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Trilogia Sul Invertido: a criação de textos
teatrais a partir de olhares do sul do
Rio Grande do Sul
Fernanda Vieira Fernandes
Mario Celso Pereira Junior
Para citar este artigo:
FERNANDES, Fernanda Vieira; PEREIRA JUNIOR, Mario
Celso. Trilogia Sul Invertido: a criação de textos teatrais
a partir de olhares do sul do Rio Grande do Sul.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0108
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Fernanda Vieira Fernandes; Mario Celso Pereira Junior
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Trilogia Sul Invertido: a criação de textos teatrais a partir de olhares
do sul do Rio Grande do Sul
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Fernanda Vieira Fernandes
2
Mario Celso Pereira Junior
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Resumo
Este artigo discorre sobre o ponto de partida para a criação dos textos teatrais
da Trilogia Sul Invertido: a região sul do estado do Rio Grande do Sul. Através
da observação das três peças e de suas respectivas gêneses, apresenta-se a
forma como este pano de fundo aparece nas obras. A coletânea, escrita por
Ingrid Duarte, Mario Celso e Thalles Echeverry, docentes egressos da
Universidade Federal de Pelotas, foi lançada durante a pandemia da COVID-
19, com recursos advindos da Lei Federal n.º 14.017 (Lei Aldir Blanc). O trabalho
reflete ainda sobre a virada do olhar para além da capital, voltando-se a
cidades localizadas fora do eixo metropolitano, e demonstra a importância
da criação de espaços de formação e fomento à escrita teatral, em especial
para novos autores.
Palavras-chave
: Trilogia Sul Invertido. Texto teatral. Região Sul. Teatro da
região Sul. Fomento à dramaturgia.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada pela própria autora, Fernanda Vieira Fernandes, por ter
mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
2
Estágio de doutorado-sanduíche pela CAPES, na Université Paris 3 - Sorbonne Nouvelle. Doutora em Estudos
da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Estudos da Literatura
(UFRGS). Especialidade de Literaturas Estrangeiras Modernas, ênfase de Literaturas Francesa e Francófonas
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS. Graduação em Artes Cênicas (UFRGS). Professora
adjunta do curso de Teatro-Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
nvnandes@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5416511917003234 https://orcid.org/0000-0003-4488-9713
3
Mestrando em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) - Bolsista CAPES. Licenciado em Teatro pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Ator,
dramaturgo, dançarino e artista circense com especialidade em malabarismo e clown.
mariojunior.arte@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9078593522783253 https://orcid.org/0000-0003-3002-5228
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Inverted South Trilogy: creation of theatrical texts based on
perspectives of the south region of Rio Grande do Sul
Abstract
This article discusses the starting point for the creation of the theatrical texts
for the Inverted South Trilogy: southern Rio Grande do Sul, a Brazilian state.
By observing the three plays and their respective genesis, it is possible to see
how this region is used as the background of the works comprising the trilogy.
The collection, written by Ingrid Duarte, Mario Celso, and Thalles Echeverry,
professors graduated from the Universidade Federal de Pelotas, was
launched during the COVID-19 pandemic with resources granted according to
Federal Law n.º 14017 (Aldir Blanc Law). This trilogy highlights a change in
perspective which goes beyond the capital of the state to address cities
located outside the metropolitan areas, and demonstrates the importance of
creating spaces for training and incentive to writing of plays, particularly to
new authors.
Keywords
: Inverted South Trilogy. Theatrical text. South region. South region
theater. Incentive to dramaturgy.
Trilogía Sur Invertido: la creación de textos teatrales a partir de
miradas del sur de Rio Grande do Sul
Resumen
En este artículo se discute el punto de partida para la creación de los textos
teatrales de la Trilogía Sur Invertido: la región sur del estado de Rio Grande
do Sul. A través de la observación de las tres piezas y de sus respectivas
génesis, se presenta la forma en que tal marco aparece en las obras. La
recopilación, escrita por Ingrid Duarte, Mario Celso y Thalles Echeverry,
docentes egresados de la Universidad Federal de Pelotas, se lanzó durante la
pandemia de COVID-19, con recursos provenientes de la Ley Federal n.° 14.017
(Ley Aldir Blanc). En este trabajo también se reflexiona sobre el giro de la
mirada más allá de la capital, hacia ciudades ubicadas fuera del eje
metropolitano, y se demuestra la importancia de crear espacios para la
formación y el fomento de la escritura teatral, especialmente para nuevos
autores.
Palabras clave
: Trilogía Sur Invertido. Texto teatral. Región Sur. Teatro de la
región Sur. Fomento a la dramaturgía.
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Uma historiografia (ainda) em devir
Partindo da relevância (e por que não urgência?) de voltar os olhos para
produções de outras regiões, localizadas fora do eixo metropolitano e, nesse caso
específico, para um território de fronteira nacional, este artigo aborda a iniciativa
do projeto
Trilogia Sul Invertido
. A coletânea de textos teatrais inéditos escrita por
Ingrid Duarte, Mario Celso e Thalles Echeverry teve como ponto de partida as
histórias, culturas, cidades e especificidades do sul do Rio Grande do Sul. Além da
apresentação da proposta do projeto e das peças, observa-se como o pano de
fundo da localidade aparece nos textos e reflete-se sobre a importância da
formação e do fomento de novos artistas do interior.
Ao consultarmos livros sobre a história do teatro brasileiro, em geral, nos
deparamos com um recorte muito específico, que não conta de forma
equilibrada das cinco regiões do país. É evidente que a imensidão territorial e
cultural do Brasil não possibilitaria que fossem retratadas todas elas. Contudo, há
que se salientar uma predominância massiva da região Sudeste como a
historiografia oficial em muitas publicações (por exemplo:
Panorama do teatro
brasileiro
(2004, 6 ed.), de Sábato Magaldi;
O teatro brasileiro moderno (
2009, 3
ed.), de Décio de Almeida Prado;
Pequena história do teatro no Brasil
(1986), de
Mario Cacciaglia;
História do teatro brasileiro vol. 1
(2012) e
vol. 2
(2013), dirigidos
por João Roberto Faria, entre outros). Se há menção a produções fora desse eixo,
é pontual. Essa noção acaba limitando o olhar para uma região única em
detrimento das outras, tomando como referência nacional o que também deveria
ser tido como regional.
A busca por publicações acerca da história do teatro do Rio Grande do Sul
revela que pouco material é encontrado e/ou está organizado. Em artigo publicado
no ano de 2014, Taís Ferreira apontava para a urgente necessidade de que o poder
público estadual e poderes municipais estruturassem acervos documentais para
pesquisas sobre a produção cênica no estado, possibilitando que estudos inéditos
surgissem e contribuíssem ao registro dessa historiografia. Na ocasião, Ferreira
intitulou o seu trabalho
Pelo devir de uma historiografia do teatro gaúcho
(2014) e
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sinalizou que aquele não era um ensaio definitivo, e sim um primeiro passo de
escrita de novos textos sobre a historiografia do teatro gaúcho, uma tarefa em
processo:
O objetivo primeiro deste ensaio é apontar as lacunas, espaços em
branco e/ou vazios na própria escrita desta história, e não somente os
acontecimentos desta produção cênica brasileira, específica e localizada
espaço-temporalmente, que é rica, variada e profícua. O desejo deste
ensaio é mapear aquilo que foi feito, na tentativa de apontar novas e
múltiplas possibilidades de investigação histórica que se abrem a partir
desta análise inicial (Ferreira, 2014, p.238).
Oito anos depois, não são muitos os estudos que versam
historiograficamente sobre a produção teatral do Rio Grande do Sul e, quando
existem, costumam ser específicos (sobre grupos, artistas, festivais etc.), pouco
divulgados (trabalhos de conclusão de curso, por exemplo) e sem dar conta de
pensar de forma ampla em uma possível história do teatro gaúcho.
Para além do fato da historiografia teatral da região Sul do Brasil receber
poucos olhares, mesmo dos seus, observamos nas poucas ocorrências
encontradas que o destaque é para a capital, Porto Alegre. A primeira tentativa de
escrever especificamente sobre a história do teatro no RS foi de Athos Damasceno
Ferreira, em 1956, com a obra
Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no século
XIX
, que se concentra no panorama porto-alegrense (Ferreira, 2014). É evidente que
a condição de capital maior visibilidade à cidade. Ademais, são oriundos de
os primeiros registros de produções cênicas e o número de artistas, grupos teatrais
atuantes, escolas de teatro, edifícios teatrais e festivais é mais expressivo na
capital.
Juliana Demori e Clóvis Massa (2020) também observam a escassez de
material bibliográfico para o estudo descentralizado de grupos e produções
teatrais fora do eixo da metrópole. Segundo os autores, a abordagem
historiográfica se debruça justamente em desenvolver conhecimento histórico
sobre um dado tema, em um espaço-tempo definido, considerando “[...] a
historicidade dos objetos estudados, pois sua prática entrelaça passado e
presente, refletindo sobre o objeto constituído a partir dos caminhos que o
constituíram” (Demori; Massa, 2020, p.334).
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Faz-se necessário cada vez mais descentralizar o olhar para outras regiões
dos estados. No Rio Grande do Sul, em busca dessa visibilidade a nomes de outros
lugares, temos
O teatro no Rio Grande do Sul
(1999), de Lothar Hessel, e
Dicionário
de autores da literatura dramática do Rio Grande do Sul
, escrita em 2014 por
Antenor Fischer. O livro de Hessel apresenta um mapeamento breve do
desenvolvimento das atividades teatrais em 44 cidades gaúchas, do século XVIII
até a primeira metade do século XX. O segundo título, embora centrado no
levantamento de autores e autoras de textos teatrais, indica nomes que vão além
dos porto-alegrenses.
Em Pelotas, segundo o Projeto pedagógico do curso de Teatro-Licenciatura
Noturno (2022) da Universidade Federal de Pelotas, o primeiro registro de
atividades cênicas data de 1831, ano em que surgiu um grupo estudantil na
Sociedade Patriótica dos Jovens Brasileiros. Outrossim, realizavam-se
apresentações amadoras em espaços fechados e pequenos teatros adaptados
(Hessel, 1999). Em dezembro de 1833, inaugurou-se o Teatro Sete de Abril, que
inseriu Pelotas na rota de grandes companhias, pois as turnês tinham como pontos
extremos as cidades do Rio de Janeiro e Buenos Aires, estando a cidade gaúcha
localizada estrategicamente entre elas. Muitos espetáculos da capital carioca e da
Europa fizeram temporada em Pelotas. Posteriormente, outros teatros foram
construídos na cidade e em suas vizinhas, como Bagé, Jaguarão e Rio Grande.
Dando um salto temporal para o século XX, observa-se a partir dos anos de
1960 um importante movimento teatral com festivais, como aqueles organizados
pela Sociedade de Teatro de Pelotas (STEP). Nos anos de 1980 e 1990, muitos
grupos amadores atuavam fortemente em bairros, comunidades, galerias, feiras e
salas. Dois nomes da escrita dramatúrgica naturais da zona sul do estado se
destacaram: Vera Karam e Valter Sobreiro Júnior. Em 1995, surgiu o Núcleo de
Teatro da UFPel, projeto extensionista que visava o desenvolvimento de atividades
teatrais (Curso de Teatro-Licenciatura Noturno, 2022). Todavia, a região sul do
estado carecia de uma formação em nível superior na área. Assim, em 2008, surgiu
o curso de Teatro-Licenciatura, vinculado ao Centro de Artes da UFPel, atendendo
a esta demanda e formando professores para a rede básica de educação. O curso
se consolidou, muitos estudantes concluíram a sua graduação e seguiram seus
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caminhos, seja enquanto artistas organizados em companhias ou solo, seja
atuando em escolas e/ou outros tipos de instituições. Exemplo de jovens
profissionais egressos da UFPel são os três dramaturgos da
Trilogia Sul Invertido
:
Ingrid Duarte, Mario Celso e Thalles Echeverry.
Trilogia Sul Invertido: os olhares do sul do Sul
Em pleno turbilhão causado pela crise sanitária da COVID-19, que assolou o
mundo, planejaram-se ações para minimizar os estragos no âmbito da cultura e
em outros setores. Um deles foi advindo da Lei Federal n.º 14.017 (Lei Aldir Blanc),
de 29 de junho de 2020, que garantia uma verba destinada às ações culturais
realizadas em todo o Brasil, sendo fracionada para cada estado. Com esse recurso,
em 2021, a Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (SEDAC), junto
com a Fundação Marcopolo, lançou o edital
Criação e Formação - Diversidade das
Culturas
(2021), viabilizado pelo repasse do governo gaúcho. Esse edital tinha como
objetivo a seleção de projetos culturais que desenvolvessem atividades artísticas
em quaisquer linguagens e que tangenciassem ao menos um dos seguintes vieses:
pesquisa (desenvolvimento de saberes, ferramentas e tecnologias no campo da
cultura), criação (produção de objetos e obras artísticas), formação (estímulo ao
surgimento de novos agentes culturais, ações educativas e/ou formativas) e
qualificação (aprimoramento dos profissionais da área, ampliando a cena cultural)
(Fundação Marcopolo; SEDAC, 2021).
Dentre os projetos contemplados estava o Trilogia Sul Invertido, idealizado
por Mario Celso Pereira Junior, ator, diretor, dramaturgo, professor de teatro e um
dos autores deste artigo. A ação principal da proposta era a composição de um
laboratório de criação dramatúrgica, com o objetivo de elaborar três textos teatrais
inéditos feitos por três jovens dramaturgos que nunca haviam publicado suas
obras e que fossem residentes na região sul do estado. As escritas deveriam ter
um mote em comum: as histórias, especificidades e culturas das cidades da
extremidade sul do país. Cada autor tinha a autonomia de escolha e a ideia era
que esses traços aparecessem ou nas personagens, ou na trama, ou como cenário,
ou por meio de lendas, histórias orais, lembranças, ou seja, um grande leque de
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possibilidades (Pereira Junior, 2021b). O propósito era que o laboratório gerasse
um livre espaço de compartilhamento, de troca entre os artistas, circulando os
pensamentos, instigando e desafiando as escritas.
Para a execução do laboratório foram convidados: Thalles Echeverry, ator,
diretor, professor de teatro, dramaturgo e fundador da VOCÊ SABE QUEM Cia de
teatro, e Ingrid Duarte, mulher negra, lésbica, atriz, diretora, dramaturga e arte
educadora, além do proponente Mario Celso. Antes do projeto, nenhum deles tinha
peças publicadas. O intuito foi estimular a profissão de quem escreve para teatro,
em especial para aqueles que são iniciantes e que moram distante da capital.
As criações foram reunidas em um único documento, uma coletânea, um e-
book hospedado em site de livre acesso
4
, ampliando os horizontes de alcance e
facilitando a propagação. Para o lançamento das peças, foram realizadas leituras
dramáticas virtuais em parceria com o projeto de pesquisa
Leituras do drama
contemporâneo
, da UFPel, coordenado pela Profa. Dra. Fernanda Vieira Fernandes,
que atuou voluntariamente como consultora dos três artistas e também é autora
deste artigo. O objetivo das leituras, para além do ritual de estreia dos textos, foi
difundir as obras por outros meios, proporcionando uma relação outra com as
peças.
O título do projeto,
Trilogia Sul Invertido
, teve como inspiração a obra do
artista uruguaio Joaquín Torres García, a
América Invertida
, feita em 1943, como
também a perspectiva sustentada por ele em sua conferência
La Escuela del Sur
(1944). Nela, Torres García enfatizou o pensamento de que o Sul teria que ser
considerado e visto como um Norte. Com essa tomada de decisão, ele redesenhou
o mapa da América do Sul, invertendo-o, destacando sua valorização para a parte
Sul. A representação cartográfica é formada por uma visão de mundo e,
consequentemente, molda a maneira como ele é visto. Torres García inferia que:
Por eso ahora ponemos el mapa al revés, y entonces ya tenemos justa
idea de nuestra posición, y no como quieren en el resto del mundo. La
punta de América, desde ahora, prolongándose, señala insistentemente
el Sur, nuestro norte. Igualmente nuestra brújula: se inclina
irremisiblemente siempre hacia el Sur, hacia nuestro polo. Los busques,
4
O e-book está disponível em: https://trilogiasulinverti.wixsite.com/textosteatrais/e-book. Acesso em: 19 ago.
2022.
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cuando se van de aquí, bajan, no suben, como antes, para irse hacia el
norte. Porque el norte ahora está abajo (Torres García, 1944, p.213, grifo
do autor).
Partindo do pressuposto que tal perspectiva causa intencionalmente uma
interpretação do que é norte ou sul, o projeto Trilogia Sul Invertido se aventurou e
ousou inverter o mapa do Rio Grande do Sul, sublinhando a visão que estava
propondo, posicionando um outro olhar para a posição geográfica da região e
modificando o ponto de vista do está abaixo ou acima física, simbólica e
emblematicamente (Pereira Junior, 2021b).
Figura 1 - Desenho de capa da Trilogia Sul Invertido
Fonte: Instagram @trilogiasulinvertido (Arte de Mario Celso)
5
Torres García “compõe uma reunião de elementos simbólicos de desenho
simplificado e rústico, que intencionam despertar a ideia de atemporalidade e de
entendimento universal” (Sales, 2016, p.160). Mario Celso trouxe o mesmo princípio
5
Disponível em: https://www.instagram.com/p/COLzYBlDuTh/?utm_source=ig_web_copy_link.
Acesso em: 17 ago. 2022.
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para sua releitura e trabalhou com traços simples, elementos de fácil
reconhecimento, capazes de comunicar sem dificuldades. A temática das escritas
circunda as cidades do sul, mais especificamente Pelotas, Rio Grande e Jaguarão,
localizadas à margem do estado, em região fronteiriça, de onde falam e para onde
se voltam os olhares dos três dramaturgos, pois, como apontado pelo artista
uruguaio: “Nuestra posición geográfica, pues, nos marca
un destino
(Torres García,
1944, p.215, grifo do autor).
Na sequência, observaremos que a supracitada região gaúcha tem diferentes
facetas nos textos teatrais da coletânea, desviando da imagem estereotipada que
se possa ter no que se refere ao gaúcho, suas histórias e culturas. As criações
tocam, de certa forma, temas universais, como a solidão, o amor, a amizade e a
família. O caráter regional está entremeado, intrínseco, “está en todas partes. [...]
Y tal carácter no está en el mate, ni en el poncho, ni en la canción: es algo más
sutil, que todo lo satura y que tiene la misma claridad, la misma luz blanca de la
ciudad” (Torres García, 1944, p.215).
Dengô: o encontro entre Aysha e Gazânia, de Ingrid Duarte
Observar o cotidiano e as pessoas que circulam, ouvir os barulhos dos
vizinhos, identificar os cheiros das coisas, assimilar as cores do entorno… Essas
são práticas que nem sempre são feitas com o máximo de atenção ou com um
engajamento de contemplação. Durante o isolamento provocado pela COVID-19,
muitas pessoas ficaram longe das ruas, dos contatos, dos encontros sociais, como
a autora Ingrid Duarte. Ela conta, em sua entrevista na Conversa dramática
6
(2021),
que esse afastamento, esse distanciamento de tudo e de todos, fez com que
aflorasse a sua percepção do mundo, das pessoas e das coisas. Residente na
cidade de Rio Grande, a artista começou a acompanhar o ritmo e o movimento
das feiras de hortifruti. Ela destaca que os profissionais diariamente armam suas
barracas em lugares diferentes e, consequentemente, a freguesia varia, os rostos
6
Ação de pesquisa do projeto
Leituras do drama contemporâneo
(UFPel) iniciada em 2020. Trata-se de uma
série de entrevistas com artistas de teatro, em especial aqueles que escrevem textos teatrais, transmitidas
pelo canal do Youtube do projeto. A cada episódio, os convidados compartilham com os organizadores e
com o público suas experiências, seus olhares e sua forma de criar.
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são outros, tudo muda. Vez ou outra, esbarra-se com uma figura já vista, troca-se
olhares com o fulano, um abanar de mão com o beltrano, e percebe-se que
muitos personagens possíveis a partir dessas pessoas e muitos cenários que
inspiram cenas.
Em seu processo criativo, Ingrid analisa primeiro e recria depois,
transformando os espaços e os transeuntes à sua volta. Regilan Pereira (2020)
discorre acerca da relação entre o edifício teatral, a criação cenográfica e a cidade,
apontando que:
Diferentemente do desenho arquitetônico e urbanista o projeto
cenográfico está livre para empreender formas, cores e texturas em
criações que podem reinventar o cotidiano em efêmeras criações ou não.
Esta liberdade permite que o projeto cenográfico realize concepções
poéticas, quando comparadas às necessidades pragmáticas do dia-a-dia
(Pereira, 2020, p.5).
Tal movimento ocorre de forma parecida na composição da artista, dado que
ela parte de uma observação da cidade, da feira, mas também das pessoas que
perpassam esses lugares, para depois, com a liberdade poética e criativa, elaborar
e reinventar as relações, o cotidiano e o cenário em seu texto. Pode-se dizer que,
“ao longe, a visão do teatro da cidade era mais interessante” (Pereira, 2020, p. 3).
Nas palavras de Ingrid:
Dengô: O encontro de Aysha e Gazânia narra universos nos corpos de
mulheres pretas buscando pontos de conexões e encontros para vibrar
afetos explícitos e escondidos na rotina corrida dos dias. No cenário
urbano, são registradas pequenas aberturas que geram uma
transformação potente e leve, nos fazendo perceber tons de poesias que
passam despercebidas. Pequenos retratos das memórias nos olhos de
quem busca tornar-se real e expandir. Dengô é essa energia ancestral
colorida e risonha que pulsa nos encontros da vida e flui por um instante
ou pela vida inteira (Duarte apud Trilogia Sul Invertido, 2021a, online).
Em sua nota de autora, Ingrid Duarte afirma que Dengô “faz parte de um
conjunto de dramaturgias decoloniais de escritas autorais” (Duarte, 2021, p.8). É
uma maneira de criar que ela denomina como ‘dramaturgia de ginga’, como se as
palavras, as falas e as descrições fossem uma extensão de seu corpo, que joga
com o ritmo e que afirma sua espiritualidade afro-brasileira, fortalecendo e
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consolidando sua existência negra. No texto, ela se vale graficamente de cores na
identificação das personagens, de músicas para ditar o tom, de sons de elementos
que compõem a trilha e a ambientação.
A obra é dividida em quatorze partes não lineares, sendo algumas delas
cenas, e outras, atos. Por ser um trabalho de composição de ginga, remetendo ao
jogo de capoeira, às vezes a peça realiza um movimento cuja resposta virá,
possivelmente, em outra escrita. Por exemplo: em
Dengô
a autora insere o “Ato I
- Dengô histórias pretas, Dengô”, porém não existe o ato II no texto. Na sequência,
o que se vê é o “Ato III - Dengôôôô”, ou seja, um golpe (ato I), uma espera (a lacuna
do ato II) e outro golpe (ato III). Na Conversa dramática (2021), Ingrid argumenta
que esses hiatos serão preenchidos em criações futuras, em resposta a essa
escrita, formando um quebra-cabeça no qual as peças vão se encaixando umas
às outras.
As personagens são múltiplas e vão de figuras representativas de entidades
religiosas (Ayo, a guia espiritual da narradora), até Dona Édna (cabeleireira), Maria
(que trabalha como diarista) e sua filha Inaê, Nádia (auxiliar de cozinha de dia e à
noite, cantora), Lúcia (professora de matemática), Jairo (violonista em uma banda
de pagode) etc. A lista é extensa e todas são identificadas como pessoas negras,
exceto Dona Fran (patroa de Maria e proprietária de muitos imóveis em Rio Grande)
e Seu Luiz (senhor aposentado e amargurado). Todavia, ainda que tenha muitas
personagens, a história da peça gira em torno de Aysha, que “trabalha numa banca
de frutas e ervas nas feiras da cidade do Rio Grande, que fica no extremo sul do
Rio Grande do Sul. Banhada pela Lagoa Mirim, Lagoa dos Patos e pelo Oceano
Atlântico” (Duarte, 2021, p.36), e Gazânia, uma mulher negra professora de dança,
“filha de um pai vendedor ambulante e fotógrafo, nascido no Haiti, que veio
refugiado para a cidade de Rio Grande/RS, e de uma mãe carioca de Duque de
Caxias/RJ, professora de literatura” (Duarte, 2021, p.38). Por fim, há a personagem
Narradora, responsável por comentar e contar ao público as histórias das outras
personagens. Sua onisciência causa a aparência de ser a manifestação direta da
autora. Em sua descrição, consta: “o que se sabe é que ela é uma mulher e que a
abertura do seu corpo faz com que ela enxergue e perceba coisas nem sempre
vistas na rotina dos dias” (Duarte, 2021, p.36), ou seja, o mesmo movimento feito
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por Ingrid em sua criação.
Na peça, a narradora conduz os leitores por uma jornada no cotidiano das
personagens, com foco especial às relações que se estabelecem entre elas, seja
profissional – quando Aysha vai cortar o cabelo com Édna: “[todes no salão olham
para Aysha]
7
[como uma artista no momento de inspiração, Édna corta o cabelo
de Aysha] À medida que o corte ia chegando aos momentos finais, elogios
começaram a ser feitos” (Duarte, 2021, p.18) –, seja de paquera/amor – o encontro
entre Gazânia e Aysha: “Gargalham juntas, com corpo, alma e ancestralidade. E
está feito! Mermão, arrepio toda vez que conto essa cena! gostosura é estar
disponível e deixar o afeto te afetar” (Duarte, 2021, p. 5) – ou de paixões antigas
como entre Jairo e Lurdes: “Jairo era o violonista, mas quem tocava mesmo era
Lurdes no seu coração, disparando uma paixão enlouquecedora no seu corpo”
(Duarte, 2021, p.31).
Os lugares de encontros sociais também aparecem como pano de fundo das
histórias, principalmente a feira:
Aysha é uma garota simples que trabalha nas diversas feiras da cidade.
Todos os dias tinha movimentos [fala com movimentações], barulhos
[
como se tivesse muita gente
], [
negociação
] pechinchas e [
feirante
falando para uma cliente com tom de brincadeira
] aquela história de que
moça bonita o paga, mas também leva nada além do meu coração vida
louca [
risos
]. A feira é um lugar de músicas [
feirantes gritando, vendendo
],
rimas improvisadas e encontros (Duarte, 2021, p.17-18, grifos da autora).
É nesse ambiente que surge a paquera e, logo em seguida, a paixão entre
Aysha e Gazânia, duas mulheres negras, lésbicas, que se conhecem ao acaso, no
fluxo contínuo da feira. Esse espaço revela-se simbolicamente por meio das cores
com as quais são identificados os nomes das personagens (Gazânia é escrito em
vermelho, Aysha em amarelo, a Narradora em rosa etc.), formando uma espécie
de mosaico colorido que lembra as cores vibrantes das frutas, legumes e verduras.
A Narradora, em sua fala de encerramento da peça, diz, na intenção de
resumir a obra:
Entre frutas, plantas, cores e movimento, no final, fica apenas o gosto do
7
A autora opta por escrever algumas informações entre colchetes, sem usar o itálico, deixando em aberto se
são rubricas ou falas.
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Fernanda Vieira Fernandes; Mario Celso Pereira Junior
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encontro de olhares, sorrisos penetrantes e o suor do corpo que fazem
dos dedos escorregadios e eletrizantes. Maçãs vermelhas e pêssegos
amarelos, quando amadurecidos, deixam o doce saudável de como pode
ser a vida. Nada fora desse panorama de facilidades, não aqui. O que
além desse sentido não está visível e o que Aysha e Gazânia deixam é a
grandeza das sementes plantadas através das aberturas que foram
escancaradas propositalmente com essa narrativa. E sim! Eu também
sou teus rios, mas ainda quero saber: Que gosto ficou atravessado no teu
corpo? (Duarte, 2021, p.35).
Em suma, Ingrid Duarte apresenta sua interpretação do mundo a partir de
um local, uma visão poética sobre as relações, os sentimentos, os pontos de
encontro na cidade e as pessoas. Sua mirada é ampla, de representatividades
negras, LGBTQIA+ e afro-religiosas. Esse foi o seu ponto de perspectiva do sul do
Rio Grande do Sul. Para evidenciar sua região, partiu de um universo que é diverso.
Torres García afirma: “Y después mira su obra: es universal, pero es de aquí” (Torres
García, 1944, p.217). As feiras, cores, gingas e afetos de Ingrid são de Rio Grande,
são do extremo sul e são o que toca a autora para falar do seu lugar.
Quadrado de três pontas, de Mario Celso
Qual a imagem que se tem ao chegar em terras desconhecidas? Como se
descreve uma outra cidade? Cultura diferente, modo de falar e sotaque distintos,
casas, ruas, bares e hábitos novos. Esse foi o desafio posto a si mesmo por Mario
Celso ao optar por colocar Pelotas como pano de fundo de seu texto. Natural de
São Paulo, mas criado em uma pequena cidade paulista chamada São José do Rio
Pardo, ele se mudou para a região Sul do país em 2014, ao ingressar na UFPel para
cursar Teatro-Licenciatura. O autor relata que ficou instigado a escrever a partir
de suas vivências na cidade, de seu olhar de forasteiro (Conversa dramática, 2021).
Sua intenção era fazer com que as personagens percorressem as ruas de Pelotas,
passassem por lugares tradicionais, comentassem sobre pontos turísticos, a fim
de causar nos leitores a sensação de caminharem junto às personagens.
Além disso, Mario trouxe para o enredo uma das características que surgiu
com a implementação do ingresso às universidades públicas por meio na nota do
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM): o movimento migratório de estudantes.
Em sua nota de autor, afirma:
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Essa é uma parte importante para o universo criado, visto que todas as
personagens pertencem a esse grupo e, assim, os trajetos percorridos, os
lugares visitados, certos detalhes do modo de falar e algumas gírias são
características do cotidiano de muitos jovens adultos universitários
(Pereira Junior, 2021a, p.44).
Por fazer parte dessa mesma dinâmica, dado que saiu do interior de São
Paulo para estudar em Pelotas, o autor imprime algumas de suas próprias
características em Pedro, a personagem protagonista. Mario relata que, ao se
identificar com Pedro, colocou nele lembranças, vivências, acontecimentos
presenciados e pensamentos que teve quando se mudou para a cidade (Pereira
Junior, 2021a, p.44). Também adicionou memórias narradas por sua amiga paulista
e ex-colega universitária Juliana Caroline da Silva, apelidada de Caju, diversificando
e encorpando a produção textual. Todavia, mesmo que o dramaturgo tenha
trabalhado com dados pontuais não ficcionais, tal atitude não confere à obra um
aspecto documental, posto que eles são utilizados como simples elementos em
sua tecitura ficcional (Pereira Junior, 2021a, p.44), a ponto de não conseguirmos
identificar onde começam ou terminam as invenções e as memórias.
A peça possui quatro personagens: Pedro, Clara, Fifo e Gus. Os eventos se
desenrolam em locais de Pelotas. Ela é dividida em doze cenas, todas com títulos
que antecedem ou sugerem o que acontece na cena. Na obra, acompanhamos a
jornada de uma noite de Pedro que, após concluir a graduação, está prestes a
retornar para sua terra natal. Nas palavras do autor:
O que fazer no último dia em uma cidade? Como sabemos que é
realmente o último? O que se passa entre o oi e o adeus para a despedida
doer tanto? Pedro, um rapaz nascido em São Paulo, se mudou para
Pelotas por conta da faculdade. Depois de cinco anos e recém-formado,
ele decide voltar para sua cidade. No texto, ele enfrenta a dificuldade de
se despedir de Pelotas e de seus amigos, que após tantos anos juntos, se
tornaram inseparáveis. As experiências, os laços e as vivências na cidade
fazem com que dentro dele surjam sentimentos ambíguos, como se uma
parte quisesse ficar e a outra desejasse partir (Pereira Junior apud Trilogia
Sul Invertido, 2021c,
online
).
Logo no início do texto é apresentada a visão da personagem Pedro sobre
Pelotas, com destaque para a angústia que sente a partir de seu olhar pessimista,
triste e desgostoso. Ele elenca alguns pontos negativos e evidencia que, por um
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lado, partir seria a melhor opção.
Sabe aquelas cidades que encantam a gente? Que cada pedacinho, cada
dia vivido, cada rua, árvore ou calçada marca a vida da gente? Pois é...
com certeza, não é Pelotas. Aqui é úmido dizem que é a segunda cidade
mais úmida do mundo, ficando atrás de Londres exagero, mas
dizem). Aqui a gente passa metade do ano cozinhando de calor, um calor
abafado, como se estivesse em uma sauna a vapor, e a outra metade
correndo risco de perder os dedos dos pés de tanto frio. Se chove mais
de trinta minutos seguidos, as ruas enchem, os carros boiam e os
pedestres praticamente nadam. Fora a energia que, quando cai, demora
hooooras para voltar, ou seja: no frio, adeus banho quente; no calor, bye-
bye ventilador ou ar-condicionado (Pereira Junior, 2021a, p.48).
Como mencionado acima, Pedro expressa o olhar do forasteiro, do estudante
que se mudou para Pelotas. Esse descontentamento está presente ao longo da
obra e é um dos grandes motivos para que ele pense em ir embora. Entretanto, o
outro lado da balança é preenchido pelas lembranças, os afetos e laços com
outras pessoas, os momentos proporcionados pelo movimento migratório dos
universitários. Eis o seu impasse.
Marcos Cartum (2012), ao comentar a experiência como espectador no
espetáculo
Bom Retiro 958
metros, criado pelo grupo Teatro da Vertigem,
demonstra a ideia da utilização da cidade como parte fundamental no trabalho
artístico e infere que a maneira como a observa é transformada pelo evento
teatral. Ele destaca que “nosso olhar não é aquele com que chegamos pois
fomos até apenas como espectadores. Nossa relação com a cidade, utilitária e
funcional, não nos capacita a parar em uma rua e ficar, olhar, observar, sentir,
pensar” (Cartum, 2012, p.264). Isso ocorre de forma similar no texto de Mario Celso.
Ao lê-lo, observamos e relembramos Pelotas por outro ângulo, outro ritmo e outra
percepção.
Apresentado o dilema de Pedro, inicia-se o percurso de uma noite, em
diferentes pontos da cidade. No começo da peça, as três outras personagens estão
no Bar do Zé, situado na esquina do Centro de Artes da UFPel, um estabelecimento
que reúne os universitários nas noites pelotenses. A cena seguinte mostra um
pouco de uma conversa corriqueira: enquanto esperam pela chegada do amigo,
conferem o preço da bebida para dividirem o valor. A personagem Gus diz: “Por
que tu não vai agilizando as coisas? Cada um bota uma intéra e pegamos um
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vinho pra abrir a noite. Vê com o Bira quanto tá” (Pereira Junior, 2021a, p.49). Bira,
citado por ele, é uma das pessoas que atendem no bar, quase uma figura pública
por sua fama entre os jovens.
Após comprar a bebida, o grupo parte para outro lugar: o Quadrado, um antigo
atracadouro de Pelotas, localizado na zona portuária. Hoje é um espaço de lazer e
convívio social, frequentado à tarde por famílias que contemplam a paisagem
entre um chimarrão e outro e, à noite, por jovens a procura de um ambiente calmo
para beber e fumar. Ali, a personagem Gus, movida pelo sentimento de despedida
do amigo, relembra episódios vividos por eles naquele lugar: “Vocês se lembram
quando a gente veio aqui pro Quadrado às três da tarde e ficamos até às três da
manhã? [...] Curtimos uma baita brisa nesse banco da Monalisa, olhando direto pra
Lagoa dos Patos e a ponte de Rio Grande” (Pereira Junior, 2021a, p.51).
O autor se vale de alguns pontos da cidade para discorrer a intriga da peça.
Mario Celso adiciona comentários, memórias do grupo de jovens, entre outros
recursos. Exemplo disso é quando Clara fala diretamente ao leitor, indicando uma
rua famosa de Pelotas, conhecida pelo intenso fluxo de carros e ônibus: “Desde o
dia em que, por uma sorte no azar, ele se perdeu pegando o ônibus errado na
Osório e, desesperado, pedia incansavelmente para o motorista parar, enquanto
carregava malas e mochilas visivelmente pesadas, eu tremo por dentro” (Pereira
Junior, 2021a, p.53). Ou quando Gus e Fifo tentam armar um plano para Pedro ficar
mais uma noite e Gus diz: “E qual é o segundo plano? Vai bater no cara? Prender
ele na baia e liberar no outro dia? Não adianta, Fifo, quando ele bota algo na
cabeça, nem o Jesus Rockeiro da igrejinha tira!” (Pereira Junior, 2021a, p.55). Essa
referência trazida pela personagem diz respeito a uma igreja localizada no bairro
Centro/Porto, a qual possui uma estátua de Jesus no alto da torre e que, por
decorrência do tempo e das chuvas, perdeu partes dos dedos, dando a impressão
de estar fazendo o símbolo do rock.
Na cena intitulada “Street View”, o autor traça uma trajetória percorrida pelas
personagens, evidenciando ruas de Pelotas, como se o leitor que as conhece
pudesse caminhar mentalmente por elas, aproximando-o das figuras da obra.
Como rubrica, Mario coloca: “Quadrado. Rua Coronel Alberto Rosa. Rua Almirante
Tamandaré. Rua Bento Martins. [...] Rua Benjamin Constant. Rua José do Patrocínio.
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[...] Rua Conde de Porto Alegre. Rua Almirante Barroso. Rua Três de Maio. Rua
Gonçalves Chaves” (Pereira Junior, 2021a, p.57, 58, 59). “A peça se desenvolve
territorialmente. Não se trata da ação teatral localizada no palco na frente de
estáticas poltronas dentro de uma segura e escura sala de espetáculos” (Cartum,
2012, p.265), mesmo se tratando apenas de um texto, ainda não encenado.
Na Rua Gonçalves Chaves, as personagens decidem comprar mais bebida e
uma delas sai para buscar no bar do Marcelão. Mario Celso aborda novamente
uma cultura forjada pelos jovens universitários, enfatizando a rua em que se
encontra a Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e onde existem muitos
barzinhos. Logo, um ponto de encontro dos estudantes de ambas as
universidades.
Se aproximando do final da peça, Clara some e os outros vão procurá-la. Sem
sucesso, eles param em frente à sua casa, na esperança de que ela volte. Ali, eles
pensam em lugares onde ela poderia estar, comentando pontos como: Mercado
Público, a boate The Way, o centro comercial Pop Center, a rodoviária e a praça
central Coronel Pedro Osório. Ainda que as personagens não passem por esses
lugares, o autor fez questão de mencioná-los, como uma espécie de homenagem.
O mesmo acontece em um monólogo de Clara, ao ler uma carta de declaração de
amor escrita para Pedro. Através da fala de Clara, Mario Celso evoca costumes
pelotenses, hábitos característicos da cidade, tais como passear na Praia do
Laranjal aos domingos, tomar chimarrão na Avenida Dom Joaquim, comer bauru,
comprar doces tradicionais no Calçadão e ir à Fenadoce (famoso evento
gastronômico e turístico de Pelotas). Esses eram planos de Clara e não
aconteceram na trama, mas ocupam um lugar de tributo, de lembrança.
O autor explora a forma de falar das personagens, em especial as gírias e a
maneira como os verbos são conjugados. É comum que alguns moradores de
Pelotas, ao falar, conjuguem os verbos no pretérito perfeito na pessoa do
singular com a terminação ‘sse’, no lugar de ‘ste’, ou seja: ao invés de dizerem
‘comeste?’, falam ‘comesse?’, uma hipercorreção na fala cotidiana. Esta não é uma
particularidade pelotense, entretanto, foi um aspecto que chamou a atenção do
autor ao chegar na cidade. Na obra, isso surge em trechos como: “Sei lá, mano...
Tu chegasse a falar com a Clarinha?” (Pereira Junior, 2021a, p.55, grifo nosso),
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“Falasse algo que ela não gostou, mano?” (Pereira Junior, 2021a, p.66, grifo nosso),
“Com a Luiza, que tu conhecesse na The Way, também não foi!” (Pereira Junior,
2021a, p.68, grifo nosso). Mario Celso se debruça em sua visão particular sobre
Pelotas, imbricando a cidade com as histórias das personagens e compondo um
cenário rico e dotado de referências.
Entranhas: aqui ao menos estamos sós, de Thalles Echeverry
O texto teatral de Thalles Echeverry tem como ponto de partida uma antiga
história local de sua família e a cidade natal do autor, Jaguarão, localizada no
extremo meridional do Brasil, fronteira com o Uruguai:
Quando fui convidado a escrever um texto que trouxesse o Sul como um
dos personagens, uma das primeiras ideias que me veio à mente foi a
história de uma prima distante que, muito tempo atrás, morreu
apaixonada e foi enterrada vestida de noiva, na cidade de Jaguarão,
interior do Rio Grande do Sul. Memória que, quando vinha à tona numa
conversa com meus pais, me despertava interesse (Echeverry, 2021, p.80).
Echeverry tentou buscar maiores informações sobre o caso, mas não
encontrou detalhes. Logo, o mote serviu como inspiração, sem a intenção de
registro fiel ou histórico dos acontecimentos.
O dramaturgo localiza a ação da peça em um casarão em ruínas no Passo
das Pedras, zona afastada do centro urbano de Jaguarão, onde três irmãs (Clotilde,
Loreta e Aurora) vivem abandonadas. Não menção direta à época da história,
no entanto, percebe-se pela fala das personagens, suas relações e por sua
situação, que não se trata da atualidade e sim, de tempos remotos. Estruturada
em onze cenas,
Entranhas
mostra a decadência e solidão dessas mulheres
destroçadas pela dor: “Elas são o resto do mundo e o que restou delas mesmas.
É uma dramaturgia que explora o horror de uma história de amor e morte, de
pedras e ervas daninhas, num lugar dominado pela escuridão” (Echeverry apud
Trilogia Sul Invertido, 2021b,
online
).
O vai e vem intercalado entre o presente e o passado das personagens fica
explícito no texto: as cenas do presente delas são as de número ímpar e têm os
seus títulos escritos em caixa alta, as cenas do seu passado são as pares, que
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possuem todas o mesmo título (“das cinzentas ruínas da memória”), totalmente
redigidos em letras minúsculas e diferenciados por numeração em algarismos
romanos: I, II, III, IV e V.
A ambientação criada pelo autor é sombria e isso é evidente na epígrafe:
Uma única porta
No último muro de uma casa em ruínas
Cuidado…
Quem atravessar essa porta, à noite
Pode ficar para sempre no Outro Mundo!
(Quintana apud Echeverry, 2021, p.82).
O casarão e seu jardim, caracterizado como pútrido e tomado por mato, dão
um tom moribundo à peça. A rubrica de abertura anuncia que “Por é sempre
noite” (Echeverry, 2021, p.83). O cheiro de podre é uma indicação que aparece mais
de uma vez no decorrer da obra, como por exemplo: “Cada vez mais intrigada com
o mau cheiro, Aurora aproxima-se do poço” (Echeverry, 2021, p. 2); “Vocês não tão
sentindo esse cheiro de podre?” (Echeverry, 2021, p.101); “Um cheiro fétido. De
carne podre, de bicho morto” (Echeverry, 2021, p.107); “É difícil respirar ali, tudo
fede” (Echeverry, 2021, p.110). A origem do odor não é explicada e pode ser oriunda
tanto de corpos em decomposição jogados no poço da casa, quanto da própria
condição das personagens, fantasmagóricas e decrépitas, pois “elas estão mortas
por dentro, sepultadas naquele lugar. Ocas, vazias. São três cadáveres em
decomposição, três carcaças apodrecidas pelo tempo e pela dor” (Echeverry, 2021,
p.114).
Como explicado acima, a peça se articula em dois tempos. No presente das
personagens, temos o retorno de Aurora à casa da família, após um casamento
fracassado (e talvez terminado tragicamente), e o seu encontro com as irmãs,
Loreta e Clotilde, desenterrando intrigas e confrontando esta última, uma figura
má, possessiva e dominadora. Loreta é a irmã que enlouqueceu naquele lugar,
subjugada por Clotilde. No desenrolar do enredo, descobre-se que a filha de
Clotilde, Virgínia, no passado, morreu apaixonada e à espera do noivo, um jovem
forasteiro, com quem ela planejava fugir. O homem foi assassinado por Clotilde e
seu corpo, jogado no poço. Virgínia é a mulher enterrada de vestido de noiva que
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personifica a lenda inspiradora para a escrita de Thalles Echeverry. Quando a
vemos em cena, ou trata-se do passado (cenas pares, nas quais acompanhamos
sua paixão, conflito com a mãe, decepção e espera em vão), ou do presente,
momento em que ela é um fantasma, como na cena 1, intitulada “O RESTO É
DOR E ENTULHO”: “Tem os cabelos negros como as asas de um corvo e os olhos
profundos como um abismo. Seu delicado vestido branco destaca-se em meio à
escuridão. Ela senta-se nos degraus à espera de alguém e, depois de algum tempo,
desaparece na neblina” (Echeverry, 2021, p.83). É uma figura eternamente presa à
espera do noivo.
Na entrevista Conversa dramática (2021), Echeverry salienta que, durante a
concepção das cenas, visualizava paisagens de Jaguarão e que isso aparece
explicitamente em alguns trechos. Como exemplo, podemos citar a cena 2, “das
cinzentas ruínas da memória I”, quando o forasteiro menciona que encontrou a
personagem Clotilde: “[...] Cruzei com ela um dia desses na Rua das Portas e não
tive outra impressão que não fosse louca” (Echeverry, 2021, p.88). A cidade do
extremo sul é também chamada por algumas pessoas de ‘cidade das portas e
janelas’, pela beleza arquitetônica delas. Jaguarão é reconhecida nacionalmente
por seus sítios históricos. A rua a qual a personagem alude é oficialmente a Rua
XV de Novembro, uma das principais da zona central, mas mesmo no site oficial
da Prefeitura Municipal recebe o apelido de Rua das Portas. “As residências da Rua
XV de Novembro destacam-se pela beleza das portas entalhadas à mão, em
madeira nobre. Em sua maioria, são construções ecléticas de fins do século XIX e
princípios do século XX, fase áurea da construção civil local” (Becker; Albucezze,
2022,
online
).
Em outro episódio, a personagem Clotilde diz: “Nosso lugar é aqui, Aurora,
nada de bom nos aguarda fora. Nem ao do rio, nem no alto do Cerro da
Pólvora. Tu ainda não descobriste isso?” (Echeverry, 2021, p.86). A referência desse
fragmento é a outro local histórico da cidade gaúcha, o Cerro da Pólvora, onde
estão as Ruínas da Enfermaria Militar.
A edificação foi construída entre os anos de 1880 e 1883, no alto do Cerro
da Pólvora, de onde se descortina uma das paisagens mais bonitas da
cidade e o rio. Além da função de Enfermaria Militar, que atendia aos
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oficiais e praças da região, o prédio serviu como posto de vigia da fronteira
nacional, por permitir a observação privilegiada do território vizinho, o
Uruguai. Serviu também como prisão política e, com o abandono, em
meados da década de 70, foi gerado um rápido processo de deterioração,
que levou o prédio ao estado de ruína (Becker; Albucezze, 2022, online).
Na concepção de espaço elaborada por Thalles Echeverry podemos ainda
traçar paralelos com lugares da cidade que não existem mais, como o antigo
cemitério que ficava na zona central de Jaguarão. Na cena 5, intitulada “A MULHER
QUE VIU SUAS MÃOS APODRECEREM”, Loreta entrega flores à irmã recém-
chegada, Aurora. Clotilde vê e pergunta de onde ela teria roubado as flores. Loreta,
com medo, diz que as pegou no cemitério. Clotilde responde: “Eu não acredito que
tu cruzaste a cidade, mais uma vez, atrás delas, que tu te colocaste à mercê
daquela gente” (Echeverry, 2021, p.95). As irmãs vivem em uma parte afastada, o
Passo das Pedras, e não têm contato com vizinhos ou outros moradores locais, a
menos que se dirijam até a parte habitada da cidade. Conforme o site da Prefeitura
Municipal, Jaguarão possuía um cemitério no bairro Centro, desativado por conta
de uma epidemia de cólera que ocorreu em 1855 e superlotou a necrópole. Esse
cemitério pode ser lido como aquele aonde Loreta vai, sendo então atacada por
vizinhos que veem nela uma figura maldita. Uma série de lendas de assombrações
foram criadas sobre esse terreno central no qual eram enterradas as pessoas no
passado.
Esses são detalhes que podem até passar despercebidos por quem não
conhece Jaguarão, contudo, compõem o imaginário do autor e possibilitam
identificação aos leitores que possuem relação com a cidade.
Os monumentos arquitetônicos que constituem os espaços urbanos,
aliados à geografia local e respectivos espaços de natureza, configuram
conjuntamente tanto os valores destacados pela sociedade quanto as
feições estéticas, a manutenção de formas, cores, memórias que
vivificam as cenas urbanas, escritas culturais traduzidas em fachadas das
edificações, monumentos escultóricos em distintos espaços da cidade
que exaltam personalidades da história, da mitologia local, ou ainda
valorização das riquezas naturais (Pereira, 2020, p.3).
A escrita de Echeverry se alimenta, portanto, de edificações históricas e de
antigas lendas urbanas para criar um universo que põe em foco a cidade, quase
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como uma personagem a mais na sua obra. O ambiente ajuda a moldar as cenas
e as histórias da infância são transcritas, beirando, em certas passagens, o horror.
Na esteira do que afirmam Demori e Massa (2020), o texto, também este podendo
ser tomado como um fenômeno teatral, é resultado dos aspectos geográficos,
históricos e culturais da subjetividade do artista e tramam sua poética desde a
criação e concepção até a obra final.
A lenda familiar da jovem que morreu apaixonada e foi enterrada de vestido
de noiva abre caminho para a composição de novas lendas do dramaturgo, tal
como a da personagem Loreta, “a história da mulher que tem as mãos malditas
[...]” (Echeverry, 2021, p.95-96), acometida por uma doença que afeta suas mãos,
tudo o que ela toca morre. Apaixonada por flores, ela matou todo o seu jardim e
começou a visitar os jardins de outros moradores, tomando-lhes as flores,
amaldiçoando-os e deixando para trás algum objeto sujo de sangue. Até que em
“[...] uma noite ela acabou encontrando uma criança em seu caminho e num ato
impensado, ela a tocou, fazendo com que a pobre criança caísse de cama e
sofresse da mais terrível das doenças” (Echeverry, 2021, p.96). É por isso que, ao
atravessar a cidade para pegar flores no cemitério, ela volta para casa ferida,
agredida por moradores que a rechaçam. Loreta, na peça, é uma lenda viva na
cidade, uma figura da mitologia local criada por Echeverry.
Cumpre destacar que o autor também escolhe o pronome pessoal ‘tu’,
pessoa do singular, mas o faz de forma diferente de Mario Celso. Echeverry reforça
o ‘tu’ com a conjugação gramaticalmente correta dos verbos (exemplos: ‘tu estás’,
‘tu falaste’, ‘tu vês’, ‘tu és’ etc.). Contemporaneamente, muitas pessoas usam a 2ª
pessoa do singular, mas conjugam os verbos na 3ª pessoa do singular (‘tu está’, ‘tu
falou’, ‘tu vê’, ‘tu é’ etc.) Echeverry, na Conversa dramática (2021), explica que essa
foi uma opção para demarcar a região Sul e um estilo arcaico de falar, que causa
certo estranhamento e cria uma atmosfera diferente da cotidiana. O tom de lenda
urbana antiga é enriquecido por esse recurso linguístico.
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Inverter mapas e construir identidades teatrais a partir de
outras miradas
A produção da coletânea, com recursos de um edital de fomento, demonstra
a fundamental importância de políticas públicas que impulsionam a formação e a
criação artística. O espaço de laboratório da Trilogia Sul Invertido proporcionou
trocas entres três jovens dramaturgos que vivem em cidades do sul do Sul e
estimulou sua escrita. Outrossim, a publicação da obra em meio digital de livre
acesso, bem como as leituras dramáticas de apresentação dos textos, confere
visibilidade a eles. Conforme Taís Ferreira, “dar voz a estes grupos e artistas das
diversas regiões do estado na produção historiográfica é ato político de grande
importância para criarmos redes de significação sobre as artes cênicas no estado
[...]” (Ferreira, 2014, p.22).
Através dos textos teatrais apresentados aqui, demonstramos maneiras
diversas de abordar uma região geográfica como temática de criação. Na
Trilogia
Sul Invertido
, cidades do sul do Rio Grande do Sul são tangenciadas por três
miradas. Mario Celso focou a sua nas ruas de Pelotas, pontos turísticos e outros
lugares frequentados principalmente por estudantes das universidades (UFPel e
UCPel). Já Ingrid Duarte buscou em feiras da cidade de Rio Grande a relação entre
as pessoas e suas características. Thalles Echeverry optou por concentrar sua
visão em uma lenda familiar antiga e em sítios históricos de Jaguarão.
Ao voltarem os olhos para suas identidades, os artistas construíram obras
que repercutiram seus espaços, vozes, memórias, afetos e comunidades. As
observações de Juliana Demori e Clóvis Massa (2020) acerca da multiplicidade do
teatro gaúcho contemporâneo refletem, conforme os autores, diferenças
geográficas, históricas e culturais entre regiões e municípios. Além disso, os
processos colonizatórios e seus consequentes traços econômicos marcam a
diversidade de realidades de artistas e grupos. Examinar historicamente os fatos
e interpretá-los sob o prisma do contexto em que estavam/estão inseridos é ver
e entender como, onde e quando aparecem determinadas produções e perceber,
principalmente, que as peculiaridades acarretam uma diversidade e que a dita
história do teatro brasileiro ou a dramaturgia tomada como brasileira é, na verdade,
Trilogia Sul Invertido: a criação de textos teatrais a partir de olhares do sul do Rio Grande do Sul
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metropolitana e limitada.
Em 2014, Ferreira comentava sobre a necessidade de olhar para fora do eixo
da capital e compor uma historiografia abrangente. Acrescentamos a urgência
de dramaturgias abrangentes e plurais. Seguimos em situação de devir, com
muitas lacunas e alguns esforços na busca por conhecer a realidade e escrita
cênica do interior gaúcho e colocá-las em evidência. Que pesquisas e iniciativas
sigam retificando (e invertendo) mapas, como propôs Torres García, para que
sempre saibamos onde estamos e de onde falamos.
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Acesso em: 13 jun. 2022.
Recebido em: 15/06/2022
Aprovado em: 20/08/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br