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Cenografia expandida
no Brasil uma
abordagem narrativa a partir do Sul
Renato Bolelli Rebouças
Para citar este artigo:
REBOUÇAS, Renato Bolelli.
Cenografia expandida
no Brasil
uma abordagem narrativa a partir do Sul.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2,
n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0209
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Cenografia expandida
no Brasil uma abordagem narrativa a partir do Sul
Renato Bolelli Rebouças
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-29, set. 2022
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Cenografia expandida
no Brasil
1
uma abordagem narrativa a partir
do Sul
2
Renato Bolelli Rebouças
3
Resumo
A investigação das práticas cenográficas contemporâneas tem proporcionado
uma efervescente e complexa arena para a criação, produção e teorização
do fazer artístico, envolvendo diferentes disciplinas, procedimentos e modos
de trabalho que extrapolam o próprio conceito de cenografia como a
direção e a dramaturgia. Entre as atuais inúmeras definições da cenografia,
investigaremos o conceito de cenografia em campo expandido como ponto
de partida para discutir o termo a partir de uma perspectiva do Sul, latino-
americana, brasileira. Buscaremos analisar como as práticas expandidas e
site-specific
têm caracterizado uma espécie de identidade da escritura
cênica
a partir do Sul
, utilizando exemplos de trabalhos realizados desde os
anos 1960 até a atualidade, especialmente na cidade de São Paulo.
Palavras-chave
: Cenografia expandida. Precariedade. Performatividade.
Materialidade. Sul Global.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Vitória Eugênia Oliveira Pereira, Mestre em Linguística
Aplicada (IEL/Unicamp) e doutoranda em Linguística (IEL/Unicamp).
2
Este artigo resulta em 75% de partes de minha tese de doutorado denominada:
Espaços e materiais residuais
em potência performativa: cenografia expandida a partir do Sul
(2021), desenvolvida no Laboratório de
Práticas Performativas do Centro de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com o
Departamento de
Perfomance Studies
da Tisch School of The Arts/Universidade de Nova Iorque (NYU), e
como artista residente do Instituto Hemisférico de Performance e Política. O presente trabalho foi realizado
com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES PROEX e PDSE.
3
Doutor e Mestre em Artes Cênicas/Cenografia pelo Centro de Artes Cênicas/Universidade de São Paulo.
Pesquisador do Laboratório de Práticas Performativas da USP e pesquisador visitante do departamento de
Performance Studies
da Universidade de Nova Iorque/Tisch School of the Arts (bolsista CAPES PROEX e
PDSE). Cenógrafo, diretor de arte, figurinista, professor e pesquisador e independente.
bolellireboucas@gmail.com.
http://lattes.cnpq.br/9406647049065152. http://orcid.org/0000-0001-8454-3720.
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Expanded scenography
in Brazil a narrative approach from the
South
Abstract
The investigation of contemporary scenographic practices has provided an
effervescent and complex arena for the creation, production, and theorization
of artistic work, involving different disciplines, procedures, and ways of
working that go beyond the very concept of scenography - including the
direction and the dramaturgy itself. Among the numerous definitions of
scenography today, we will investigate the concept of scenography in an
expanded field as a starting point to discuss the term from a Southern, Latin
American, and Brazilian perspective. We will analyze how expanded and site-
specific practices have characterized a scenic writing identity
from the South
,
using examples of works from the 1960s to the present, mainly in Sao Paulo.
Keywords
: Scenography expanded. Precariousness. Performativity.
Materiality. Global South.
Escenografía expandida
en Brasil una aproximación narrativa
desde el sur
Resumen
La investigación de las prácticas escenográficas contemporáneas ha
proporcionado un campo efervescente y complejo para la creación,
producción y teorización del trabajo artístico, involucrando diferentes
disciplinas, procedimientos y formas de trabajo que van más allá del
concepto mismo de escenografía - involucrando también la dirección y la
dramaturgia. Entre sus numerosas definiciones de escenografía hoy,
investigaremos el concepto de escenografía en un campo ampliado, como
punto de partida para discutir el término desde una perspectiva sureña,
latinoamericana, brasileña. Buscaremos analizar cómo las prácticas
expandidas y
site-specific
han caracterizado un tipo de identidad de la
escritura escénica del Sur
, a partir de ejemplos de trabajos realizados desde
la década de 1960 hasta la actualidad, especialmente en la ciudad de São
Paulo.
Palabras clave
: Escenografía ampliada. Precariedad. Performatividad.
Materialidad. Sur Global.
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...o sul concebido não apenas como conceito
geográfico, mas também político.
4
Alfredo González-Ruibal (2017, p.143)
A produção cenográfica contemporânea apresenta uma variedade de
propostas e uma incomensurável riqueza de realizações. Independente da
impossibilidade de reduzir essa riqueza a qualquer definição ou sistema, é possível
identificar que a natureza da cenografia se transformou de modo significativo nos
últimos anos, através da observação de algumas tendências praticadas pelos/as
artistas e destacadas pelos/as pesquisadores/as da área, acompanhando as
renovações do próprio conceito de encenação. Categorias tradicionais como
forma, estilo
e
representação
, geralmente associadas à lógica da caixa cênica e ao
Teatro Dramático, tornaram-se insuficientes diante de um fazer teatral e um
vocabulário espaço-visual em constante ampliação e deslocamento. Se por um
lado “a cenografia morreu”, como sentenciou o cenógrafo e diretor Gianni Ratto já
nos anos 1990 – referindo-se a um certo princípio de representação e seu caráter
ilusionista –, por outro, ela renasce na forma de “espaços, momentos, fulgurações”
(Ratto apud Renck, 2016, p.56).
A cenografia passa a explorar outras possibilidades a partir (mas não apenas)
do chamado Teatro Pós-dramático (Lehmann, 2007), com abordagens espaço-
visuais que, a partir dos anos de 1970, incluem outras dimensões temporais e seus
desdobramentos na criação. No atrito com outras disciplinas e na amplificação de
sua escala e ação, os/as cenógrafos/as passaram a experimentar novos
posicionamentos, propondo modos diversos de abordar e relacionar-se com a
cena, a representação, a narrativa, a visualidade, a recepção, as materialidades e
suas performatividades, permitindo novos modos de ver, escrever, compreender
e transmitir.
“É no desenho do espaço que se concentra boa parte das pesquisas de
criação teatral da atualidade”, afirma o pesquisador Patrice Pavis (2013, p.84), pois
“à custa de estender o seu campo de ação, a cenografia aproximou-se da
4
[…] the South conceived not only as a geographical concept, but as a political one. (Tradução nossa)
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encenação a ponto de não se poder mais distingui-las” (Pavis, 2013, p.102),
tornando-se chave para a escritura cênica e a própria dramaturgia.
Apesar de grande parte dessas investigações referir-se a uma produção euro-
americana, realizada, sobretudo, dentro do palco à italiana e com orçamentos
generosos, o fato é que as práticas cenográficas assim como as encenações
têm dissolvido seus limites e apresentado gêneros cada vez mais híbridos dentro
e fora do palco, numa variedade de abordagens que, desde a década de 1950,
permeava as fronteiras entre teatro, artes plásticas, performance, vídeo, cinema,
intervenção urbana e práticas intermidiáticas, gerando propostas como o
happening
, o
site-specific
, a instalação, o teatro imersivo, o teatro ambiental
(
environmental theater
) e, ainda, mais recentemente, as instalações cenográficas,
as projeções urbanas e outros formatos de intervenção e ocupação espacial,
expandindo de modo definitivo tal prática.
Como concluiu Arnold Aronson, “a linguagem da cenografia está mudando”
5
(Aronson, 2012, p.09), passando a ser considerada em sua amplitude como um
campo de conhecimento, como “um local de memória, um local de ação e um
modo de mapeamento”
6
(Aronson, 2012, p.12), envolvendo diferentes espaços,
edifícios, plateias, comunidades e regiões a partir de um caráter socializante e
relacional.
Da cenografia à
cenografia expandida
Assim como Hans-Thies Lehmann, Pavis e Aronson, pesquisadores como
Marvin Carlson, Dorita Hannah, Sodja Lotker, Thea Brejzek, também têm apontado
tal transformação espaço-visual. A Quadrienal de Praga de Design do Espaço e da
Performance (PQ) o maior e mais importante evento internacional da área tem
discutido o caráter investigativo da cenografia na exploração de espaços, bem
como suas relações com a construção da narrativa e da cena, e para além delas.
Extrapolando o conceito convencional do fazer cenográfico, Lotker (2016), diretora
5
[...] the language of scenography is changing.
6
[...] scenography thus become a site of memory, a site of action, and a mode of mapping. (Tradução nossa)
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artística do evento entre 2008 e 2015, compreende a cenografia “como
meio
: como
uma maneira de fazer as coisas, como uma maneira de pensar”
7
.
A cenografia é tomada, portanto, como “uma disciplina existente entre as
artes visuais e as artes performativas, aproveitando o melhor dos dois mundos e
construindo entre elas um diálogo que é frequentemente esquecido”
8
(Lotker,
2010). Tal abordagem inclui as transformações tanto no campo do teatro (a morte
da personagem e das narrativas, o uso de espaços "alternativos", entre outras)
como das artes visuais (a exploração de elementos teatrais como a performance,
a temporalidade, a ambiência e o público), gerando novas formas e gêneros, que
compreendem a cenografia como um “agente ativo de movimento”
9
(Lotker, 2011,
p.19) e “um ambiente para a criação de relações performativas”
10
(Lotker, 2011, p.19).
No Brasil, o termo
cenografia
ainda é majoritariamente utilizado, significando
tanto a proposta cenográfica como o conjunto das práticas espaço-visuais
(cenário, figurino, luz) ao modo inglês –, dividindo as opiniões. A expressão
direção de arte
11
, tomada originalmente do cinema, também tem sido aplicada por
diversos/as cenógrafos/as, referindo-se à concepção do conjunto espaço-visual.
Essa expansão dos termos reflete a compreensão das novas práticas e conceitos.
A expressão
design cênico
ou
desenho de cena
12
(
performance design
), discutida
por diferentes teóricos/as e apresentada por Dorita Hannah e Olav Harsløf (2008,
p.13) em livro homônimo, busca traduzir tal expansão, traçando um olhar diverso
sobre como a cenografia começou a transitar além das fronteiras do palco, criando
um “campo fluido e emergente”
13
entre a instalação, a cena/performance e a
7
[...] scenography as medium: as a way to do things, as a way of thinking. (Tradução nossa)
8
Scenography as a discipline existing in-between the visual and the performing arts, which uses the best of
both worlds, creating a dialogue between the two arts, a dialogue too often missed. (Tradução nossa)
9
As active agent of movement. (Tradução nossa)
10
An environment for creation of performative relations. (Tradução nossa)
11
A princípio, utilizei a expressão para nomear minhas práticas em espaços não-convencionais. Apresento o
emprego do termo em minha Dissertação de Mestrado, como um “cinema ao vivo(Cf. Rebouças, 2010).
12
Entre algumas versões, a expressão foi traduzida no Brasil como “desenho de cena”, apresentada na
exposição “Desenhos de Cena”, realizada no Sesc Pinheiros/São Paulo em 2016.
13
[...] the fluid and emergent field called Performance Design. (Tradução nossa)
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arquitetura.
A compreensão do fazer cenográfico desdobra-se, multiplicando sua própria
definição, como visto também nas nomeações espaço cênico ou ambiente cênico,
utilizadas para práticas fora do palco. Ou ainda, a ideia de uma “cenografia
ambiental” (
environmental scenography
), proposta por Aronson (2018a, p.08) a
partir da definição de Richard Schechner (1994), na qual o posicionamento da
plateia é “de alguma forma incorporado ou cercado pelo enquadramento das
cenas”
14
. Além dessas nomeações, a noção de
site-specific
(lugar específico), vinda
das artes visuais, também pode ser incluída nessa expansão, como na pesquisa
de Mike Pearson junto ao grupo Brith Gof. Segundo ele,
a performance
site-specific
carrega possibilidades de responder e
interrogar uma variedade de preocupações espaciais atuais e de
investigar a dimensão espacial das identidades contemporâneas,
representando escolhas formais e estéticas, mas também políticas
15
(Pearson, 2010, p.08).
Ao ganhar outros lugares, os espaços públicos e a rua, o/a cenógrafo/a amplia
sua forma de atuar, pois suas relações potencializam uma “dinâmica de
posicionamento, relacionamento e diferença”
16
(Lotker, 2016, p.12), numa interação
que pode resultar tanto em encontros como em confrontos. Ele/a passa a
conceber sua própria escritura, experimentando as diferentes performatividades
da espacialidade, dos materiais, dispositivos e equipamentos manipuladas
pelos/as atores/atrizes, performers e até por ele/a próprio/a. Nesse sentido, o
vínculo entre cenografia e dramaturgia se evidencia como um modo de escrita
cênica.
Ampliando ainda mais o conceito do fazer cenográfico, algumas dessas
práticas têm sido nomeadas como uma
cenografia expandida
(
scenography
expanded
), termo que ultrapassa a noção de desenho de cena e do próprio fazer
14
[...] the spectator is somehow incorporated within the frame, surrounded by the frame. (Tradução nossa)
15
Site-specific performance is adjudged to hold 'possibilities for responding to and interrogating a range of
current spatial concerns, and for investigating the spatial dimension of contemporary identities, representing
'formal and aesthetic but also political choices'. (Tradução nossa)
16
It heightens this reflection exactly through its dynamic of positioning, relating and difference. (Tradução
nossa)
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teatral, incluindo os processos de criação que determinam relações espaciais,
materiais e sensoriais do corpo (tanto do/a performer como do público) entre
ambientes, objetos e atmosferas. Seguindo o conceito criado por Rosalind Krauss
(1984, p.92) no ensaio
A escultura no campo ampliado
, em que “o campo
estabelece tanto um conjunto ampliado, porém finito, de posições relacionadas
para determinado artista ocupar e explorar”, os princípios da cenografia expandida
emergem do alargamento e reestruturação da cenografia e das novas
configurações da cena, da performance ou da obra que surgem com ela, a partir
dela e por ela inspiradas. Através dessa concepção é que Joslin McKinney e Scott
Palmer (2017) referem-se à “expansão” apresentada no livro
Scenography
Expanded
, que reúne estudos de casos que exemplificam tal compreensão.
Pois se a prática do desenho cenográfico no palco “limita-se a ver este campo
expandido apenas em termos de formas históricas da cenografia teatral;
precisamos de uma nova estrutura para este novo campo”
17
(McKinney; Palmer,
2017, p.01). A cenografia envolveria não as relações estéticas e conceituais dos
elementos que compõem a encenação/performance/obra, mas também o
contexto sócio-político-cultural-econômico em que está inserida, seus
imaginários, simbologias, modos de inserção e recepção. “Focada nos aspectos
espaciais, multissensoriais e materiais da cena contemporânea”
18
(McKinney;
Palmer, 2017, p.02), essa
cenografia expandida
passa a incorporar (e não apenas a
dialogar com) outras disciplinas, ampliando efetivamente sua linguagem numa
prática transdisciplinar. “A cenografia expandida é ao mesmo tempo uma
ferramenta, um sistema, um processo e um organismo gerador para a
compreensão do ambiente complexo em que vivemos”
19
, conclui Aronson (2017,
p.xvi), alterando diretamente as narrativas.
Entre os múltiplos aspectos dessa expansão como a tecnologia digital; o
relacionamento com a arquitetura; os contextos e identidades locais, nacionais e
17
It is limiting to see this expanded field only in terms of historical forms of theatrical scenography; we need
a new framework for this new field. (Tradução nossa)
18
[...] there is a focus on the spatial, multisensorial and material aspects of contemporary performance.
(Tradução nossa)
19
Expanded scenography is at once a tool, a system, a process and a generative organism for understanding
the complex environment in which we live. (Tradução nossa)
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globais; a posição, relação e participação do público; o uso de diferentes elementos
e materialidades –, os
ambientes imersivos
, muitos deles “reais”, desmaterializam
a ideia de
cenário
como elemento construído e estático. A
cenografia expandida
passa do objeto à
situação
, fazendo-se no espaço-tempo. Não é à toa que muitos
projetos desenvolvidos ou analisados sob essa lógica são realizados fora do edifício
teatral. A partir dessa compreensão, a cenografia geografiza-se, territorializa-se,
urbaniza-se,
politiza-se
, passando a pertencer ao campo das relações, ao modo
de vida, à dimensão crítica da
realidade
. Para Hannah e Harsløf (2008, p.12), “neste
caminho, os lugares, coisas, gestos e imagens tornam-se mais móveis, dinâmicos
e afetivos”
20
.
Ao ressaltar o potencial discursivo-narrativo cenográfico, Lotker (2016, p.08)
argumenta a favor de certa autonomia, tomando a “cenografia como meio: como
um modo de fazer as coisas, um modo de pensar, [...] uma estratégia”
21
na qual
torna-se “ativa” porque é o próprio espaço acontecendo, seu movimento e
metamorfoses. Essa dimensão criativa opera de modo transdisciplinar na escrita
dramatúrgica do evento cênico. Pode-se imaginar, portanto, a
cenografia
expandida
como o conteúdo e o resultado da própria obra, ampliando os modos
de narrar e as metodologias de trabalho.
Tomar o lugar como elemento tem sido um procedimento adotado por
inúmeros projetos que dialogam diretamente com a natureza do espaço. Assim,
sua potência é verificada mais pelos agenciamentos que possibilitam do que por
seus resultados visuais.
A obra não é a construção nem o espaço desenhado, focando sua
potencialidade no diagrama de relações que produz no ambiente. O
espaço cenográfico se transforma de representação ou suporte em
agenciador
de relações. Nessa transição, pode-se constatar uma
mudança equivalente também no público, que, a partir dessas
experiências imersivas, adquire uma postura mais atuante, passando a
percorrer os locais, investigá-los, ao invés de apenas contemplá-los. Se
os papéis e as funções da cenografia se amplificam, a partir de quais
pressupostos seria possível imaginar, portanto, essa expansão? Estaria a
20
[...] in this way, our places, things, gestures and imagery are rendered more mobile, dynamic and affective.
(Tradução nossa)
21
Scenography as a medium: as a way to do things, as a way of thinking, but also a way of copying, a strategy.
(Tradução nossa)
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10
cenografia ainda ligada ao campo teatral, performativo? (Rebouças, 2021,
p.40).
Para McKinney e Palmer (2017, p.04), “a cenografia expandida não representa
uma ruptura completa com a prática teatral, mas uma nova forma de pensar
baseada nos aspectos espaciais, materiais e do desenho da cena”
22
. Se, por um
lado, elementos como a tecnologia têm apresentado novas possibilidades
“imateriais” ao fazer teatral, experiências espaciais como o site-specific não
constituem, em países como o Brasil, algo exatamente “novo”. Muitas são as
possibilidades, na prática, de se compreender, realizar e nomear os processos
artísticos, assim, termos como “novo” ou “velho” acabam por não considerar
experiências realizadas em outros contextos. A ideia de “novidade” define-se,
antes, pela experiência dos/as praticantes e pelo público, acostumado à tal
linguagem ou em seu contato inicial.
Desse modo, a intervenção, a ocupação, a performance apresentam-se como
“novos”, acredito, por sua categorização até então ter sido definida como uma
prática de exceção, eventual, experimental, alternativa e periférica ao fazer “oficial”,
que tem o palco ou a galeria como lugar. O fazer cenográfico estabelece sua
expansão não apenas em direção a outras linguagens artísticas, mas a outras
disciplinas, como o urbanismo, a geografia, as ciências sociais, os estudos culturais
e da performance, a antropologia, a arqueologia, que analisam aspectos
socioculturais e materiais do território. A cenografia expandida, ao tomar o espaço
como relação, busca outros entendimentos, passando a ter suas histórias e
dinâmicas envolvidas de modo ativo para performers e para o público. Podendo
acontecer tanto em espaços abertos como fechados, em diferentes escalas (da
micro à macro), essa expansão carrega a potência agenciadora de relações
espaço-temporais e sensoriais.
McKinney e Palmer apontam três conceitos sobrepostos e
interrelacionados que auxiliam na identificação das características da
cenografia expandida: relacionalidade (as formas como a cenografia cria
lugares de encontro e de relações), afetividade (ligada a efeitos estético-
sensoriais estabelecidos a partir de emoções pessoais) e materialidade
22
Expanded scenography does not represent a complete break with theatre practice, but it does represent a
new way of thinking about the spatial, material and design-based aspects of performance. (Tradução nossa)
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(o efeito das texturas e dos materiais dos lugares, das coisas e dos
corpos). A cenografia comunica-se não apenas através de suas
características, mas também de suas atmosferas, cheiros, relações
acústicas, materiais e técnicas, contextos, grupos sociais e suas
intersecções (Rebouças, 2021, p.47).
Ao lidar com espaços “reais”, suas narrativas preexistentes tendem a
sobrepor-se a qualquer outra, constituindo sua história e sua condição. Peter
Brook (1970, p.37), nesse sentido, defende que “as experiências teatrais mais vitais
acontecem fora dos lugares oficialmente construídos e usados para este fim".
Todos os seus elementos constituintes dependendo das intenções e objetivos
fornecem informações a serem lidas e utilizadas em cena, funcionando como um
agenciador de memórias e situações, tornando-se até personagem. A expansão da
cenografia como ambiente adentra a composição dramatúrgica em todos os seus
níveis, incorporando essas diversas camadas de informação na narrativa. Todo o
espaço torna-se o espaço da cena/performance.
Se a
cenografia expandida
está “reformulando os debates e mudando as
epistemologias estabelecidas no discurso do teatro e da performance e nos
campos culturais, históricos, sociais e políticos relacionados”
23
, como apontam
Aronson e Collins (apud Mckinney e Palmer, 2017, p.03), essa amplitude acaba por
configurar, nos diferentes países e condições socioeconômicas e culturais, uma
multiplicidade de linguagens e fazeres, construindo um campo de trabalho cada
vez mais alargado e flexível, em que surgem linguagens híbridas a partir de
diferentes combinações. A discussão e a prática da cenografia expandida
descortinam essa complexa rede de conexões, conceitos, espaços e imaginários,
não apenas abrindo diferentes panoramas, mas também os atravessando por
dentro, na prática.
Cenografia expandida
a partir do Sul
Se essa experiência dos
lugares em situação
pode operar, na perspectiva do
hemisfério Norte e sua longa tradição do edifício teatral à italiana, como uma
23
[...] reframing debates and changing established epistemologies in theatre and performance discourse and
related cultural, historical, social and political fields. (Tradução nossa)
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“oposição” à caixa cênica, na perspectiva latino-americana, situada no hemisfério
Sul, pode constituir um caminho possível e potencialmente imaginativo para a
criação, em sua articulação e resultados. Dessa maneira, seria possível delimitar
ou, antes, compreender e discutir diferenças entre as práticas cenográficas
expandidas realizadas nos países do Norte e do Sul? Como situar o fazer cênico
expandido a partir das experiências realizadas na América Latina ou no Brasil?
Quais paisagens vê, portanto, o/a cenógrafo/a em seu campo expandido a partir
do Sul?
É a partir dessa reflexão que proponho investigar, portanto, a ideia de
cenografia expandida cuja perspectiva está situada no Sul, em contextos
periféricos às formulações do Norte, a partir da identificação de uma
epistemologia
do Sul,
termo das ciências humanas discutido pelo sociólogo Boaventura de Souza
Santos, “concebido metaforicamente como um campo de desafios epistémicos
que procuram reparar os danos e impactos historicamente causados pelo
capitalismo na sua relação colonial com o mundo” (Santos, 2009, p.12). Esse
“conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos
saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica
dominante” (Santos, 2009, p.12), tornando-se ponto de partida para tal percepção.
Essa concepção do Sul
sobrepõe-se em parte com o Sul geográfico, o conjunto de países e
regiões que foram submetidos ao colonialismo europeu e que, com
exceção da Austrália e da Nova Zelândia, não atingiram níveis de
desenvolvimento económico semelhantes ao do Norte Global (Europa e
América do Norte) (Santos, 2009, p.12).
Como resultado, consequência e desdobramento do fazer artístico e seus
imbricamentos com o sistema socioeconômico e político-cultural, a
cenografia
expandida
situada no Sul Global, caracteriza um/a cenógrafo/a que se coloca em
situação diante dos aspectos constituintes de sua “realidade”, ou seja, diante do
permanente
processo de destruição
das paisagens que avista, assim como da
incansável construção, demolição e reconstrução dos lugares que habita. Ao
encarar seu campo expandido, o/a cenógrafo/a, encontra em seu campo de visão
uma paisagem em constante
destruição
, fruto de uma devastação generalizada.
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Questiono: como tal condição, em geral
precária
, afeta a relação com o
campo expandido da cenografia? Ou, antes: quais ou como seriam os campos
expandidos dessas realidades em seus contextos diversos, não apenas situados
no Sul, mas percebidos
a partir do Sul?
24
Dos recursos naturais, povos originários
e escravizados desde o início do processo de colonização até a crescente
acumulação de descartes de todos os tipos, inclusive tóxicos, a ideia de destruição
tornou-se uma presença diária à qual estamos sistematicamente submetidos.
Tal condição refere-se à experiência de inúmeros/as artistas de nosso país,
da América Latina e de inúmeros outros países, em suas diversidades. Assim,
afirma a pesquisadora Ileana Diéguez Caballero (2011, p.21) que “se existe um lugar
no mundo onde a arte teatral e a sua prática tem no dia a dia uma função política,
social e cultural relevante, esse lugar é a América Latina”. O fazer latino-americano
leva à “configuração de um tecido de relações 'transversais' entre diferentes
aspectos das diversas artes” (2011, p.22), como afirma a autora, tendo como
“característica comum” ser oriundo das fraturas dos processos de colonização,
suas devastações, miscigenações e oposições identitárias e territoriais.
As
epistemologias do sul
valorizam, portanto, reflexões que investigam um
diálogo mais ampliado entre culturas e saberes. Dessa maneira, ao desassociar a
prática cenográfica do interior do edifício teatral, os contextos se fazem paisagens,
pois “[t]oda experiência social produz e reproduz conhecimento e, ao fazê-lo,
pressupõe uma ou várias epistemologias”, como afirma Santos (2009, p.09). Assim,
é possível admitir que o conhecimento produzido a partir dessas relações será
sempre contextual, “tanto em termos de diferença cultural como em termos de
diferença política” (Santos, 2009, p.09). Nessa mirada, esse cenógrafo expandido,
numa abordagem contextualizada a partir do Sul Global
, como tática de
sobrevivência prática e conceitual, político-econômica e artístico-cultural, ao ser
desafiado pela constante destruição, encontra, em seu percurso, ruínas de todos
24
Ainda segundo o autor, “[a] sobreposição não é total porque, por um lado, no interior do Norte geográfico
classes e grupos sociais muito vastos (trabalhadores, mulheres, indígenas, afro-descendentes) foram
sujeitos à dominação capitalista e colonial e, por outro lado, porque no interior do Sul geográfico houve
sempre as ‘pequenas Europas’, pequenas elites locais que beneficiaram da dominação capitalista e colonial
e que depois das independências as exerceram e continuam a exercer, com suas próprias mãos, contra as
classes e grupos sociais subordinados” (Santos, 2009, p.12).
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os tipos. Sua prática, portanto, busca atravessá-las, articulando lugares, fazeres,
técnicas e materiais que nelas encontra, agindo de modo tático, de acordo com as
possibilidades que lhe são apresentadas, e inventando outras.
Nessa condição transdisciplinar, constitui suas próprias linguagens, compõe
seu próprio universo feito desses imaginários, questiona, provoca, impõe-se.
Nessas travessias, carrega consigo sua perspectiva e sua lógica. Nesse sentido,
como aponta Grada Kilomba (2019, p.67), faz-se importante o “reconhecimento da
margem como uma posição complexa que incorpora mais de um local”, num
modelo de ação múltiplo que dialoga com centros e periferias, compreendendo-
os como
múltiplas centralidades
.
A
cenografia expandida a partir do Sul
atua entre mundos, abarcando
experiências complementares, e reinventando-as a partir de sua
(im)possibilidade
25
. “Nesse espaço crítico, podemos imaginar perguntas que não
poderiam ter sido imaginadas antes; podemos fazer perguntas que talvez não
fossem feitas antes”, como destaca a acadêmica Heidi Safia Mirza (apud Kilomba,
2019, p.68), dando origem a imagens e representações de caráter criticizante. Essa
expansão da percepção do lugar que se ocupa permite compreender o espaço
ou “espaço-paisagem”, como define o geógrafo brasileiro Milton Santos (2004,
p.173) como um
testemunho de um momento
da memória do espaço
construído, pois “alguns processos se adaptam às formas preexistentes enquanto
que outros criam novas formas para se inserir dentro delas”.
Assim, apresento três características
precariedade, performatividade
e
materialidade
que operam, portanto, como eixos metodológicos ou caminhos
possíveis para o/a cenógrafo/a expandido/a a partir do Sul, conectando fazeres
artísticos e modos de vida complementares, de caráter identitário ou contextual.
Para essa
cenografia experimental
, a condição dos lugares e materiais acaba por
gerar “performance” através de sua materialidade, pois solicita manipulação,
coleta e criação, possibilitando assim outras relações entre temas, espaços,
corpos, coisas, tecnologias e mídias. É nesse enredamento que essa linguagem se
25
É preciso considerar, nessa formulação, que “[o] que está em causa não é apenas a contraposição entre o
Sul e o Norte. É também a contraposição entre o Sul do Sul e o Norte do Sul e entre o Sul do Norte e o
Norte do Norte”, como aponta Santos (2008, p.30).
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forma, configurando uma espécie de roteiro dramatúrgico ou narrativa sensorial
de ações e explorações.
Cenografia expandida
no Brasil
Apesar da celebração internacional da cenografia brasileira, nossa
produção em geral tem se desenvolvido com poucos recursos na área,
especialmente no que se convencionou chamar de Teatro Experimental,
muitas vezes associado ao Teatro de Grupo, com procedimentos de
caráter colaborativo, mais horizontalizados e participativos, em que
reside uma parte significativa das pesquisas recentes. Assim, ao transitar
pela produção a partir dos anos de 1960, é notável o enriquecimento e a
diversidade da criação cenográfica, assim como sua transformação. Dada
uma intricada série de fatores, essa realização compõe uma complexa e
diversa paisagem de obras (Rebouças, 2021, p.51).
Sem buscar aqui um caráter totalizante, a produção cenográfica brasileira, de
modo geral, apresenta algumas características que acabam por potencializar uma
limitação econômica a favor de uma linguagem criativa e muitas vezes expandida,
apesar do risco constante de romantização ou de elogio da escassez, que relativiza
as dificuldades concretas, as limitações e as impossibilidades vividas no cotidiano.
Entre algumas características dessa condição, temos programas de ensino
variados em diferentes regiões do país, formando profissionais com abordagens
artísticas e repertórios técnico-culturais também variados (vindos/as em geral de
campos como arquitetura, desenho industrial, artes plásticas, artes gráficas, moda,
direção, iluminação e interpretação, assim como de cursos livres e da própria
prática em seus grupos e comunidades); o uso das sedes dos grupos e companhias
como espaços para apresentações, consolidando linguagens desenvolvidas a partir
da experiência prática da cena e do
lugar
, com relações variadas entre palco e
plateia; uma criação circunscrita a limites financeiros, fator que muitas vezes
obriga a participação de atores/atrizes, diretores/as e produtores/as na execução
e manipulação dos elementos como meio de realização e composição da cena; a
busca por materiais de baixo ou nenhum custo
26
, atrelada a uma praticidade na
otimização das demandas de montagem/desmontagem, transporte e
26
Usados, descartados, vindos do carnaval, de doações ou de restos de outros cenários, por exemplo.
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armazenamento. Esses fatores, ainda, tendem a adaptar-se às más condições
técnicas de inúmeros teatros e espaços culturais no país, sobretudo quando nos
deslocamos das capitais, justificando, assim, uma produção “simplificada” em
relação às dimensões e complexidades de um cenário construído, e
expandida
de
diferentes maneiras.
Um aspecto importante a ser diferenciado nessa expansão, no caso do teatro,
é que essas criações cenográficas, muitas vezes, não surgem apenas a partir do
texto dramatúrgico (e do imaginário inicial do/a autor/a), mas num processo
desenvolvido a partir de um tema ou questão, investigado de modo prático nas
cenas, em colaboração com artistas de todas as áreas, cujas imagens vão se
formando nos ensaios à medida que são testadas.
Assim, certa dinâmica e “precariedade” intrínseca ao processo criativo e
construtivo acaba por levar, entre outros fatores, à saída do/a cenógrafo/a das
coxias, “avançando” ou adentrando a cena para auxiliar na preparação ou
manipulação de elementos, atuando também como diretor de cena, contrarregra
e maquinista, tanto para investigar o funcionamento das situações como para
afirmar um processo colaborativo expandido, cujos agentes se colocam em
situação performativa
e se presentificam.
Se a saída das salas de teatro para adentrar outros
lugares
e explorar suas
diferentes configurações tem atualmente fascinado artistas, teóricos e plateias,
sobretudo euroamericanas, no Brasil tais práticas resultam do cruzamento de
aspectos socioculturais, econômicos e políticos fundantes, numa espécie de
processo orgânico entre condição e desejo, resistência e (re)invenção, identidade
e perspectiva, entre conceito, possibilidade de realização e resultado. Essa prática
ambiental
, integrada aos diversos ecossistemas e a uma expressão ancestral, é
manifestada culturalmente pelo modo de vida, tradições, práticas e ritos dos
diferentes povos originários e povos afrodescendentes, das celebrações rurais das
colheitas e ciclos, das procissões religiosas. Essa
tradição expandida
do cotidiano,
das ruas, da festa e do carnaval é tão reconhecida como característica de nossa
cultura e produção espaço-visual, que na publicação
The Routledge Companion to
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Scenography
27
(Aronson, 2018b) encontramos na capa a foto de um carro alegórico
num desfile na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro.
Seguindo uma espacialidade espontânea e relacional, muitas vezes
organizada de modo circular – formato natural do encontro coletivo –, a ideia de
expansão da cenografia e da própria cena pode ser compreendida como uma
característica “popular”, não circunscrita à lógica do edifício teatral. No Teatro de
Rua, exemplos como o Grupo na Rua, do diretor Amir Haddad, no Rio de Janeiro
(1980); a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre (1978); a
montagem de
Romeu e Julieta
do Grupo Galpão, em Belo Horizonte (1992), com
direção de Gabriel Vilela, inspirada no estilo barroco mineiro e encenada numa
Veraneio; ou ainda o grupo familiar Carroça de Mamulengos, de Juazeiro do Norte,
assim como inúmeros trabalhos mais recentes, são exemplos desse modo de
criação cujas origens atravessam a chamada
cultura popular
e a dimensão pública
do convívio social.
Historicamente, as práticas expandidas brasileiras na segunda metade do
século passado tiveram a inventividade como um forte caráter, diretamente
associada à realidade nacional de repressão, como, por exemplo, na Ditadura
Militar. Suas formulações, nesse sentido, manifestando-se de maneira crítica e
posicionada, muitas vezes alegórica, buscaram de campos deslocados e mais
ampliados para sua comunicação. Entre seus diferentes contextos e
manifestações, em São Paulo, essa prática expandida evidencia-se numa
perspectiva urbana e caótica, como pode-se observar na montagem de
Na Selva
das Cidades
, de Brecht, realizada pelo Teatro Oficina em 1969, com arquitetura
cênica
28
de Lina Bo Bardi junto ao diretor José Celso Martinez Correa.
Tal experiência constitui um paradigma não apenas do fazer teatral
paulistano, mas da criação espaço-visual performativa em campo expandido no
Brasil. Ao transportar a narrativa da Berlim de 1921 para a São Paulo de 1969, em
27
Entre os textos que integram a coletânea, Lídia Kosovski e Luiz Henrique Sá assinam o artigo
Latin American
scenography
.
28
Lina preferia utilizar o termo “arquitetura cênica” para seus trabalhos em teatros, envolvendo não apenas o
projeto cenográfico, mas também a arquitetura e a ambientação geral do espaço. De acordo com Edélcio
Mostaço, ao invés de uma cenografia, Lina Bo Bardi forjou uma arquitetura nica para a montagem”
(Mosta
ç
o, 2009, p.06).
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plena Ditadura Militar, Lina propôs reorganizar a espacialidade interna do teatro e
utilizar diversos fragmentos – oriundos da demolição de parte do bairro do Bixiga
e da construção do Elevado Presidente João Goulart
29
, o “Minhocão”, bem em
frente ao teatro para a construção dos elementos cenográficos da peça, que
eram destruídos em cena pelos atores e reconstruídos a cada nova apresentação.
Relativizada na história da cenografia brasileira, essa montagem constitui um
marco da experiência cenográfica fora do palco italiano, confirmando, de modo
radical, uma
cenografia expandida, imersiva
e
performativa
no Brasil, ao alterar o
modo de recepção da própria dramaturgia da peça.
Não apenas nessa experiência, sob a influência do “teatro pobre” e ritualizante
de Jerzy Grotowski, mas em outras criações anteriores, Lina – que não gostava da
palavra “cenografia”
30
propõe em
A Ópera de Três Tostões
(1960) e
Calígula
(1961)
31
uma
arquitetura cênica
no interior do Teatro Castro Alves, em Salvador,
semidestruído após um incêndio antes de sua inauguração em 1958. O interesse
por essa abordagem resulta na prática do Teatro Oficina, seguindo uma
investigação continuada a partir de espaços arruinados, que culmina com a
construção da nova versão do teatro junto a Edson Elito, com estruturas
desmontáveis, tirando proveito das situações urbanas precárias que conformam o
espaço da cidade, e fazendo delas criação.
No mesmo período, o diretor argentino Victor Garcia utiliza a noção de
“espaço cênico” como principal alicerce da criação teatral
32
. Em
Cemitério de
Automóveis
(1968), apresentado num galpão desativado onde funcionavam duas
oficinas mecânicas, a plateia sentava-se junto a uma instalação na qual carcaças
de carros eram penduradas pelo teto. Em
O Balcão
(1969) com cenários e plateia
verticais realizados por Wladimir Pereira Cardoso
33
, utilizando todo o vão da caixa
29
Na época, Elevado Presidente Costa e Silva.
30
Depoimento de José Celso Martinez Correa em aula realizada na disciplina
Teatro Oficina: seis décadas de
cena radical brasileira
, realizada em 2016 por Cibele Forjaz e Marcos Bulhões.
31
Ambas dirigidas por Martim Gonçalves.
32
Segundo Souza (2003, p.26), “[o] espaço cênico foi explorado por Victor Garcia através do rompimento com
a frontalidade; da fusão entre as áreas de representação e de público; e da complexidade mecânica dos
elementos cenográficos”.
33
Por esse trabalho, o arquiteto recebeu o prêmio de melhor cenografia pela Associação Paulista dos Críticos
Teatrais.
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cênica do Teatro Ruth Escobar, do porão ao urdimento é instalada uma estrutura
vertical em espiral feita com sobras da construção da Praça Roosevelt (Souza,
2003, p.132), tornando-se um marco da mecânica e tecnologia cenográfica no
Brasil (Serroni, 2013, p.53). Tais obras constituem, acredito, uma espécie de gênese
da
cena expandida paulistana
, sempre dialogando com o contexto da cidade e do
país, assim como é também possível identificar no trabalho de Flávio Império,
junto ao Teatro de Arena, por outras vias.
No Rio de Janeiro, o cenógrafo Luiz Carlos Ripper através da “busca por
uma linguagem brasileira” (Bulcão, 2014, p.85) ligada às três matrizes culturais do
país tinha, entre outros interesses, a expansão da cena e o “contínuo
transbordamento dos limites na ocupação do espaço” (Bulcão, 2014, p.85), em
trabalhos que se estenderam entre o teatro e o cinema nas décadas de 1970 e
1980, nos quais o próprio cenógrafo amplia sua atuação como diretor de arte,
incluindo figurinos, iluminação, produção e direção, além da pesquisa e ensino,
criando um “modelo” de atuação expandido. No mesmo período, Aderbal Júnior
dirigiu
A Morte de Danton
(1977), encenando-a dentro de um canteiro de obras
subterrâneo do metrô no centro da cidade, remetendo ao processo de
transformação das cidades brasileiras no período, como descrito por Lídia
Kosovski (2009).
Paralelamente, no campo das artes visuais, o curador e crítico de arte
Frederico de Morais, interessado na produção de vanguarda nacional, em
projetos como
Domingos da Criação
, no Museu de Arte Moderna (MAM)
do Rio de Janeiro, ou Do Corpo
à
Terra (1970), em Belo Horizonte,
aproxima não apenas a produção artística, mas a experiência do público,
levando à rua propostas de interação com diferentes materiais, naturais
e artificiais, muitas vezes lixo industrial ou resíduos do consumo
34
(Rebouças, 2021, p.57).
Essas “manifestações de livre criatividade com novos materiais”
35
revelam,
34
De acordo com o curador, “As quantidades do material doado por diferentes empresas eram significativas.
Vários fardos cúbicos de aparas de papel e de tecido, que pareciam inesgotáveis quando abertos, enormes
bobinas de papel pardo, sobras de bobinas de papel-jornal, caixas de papelão corrugado, centenas de
revistas. Peças inteiras de tecido eram desenroladas pelos integrantes do grupo teatral Tá na Rua, para criar
cenografias e coreografias em seu deambular pelos espaços do MAM, subindo e descendo a rampa que leva
ao terraço ou encimando as pedras retangulares do jardim. Para o Domingo Terra a Terra, foram toneladas
de areia, brita e outros materiais de construção transportados em caminhões basculantes e despejados no
pátio do museu” (Morais, 2013, p.345).
35
Morais, 2013, p.345.
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em suas ações expandidas pelo entorno dos museus, de parques e de áreas
públicas urbanas, o interesse pela inserção da criatividade artística no cotidiano,
explorando linguagens como a performance, o
happening
e a intervenção. Ao
afirmar que em países como o Brasil “a arte, quando levada à rua, ganha sempre
uma moldura política”
36
, Morais defende a proposta como “um comportamento,
um modo de encarar as coisas, os homens e os materiais”
37
, tendo artistas como
Hélio Oiticica, Artur Barrio, Carlos Vergara, Antonio Manuel, Cildo Meireles, entre
outros, propondo as experiências.
No início dos anos de 1990, o Teatro da Vertigem e a Kompanhia do Centro
da Terra realizaram em São Paulo
O Paraíso Perdido
(numa igreja) e
Viagem ao
Centro da Terra
Expedição Experimental Multimídia
(uma travessia pelo Túnel
Jânio Quadros), respectivamente, atualizando a tradição da prática expandida,
seguida por outros trabalhos que aproximam de modo definitivo dramaturgia e
espacialidade. Ainda, Artur Barrio, o grupo 3NÓS3, Renato Cohen – entre inúmeras
criações realizadas por todo o Brasil têm proposto situações imersivas, que
borram e atravessam disciplinas, renovando-as a partir de
perspectivas
participativas.
Em 2011, a mostra
Personagens e Fronteiras: Território Cenográfico Brasileiro
,
que representou o país na PQ naquele ano, recebendo a Triga de Ouro, apresentou
quatro eixos conceituais para acolher a diversa produção do país:
Memória,
Lugares, Ação
e
Transposição
.
Lugares,
por exemplo, incluiu os aspectos
socioculturais do espaço a partir do trabalho realizado pelos grupos e companhias,
geralmente baseados em sedes/espaços próprios de apresentação, trazendo para
a narrativa o homem e seu contexto através de espaços imersivos que unificam
cena e público. E
Transposição
, por sua vez, apresentou o espaço como um
território permeável onde “o rompimento de fronteiras de linguagem se apresenta
melhor identificado”
38
, confirmando essas características através do conjunto de
trabalhos (Rebouças, 2021, p.62).
36
Morais, 2013, p.342.
37
Morais, 2013, p.350.
38
Cohen; Teixeira, 2011, p.61.
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Na mesma edição do evento,
BR-3 (2006)
, do Teatro da Vertigem, recebeu o
prêmio de Melhor Espetáculo Internacional. O projeto um dos mais radicais
site-
specific
brasileiros aconteceu no poluído rio Tietê, em São Paulo, de onde a
plateia, dentro de um barco, assistia às cenas que aconteciam nas margens,
pontes e outros barcos, ganhando uma dimensão metropolitana. Desse modo, a
cenografia expandida
, que toma os
lugares
criando
relações
, é reconhecida, dentro
dessa variada paisagem, como um aspecto identitário da cenografia brasileira, uma
maneira de narrar.
Em São Paulo, a produção dos grupos vincula-se, muitas vezes, a um
determinado espaço, lugar ou região. Utilizando-os como sede, sala de ensaio e
local para apresentações, os grupos acabam por desenvolver relações intricadas
com os lugares, o que pode ser entendido como uma prática ambiental, imersiva
expandida
–, tal como é possível observar no Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona,
Teatro Ventoforte, Grupo Pombas Urbanas, Casa Livre (Cia. Livre), Cemitério de
Automóveis, Os Fofos Encenam, Teatro do Incêndio, Teatro do Conteiner, Espaço
28 (grupo 28 Patas Furiosas), entre inúmeros outros
39
.
Mantendo uma espécie de “tradição”
site-specific
, o teatro paulistano,
sobretudo a partir do ano de 2002, com a aprovação da Lei de Fomento ao Teatro
para a Cidade de São Paulo, ampliou consideravelmente o número de sedes e
espaços de criação, muitas vezes compartilhados.
Essa linguagem possui um caráter político, que tem na ocupação e uso dos
espaços (muitas vezes públicos), além de uma prática de resistência, sua revelação
para o próprio bairro e região, funcionando como centros culturais regionais. As
condições de produção com baixo orçamento acabam por instigar a ocupação de
ruas e edifícios, assim como a associação a outros artistas e coletivos numa
39
Entre as décadas de 1990 e 2000, particularmente na cidade de São Paulo, com a realização de pesquisas
teatrais continuadas a partir de programas de subsídio públicos (como a Lei de Fomento ao Teatro) ou
privados, mais cenógrafo/as, figurinistas, iluminadores/as, sonoplastas e artistas da cena ganharam
oportunidades de desenvolver, junto aos grupos e companhias, suas linguagens. Disso floresceram modos
próprios de criação em experiências diversas que, mantendo certa
linguagem
precária
como tema intrínseco
às obras, em processos espaço-visuais integrados, formaram uma geração de artistas e técnicos/as, muitos
deles atuando hoje também no ensino, consolidando e transmitindo tais conhecimentos.
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possibilidade de atuação em rede, apropriando-se dos espaços com ou sem uso,
em processos de coabitação.
A investigação espacial inclui, ainda, de edifícios patrimoniais simbólicos a
casas anônimas, de apartamentos a praças, de tipologias públicas a mansões
aristocráticas privadas. A relação com os espaços varia no tipo e na duração: no
rio, na favela, na vila operária, no albergue, na igreja, no hospital, no presídio, no
trem, no ônibus, sob e sobre os viadutos, em ruínas e na mata, no lixo ou na
suntuosidade, o teatro e a cenografia acontece no Brasil. Também em museus,
galerias, salas, galpões, corredores, quadras e pátios, além de nos teatros
convencionais, em áreas periféricas, em espaços abandonados, de transição e
circulação pública, como terminais de transporte coletivo, faixas de pedestres e
outros espaços de passagem. Todos esses modos
expandidos
constituem um
procedimento tido como “experimental”, característico do/a cenógrafo/a que atua
em contextos não hegemônicos, periféricos ao sistema de produção capitalista
40
.
Ainda, processos de residência artística, como a Cia. São Jorge de Variedades
no Albergue Oficina Boracéa no Canindé (
As Bastianas
) e no bairro da Barra Funda
(Barafonda), o Grupo XIX de Teatro no Sítio Morrinhos (
Hysteria
) e na Vila Maria
Zélia (
Hygiene)
, ou a Cia. Estopô Balaio no Jardim Romano, caracterizam relações
cotidianas e continuadas com lugares, vizinhanças e suas populações. Além da
ocupação continuada, as propostas de intervenção praticadas pelo Teatro da
Vertigem, Grupo Bartolomeu de Depoimentos, Les Commédiens Tropicales,
Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, casadalapa, Desvio Coletivo, Mundana
Cia., assim como outras companhias de teatro de/na rua, muitas vezes convidam
a nos deslocarmos através de espaços com características diversas e a adentrar
espacialidades que muitas vezes não fazem parte de nosso cotidiano, em
diferentes áreas da cidade, centrais e periféricas, históricas e anônimas.
A prática teatral expandida brasileira tem atuado nas últimas décadas como
costura
, como atividade sociocultural nos territórios fraturados da cidade,
40
Parte significativa dessa produção tem sido possível devido à Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de
São Paulo (2002). Políticas culturais como essa apoiaram, nas últimas décadas, a transformação e a
profissionalização dos modos de trabalho teatral em São Paulo e no Brasil, permitindo a abertura de espaços
de criação, assim como a ocupação de regiões da cidade, ampliando a rede de acesso às peças e
promovendo a travessia do público por áreas diversas da cidade.
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incluindo o uso de espaços (abandonados e/ou sem recursos), a crítica das
políticas e operações urbanas que lhes dão origem, ampliando as relações
coletivas que traçamos entre os lugares, as pessoas, seus processos, desejos e
conflitos. O fazer cenográfico, nesses casos, faz-se presente desde o início dos
processos de criação, ressaltando inúmeros aspectos pertencentes aos territórios,
colaborando na construção de uma poética própria a cada lugar, de onde parte
muitas vezes também a dramaturgia.
A imersão nos locais fornece, portanto, chaves para a compreensão de
possíveis formas de habitá-los e ocupá-los. É na relação do tema com o
espaço escolhido (seja ele ocupado, cedido, invadido, alugado, etc.) que a
encenação é criada, produzida ou reinventada. Neste sentido, cada
espetáculo torna-se autêntico e autônomo, pois determina uma
experiência única (Rebouças, 2010, p.198).
Dessa maneira, ao estender o espaço cênico em direção ao urbano, é preciso
considerar sua intricada rede de posições, agentes, personagens, condições e
afetos. Esse aspecto ocorre no Brasil com mais frequência que em países
europeus ou norte-americanos, por exemplo, com suas rígidas normas de
segurança que dificultam a ocupação de edifícios e áreas externas, entre outros
fatores. O espaço aqui constitui uma
relação de conflito
, sendo necessário interagir
diretamente com essa “realidade” e seus riscos.
Nesse sentido, a relação com a cidade traz à tona geografias, memórias,
modos de vida e cicatrizes muitas vezes perdidas, abandonadas, esquecidas ou
soterradas resíduos que eram, até então, invisibilizados. As obras imersivas
escavam os lugares e põem em confronto posições diversas, ganhando amplitude
política.
Uma abordagem cenográfica a partir do Sul
Uma epistemologia do Sul assenta
em três orientações:
Aprender que existe o Sul;
Aprender a ir para o Sul;
Aprender a partir do Sul e com o Sul.
Boaventura de Souza Santos (2009, p.09)
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É preciso lembrar, como nos aponta Aníbal Quijano (2005, p.121), que se os
“n
ã
o-europeus” foram tomados como “pré-europeus”, a criação cenográfica
brasileira também se enquadraria na lógica de que com o tempo nos
europeizaríamos nos modernizaríamos –, seguindo um longo processo de
construção/imposição epistemológica que operou “uma colonização das
perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados
da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações
intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura”. É nesse sentido, portanto, que
identifico essa
perspectiva situada a partir do Sul
, formulada em
complementaridade à hegemonia da cultura da caixa cênica. Pois na medida em
que a produção teórico-reflexiva da cenografia continua baseada sobretudo nos
países do Norte global, essa dimensão a partir do Sul constitui, na prática, uma
mirada a uma amplitude de paradigmas estético-culturais que se manifestam em
permanente movimento entre o ancestral e o atual.
Nessa
prática cenográfica expandida contextual
, a cada nova experiência e
seus diferentes condicionantes, os resultados apresentam-se diversos,
respondendo diferentemente às questões e passando a integrar novas
possibilidades que se somam ao fazer, redimensionando-o. Ampliam-se não
apenas os conceitos que mobiliza, como as disciplinas, as técnicas, os fazeres, as
necessidades e as linguagens artísticas que opera. A cenografia a partir do Sul
passa a integrar, assim, uma complexa discussão sobre os processos de
transformação urbana, gentrificação, consumo e abandono, entropia e destruição,
e seus arquivos espaço-visuais resultantes.
Os imaginários que essas práticas propõem mobilizam nossos repertórios
individuais anteriormente vividos (memórias e aprendizados) e que desejamos
explorar. Enquanto práxis, a
cenografia expandida a partir do Sul
constitui um
processo em que os conceitos a serem analisados são inicialmente praticados,
convertidos em parte da experiência associada à pesquisa. Assim, as ideias são
postas à prova e experimentadas no contexto e na escala “real”, buscando
conectar diretamente os conceitos discutidos com as vivências, num processo
cíclico e livre de aprendizagem.
É sobretudo nesse sentido de tessitura que a prática do espaço se torna um
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instrumento chave para a criação dramatúrgica, pois é nesse imbricamento que
surgem as respostas artísticas para ambas as áreas.
A partir de uma relação estendida em direção aos lugares críticos, o/a
cenógrafo/a desloca também seu paradigma, abrindo possibilidades para
compreender “uma mudança completa na visão do mundo” (Mirza apud Kilomba,
2019, p.198), cujos “modelos de percepção da realidade mudam substancialmente”
(Mirza apud Kilomba, 2019, p.197). Nessa operação epistemológica, a
prática da
cenografia expandida brasileira
passa a configurar um caminho possível, um modo
de ação que se apoia além de na cenografia ocidental europeia em
conhecimentos ligados às práticas
urbanas provisórias
.
É a partir da
práxis
, portanto, que tal contexto se efetiva. Os procedimentos
de criação cenográfica expandida a partir do Sul envolvem a experiência como
propulsora das situações investigadas, a fim de gerar experimentos de linguagem,
pois ao acontecerem em locais não-oficiais, utilizam-se de outros repertórios
formais. Esse modo de fazer, construído em zonas fronteiriças, entre materiais e
objetos moventes, precário, os converte em “potência e pode tornar-se meio de
criação e modo de produção”, como defende Eleonora Fabião (2011, p.65), pois “não
leva à deterioração, mas à recriação” (Fabião, p.66).
Ao trazer à tona imagens, procedimentos e “artes do fazer” (Certeau, 1994),
através desses lugares e seus materiais, busco evidenciar as identidades às quais
os imaginários estão associados, para que sejam notados, discutidos,
problematizados, revistos, reinventados. Nesse sentido, a expansão da cenografia
nos países do Sul torna-se um procedimento crítico, antiespetacular, pois, ao se
revelar tais paisagens, revelam-se também os processos anteriores que lhe deram
origem sua precarização sistêmica. Nesse sentido, o fazer
experimental
apresenta-se como linguagem viva, assim como suas imagens e performances.
Seu procedimento implica uma disponibilidade relacional, dinâmica, em constante
movimento. Suas formas efêmeras mantêm-se em aberto, exigem interação,
desejo de completude, colaboração.
Dentre as inúmeras manifestações, essa tradição conectada aos lugares é
manifestada ainda no circo brasileiro, efervescente
locus
da produção e formação
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multicultural do país entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX,
cuja necessidade de contínuo deslocamento desenvolveu uma arquitetura
nômade alinhada às condições ambientais e urbanas das diferentes partes do país,
tendo Benjamim de Oliveira como um marco dessa produção artística integrada
entre linguagem e modo de vida. É através dessa característica expandida, que
ocupa os locais e cria novas dinâmicas, que se afirma tal modo de fazer do Sul.
Não busco nessa crítica aludir a uma suposta “origem”, “essência” ou modo
identitário da cenografia brasileira expandida, mas apontar de dentro para fora
e de fora para dentro, ou seja, como temos nos visto e como o mundo nos
uma potência de liberdade pela qual temos nos identificado e sido reconhecidos.
Isso não apenas nos permite manter nosso modo “inventivo” e
gambiarrístico
,
afirmando um
estado de espírito
atento às diferenças e às destruições, como nos
desafia continuamente sua própria impossibilidade, fazendo dela uma linguagem.
Como podemos seguir dialogando em aprendizado e aliança com essa variada
cultura?
Outra possibilidade de nomeação dessa
cenografia expandida
ou
em
expansão
, seria
cenografia expandida política
, pois, na América Latina, assim como
em inúmeros outros países, as práticas expandidas carregam, ao ocupar as ruas e
espaços sem uso, atitudes político-estéticas em suas premissas de trabalho. É
nessa perspectiva que nos colocamos sempre em situação, pois imersos pelos
conflitos territoriais na disputa por espaço. Na
mirada do Sul
, essa poética funciona
como uma intervenção crítica sobre os lugares e suas histórias.
Diante dessa suposta
ruína
, entretanto, observo brotar modos mais
incorporados de criação, explorando outros territórios, uma vez que retornar às
bases da experiência do sentir ativa um campo sensível através da conclamação
das potencialidades do corpo como dispositivo, junto às coisas ou as suas
ausências. Por entre espetáculos e escombros, atravessando territórios em
oposição, o trabalho de revelar tais
poéticas criadas a partir da destruição
acaba
por revelar a destruição do Brasil como uma dimensão identitária, diante da qual
é preciso reimaginar continuamente outros mundos possíveis, solicitando táticas
amplificadas. Se todo o sistema global tende a esse estado precário, as práticas
expandidas a partir do Sul passam a constituir um repertório fundamental que
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pode ser utilizado de diferentes maneiras para compor os campos de travessia do
presente e do futuro. São essa disponibilidade, essa inteligência, essa magia, essa
alegria que nos habita as ferramentas com as quais podemos e devemos
caminhar.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br