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Sob melancolia histórica: O pós-64 em
Moço
em estado de sítio
, de Oduvaldo Vianna Filho
Paulo Bio Toledo
Nathália Cioffi de Lima
Para citar este artigo:
TOLEDO, Paulo Bio; LIMA, Nathália Cioffi de. Sob
melancolia histórica: O pós-64 em
Moço em estado de
sítio
, de Oduvaldo Vianna Filho.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 44, set.
2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0109
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Sob melancolia histórica: O pós-64 em
Moço em estado de sítio
, de Oduvaldo Vianna Filho
Paulo Bio Toledo; Nathália Cioffi de Lima
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-17, set. 2022
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Sob melancolia histórica:
O pós-64 em Moço em estado de sítio, de Oduvaldo Vianna Filho
1
Paulo Bio Toledo
2
Nathália Cioffi de Lima
3
Resumo
Este trabalho se propôs a examinar a elaboração da melancolia em
Moço em
estado de sítio
, de Oduvaldo Vianna Filho, escrita logo após o golpe militar de
1964. Por meio da leitura analítica dessa produção dramatúrgica, foi analisado
de que forma as tensões e desavenças que permeiam as personagens
centrais, bem como a própria estrutura da narrativa, traçam uma espécie de
diagnóstico melancólico do país diante da fratura social e do mal estar
advindos do regime militar, assim como da estagnação de uma geração de
intelectuais e artistas que se viu, após 64, igualmente sitiada.
Palavras-chave
: Melancolia. Oduvaldo Vianna Filho. Teatro político. Ditadura.
1
Revisado por Sara Meynard Begname, Mestranda em Literatura Brasileira na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Graduada em Letras pela mesma instituição.
2
Doutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Literatura e Teatro da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). paulo.v.bio@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1275109825876117 https://orcid.org/0000-0003-2025-7586
3
Mestranda do departamento de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Graduada em Jornalismo pela PUC-Minas. nathaliacioffi.lima@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1740093405463608 https://orcid.org/0000-0002-2706-0340
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Moço em estado de sítio
, de Oduvaldo Vianna Filho
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Under the historical melancholy:
The post-64 in Moço em estado de sítio, by Oduvaldo Vianna Filho
Abstract
This article aimed to examine the elaboration of melancholy in
Moço em
Estado de Sítio
, by Oduvaldo Vianna Filho, written shortly after the 1964
military coup. Through the analytical reading of this dramaturgical production,
it was analyzed how the tensions and disagreements that permeate the
central characters, as the narrative structure itself, delineate a certain type of
melancholic diagnosis of the country in front of the social fracture and the
malaise arised from the military regime, as well as the stagnation of a
generation of intellectuals and artists who were similarly besieged after 1964.
Keyword
s: Melancholy. Oduvaldo Vianna Filho. Political Theater. Dictatorship.
Bajo la melancolía histórica:
El pós-64 en Moço em estado de sítio, de Oduvaldo Vianna Filho
Resumen
Este trabajo se propuso examinar la elaboración de la melancolía en
Moço en
estado de sitio
, de Oduvaldo Vianna Filho, escrita poco después del golpe
militar de 1964. A través de la lectura analítica de esta producción
dramatúrgica, se analizó cómo las tensiones y desencuentros que impregnan
a los personajes centrales, así como la propia estructura de la narración,
trazan una especie de diagnóstico melancólico del país ante la fractura social
y el malestar surgido del régimen militar, así como el estancamiento de una
generación de intelectuales y artistas que se encontraron igualmente
asediados después del 64.
Palabras-clave
: Melancolía. Oduvaldo Vianna Filho. Teatro Popular. Dictadura.
Sob melancolia histórica: O pós-64 em
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Primeiro a gente acha absurdo, depois a gente acha normal. Acaba
entrando na ordem natural das coisas. [...] É o medo tomando conta de
tudo, tomando conta de todos… (Diálogo em
O Desafio
, Dir.: Paulo César
Saraceni, 1965).
4
O golpe de 1964 fraturou profundamente a conjuntura social e cultural do
Brasil: reprimiu com violência a pressão do trabalho sobre o capital e, ao mesmo
tempo, interditou boa parte das formulações artísticas mais experimentais no
campo da cultura engajada
5
.
Mesmo não sendo ambientada especificamente no Brasil, nem no contexto
ditatorial, a peça
Moço em estado de sítio
, escrita por Oduvaldo Vianna Filho em
1965, faz uma série de referências ao trauma histórico do golpe e tenta elaborar
os impasses e o torpor melancólico daqueles dias.
Diferentemente das peças produzidas antes de 1964, ostensivamente
engajadas, como
A mais-valia vai acabar
, seu Edgar (1960);
Brasil, versão brasileira
(1961) ou
Os Azeredos mais os Benevides
(1964), em que Vianna Filho coloca como
protagonistas trabalhadores e discute formas de opressão de classe no Brasil,
Moço em estado de sítio
possui um olhar crítico que se volta para o plano interno.
Na narrativa, observa-se a avaliação crítica do protagonista, sujeito de classe média
“de esquerda”, perdido em um momento de intensificação de processos sociais
do capital, como a crescente mercantilização das relações sociais e de trabalho, a
estagnação do experimentalismo politizado do teatro popular e a massificação
acelerada da indústria cultural, a partir de um olhar sobre a atmosfera interior,
repleta de desavenças e inquietações.
Considerada uma peça transitória e de menor importância na carreira de
Oduvaldo Vianna Filho, muitas vezes lida como apenas um esboço de suas obras
4
Trecho retirado da fala de Marcelo, protagonista do longa-metragem O desafio, interpretado por Oduvaldo
Vianna Filho. Ver em:
O desafio
. Direção: Paulo César Saraceni. Produções Cinematográficas Imago Ltda.
Mapa Filmes, Rio de Janeiro, Brasil, 1965.
5
Sobre a dimensão da fratura no ambiente cultural ver o clássico ensaio
Cultura e política
, 1964-1969
(Schwarz, 1992). As experiências artísticas que foram interrompidas foram sobretudo aquelas ligadas aos
grandes movimentos de democratização cultural, como os Centros Populares de Cultura entre 1961 e 1964.
O assunto é debatido em artigo publicado recentemente na revista
Urdimento
, Entre a estética e o político
(Nosella; Issene, 2016).
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5
futuras,
6
Moço em estado de sítio
apresenta, na verdade, um texto de alta
intensidade crítica, o que constitui um enfrentamento dos impasses daquele
momento histórico brasileiro.
Para isso, Vianna propõe uma sofisticada estrutura: um “mosaico de
mudanças bruscas e de cenas objetivas que se assemelham à estética
cinematográfica” (Villares, 2022). Acontecimentos rápidos são montados,
recortados e sobrepostos em quadros teatrais que também combinam
temporalidades por meio dos flashbacks e de um arranjo não-linear do enredo.
Ao mesmo tempo, essa movimentação vertiginosa na estrutura textual
contrasta com certa vivência errante do protagonista, Lúcio, o
Moço
referido no
título da peça, e de várias personagens em seu entorno. São seres cavados em
uma temporalidade própria, alheia ao movimento dos fenômenos exteriores, que
seguem um fluxo embriagado e sem devir. Conflitos estouram, decisões são
tomadas, mas tudo na peça parece sempre reproduzir o mesmo estado vacilante
e circular, que representa, na estrutura textual, um ambiente social preso a uma
espécie de transe e sem muitas possibilidades de avanço.
A velocidade da estrutura dramatúrgica, cujo andamento lembra a montagem
acelerada de planos de alguns filmes do Cinema Novo, cria um contraste com a
angústia paralisante do tempo e das personagens que compõem a peça. Vianinha
parece propor, com essa duplicidade, uma espécie de
ritmo dialético da
melancolia
para elaborar um momento histórico tragicamente acelerado pelo
golpe de abril de 1964, mas cujas consequências funestas impuseram uma
paralisia das forças sociais progressistas.
Com esse jogo estrutural, o texto firma uma espécie de diagnose do país
durante o período. O mal-estar e a melancolia do personagem central parecem
traduzir o estado de uma geração de artistas e intelectuais progressistas, que, no
Brasil pós-golpe, também se viu em estado de sítio, paralisada e impossibilitada
de enfrentar as novas condições históricas, ao mesmo tempo em que era siderada
pelo ritmo intenso da história regressiva do país.
6
Sobre as formas problemáticas de recepção da peça, ver Toledo, 2021.
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Melancolia do sujeito
A primeira cena de
Moço
em estado de sítio nos apresenta um problema
que será mantido ao longo de todo o enredo: a insatisfação de Lúcio com o meio
que o cerca. Participante de um coletivo teatral engajado, com integrantes que
apresentam posições políticas e artísticas divergentes, o protagonista aparece
como um ser isolado e inquieto com a estagnação e com a crescente precariedade
do teatro que o grupo pratica. Suas pretensões artísticas não são bem recebidas
ali, tampouco suas proposições políticas.
Logo em seguida, a narrativa introduz o ambiente familiar do protagonista,
igualmente colapsado. O pai de Lúcio, Cristóvão, vive, fantasiosamente, uma
espécie de memória recalcada e se apoia obsessivamente nas lembranças de um
passado honroso para ocultar o fracasso do presente, rememorando, dia após dia,
seu efêmero destaque enquanto jornalista. A mãe, Cota, vive de modo servil e
triste, em um eterno lamento pela sina de seus filhos. Lúcia, a jovem irmã, é
surpreendida por uma gravidez e sustém-se em um incessante dilema entre
realizar ou não o processo abortivo: “Não tenho vontade de quase nada...Acho que
eu quero ter um filho. Será?” (Vianna Filho, 2021b, p.47). Mesmo uma temática tão
séria como a do aborto é tratada com desinteresse e de maneira esquiva pelas
personagens da peça. Lúcia recorre aos demais personagens na tentativa de sanar
suas dúvidas e lidar com sua angústia. Seu esforço é sempre fracassado: “Faz o
que você tem vontade”, responde Bahia (Vianna Filho, 2021, p.47). Assim como o
restante do enredo, a situação movimenta-se de maneira errante, sem nunca
chegar a uma conclusão formal.
um impasse também no âmbito das relações amorosas: Lúcio mantém
um caso com Noemia e depois com Nívea, mas ama Suzana, que, por sua vez,
relaciona-se com Bahia. Essa desencontrada ciranda amorosa reafirma os
vínculos disformes entre as personagens de
Moço em estado de sítio
, os quais
configuram uma narrativa permeada de intimidades insolúveis e circulares.
Além da insatisfação profissional, artística e amorosa, outro desconforto
penetrado na interioridade pura de Lúcio. Ele demonstra um desagrado moral
consigo mesmo, evidenciando um ego
empobrecido
característica que nos
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permite aproximá-lo da personagem melancólica freudiana. O psicanalista
austríaco diferencia o enlutado do melancólico por este apresentar um
“rebaixamento extraordinário do seu sentimento de autoestima, um enorme
empobrecimento do ego” (Freud, 2011, p.31). Assim, para Freud (2011, p.31) “No luto
é o mundo que se tornou pobre e vazio; na melancolia é o próprio ego”.
Incapaz de elaborar o luto social diante de um tempo morto, no qual as
condições candentes de outrora foram todas interditadas (o Brasil de 1965), Lúcio
mergulha no impasse paralisante e autocentrado da melancolia freudiana:
A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso,
uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade
de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de
autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos,
chegando até a expectativa delirante de punição (Freud, 2011, p.29).
Se, ainda no início da trama, Lúcio parece ter sustentado posições firmes e
de liderança com os integrantes do coletivo teatral engajado, em boa parte da ação
da peça ele manifesta uma visão enfraquecida de si. No diálogo com seu amigo
Jean-Luc, questiona sua própria capacidade de atuação: “Você acha que eu estou
no grupo só por causa da Suzana? Discuto, me mordo, subo em caminhão, vai ver
é só por causa da Suzana. Serei tão pulha assim?” (Vianna Filho, 2021b, p.36).
Neste ponto, vale apontar uma outra faceta da melancolia, que revela um
profundo conhecimento do sujeito sobre si mesmo. Como observado por Freud
(2011, p.32), em uma “exacerbada autocrítica, ele [indivíduo melancólico] se
descreve como um homem mesquinho, egoísta, desonesto e dependente, que
sempre cuidou de ocultar as fraquezas do seu ser”. Pode-se pensar que ele, em
razão do próprio temperamento, tenha ‘se aproximado bastante do
autoconhecimento’, restando-nos a pergunta: ‘por que é preciso adoecer para
chegar a uma verdade como essa?’. Independentemente de ser justo ou não
consigo próprio, Lúcio mantém uma visão muito crítica de si e de sua postura
diante do grupo teatral. Essa visão, contudo, está atrelada a uma insegurança do
personagem, que, embora apresente traços de alienação da própria realidade e de
si mesmo, também se mostra ciente de suas fraquezas e posições inconsistentes.
Assim, ao questionar sua importância no coletivo, direcionando-a somente à figura
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de Suzana, o moço sitiado parece traçar um diagnóstico de si mesmo, embora
centrado somente no vazio de seu ego.
Lúcio, como é característica do indivíduo melancólico moderno, sofre as
angústias de quem perdeu seu lugar no plano social, uma vez que o meio
circundante parece ter se transformado, sem dar espaço para que ele o
acompanhasse. Por outro lado, talvez a incapacidade evidenciada seja mesmo a
de um jovem de classe média da época lidar com a dimensão daquele trauma
histórico. De todo modo, o ritmo arrastado dos acontecimentos da peça parece
traduzir a impossibilidade do personagem responder ao tempo e à ordem social
vigente.
Na longa tradição que envolve os estudos sobre a melancolia, essa condição,
discutida no Ocidente há pouco mais de dois mil anos, é representada na imagem
de sujeitos exilados, paralisados diante do mistério da existência, contemplativos
e em profundo desacerto com o tempo. Como visto por Starobinski (2014, p.59), o
indivíduo melancólico perde o sentimento de correlação entre o tempo interior e
o “movimento das coisas exteriores”, uma vez que ele “sente uma espécie de
obstáculo que o imobiliza diante do espetáculo exterior que se acelera
vertiginosamente”.
Os diversos movimentos empreendidos por Lúcio na peça parecem,
justamente, como tentativas angustiadas de sobrevivência no novo ambiente que
outrora lhe fora familiar. Na primeira parte da peça, vemos uma série de derrotas
sobrepostas. Para onde o protagonista olha, ele encontra um muro, um abismo,
um fracasso seja no trabalho artístico, na vida familiar, no desenvolvimento
pessoal ou nos anseios amorosos. Dessa forma, vai se reduzindo à paralisia de um
ser sitiado.
No decorrer da obra, Lúcio, antes revolucionário e engajado com o coletivo,
assume posições mais individualistas, afastando-se dos companheiros de grupo.
É também um sintoma do temperamento melancólico: a perda de interesse pelo
mundo externo (Freud, 2011) e o consequente isolamento do sujeito, recluso em
sua própria interioridade, cada vez mais centrado em si, uma vez que o ambiente
lá fora agora lhe é estranho e hostil.
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Não apenas Lúcio, mas boa parte dos integrantes do enredo, por estarem
centrados em suas próprias individualidades e em interesses particulares, são
incapazes de perceber a angústia alheia. Em um jogo de múltiplos espelhos,
Vianinha cerca o protagonista de personagens também voltados demais para as
suas próprias questões; sua interioridade melancólica os afasta do mundo e faz
com que mergulhem em si mesmos.
Essa coleção de personagens melancólicos plasma também a estrutura da
narrativa, com sua dimensão temporal confusa e o corte abrupto de cenas que
parecem não se desenvolver, ou que só encontram resoluções inconclusas. Além
disso, o diálogo entre as personagens, embora intenso, é dispersivo, jamais alcança
a profundidade e a urgência que as situações anunciam ou parecem exigir. A
resultante é uma atmosfera densa e negativa, materializada, sobretudo, na posição
egocêntrica e insensata das personagens e especialmente no desenvolvimento de
Lúcio ao longo da trama.
Por um lado, a melancolia é a expressão do fechamento do tempo sobre o
indivíduo. Não é sem piedade que acompanhamos o crescente isolamento do
protagonista e sua incapacidade de lidar com a vida. Ao mesmo tempo, por outro
lado, a melancolia ali também revela e aprofunda aspectos duvidosos, de classe,
que Lúcio representa.
Melancolia de esquerda
Logo chama atenção, no andamento da peça, como essa pulsão egocêntrica
de Lúcio leva a um retorno a veleidades e caprichos individualistas de seu estrato
social de origem, certa pequeno-burguesia
7
brasileira. Não é por acaso que, nos
momentos finais do enredo, ele se torna cada vez mais parecido com a figura de
seu pai, reproduzindo suas manias e sua covardia, mesmo sem suportá-lo.
7
É significativo, aliás, assinalar o enorme interesse que a peça
Pequenos burgueses
, na famosa montagem do
Teatro Oficina, teria despertado em Vianinha. Em 1968 ele escreveu: “‘Pequenos burgueses’, de Gorki, é um
espetáculo que faz parte da galeria de melhores manifestações artísticas produzidas no país nos últimos
tempos” (Vianna Filho, 1983, p. 125). A interpretação de Lúcio como um espécime da pequeno-burguesia
pode ser acompanhada no posfácio de edição recente da peça: “assim como na peça de Gorki, Vianna
também faz o exame impiedoso do jovem pequeno-burguês, inquieto e melancólico, que, apesar da
aparente recusa do mundo existente, logo vai herdar o lugar daqueles que o mantém como é” (Toledo, 2021,
p.119).
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Naquele tempo morto e sem perspectivas de transformação, o caráter
ensimesmado da melancolia parece se reverter em um intenso individualismo,
cuja recusa do mundo exterior leva o protagonista a descartar as tentativas de
engajamento popular de outrora e aderir à lógica produtiva do capital. Se
resignação neste gesto, vemos também um tipo de entusiasmo no modo como
Lúcio, antes um jovem inconformado com a máquina do mundo, vai modulando
seu discurso para participar daquilo que antes abominava, escalar altas posições
no jornal em que trabalha, aceitar o descarte de seus velhos companheiros e,
sozinho, tornar-se rico e conhecido.
Segundo Maria Silvia Betti (1997, p.205), “a facilidade como que Lúcio transita
de uma opção a outra revela a inconsistência de sua personalidade”. Contudo, para
além de uma inconsistência particular da personagem, as idas e vindas de seus
posicionamentos, ou a gradual sujeição de Lúcio ao sistema ideológico do jornal
em que trabalha, pode ser vista também como um tipo de
volubilidade
8
de classe
do rapaz. Ele vai de um extremo a outro, sem se constranger, de acordo com seus
caprichos de ocasião. Em suma, muda de posição porque pode. Desse modo,
muito rapidamente, o seu anterior posicionamento, firme e politizado, transforma-
se em uma participação desavergonhada nas novas condições do tempo.
Se, por um lado, assistimos ao declínio do protagonista, cada vez mais
mergulhado em um penumbrismo que o faz perder qualquer esperança em
relação à transformação da vida, também vemos seu triunfo na máquina
individualista do capital, que encontra condições favoráveis para se reproduzir
naquele momento. Nesse ponto, as formulações ponderadas e profundas de Lúcio
ganham ares de cinismo, atitude análoga ao que Walter Benjamin chamou de
melancolia de esquerda
(1987), quando, mesmo em condições adversas, de derrota
e refluxo da revolução, autores “de esquerda” seguem projetando discursos e
atitudes às quais “não corresponde mais nenhuma ação política” e, assim, realizam
8
O termo é usado aqui no sentido firmado por Roberto Schwarz (2000, p.35) em
Um mestre na periferia do
capitalismo
para mapear o “princípio formal” (p. 31) de
Memórias póstumas de Brás Cubas
. Assim como
Lúcio, também o narrador do romance machadiano vive suas “flutuações erráticas”; no entanto, Schwarz
não em Brás Cubas um caráter inconstante, afinal “a volubilidade do narrador e a série dos abusos
implicados retêm a feição específica de um movimento que a circunstância histórica impunha ou
facultava, conforme o ponto de vista,
à camada dominante brasileira
” (Schwarz , 2000, p.35, grifo nosso). A
volubilidade é o ritmo pelo qual se orienta o narrador do romance e, ao mesmo tempo, o movimento que
externaliza a “ambivalência ideológica das elites brasileiras” (Schwarz , 2000, p. 42), que se acostumaram a
conjugar opostos, como as ideias liberais e o exercício da escravidão.
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a “conversão de reflexos revolucionários [...] em objetos de distração, de
divertimento, rapidamente canalizados para o consumo” (Benjamin, 1987, p.75).
“Esquerdismo, bem dosado, fatura” (Vianna Filho, 2021b, p.89), diria Galhardo,
proprietário do jornal na peça que, pouco a pouco, impõe sua linha editorial a
Lúcio, sem abandonar o potencial de vendas que o discurso incendiário do jovem
ainda possui.
Como atesta Benjamin, referindo-se a artistas alemães dos anos 30, “Nunca
ninguém se acomodou tão confortavelmente numa situação tão inconfortável”
(Benjamin, 1987, p.75). A peça de Vianinha prevê, com a figura de Lúcio, um tipo de
padrão muito parecido com aquele descrito pelo crítico alemão. Trata-se de um
padrão revelador do que se tornou a arte engajada após 1964 no Brasil, a qual,
apesar da coragem e da tentativa de organizar formas de resistência, mergulhou
de cabeça no mundo da mercadoria e muitas vezes fez do protesto um tipo de
souvenir de um inconformismo social já derrotado.
9
É notável a maneira como Vianinha assinala a conexão entre a melancolia
ensimesmada do sujeito individual com formas escancaradas de adesão ao
existente naquele momento da história. O autor, que sentira o impacto do golpe e
a intensidade da fratura social em 1964, mira com raiva o mal-estar daquela
geração pequeno-burguesa de que faz parte e, sobretudo, as maneiras como a
melancolia integra uma torção retórica conformista e também conservadora.
10
Melancolia da história
Em 1965, Vianna Filho consegue, ao elaborar um enredo dramatúrgico
demasiadamente íntimo e enervado, dar a ver um movimento que ecoa,
sobretudo, o ritmo social da época. Ou seja, a movência vacilante e embriagada
das personagens grande sinal do
habitus
melancólico”, em razão do seu “passo
9
Sobre o assunto ver
A hora do teatro épico no Brasil
(Costa, 1999), além do citado ensaio de Roberto
Schwarz (1992).
10
É curioso notar que, alguns anos depois de escrever
Moço em estado de sítio
o próprio Vianinha seguirá
uma trilha semelhante a esta, clamando por discursos menos inflamados no campo da esquerda, criticando
formas mais abertas de confronto à ditadura e, nos anos 1970, entrando com entusiasmo na televisão até
se tornar um dos importantes roteiristas da TV Globo. Este percurso do autor faz desta peça um momento
bastante único em sua trajetória artística, diferente do que fez antes e de tudo aquilo que faria depois.
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lento” (Starobinski, 2014, p.17) —, que caminham sem sair do lugar, em total
descompasso à velocidade das coisas exteriores, traduz a cadência de um país
preso a um tempo estagnado, muito distante de qualquer expectativa de avanço.
Ao mesmo tempo, reajustam-se velhas formas de nossa sociabilidade colonial,
altamente conservadora.
A elaboração da intimidade das personagens de
Moço em estado de sítio
revelam complexidades histórico-sociais marcadas pela vivência no tempo morto
da ditadura. E, sendo o tempo a “atmosfera que envolve a melancolia” (Lima, 2017,
p.12), não seria exagero afirmar que a questão do tempo, na peça, é o maior indício
da situação melancólica de Lúcio e das demais personagens. Afinal, é justamente
pelo embate com a temporalidade que o personagem ensaia seu mergulho no
universo subjetivo, quando volta sua atenção para si mesmo, alheio à tragicidade
do meio exterior. As posições contraditórias e as fragilidades de Lúcio estão de
acordo com um sintoma social que o momento impunha.
Essa conexão entre particularidade subjetiva e os ritmos da história parece
ecoar outro trabalho do qual participou Vianinha. No mesmo ano em que estava
escrevendo
Moço em estado de sítio
, o dramaturgo também trabalhava no cinema
como ator, quando interpretou Marcelo, jovem igualmente sitiado e melancólico,
no longa
O desafio
, dirigido por Paulo César Saraceni com grande colaboração
criativa de Vianna, segundo Saraceni (1993, p.183).
No filme, assim como na peça, o desconforto do momento pós-golpe penetra
não apenas no plano interior do sujeito, mas em todas as relações sociais que o
cercam. Contudo, a aproximação mais evidente entre Lúcio e Marcelo está no
modo dúplice com que os dois personagens lidam com a situação sem saída.
Como próprio da condição melancólica, que implica não menos do que uma pausa
contemplativa, uma espécie de autoavaliação do sujeito, os dois moços sitiados
reúnem, de modo antagônico, a prostração absoluta da melancolia com também
um difuso desejo de mudança e resistência, como visto em uma das primeiras
falas de Marcelo: “Mas eu não posso estar em paz quando estou precisando tanto
de guerra”.
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Ver em:
O desafio
. Direção: Paulo César Saraceni. Produções Cinematográficas Imago Ltda. Mapa Filmes, Rio
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Essa contemplação solitária da condição melancólica, que lança o sujeito
para uma apreensão trágica e quase que incurável da realidade, é perceptível nas
duas personagens. Chama atenção que, tanto no filme como na peça, os dois
heróis trágicos, num diálogo fatigado e melancólico com suas respectivas
amantes, revelam suas insatisfações diante das novas configurações sociais e um
desejo de transformação e movimento.
Se, de um lado, a melancolia reúne a prostração absoluta e a tristeza diante
do tempo presente, de outro, também a vontade de produzir e tentar tirar
algum sentido da própria condição, ou pelo menos a necessidade de elaborar o
vazio. Não é por acaso que, durante muito tempo, a melancolia foi indissociável
do fazer artístico, o que acrescentou aos indivíduos melancólicos da Antiguidade
clássica um traço de excepcionalidade, vistos como sujeitos engenhosos nos
campos da filosofia, arte ou política. Nesse sentido do termo, um tom
melancólico do próprio Vianinha em seu trabalho com a peça. Os volteios febris
do texto podem ser vistos também como um tipo de empenho do autor em
contemplar e elaborar o acúmulo de fracassos históricos vividos por ele e seus
companheiros, os quais, antes de 1964, empenharam-se em um intenso trabalho
de transformação social da arte e da vida.
Na peça de Vianna Filho, também é possível ver a ambivalência entre a
atmosfera soturna, pessimista e inclemente em que se encontram todas as
personagens e a tentativa de elaboração crítica daqueles impasses, isto é, uma
tentativa de resposta ao período de incertezas que assolava o país.
Todavia, enquanto o personagem Marcelo, no filme
O desafio
, interpreta um
fim apoteótico, descendo as escadarias ao som de “Eu vivo num tempo de
guerra”
12
, num ímpeto de resistência, Lúcio se entranha cada vez mais na crise, em
sua condição sitiada e submissa: “Quero ficar quieto…preciso ficar quieto…” (Vianna
Filho, 2021b, p.107).
de Janeiro, Brasil, 1965, cit., 5min38s.
12
A canção foi composta por Edu Lobo para o espetáculo
Arena conta Zumbi
, do Teatro de Arena, que estreara
no início de 1965, pouco antes da finalização do filme. “Eu vivo num tempo de guerra se transformou
rapidamente numa espécie de hino de resistência nos primeiros anos de ditadura. Os sentidos da canção
são debatidos no artigo
A ambivalência do protesto no teatro e na canção no Brasil pós-1964
(Toledo, 2015).
Sob melancolia histórica: O pós-64 em
Moço em estado de sítio
, de Oduvaldo Vianna Filho
Paulo Bio Toledo; Nathália Cioffi de Lima
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-17, set. 2022
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De forma talvez mais realista, o melancólico intelectual pequeno-burguês e
de esquerda na peça não tem instrumentos para se indispor e recusar a realidade
que o domina, como faz Marcelo ao romper com tudo e todos na cena final de O
desafio. Lúcio é tragado pela melancolia da história e passa a contribuir para sua
permanência e reprodução.
A peça, contudo, tem um arremate profundamente melancólico: o
protagonista fica sozinho, longe da família e dos colegas de teatro e em silêncio,
atônito pela violência da realidade. Lúcia, a irmã, opta pelo aborto e continua no
mesmo marasmo visto no início da peça; Cristóvão, o pai, permanece preso aos
triunfos do passado. Tudo deságua em uma situação pesada, negativa e irresoluta.
O final alude a uma melancolia imposta pela história, como um duplo da
aceleração do capital, que paralisa e cala em vários níveis da vida social.
E se a peça é um documento artisticamente avançado, que tentou elaborar
a sensação abissal daquele momento histórico, seu engavetamento pode ser
compreendido também como um enfraquecimento melancólico, uma forma de
recuo à palavra do autor.
***
Como tentamos discutir nesta breve exposição,
Moço em estado de sítio
é
um trabalho que, mesmo centrado na corrente emocional do protagonista Lúcio,
apresenta valiosos elementos para compreendermos os acontecimentos de 64 e
seus respectivos desdobramentos. A peça elabora, no calor do momento, as
tensões do país logo após o firmamento do golpe. Vemos ali a estagnação artística,
a impossibilidade de um teatro de caráter popular e de resistência, o avanço
assustador da indústria cultural, a mercantilização das relações e também o
abatimento de uma geração marcada pelo golpe. São dilemas que percorrem o
andamento da trama e a sua estrutura.
Esse movimento melancólico do texto permite ao autor traçar um
diagnóstico de uma geração marcada pelo golpe, que viu a ruína de um mundo
que caiu em 64, mas que “continuou caindo para sempre, salvo para quem se
iludiu enquanto despencava” (Arantes, 2014, p.284). A melancolia sentida pelo
Sob melancolia histórica: O pós-64 em
Moço em estado de sítio
, de Oduvaldo Vianna Filho
Paulo Bio Toledo; Nathália Cioffi de Lima
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-17, set. 2022
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nosso moço sitiado carrega um peso histórico e testemunhal, que reúne as
fragilidades mais íntimas do sujeito com as questões históricas e o universo
externo igualmente colapsado. Em outras palavras, a melancolia vista na peça é
senão a melancolia nacional, materializada na trajetória em declínio moral de uma
personagem que, independente do caminho que percorre, não se vê livre de uma
vivência vazia, cínica e sem sentido, deixando-se levar por torções retóricas como
a que usa Galhardo, o magnata das comunicações e seu futuro cunhado, para
convencê-lo a capitular mais e mais de suas posições: “precisa admitir tudo se
quer mudar alguma coisa” (Vianna Filho, 2021b, p.102).
De um lado, Cristóvão, pai de Lúcio e uma possível imagem do futuro que
espera o filho, segue a peça toda tentando manter operante sua vida mesquinha:
“Não quero ver tudo desmoronar na minha frente” (Vianna Filho, 2021b, p.67), sem
se dar conta de que tudo se encontra em ruína. o anti-herói Lúcio finaliza sua
jornada errante aparentemente em um momento de fugaz consciência. Após
testemunhar uma brutal repressão policial contra Suzana e seus antigos
companheiros, tomado pelo horror da situação, ele parece elaborar, enfim, sua
covarde impotência diante da realidade: “Pelo amor de Deus, diz que eu não
estou…Não estou…” (Vianna Filho, 2021b, p.108). São as últimas falas da peça, que
termina em reticências e com um “longo silêncio” apontado pela rubrica final. Pode
parecer um momento de confronto com a dimensão abissal da história, um átimo
de aprendizagem. Entretanto, o silêncio aqui também demarca, na verdade, a
incapacidade de Lúcio em dizer não para Galhardo, que está ao telefone, insistindo
para que ele colabore com uma revista anticomunista
13
.
A peça de Oduvaldo Vianna Filho se como um testemunho histórico e
esforço analítico daqueles que se viram ante ao desafio de travar resistência e
exercer consciência política, mas que também sentiam ascender, como um astro,
o torpor melancólico sobre o país após o trauma do golpe. Diante do impasse,
Vianna parece fazer da peça uma dura autocrítica. O texto reconhece o vazio
dolorido de certa juventude participativa, mas também as pulsões esporádicas de
13
Uma imagem futura desse personagem pode ser vista em outra peça de Vianna, escrita logo em seguida,
em 1966, também engavetada pelo autor. Trata-se de
Mão na luva
(Vianna Filho, 2021), publicada
recentemente e cujo protagonista, ao que tudo indica, é o mesmo Lúcio, mais velho, rememorando sua vida
num momento de crise conjugal.
Sob melancolia histórica: O pós-64 em
Moço em estado de sítio
, de Oduvaldo Vianna Filho
Paulo Bio Toledo; Nathália Cioffi de Lima
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uma pequena-burguesia que, passado o entusiasmo da militância, logo retorna ao
seu desejo de comandar a máquina de exploração.
Por fim, a peça ainda revela que a melancolia, por ser demasiadamente
íntima, é também coletiva, cavada na experiência bruta da existência e nas
relações interpessoais. Nesse sentido, o fim estagnado de Lúcio é também o fim
de uma geração, e seu temperamento melancólico é um temperamento imposto
pela história regressiva do Brasil, sobretudo a partir de 1964. A melancolia aqui é
tanto uma chave de leitura histórica, muito bem manejada por Vianinha na escrita
da peça, como também uma característica de um ritmo social de classe:
individualista, volúvel, hostil ao que não é idêntico a si mesmo e alheio ao mundo
que, na verdade, homologa sem parar. Os passos melancólicos de Lúcio são uma
dura imagem de derrota e da paralisia social em 1964, mas o ritmo social dessa
melancolia também se escuta na marcha acelerada da locomotiva conservadora
do Brasil.
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Recebido em: 15/06/2022
Aprovado em: 21/08/2022
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