Anjo Negro
, de Nelson Rodrigues: a caracterização do personagem Ismael
Mayara Nunes da Silva
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-29, dez. 2022
mas que por se rebelar contra Deus, querendo ser como Ele e, também, como
podemos entender, negando sua condição de anjo, foi expulso do céu. Nesse
sentido, entendemos que Ismael, de modo semelhante, por renegar a sua cor e
querer ser branco, foi amaldiçoado pela mãe, tornando-se um homem maldito e
condenado a viver nas trevas de seu próprio conflito interior, o qual levou o
personagem a agir de forma completamente maldosa e violenta.
Assim, Ismael, como já dito anteriormente, na estreita relação que mantinha
com o ambiente em que morava, quanto mais solitário ficava, mais os muros de
sua casa aumentavam e, da mesma maneira, a escuridão do lugar; chegando ao
ponto de, no fim da história, pesar sobre a casa do personagem uma noite
incessante. Ou seja, é como se Ismael, ao fechar-se cada vez mais em sua solidão
e, em seu conflito interno, murasse a si próprio, privando-se e fugindo, não apenas
do mundo, mas, sobretudo, das relações conflitantes da sociedade entre negros e
brancos, da qual decorre várias atitudes preconceituosas e cruéis.
Consideramos que o conflito interno vivido por Ismael (o qual, como já
dissemos, estava relacionado à cor de sua pele e motivava suas ações na peça)
reflete, certamente, os conflitos raciais e preconceituosos que ele enfrentava na
sociedade, já que “[...] detrás das motivações individuais dos personagens em
conflito, frequentemente, é possível discernir causas sociais, políticas ou
filosóficas” (Pavis, s.d., apud, Pallottini, 1989, p.86).
É só no momento final da peça que Ismael, pela primeira vez, afirma
explicitamente ter sofrido preconceito racial, revelando, assim, as relações
conflitantes entre negros e brancos. Ao descobrir, no segundo ato, que Virgínia
estava grávida, Ismael resolve esperar a criança nascer para matá-la e se vingar
da esposa. No entanto, como não nasce um menino (que era o que Virgínia queria,
pois sua vingança só seria possível se ela vivesse o “amor” de uma mulher com o
por exemplo, pode-se considerar tal contribuição e influência a partir do poema épico
Paraíso Perdido
(1667),
do poeta inglês John Milton, o qual narra as consequências e os desafios enfrentados pelos anjos decaídos
após a rebelião liderada por Lúcifer no céu, bem como as armações engendradas por este com o propósito
de conduzir Adão e Eva à desobediência. Vale considerar ainda que além do imaginário cristão, o mito
luciferiano também se constituiu por meio das influências da mitologia grega, o que demonstra a sua
configuração pré-cristã. Dessa forma, é possível aproximar Lúcifer das seguintes figuras mitológicas:
Prometeu, Eósfero, Héspero e Hespérides (Ferraz, 2014). Assim como o anjo de luz, estes personagens se
empenharam em buscar uma sabedoria que lhes era superior e proibida, o que culminou em muitos
infortúnios sobre eles.