Sob melancolia histórica: O pós-64 em
Moço em estado de sítio
, de Oduvaldo Vianna Filho
Paulo Bio Toledo; Nathália Cioffi de Lima
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-17, set. 2022
Naquele tempo morto e sem perspectivas de transformação, o caráter
ensimesmado da melancolia parece se reverter em um intenso individualismo,
cuja recusa do mundo exterior leva o protagonista a descartar as tentativas de
engajamento popular de outrora e aderir à lógica produtiva do capital. Se há
resignação neste gesto, vemos também um tipo de entusiasmo no modo como
Lúcio, antes um jovem inconformado com a máquina do mundo, vai modulando
seu discurso para participar daquilo que antes abominava, escalar altas posições
no jornal em que trabalha, aceitar o descarte de seus velhos companheiros e,
sozinho, tornar-se rico e conhecido.
Segundo Maria Silvia Betti (1997, p.205), “a facilidade como que Lúcio transita
de uma opção a outra revela a inconsistência de sua personalidade”. Contudo, para
além de uma inconsistência particular da personagem, as idas e vindas de seus
posicionamentos, ou a gradual sujeição de Lúcio ao sistema ideológico do jornal
em que trabalha, pode ser vista também como um tipo de
volubilidade
de classe
do rapaz. Ele vai de um extremo a outro, sem se constranger, de acordo com seus
caprichos de ocasião. Em suma, muda de posição porque pode. Desse modo,
muito rapidamente, o seu anterior posicionamento, firme e politizado, transforma-
se em uma participação desavergonhada nas novas condições do tempo.
Se, por um lado, assistimos ao declínio do protagonista, cada vez mais
mergulhado em um penumbrismo que o faz perder qualquer esperança em
relação à transformação da vida, também vemos seu triunfo na máquina
individualista do capital, que encontra condições favoráveis para se reproduzir
naquele momento. Nesse ponto, as formulações ponderadas e profundas de Lúcio
ganham ares de cinismo, atitude análoga ao que Walter Benjamin chamou de
melancolia de esquerda
(1987), quando, mesmo em condições adversas, de derrota
e refluxo da revolução, autores “de esquerda” seguem projetando discursos e
atitudes às quais “não corresponde mais nenhuma ação política” e, assim, realizam
O termo é usado aqui no sentido firmado por Roberto Schwarz (2000, p.35) em
Um mestre na periferia do
capitalismo
para mapear o “princípio formal” (p. 31) de
Memórias póstumas de Brás Cubas
. Assim como
Lúcio, também o narrador do romance machadiano vive suas “flutuações erráticas”; no entanto, Schwarz
não vê em Brás Cubas um caráter inconstante, afinal “a volubilidade do narrador e a série dos abusos
implicados retêm a feição específica de um movimento que a circunstância histórica impunha – ou
facultava, conforme o ponto de vista,
à camada dominante brasileira
” (Schwarz , 2000, p.35, grifo nosso). A
volubilidade é o ritmo pelo qual se orienta o narrador do romance e, ao mesmo tempo, o movimento que
externaliza a “ambivalência ideológica das elites brasileiras” (Schwarz , 2000, p. 42), que se acostumaram a
conjugar opostos, como as ideias liberais e o exercício da escravidão.