá. Ver: Liliane Ferreira Mundim.
O espaço da cidade como indutor do jogo
teatral
. (Tese Doutorado em Artes Cênicas PPGAC - UNIRIO).
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A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os
acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica
no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades de forma épica.
Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. [...]
O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas
camadas artesanais.
Diversas ações do Grupo de Teatro são construídas nessa dinâmica de
reminiscências. A própria fundação do grupo em 1999 é motivada por esse
movimento e constitui a metodologia de criação do primeiro espetáculo intitulado
“A saga baçônica” (1999). Ele narra a fundação do distrito em 1740, narrativa
presente na oralidade e imaginário da comunidade. O Grupo de Teatro recolheu a
história em versões guardadas pelos mais velhos. Na ação de rememoração,
fagulhas do passado permeadas pelas vivências do presente motivaram o
espetáculo. Também, outros espetáculos foram criados e encenados nessa
dinâmica (Aguiar, 2008). O Grupo de Teatro é composto atualmente por 18
participantes entre crianças, adolescentes e adultos e está sempre aberto para
novos integrantes. Esse princípio também o caracteriza e legitima perante a
comunidade
5
. Atualmente, o Grupo tem desenvolvido espetáculos tendo como
temas questões pertinentes a contemporaneidade da comunidade. O distrito sofre
com a devastação ambiental e cultural características de atividades de mineração.
Realidade comum em muitos municípios das Minas Gerais.
6
No Coletivo Cantareira, a Ilha de Paquetá
7
é o mote de criação que transpassa
como temática principal e fundante. Algo especial reúne os participantes em um
mesmo objetivo: o amor pelo lugar. Essa relação, que pode ser tomada como
referência matricial, alimenta e instiga a busca por transformar experiências
baseadas nas vivências, histórias e memórias, tanto individuais como coletivas, em
performances. As intervenções ocupam a rua e interagem com o espaço
construído em diálogo com os elementos arquitetônicos em seus diferentes
5
Ramon Santana de Aguiar é colaborador do Grupo de Teatro desde a sua fundação. Ver: Ramon Santana
de Aguiar. “Memória e espaço: o Teatro comunitário de São Gonçalo do Bação” dissertação (mestrado
em Teatro). UNIRIO. 2006. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=110441
6
O Grupo de Teatro é reconhecido como “utilidade pública” do município (Itabirito). PL 1085/2003.
7
Bairro da cidade do Rio de Janeiro situado em ilha bucólica no fundo da Baía de Guanabara, com cerca de
5000 habitantes, com características bem diferentes do restante da metrópole.
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aspectos, tanto simbólicos como imaginários.
Pode-se dizer que, nessas imbricações, há algo que suscita o que o geógrafo
canadense Edward "Ted" Relph considera como o
espírito do lugar
8
, onde a
paisagem, a localização e o envolvimento pessoal passam a ser os elementos que
melhor definem a experiência com o lugar (Relph, 1980, p.150).
Outro fator relevante é que, na Ilha, historicamente, se perpetuam várias
gerações. As conexões tecidas pelas diversas histórias acabam por tornar esse,
um lugar de memória,
9
conceito apontado por Pierre Nora. Para o historiador, “[...]
a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido ela está
em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento [...]”.
Nora enfatiza que,
[...] os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não existe
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter
os aniversários, organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres,
estabelecer contratos, porque estas operações não são naturais [...] (Nora,
1993).
O trabalho do Cantareira tem como ponto de partida realizar suas
intervenções performáticas nos festejos populares que fazem parte do calendário
da Ilha, como, por exemplo, a Festa de São Roque e o Natal. Para a análise mais
específica, o recorte para este texto será o mais emblemático trabalho realizado
pelo grupo, que se configura como uma encenação de rua denominada Auto de
São Roque e está diretamente ligado ao festejo centenário mais popular da Ilha de
Paquetá: a Festa de São Roque.
8
Conceito abordado pelo, mais conhecido pelo livro Place and Placelessness, publicado pela primeira vez em
1976 e reeditado em 2010, é um relato fenomenológico de como os lugares são vivenciados e como estão
mudando. Foi um dos primeiros livros que examinou explicitamente a ideia de lugar e também um dos
primeiros estudos fenomenológicos em Geografia. Foi amplamente citado e descrito como um Clássico em
Geografia Humana em Progress in Human Geography, Vol. 24, 4, 2000, e
Classics in Human Geography
,
ed. P. Hubbard, R. Kitchen, & G. Vallentine, Sage, 2008. Foi traduzido para vários idiomas, incluindo
japonês, coreano e chinês . https://en.wikipedia.org/wiki/Edward_Relph
9
Lugar de memória é um conceito histórico posto em evidência pela obra
Les Lieux de Mémóire
, editada a
partir de 1984 sob a coordenação de Pierre Nora, formada por sete tomos, sendo o primeiro
Les Lieux de
Mémoire
, os três seguintes
La République
e posteriormente mais três volumes intitulados
Les France
. Essas
obras se tornaram referência para o estudo da história cultural na França.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lugares_de_mem%C3%B3ria
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Caminhos populares: festa, comunidade e religiosidade
Considerada como uma das mais tradicionais festividades da Ilha de
Paquetá, A Festa de São Roque se perpetua até hoje mobilizando a comunidade
local de forma significativa. Voltada para a representatividade do santo padroeiro
local, o festejo “se realiza no mês de agosto, na data de aniversário de morte do
santo, atraindo muitos visitantes. Em forma de quermesse, a festa acontece na
praça em frente à Capela de São Roque, construída no século XVII, em homenagem
ao santo. Os relatos sobre a festa comprovam sua notoriedade” (Mundim, 2016).
Entre as referências históricas, citamos:
A Festa de São Roque, realizada anualmente foi sem dúvida a mais
concorrida, tendo a ela comparecido por mais de uma vez o próprio
imperador D. Pedro II e a imperatriz, hospedados, segundo consta, no
Palacete Alambari (De Aquino & Zilbergerg, p. 1991, p.112).
10
O Auto de São Roque pode ser considerado como uma invenção do Coletivo.
Historicamente, apesar de se tratar de uma festa centenária, não se tem registros
de encenações artísticas com o caráter performático de um Auto.
Esteticamente, o trabalho se inicia em formato de Cortejo, que se desloca de
um extremo ponto da Ilha geralmente a saída se na Matriz Bom Jesus do
Monte, no Centro da Ilha - e caminha em procissão até o local do evento,
adentrando o local da festa, a Praça de São Roque.
10
De Aquino & Zilbergerg, 1991, p.112. In:
Coleção Bairros Cariocas
Paquetá: Memórias da Ilha 1991.
Departamento Geral de Patrimônio Cultural/Departamento Geral de documentação e Informação
Cultural/Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro/Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes.
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Figura 1 - Cortejo, tendo à frente os mascarados. Ilha de Paquetá, 2009
Acervo: Coletivo Cantareira.
Tomando um caráter performático, o grupo de atuantes, ao chegar à Praça
ocupa diferentes espaços, entre o geográfico físico da própria praça, como
também utiliza os equipamentos construídos, que são considerados como marcos
da Praça, como um antigo Poço, um Coreto, um Cruzeiro de Velas, todos situados
no entorno da Capela de São Roque. Os atuantes percorrem esses lugares e vão,
simultaneamente, desenvolvendo cenas de forma itinerante, acompanhados de
músicos e dançarinos, entre outros atores e artistas locais que fazem parte da
comunidade.
Os elementos arquitetônicos da Praça acabam por se tornarem palco e
cenário para a encenação, emprestando também seu valor histórico-cultural, cujo
simbolismo vem sendo construído ao longo do tempo; tanto para os que habitam
a Ilha, como também para os visitantes que, inúmeras vezes, identificam suas
particularidades. São, portanto, dotados de histórias e memórias e alguns fazem
parte do lendário popular da Ilha.
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Figura 2 - Capela de São Roque, Ilha de Paquetá
Acervo: Coletivo Cantareira.
Em São Gonçalo do Bação, as apresentações do Grupo de Teatro São Gonçalo
do Bação, sempre gratuitas, ocorrem em áreas públicas diversas, ao ar livre,
normalmente nos finais de semana. Preferencialmente é utilizado como
espaço
teatral
(Pavis, 2003, p.138) o adro da igreja católica. Segundo a tradição oral do
lugar, o distrito foi fundado por um bandeirante de nome Antônio Alves Baçon
devoto de São Gonçalo (século XVIII). O distrito localiza-se a 50 quilômetros da
colonial Vila Rica, atual Ouro Preto. Entre os moradores do distrito perpetua a
história de que, Antônio Alves, em pagamento a uma promessa, teria erguido uma
capela em homenagem a São Gonçalo (1740). Para determinar o lugar exato da
capela, Antônio Alves colocou uma imagem do santo no “lombo de um burro”.
Após ser
motivado
a andar a esmo, onde o burro parou foi o lugar escolhido para
erguer a capela.
11
A atual igreja, construída em 1924 e maior patrimônio
arquitetônico do distrito, encontra-se no mesmo lugar da capela de Antônio Alves
Baçon. [3]
11
Este é o argumento da primeira peça escrita e encenada pelo Grupo intitulada
A saga baçônica
(1999).
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Figura 3 - São Gonçalo do Bação. Vista parcial do distrito
Acervo: Grupo de Teatro São Gonçalo do Bação.
É importante destacar o papel da igreja católica no princípio da formação do
Grupo de Teatro. O distrito não tem padre residente. Isto confere, em algumas
iniciativas, maior autonomia para a comunidade. As “beatas” (muitas delas
narradoras das histórias encenadas pelo Grupo de Teatro) organizam as
festividades religiosas e comunitárias. Além disso, a igreja é local de reuniões da
comunidade para diversos assuntos. O espaço, que se localiza à frente da entrada
principal (no adro), foi eleito como o melhor local para as apresentações, além da
comodidade de retirar os bancos no interior da igreja para a plateia. A disposição
da plateia é em semi-arena, sem “palco”. A plateia está no mesmo nível dos atores.
No público se encontram vários cooperantes em diversos níveis na produção dos
espetáculos. Estão presentes alguns dos narradores iniciais - outros são atuantes,
pessoas que vêm da área rural e dos outros núcleos de moradias, especialmente
para a ocasião, turistas e sitiantes, familiares dos atuantes e outros membros da
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comunidade.
Os cenários, iluminação e sonorização atendem às necessidades do
espetáculo. Geralmente, os cenários recriam ambientes ou fachadas de casas do
próprio distrito criando, mais uma vez, a tênue linha entre ficção e realidade. Mas,
também, apresentações e cortejos em outros espaços urbanos do distrito. As
ruas e becos do distrito de origem colonial com ainda poucas casas com
arquitetura típicas do período, tornam-se espaços de encenações e outras
atividades artísticas. [4]
Desde a sua fundação, o Grupo de Teatro produziu dezenas de espetáculos,
festividades itinerantes e festivais de cultura.
Figura 4 - Espetáculo do Grupo de Teatro no adro da igreja
Acervo: Grupo de Teatro São Gonçalo do Bação.
Considerando que muitas das manifestações culturais estão ancoradas em
memórias coletivas e na prática da celebração de folguedos e festejos populares,
pode-se dizer que essas representatividades ainda são expoentes em diversas
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localidades. No caso do Brasil, país de forte influência europeia, estão geralmente
ligadas a algum evento local ou data comemorativa, nos moldes das festas
religiosas da Igreja Católica. Oriundas dos festejos religiosos do medievo e
influenciadas pela cultura cristã do século XIV, apresentam múltiplas estéticas e
têm, à frente da organização, diferentes poderes públicos e privados, entre os
quais os representantes das paróquias locais. Mas não só. Os cantos pretos
também atravessam os becos, ruas e edifícios de muitos pequenos povoados por
todo o Brasil.
A professora Maria Helena da Cruz Coelho (1998),
12
historiadora medievalista
portuguesa, pesquisadora dos festejos da Idade Média, nos conta que os
eclesiásticos não eram apenas figurantes da sociabilidade cristã dessa época, mas
faziam parte de outros convívios e se tornavam também abertos aos diversos
estratos sociais: “[...] a igreja é lugar da missa, de oração, de pregação, mas também
espaço, no seu interior ou exterior, onde se dança, representa, come, conversa e
discute” (Coelho, 1998, p.59). A partir das diversas intervenções ritualísticas de
caráter performático, que se utilizam do teatro para compor sua sedução e
catequese, os figurantes passivos dessas encenações passam a ativos, dando
início a eventos culturais, litúrgicos e comunitários que saem das naves e vai para
as ruas.
Como parte integrante desses fazeres comunitários, esses elementos se
inserem como uma evocação; ou seja, como uma prática dos homens medievais,
quando se entregavam à folia e ao convívio através das manifestações festivas; as
representações de imagens, músicas, através de suas cores e formas, sons
instrumentais e vocais são parte integrante desse contexto. Tais manifestações
podem vir a despertar outros sentidos e funcionam também como momentos de
descanso, de convívio, de festa, de diversão, variando em função dos espaços, do
tempo, das mentalidades e das categorias sociais (Coelho, 1998, p.47-48).
Nesse sentido, apesar de todo um aparato que envolve regras e hierarquias,
entre os coletivos palacianos, religiosos ou populares, em espaços abertos ou
12
Professora Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, diretora do Instituto de
Paleografia e Diplomática da mesma Universidade. Reunião de 4 estudos nascidos das conferências
realizadas no âmbito da Feira Medieval realizada anualmente em Coimbra, desde 1992. (Coelho, 1998)
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fechados, rurais ou urbanos, as festas suscitavam variadas atitudes de
comportamento, pois “na festa e convívio clivagens, mas também assimilações.
demarcações hierárquicas, mas também solidariedades. normas
disciplinadoras, mas também actos perturbadores” (Coelho, 1998, p.49).
Para os pesquisadores Tereza Caroline Lôbo e Carlos Eduardo Santos Maia,
fica notório que tais manifestações são lugares de interações específicas e
multiplicidade de trajetórias, onde os rituais, como também os modos como os
partícipes se colocam dentro da festa, se tornam repletos de múltiplos
significados (Lôbo & Maia, 2011).
Vale observar que o processo criativo do Cantareira, assim como do Grupo
de Teatro, estão inspirados por essa tradição litúrgica e intrinsecamente ligados à
igreja católica, porém, muito calcados em memória oral, ou seja, na corrente da
cultura popular. A pesquisadora Beti Rabetti (2000, p.4) afirma que,
A cultura popular hoje, poderia identificar-se também com aquele
conjunto de produções ou manifestações que, inseridas nos atuais
contextos de produção e comunicação de massa, mas que preservam
ainda ao menos no campo simbólico consistentes dimensões ou
aspectos de valores e características das "culturas tradicionais". A título
de síntese, pode-se recuperar aqui os elementos fundamentais daquelas
culturas, ligadas as correntes de longa duração (que envolvem
persistências e variações), à transmissão oral, à hegemonia da festa, à
mistura do sagrado e do profano, ao rústico, à eleição de praças e ruas
como espaços de intenso convívio entre manifestações artísticas
diversificadas, ao riso, à procura da manutenção de parâmetros coletivos
de produção, ao anonimato prevalecendo sobre a autoria, ao profuso em
detrimentos ao específico, à aparente
espontaneidade
.
Na análise das ações desenvolvidas pelo Coletivo e pelo Grupo de Teatro,
encontram-se características que se assemelham ao destacado por Rabetti: o
caráter comunitário, as festas religiosas e populares, as ações e encenações
acontecendo em lugares públicos e gratuitas. Acrescenta-se a apropriação de
repertório de origem no patrimônio imaterial bem como a ocupação de edifícios e
monumentos em interseção dinâmica com a cidade e seus habitantes. Também,
a maneira como são construídas as dramaturgias e cenas mescla lembranças
pessoais, familiares, referências bibliográficas do lendário de seus contextos. Esses
saberes também são articulados a pesquisas referentes às origens históricas,
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tanto religiosas como culturais, sendo que o forte imaginário do caráter festa se
torna um diferencial que atravessa a criação.
Pode-se afirmar, portanto que essas manifestações são dotadas de
teatralidade e espetacularidade. Para o professor e pesquisador Armindo Bião, a
espetacularidade pode ser tratada como a categoria dos jogos sociais onde o
aspecto ritual ultrapassa a rotina, como, por exemplo, os rituais religiosos, as
competições esportivas, os desfiles e comícios e as grandes festas (Bião, 2009,
p.164-165).
Essas práticas, grande parte adormecida e oprimida pelos poderes
hegemônicos, tendem a impor formatos que muitas vezes estão fora do contexto
das localidades. No caso da Festa de São Roque, historicamente essa já percorreu
diferentes caminhos no sentido de sua organização.
13
Nesse sentido, a festa vem
sendo organizada pelo poder público em colaboração com a Igreja Católica.
Na contramão desse caminho que vem dominando a cena dos eventos
habitualmente programados para as cidades, vemos que, tanto na Ilha de Paquetá
como também no distrito rural de São Gonçalo do Bação, essas práticas
comunitárias tentam burlar regras e modelos pré-determinados, abrindo brechas
de acesso diferenciadas, instigando e provocando outros olhares sobre a própria
localidade. Consequentemente, reinventado identidades e possibilitando o manejo
de tradições em diálogo com a contemporaneidade. Nessa dinâmica cultural, a
comunidade de Paquetá e do Bação, reforçam os laços de pertencimento e
identidade entre seus integrantes, seu patrimônio e cultura tradicional, numa
ciranda em que, possivelmente, “os sujeitos individuais e coletivos podem escapar
aos ditames do poder, às pressões da alienação, graças ao impulso dado pela
experiência da pluralidade, da expressão múltipla. A comunidade é esse sujeito
coletivo” (Paiva, 2003, p.26) promotor de ações culturais.
13
Desde meados da década de 80, o Auto vem sendo patrocinada pelo poder público da Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro, em articulação com o administrador Regional (Paquetá tem uma RA a XXI RA ligada ao
Centro da Cidade em colaboração com a Matriz Católica local.
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Cultura como espaço luminoso
Em reflexão sobre as relações possíveis entre produção artística e cidade,
Evelyn Lima (2019) amplia a perspectiva de uma ação cultural e em Teatro e
Comunidade nas suas relações com a infraestrutura urbana e suas contradições.
Lima resgata os conceitos urbanos de área luminosa e área opaca (Milton Santos,
2000 apud Lima, 2019, p. 130) em interseção com as definições de estratégia e
tática de Certeau (2008). Em seu texto, Lima sugere que diversas produções de
características popular e comunitário têm sugerido um movimento de resistência
às produções da
sociedade do espetáculo
. Os eventos de estética popular
possibilitam lastros que extrapolam o objeto artístico. O movimento provocado
nas mentalidades dos envolvidos pode tornar-se poderoso alicerce de
reconhecimento identitário, de constatação da diversidade cultural, bem como a
promoção de desdobramentos sociais e culturais.
Para além de espetáculos de teatro e atividades afins, o Grupo de Teatro São
Gonçalo do Bação promove diversos eventos culturais com destaque para os
“Festivais de Inverno” que acontecem desde o ano 2000. Os festivais acontecem
no mês de julho com oficinas, exposições e espetáculos que valorizam a cultura
tradicional, artes do fazer (Certeau, 2008) nas mais diversas áreas: artesanato,
culinária, música, dança, teatro, artes visuais e educação, tendo os moradores do
distrito como público-alvo. Também, os festivais viabilizam apresentações
artísticas e oficinas com profissionais de outros grupos e cidades promovendo um
justo intercâmbio e oportunizando aos membros do Grupo de Teatro contextos de
aprendizagem e fruição.
A realização dos festivais se justifica na demanda por novos conhecimentos
artísticos e de entretenimento e na possibilidade de agregação de sua comunidade,
contribuindo para a discussão de novos rumos e temas para o trabalho artístico
do Grupo de Teatro ou simplesmente possibilitando à comunidade em geral o
acesso a bens culturais.
Nesses 20 anos o grupo conseguiu realizar 17 festivais sendo o último em
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julho de 2019
14
. Na maioria das edições, houve poucos recursos financeiros. Quando
houve festival, os recursos foram originários de doações, arrecadações diversas,
venda de material promocional como camisetas etc. Em alguns casos, parcos
recursos públicos foram destinados ao grupo. Houve, também, parcerias com
outros grupos e projetos culturais da região. Na sua grande maioria, a realização
dos festivais se através de voluntários, pessoas da comunidade, artistas de
outros locais, oficineiros etc. Também, houve doações de comerciantes do distrito
e da sede, Itabirito.
Nos festivais realizados, o grupo conseguiu mobilizar e produzir
aproximadamente duzentas oficinas nas mais diversas áreas artísticas e
patrimoniais, bem com a realização de um número igual de espetáculos teatrais
de diversos grupos convidados para além dos espetáculos do Grupo de Teatro.
Também os espaços públicos do distrito tornam-se objeto e cenário para muitos
eventos dos festivais. Casas de particulares, sítios e fazendas se tornam ateliês
para algumas oficinas.
Sempre, no último dia do festival, são realizadas mostras dos resultados das
oficinas para a comunidade e participantes. Isso origina novos espetáculos,
apresentações diversas, mostras de artesanatos, degustação culinária etc. Essa
ação reforça o compromisso do Grupo de Teatro e dos festivais com o fazer
artístico e o fazer popular. Mas, principalmente, o compromisso que une aquela
comunidade: sua memória e sua identidade. [5]
As ações do Grupo de Teatro, mesmo diante do atual quadro de
descaracterização cultural do lugar, resultado da fragmentação cultural dos povos
na "modernidade tardia" (Hall, 2005) e apesar da predominante invasão tecnológica
dos séculos XX e XXI, encontram uma forma própria de, por um lado, perpetuar a
cultura tradicional e popular, bem como oferecer novas e diferentes referências
culturais e identitárias. Por outro, na atualidade, apresentam e debatem temas de
interesse da comunidade. Nessa dinâmica, o Grupo de Teatro e a
comunidade/público vão forjando seus próprios percursos culturais, seguros da
sua identidade em meio a profusão de informações e massificações impostas pelo
14
Para visualização da programação do festival 2019: https://www.facebook.com/festivalinvernosgb
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mundo globalizado.
Figura 5 - Grupo de Teatro São Gonçalo do Bação (2010). Nesta foto estão vários
componentes da constituição original do Grupo
Acervo: Grupo de Teatro São Gonçalo do Bação.
Assim como a Festa de São Roque do Coletivo Cantareira, uma ação clara de
resistência cultural ou, uma "tática" na acepção de Michel de Certeau (2008). Pode-
se dizer que o Auto de São Roque, nesses mais de dez anos de existência, vem
mobilizando a comunidade no sentido de também repensar o próprio modelo
implementado na festa, a partir da organização do evento pelo Estado e pela Igreja.
O Coletivo, em sua participação de cunho performático, tem feito a diferença
como intervenção artística fora dos padrões convencionais, geralmente
encontrados em festejos dessa natureza. O que Certeau (2008) considera como
tática, que são ações implementadas pelos grupos minoritários ou populares onde
se criam maneiras próprias de assimilar e modificar as estratégias oficiais em suas
práticas cotidianas.
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Figura 6 - Coletivo Cantareira
Acervo: Coletivo Cantareira. Ilha de Paquetá, 2009.
A isso se somam as projeções que são realizadas na dimensão do coletivo,
do social e do político enquanto proveniente da pólis em suas dimensões de
tempo, espaço, memória e luminosidade. O espaço como lugar praticado (Certeau,
2008). Nesse sentido, o fazer cultural, de cunho popular, em suas práticas sociais
e coletivas ressignificam e atualizam as memórias, dando aos espaços outros
sentidos, que podem atravessar o tempo em sua materialidade e imaterialidade.
Identidade e patrimônio em processo colaborativo
Essas diferentes maneiras de utilização, construídas de forma cooperativa e
processual, afirmam a importância do fazer comum e ordinário como potência
que aponta o papel da sociedade civil como construtora de sua própria história,
protagonista e produtora de cultura. Essa afirmativa é enfatizada pelo Instituto do
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Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
15
, que considera o patrimônio
cultural imaterial como:
[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas
junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes
são associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os
indivíduos reconhecem como parte integrante de seu Patrimônio Cultural.
Transmitido de geração a geração, o Patrimônio Cultural Imaterial é
constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu
ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, o que gera
um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para
promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
(Iphan, http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/872).
Atualizar a memória por meio da relação com o patrimônio material e
imaterial contribui para que a apropriação seja feita de forma viva e pulsante e em
dinâmica permanente. E ao que parece, o Coletivo Cantareira e o Grupo de Teatro
São Gonçalo do Bação estão nesse movimento. Coerente com as premissas
defendidas pela professora e pesquisadora francesa Idelette Muzart
16
, quando
reconhece que, de acordo com vários filósofos ou historiadores, pedagogos e
pensadores, a memória não pertence ao passado, e sim ao presente.
Para referendar essa reflexão, o conceito de patrimônio imaterial apontado
pela UNESCO nos diz que:
As práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas
junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes
são associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os
indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.
Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em
geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em
função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua
história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e
contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à
criatividade humana (Viveiros de Castro e Fonseca, 2003).
15
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é uma autarquia federal vinculada ao Ministério
do Turismo que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Cabe ao Iphan proteger e
promover os bens culturais do País, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e
futuras. http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/872. O Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, de
acordo com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada pela Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 2003 e ratificada pelo Brasil em
2006.
16
Santos, 2009.
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Entendendo, portanto, memória e cultura como campos movediços,
impermanentes e fugazes, pode-se afirmar que o fazer coletivo comunitário e suas
inter-relações tendem a formar um caleidoscópio de memórias, histórias,
simbologias, signos e rituais que são produzidos simultaneamente.
O Grupo de Teatro e o Coletivo Cantareira, na dinâmica da produção de seus
trabalhos, contribuem para criar uma sensação de segurança para si e para a
comunidade/público no momento em que protege e valoriza uma identidade
comum a todos e contribui para o alargamento de suas referências culturais.
Contudo, não é criada uma trincheira, mesmo porque no mundo globalizado isso
é impossível. Mas cria-se um referencial de localização cultural nesse mesmo
mundo globalizado. As ações culturais mantêm um movimento de mão dupla
entre a cultura local guardadas nas memórias de sua comunidade e os possíveis
encontros culturais e artísticos proporcionados pelos eventos artísticos e culturais.
E os cortejos vão deixando suas pegadas…
Preservar, recuperar e atualizar o patrimônio imaterial como ato de
resistência, estreita os vínculos de pertencimento, integrando o sujeito ao habitat
em seus aspectos, tanto concretos como imaginários. Esses laços possibilitam um
olhar mais ampliado para a tradição (do latim
traditio, tradere
= entregar, passar
adiante), cujo conceito, geralmente conhecido como “[...] a continuidade ou
permanência de uma doutrina, visão de mundo, costumes e valores de um grupo
social ou escola de pensamento” (Japiassú & Marcondes, 1993, p.269) pode ganhar
outros contornos.
Muitas vezes, a maneira de entendimento desse conceito gera a sensação de
que muitas das manifestações permanecem, de certa forma, cristalizadas no
tempo e vão sendo passadas através das relações de convivência. Na contramão
desse pensamento, o filósofo e medievalista francês, Paul Zumthor
17
nos ilumina
dizendo que o conceito de tradição pode ser visto como algo em movimento e
17
Paul Zumthor (Genebra, 5 de agosto de 1915 Montreal, 11 de janeiro de 1995) foi um importante medievalista,
crítico literário, historiador da literatura e linguista suíço.
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permanente dinâmica, visto que são condições inerentes à cultura e vão para além
desses elementos. Zumthor enfatiza que a cultura é
[...] um conjunto - complexo e mais ou menos heterogêneo, ligado a uma
certa civilização material de representações, comportamentos e
discursos comuns a um grupo humano, em um dado tempo e espaço.
Quanto ao seu uso, surge como uma faculdade pertencente a todos os
membros do grupo, que passam a produzir signos, como também passam
a interpretá-los de uma mesma maneira. O que à prática cultural um
fator de unificação das atividades sociais e individuais, possibilitando,
portanto, que os participantes do grupo tomem as rédeas do seu destino
coletivo (Zumthor, 2010, p. 66).
18
Nessa perspectiva, considerando que o espaço urbano como locus de
convivência e trocas artísticas culturais, foco dessa discussão, é um campo fértil
e poroso por onde perpassam os diferentes atravessamentos que compõem sua
ocupação, vale dizer que o caso das festas, eventos e festejos populares que
ocupam esses espaços são percebidos em diferentes temporalidades e nuances,
visto que a cidade é pública, mas também é privada, muitas vezes sitiadas,
dominadas por diversos poderes hegemônicos. Essas manifestações populares
perfazem a construção dos saberes e fazeres comuns em diferentes camadas
identitárias.
Além desses fatores, mediante as novas tecnologias que influenciam
comportamentos e costumes, a utilização da rua para o lazer e para a diversão
vem, de certa maneira, perdendo gradativamente muito de seu significado e força.
Tanto no que tange aos aspectos sociais e culturais, como simbólicos e poéticos,
as particularidades e singularidades identitárias e locais vão perdendo espaço ao
longo do tempo para essas configurações de cunho muitas vezes efêmeras.
Priorizar um fazer coletivo e cooperativo, de forma a ocupar e se apropriar
dos espaços públicos, tornando-os
espaços praticados
(Certeau, 2008), permite
que esses espaços passem a ser pertencentes ao habitante, intensificando
também a ideia do espaço em si como um dos mais fortes e potentes indutores
de criações múltiplas e coletivas.
18
As referências relativas ao livro citado do autor, Introdução à Poesia Oral, foram todas baseadas na edição
traduzida e lançada pela UFMG, em 2010. Porém, a primeira edição, pela Editions du Seuil, data de 1983.
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As ações culturais do Coletivo Cantareira e do Grupo de Teatro São
Gonçalo do Bação ressignificam os espaços públicos de suas comunidades.
Constroem laços e constituem identidades que transversalizam o tempo e espaço.
Os espectadores presentes aos eventos citados neste artigo, no ato da assistência
e resistência, possivelmente se percebem como construtores integrantes do
patrimônio coletivo. Por consequência, tornam-se agentes históricos, detentores
de saberes que potencializam as relações e apropriações de tempo, espaço e
patrimônio.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
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PPGT
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