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Teatro performativo no contexto das afasias: elaboração
de procedimentos e pedagogias nas artes da cena
Juliana Pablos Calligaris
Para citar este artigo:
CALLIGARIS, Juliana Pablo. Teatro performativo no contexto
das afasias: elaboração de procedimentos e pedagogias nas
artes da cena.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0202
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elaboração de procedimentos e pedagogias nas artes da cena
Juliana Pablos Calligaris
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-34, dez. 2022
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Teatro performativo no contexto das afasias: elaboração de
procedimentos e pedagogias nas artes da cena
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Juliana Pablos Calligaris
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Resumo
Este artigo reflete sobre o ato teatral performativo e a coocorrência de
semioses verbais e não verbais em contextos de afasia. A reconstituição de
semioses multimodais pela afásica, não na ausência da afasia, mas na
presença da afasia. Investiga a noção de densidade modal das semioses que
se interconectam, visando salientar que elas são: distintas; que sua relevância
na construção do sentido depende do recurso multimodal, da capacidade
oral e motora da afásica, de recursos mais convocados e recorrentes na cena,
do contexto de produção do sentido. Aprofunda interesses teóricos, estéticos,
metodológicos e práticos acerca da encenação performativa com pessoas
afásicas a fim de desenvolver um campo de estudos que contribua com as
práticas e pedagogias de criação nas artes da cena.
Palavras-chave
: Teatro Performativo. Performatividade. Multimodalidade.
Afasia.
1
Revisão textual em português realizada por Leticia Olivares (Leticia Maria Olivares Rodrigues). Atriz
profissional desde 1991, diretora, educadora, mestre em Artes Cênicas (ECA-USP, 2014), pós-graduada em
Dança e Consciência Corporal (FMU-SP, 2009). Graduada em Letras (Mackenzie, 2005). Trabalha como
avaliadora e revisora de textos desde 2010, principalmente acadêmicos e da área de Artes, nos campos das
Cênicas e Visuais, tendo prestado serviços (2012-2019) também às revistas aSPAs e Sala Preta, ambas do
Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (PPGAC/USP).
2
Mestre em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem/UNICAMP. Pós-graduação latu sensu em
Simbologia Teatral pela Escola de Comunicação e Artes - ECA/USP. Graduação em Artes Cênicas pelo
Instituto de Artes/Unicamp. Graduação em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas -
IFCH/UNICAMP. Licenciatura em Artes pelas Faculdades Mozarteum de São Paulo.
juliana.calligaris@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8031669351954415 https://orcid.org/0000-0002-6751-8643
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Performative theater in the context of aphasia: elaboration of
procedures and pedagogies in performing arts
Abstract
This article reflects on the performative theatrical act and the co-occurrence
of verbal and non-verbal semiosis in aphasia contexts. My focus is on the
reconstitution of multimodal semiosis by aphasia, not in the absence of
aphasia, but in the presence of aphasia. From there, I investigated the notion
of modal density of the semiosis that are interconnected, aiming to
emphasize that they are: distinct; that its relevance in the construction of
meaning depends on the multimodal resource, on the oral and motor
capacity of the aphasic, on the most summoned and recurrent resources in
the scene, on the context of meaning production. This article deepens
theoretical, aesthetic, methodological and practical interests about
performative staging with aphasic people in order to develop a field of study
that contributes to the practices and pedagogies of creation in the performing
arts.
Keywords
: Performative Theater. Performativity. Multimodality. Aphasia.
Teatro performativo en el contexto de la afasia: elaboración de
procedimientos y pedagogías en las artes escénicas
Resumen
Este artículo reflexiona sobre el acto teatral performativo y la concurrencia
de semiosis verbal y no verbal en contextos de afasia. Mi atención se centra
en la reconstitución de la semiosis multimodal por afasia, no en ausencia de
afasia, sino en presencia de afasia. A partir de ahí, investigué la noción de
densidad modal de las semiosis que están interconectadas, con el objetivo
de enfatizar que son: distintas; que su relevancia en la construcción de
sentido depende del recurso multimodal, de las habilidades orales y motrices
del afásico, de los recursos más convocados y recurrentes en la escena, del
contexto de producción de sentido. Profundiza los intereses teóricos,
estéticos, metodológicos y prácticos sobre la puesta en escena performativa
con personas afásicas para desarrollar un campo de estudio que contribuya
a las prácticas y pedagogías de la creación en las artes escénicas.
Palabras clave
: Teatro Performativo. Performatividad. Multimodalidad. Afasia.
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Introdução
O objetivo geral deste artigo é refletir sobre o ato teatral performativo e a
coocorrência/coexistência de semioses verbais e não verbais em contextos de
afasia. Recobre o aprofundamento assinalado na dissertação
3
dos interesses
teóricos, estéticos, metodológicos e práticos acerca da encenação performativa
com pessoas afásicas, a fim de desenvolver um campo de estudos que contribua
com as práticas e pedagogias de criação nas artes da cena.
A pesquisa foi realizada com a pessoas afásicas participantes do Centro de
Convivência de Afásicos (CCA), do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Meu enfoque e interesse recaem
na reconstituição de
semioses verbais e não verbais multimodais pela atuadora
afásica
4
, não na ausência da afasia
5
, mas na presença da afasia. A partir deste
objetivo, investiguei no grupo teatral que constituía o Programa de Expressão
Teatral (PET), o estatuto da densidade das semioses multimodais que coexistem
e coocorrem a fim de salientar que, além de serem distintas, sua relevância na
construção de sentido no teatro performativo durante o PET, desenvolvido por
mim durante 13 anos , dependeu do recurso salientado (por vezes mais verbal, em
outros momentos mais não verbal; em momentos estratégicos de criação, os
recursos estiveram mais integrados), da capacidade oral e gestual/motora da
atuadora afásica, de recursos mais convocados e recorrentes na cena e no
contexto de produção semiótica. Muitos destes recursos foram citados e
escolhidos pelas próprias afásicas em nossos diálogos pós-cena.
Para situar este artigo, saliento que segui por um veio de investigação herdado
do mestrado e de minha história no CCA, considerando que a primeira prospecção
que fiz no doutorado foi retomar os dados escritos e as materialidades
audiovisuais sobre o trabalho de teatro performativo que havia realizado no
centro, considerando que havia, diante de mim, mais de uma década de
3
Calligaris, 2016.
4
Para este artigo escolhi marcar as generalizações no feminino. Assim, ao me referir à atuadora afásica, no
singular e no plural, refiro-me a todas pessoas afásicas do grupo, por exemplo.
5
As afasias, grosso modo
, são sequelas na linguagem decorrentes de um episódio neurológico, como acidente
vascular cerebral (AVC), traumatismos cranioencefálicos ou um tumor cerebral. (Morato et al., 2002).
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procedimentos de interação, ressignificação e criação teatral processual do meu
modus operandi no trabalho de expressão teatral com afásicas registrados no
âmbito de uma pesquisa inter, multi e transdisciplinar entre Artes Cênicas,
Linguística e Semiótica (Calligaris, 2020).
Meu primeiro momento de presença no CCA aconteceu de 2003 a 2007 e o
que desenvolvi, naquele tempo, fez parte da minha Iniciação Científica
6
, que esteve
vinculada à minha graduação em Filosofia pelo Instituto de Estudos de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH/UNICAMP), realizada após a minha graduação em Artes
Cênicas pelo Instituto de Artes (IA/UNICAMP).
Naquele período, com conhecimentos provindos das três áreas, Artes
Cênicas, Semiótica e Linguística imbricadas com a Filosofia, identifiquei o
recurso das atuadoras afásicas participantes do PET a estratégias verbais e não
verbais próprias de diferentes sistemas semióticos para expressarem-se
performativamente, motivadas pela experiência com teatro.
Aquele estudo de IC deslizou para uma pesquisa de mestrado em Linguística
(Calligaris, 2016) com abrangência em teatro e semiótica, pelo IEL/UNICAMP de
2013 a 2016, que investigou a multimodalidade de semioses que coocorrem (o
gesto, a fala, o dar de ombros, o olhar etc.) com pessoas afásicas, pela via da
investigação da interconexão de distintos, ainda que ativos, processos semióticos
na construção de significados afim de analisar o papel da atividade cênica teatral
e do jogo teatral na (re)organização de possibilidades comunicativas, performativas
e expressivas daquelas pessoas.
Em minhas análises, a partir das vozes/comentários das atuadoras do grupo,
relacionei meus achados às principais informações acumuladas e arquivadas pelo
AphasiAcervus
7
sobre as próprias atuadoras no PET.
Nesse lugar de intersecção, coloquei-me igualmente na condição de
experimentar, junto ao grupo, o meu lugar histórico, o meu lugar de narração
6
Estudo das Semioses Coocorrentes no Trabalho de Expressão Teatral com Afásicos
. Bolsa de IC PIBIC/CNPq-
PRP. Orientada pela Profa. Dra. Edwiges Morato. Juliana Pablos Calligaris: Quotas 2004/2005; 2005/2006;
2006/2007.
7
Registro audiovisual dos encontros semanais do CCA com vistas à compreensão e acompanhamento das
atividades ali desenvolvidas.
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titubeante como participante do processo criativo, o meu lugar de força a partir
de qualquer fragilidade emocional ou cognitiva ao experimentar as minhas próprias
“afasias”, ainda que metaforizadas, ainda que não clinicamente diagnosticadas,
porém evidenciadas por todos os meus atos de decisão, de des-decisão, cisão,
afirmação e escolhas a partir das afasias das atuadoras, que deixaram de ser
afasias para a cena performativa que criamos; partindo do meu não lugar de
pessoa não afásica. Vertiginoso, porém, necessário. Amedrontador, no entanto,
fulcral! Joguei-me. Elas, com seus corpos fenomenais (Fischer-Lichte, 2008),
seguraram-me. Salto na luz e não no escuro. Seguimos, novamente,
não na
ausência da afasia, mas na presença da afasia
.
O PET, a Fundamentação do Fenômeno Teatral Afásico e a
Natureza Sociocognitiva da Arte
Enquanto artista e pesquisadora, como posso lidar com corpos cênicos
afásicos que me afetam e que me provocam enquanto fazedora das artes da
cena? Como decifrar os afetos que se impõem como forças geradoras de dúvida
epistemológica, desestabilizando e desorientando versões conhecidas de
descrição metodológica, da minha apreensão de corporeidades estéticas, num
dado evento que orientei? O que herdamos enquanto pessoas, enquanto artistas
pesquisadoras, de cenas que desafiam nossa compreensão para presenciar e
experienciar aquilo que corpos afásicos propõem? O que está em jogo nessa
ressignificação e como ela atravessa e ressoa na pesquisadora/artista/ser humano
que sou?
Conforme o tempo foi passando e meu trabalho e convívio no CCA foi
avançando no naquele e na história, fui me debruçando sobre estas questões, mas
quando aceitei o convite do ator e diretor Prof. Dr. José Tonezzi (DAC/UFPB) para
substituí-lo no centro como artista-pesquisadora e professora de teatro havia em
mim apenas o entusiasmo, a vontade, a paixão e o impulso pela pesquisa e pela
descoberta. E isso não era pouca coisa.
Em fins de janeiro de 2003, tive uma reunião com a Profa. Dra. Edwiges
Morato (IEL/UNICAMP), coordenadora do grupo no qual eu atuaria, nas próprias
dependências do CCA. Ela me apresentou o local e discorreu sobre as pesquisas
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ali desenvolvidas. Era o início da minha segunda IC, junto à graduação em Filosofia
e, desta feita, firmamos os acordos da nossa relação de orientação. Saí muito
motivada da reunião, com a possibilidade de realizar aquela segunda iniciação à
ciência (a primeira fora realizada durante a graduação em Artes Cênicas). Senti-
me estimulada com a possibilidade de ampliar os estudos das artes da cena como
campo expandido, numa pesquisa absolutamente interessante e de grande
aplicação e abrangência artística, social e cultural.
No meu primeiro dia no CCA, que foi em 23 de fevereiro de 2003, a Profa.
Edwiges e o Prof. Tonezzi apresentaram-me a todas as pessoas afásicas e não
afásicas, mestrandas e doutorandas do IEL, além de outras alunas de IC, da
graduação em Fonoaudiologia/UNICAMP. Durante todo o encontro permanecemos,
eu e as demais alunas de IC, numa pequena sala que ficava nos fundos das
dependências. Era um local apropriado para observação, com um espelho-espião
como vitrine (janela de um lado e espelho do outro). Ali foi meu primeiro lugar de
observação, de relação com a dinâmica das pessoas.
Tomando esse lastro de memória e vivência como gatilho, narrarei
brevemente como as experiências, aqui focalizadas, fomentaram desdobramentos
que permitiram simbolizá-las e (re)elaborá-las de modo a apreender suas
especificidades, mas sem negar as ainda a serem desvendadas. As inquietações
agora expostas continuarão a impulsionar esta travessia de pesquisa e, mesmo no
momento da escrita deste artigo, ainda ressoavam. A complexidade do campo
tripartite escolhido continua a gerar mobilizações e desestabilizações; as
estratégias de uma pedagogia de criação e formação artística a partir da cena
afásica, que instauram interseções e interações entre afasia, semiótica e
performatividade, estendem-se por zonas de perscrutação e escuta ainda inéditas
(que pretendo continuar a pesquisar e estudar após o doutorado).
Foi por isso que muitos cuidados tiveram que ser tomados em relação à
minha atitude e conduta como pesquisadora junto às atuadoras afásicas.
Cuidados, por exemplo, em não menosprezar aquilo que, parafraseando Freud
(1976) em seu artigo
O Estranho
, é comum a todas nós. As atuadoras que
participaram dos módulos performativos do PET, por exemplo, são pessoas que
estão muito longe de serem consideradas disfuncionais, tendo em vista que elas
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são altamente estratégicas, a despeito, evidentemente, daquilo que a afasia
implica, como alterações de ordem metalinguística, dificuldades recorrentes
maiores do que as de uma pessoa não afásica no momento de evocar uma palavra,
de gramaticalizar etc. Por isso, entendo que usar uma expressão como “disfunção”,
neste caso, seria rejeitar tudo aquilo que elas podem fazer e que têm feito durante
toda a vida, inclusive serem atuadoras no PET. O fazer teatral que instaurei no CCA
abarcou esse fato, entendeu esse fato, sobretudo por se tratar de um
fazer
performativo da cena afásica
como a entendo que coloca em risco qualquer
ideia de “normatividade”.
Para que este trabalho, portanto, seja interessante para a reflexão teatral e
de seus modos de produção, de pedagogia e de criação a partir de reflexão
linguística, para que possa ser lido e absorvido por uma leitora engajada e
interessada, procurei versar sobre as potencialidades humanas, sobre os mais
diferentes desafios, percalços e realizações, e, no caso da afasia que pode ser
uma diminuição da capacidade comunicativa que a afásica não possuía antes
acerca de como estas pessoas performam com intenção ficcional, de obra de arte.
Justamente porque uma pessoa afásica não é afásica o tempo todo. Existem
regularidades. Aliás, a meu ver, não haveria “anormalidades” nessa condição, no
sentido que afasia não quer dizer “suspensão do normal”; deste modo, pensando
para além da dicotomia judiciosa que contrapõe normal e patológico, conforme
esclarece Canguilhem, definir o anormal
Por meio do que é de mais ou de menos é reconhecer o caráter normativo
do estado dito normal [...] Esse estado normal ou fisiológico deixa de ser
apenas uma disposição detectável e explicável como um fato para ser a
manifestação do apego a algum valor (Canguilhem, 2012, p. 24).
Verifiquei, sob esta lupa, o quão estratégica deve ser uma pessoa afásica para
conviver com a sua dificuldade hemiparética
8
nas atividades do PET, por exemplo,
e o quanto isso envolve algum tipo de normalidade ao perceber, ao mesmo tempo,
que as minhas dificuldades são as minhas normalidades, como quando tenho que
escrever com a mão esquerda sendo que sou destra, ou quando tenho que usar o
8
Hemiparesia: fraqueza muscular ou paralisia parcial de um lado do corpo que pode afetar os braços, as
pernas e os músculos faciais.
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computador e seus meios digitais mais complexos, que não entendo. Dito de outro
modo, tudo isso envolve, na presença de uma dificuldade, um contexto de
normalidade que não é o de supressão do que é o normal.
A cultura de identificar certas condições como “anormalidade” decorre de
uma
monossemia
do termo cunhada no século XIX, derivada de conceitos
advindos dos séculos anteriores. Souto (2013, p. 40), discorre que “durante os
séculos XVII-XVIII, a medicina ainda estava atrelada a um discurso fantasista,
correlato a uma prática de observação médica que se limitava a um olhar de
superfície sobre os corpos”.
Não estou afirmando que a afasia não inflija à pessoa afásica uma contenção
das suas capacidades cognitivas e motoras, entretanto este fato está longe de
determinar que tal condição seja anômala, disfuncional (um termo ainda mais
complexo do ponto de vista filosófico e linguístico). Também uma falsa ideia
de que a afasia é “silenciosa” porque, supostamente, as pessoas falariam menos,
porém, não “silêncio” na expressão da pessoa afásica, sobretudo durante o
trabalho teatral. Não qualquer resquício de “silêncio” na condição afásica, um
exemplo disso é que tudo se amplia, dilata-se com a performatividade de um
corpo afásico que precisa ressignificar atos, gestos e movimentos o tempo todo,
na vida e durante a ação cênica.
Visto sob outro ângulo, é possível dizer que também eu tenho os meus
“silêncios” ou “engasgos” ou “tropeços” nas palavras quando falo socialmente, ou
quando leciono ou em qualquer circunstância na qual ajo/falo no mundo, seja
junto ao PET, numa peça teatral, ou como mãe que sou. Ao proceder à tarefa de
transcrição das minhas falas para minha pesquisa, por exemplo, tornou-se
evidente que minhas semioses orais também contêm subações, hesitações,
digressões. No caso de uma peça teatro, tais características são construídas e
ensaiadas artificialmente com vistas à composição de uma personagem, de um
ser ficcional; contudo, no fazer teatral afásico, tais características são e não são,
ao mesmo tempo, construídas e ensaiadas pela própria natureza do
ato
performativo afásico
9
.
9
Tópico a ser destrinçado mais adiante.
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Diante disso, cuidei para que eu não imprimisse algum grau de normativismo
(patológico) às atuadoras com as quais constituí um
modus operandi
de pedagogia
do teatro. Esta pesquisa se instaurou, como comentou Busato & Assunção (2020,
p. 11) no dossiê “Vista dos Espaços do Corpo ao Corpo no Espaço: Literatura e
Cultura”, sobre um “corpo que pensa e sente. Esse corpo inscreve e é inscrito na
cultura. [...] O corpo que é a expressão de uma linguagem, de um gesto, de uma
experiência”. Nossas experiências performacionais no CCA revelaram uma atitude
crítica em relação à representação contemporânea e suas implicações sensíveis,
estéticas e políticas enquanto ação no mundo. Foi essa a trilha que procurei seguir.
Vejamos. Vezali (2011, p. 21-22) afirma que a gestualidade emerge em maior
intensidade em contextos de interação entre pessoas afásicas, até mesmo porque
uma unidade corpórea sempre busca meios para contornar situações de mal-
entendidos em contextos de produção cotidiana:
Os gestos [da pessoa afásica], no entanto, não surgem como meramente
compensatórios devido à sua modalização, ou seja, não estão no lugar da
língua, como sugere a explicação de Kendon (2004), na qual o gesto
realizado na ausência total de fala torna-se articulado à maneira das
línguas de sinais, como se ocupasse todo o lugar da fala (Vezalli, 2011,
apud Calligaris, 2016, p. 13).
Assim, constato que a relação entre fala, ação e gesto, processo dinâmico e
intersemiótico que sanciona sentidos no fluxo de uma criação teatral, não se reduz
ao mero percurso interno da língua ou de qualquer outra estrutura. Apoio-me em
Vezali (2011) ao assumir que essa relação (entre fala, ação e gesto), em
circunstâncias criativas teatrais interativas, por ser parte integrante da enunciação
e envolver processos e estratégias semântico-pragmáticas, torna-se um dos
fenômenos mais instigantes a ser investigado em uma perspectiva pedágogica e
performativa da cena contemporânea com pessoas afásicas: porque
quando faz
uso da arte cênica para se expressar,
qualquer pessoa atuadora
lança mão de uma
série de estratégias verbais e não verbais para performar.
Tratei de seguir e fazer
a manutenção de uma experiência pedagógica que se caracterizou por uma
espécie de "transgressão estética", em favor de um corpo-cognição afásico, uma
experiência que assumiu e valorizou suas "potencialidades estéticas e imagéticas,
que vão contra uma norma corporal estabelecida em torno do belo e sua relação
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com a exposição" (Fregoneis, 2017, p.116).
Durante o ato teatral, aquilo que chamaríamos de “conversação espontânea”
torna-se artificializado pela própria natureza ficcional da célula cênica, ou seja,
artificializa-se, de forma reflexiva, a própria natureza do “paradigma da semiose”.
Ao longo desta pesquisa, vi surgir,
exemplarmente, uma complexa gama de atos
performativos afásicos
(portanto, multissemióticos10) verbais e não verbais
constitutivos, concomitantes, complementares e solidários gerados pelas próprias
atuadoras. Esses atos manifestaram-se nas práticas cênicas e improvisacionais
durante a ação porque a interação de várias semioses (olhar, gesto, expressão
corporal, fala etc.) gerou, para a afásica, situações de ganho cognitivo, quer dizer:
aprimoramento da comunicação e de seus processos sociocognitivos, permitido
pelas atividades intersubjetivas, inferenciais, corporais, sensório-motoras e
práxicas, a saber, o jogo teatral (Calligaris, 2016).
O PET que demandou esta prospecção doutoral foi, deste modo, um trabalho
de prática enquanto pesquisa.
De acordo com Haseman (2015), uma pesquisadora
performativa é aquela que realiza a pesquisa
guiada-pela-prática
. Esta é
intrinsecamente empírica e vem à tona quando a pesquisadora cria novas formas
artísticas e teorias para a performance e para sua apresentação pública:
Ao longo da última década, a pesquisa guiada-pela-prática emergiu como
uma estratégia potente para aqueles pesquisadores que desejam iniciar
e depois prosseguir a sua investigação através da prática. [...] Uma
estratégia de investigação dentro de um paradigma de pesquisa
inteiramente novo
Pesquisa Performativa
.
Recebendo o seu nome a
partir da teoria dos atos de fala de J.L. Austin
, a pesquisa performativa
permanece como uma alternativa aos paradigmas qualitativos e
quantitativos, insistindo em diferentes abordagens para
projetar, conduzir
e relatar a investigação
(Haseman, 2015, p. 41, grifos nossos).
Considerando-se que a maior parte do âmbito desta pesquisa foi empírica e
observou o desenvolvimento das habilidades de interação verbal e não verbal,
indispensáveis à prática teatral percebi que, por meio dos diversos módulos de
criação desenvolvidos na prática com as atuadoras, foi possível mobilizar a
capacidade de lançar mão de várias semioses multimodais (Norris, 2006) nas
práticas de significação e comunicação, explorando a técnica teatral (exercícios,
10
Neste artigo tomo multissemiose como sinônimo de multimodalidade.
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encenações, improvisação etc.) como ferramenta de ampliação de capacidades
expressivas dessas pessoas, quer dizer, “para o ator a experiência se dá,
principalmente, quando a experiência está impressa no corpo” (Colla, 2013, p.39).
Diante disso, este artigo não tenciona apresentar teorias com o intuito de
justificar a prática do Programa de Expressão Teatral ou promover conceitos, talvez,
inéditos, sob os quais foram analisados os trabalhos feitos no grupo, como se uma
prática artística possa ser validada a partir de uma teoria extrínseca à própria
prática. As ideias de corpo, percepção, cognição e performatividade articuladas
neste artigo foram aquelas que emergiram do próprio processo de investigação e
de observação da prática pedagógica do PET, bem como da fala de suas atuadoras.
Estas ideias serão discutidas em diálogo com algumas interlocutoras do campo
das Artes Cênicas, da Filosofia, da Sociologia, da Linguística, procurando, contudo,
manter o propósito de colocar as criações, os procedimentos criativos e as falas
das atuadoras, essas sim, em destaque.
Reforço que em nenhum momento “tratei ou trato da clínica médica. Antes,
porém, debruço-me sobre atuadoras afásicas e sobre a agitação de afetos,
sensações, percepções e aversões que permearam nossas experiências
performacionais” (Calligaris, 2020, p.4). Um fato prático disso é que, na pesquisa,
não houve uma distinção dicotômica entre teatro e performance, não só porque o
ato
performativo afásico
é teatral por natureza em conformidade com o que
defini para a tese porém porque também assumi a linha argumentativa apontada
pela pesquisadora Erika Fischer-Lichte que comentou o seguinte:
Nosso conceito de performance é mais amplo, enquanto que, para
Schechner e os falantes da língua inglesa, esse conceito é mais restrito.
Em inglês, quando se fala em teatro, pensa-se em dramaturgia; enquanto
na Alemanha, falamos em teatro quando performances, sejam elas
provindas da dramaturgia, do teatro não dramático, da dança ou ópera
etc. E, além disso, também falamos em teatro quando alguém faz uma
cena na rua, mesmo que não seja algo muito elaborado, mas com
pessoas assistindo. Quando os estudos teatrais surgiram na Alemanha
dentro da academia, começaram como uma disciplina sobre
performances. [...]. Tínhamos disciplinas de literatura, mas o foco estava
no texto; não tínhamos algo sobre performances. E uma vez que
precisávamos de uma, a disciplina acadêmica Estudos Teatrais foi criada,
com o objetivo de lidar com as performances (Fischer-Lichte, 2013, p.131).
Afinal de contas, como apreender o ser-no-mundo incorporado, sobretudo
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quando este ser-no-mundo se aprimora por processos performativos a partir de
seu próprio corpo afásico, seu “corpo inabitual”, algumas vezes, incompreensível a
um olhar desavisado? Acredito que uma das formas de apreensão e partilha da
materialidade do vivido por performadoras afásicas tenha sido a compreensão de
como pude instaurar um “teatro performativo”, tal como o cunhou Féral (2008, p.
200):
De fato, se é evidente que a performance redefiniu os parâmetros
permitindo-nos pensar a arte hoje, é evidente também que a prática da
performance teve uma incidência radical sobre prática teatral como um
todo. Dessa forma, seria preciso destacar também, mais profundamente,
essa filiação que opera uma ruptura epistemológica nos termos e adotar
a expressão “
teatro performativo
”.
E a constituição da sua demanda por uma teatralidade fenomenal; no caso
desta investigação, a partir de corpos fenomênicos afásicos:
O peculiar papel do corpo como material estético tem tido um lugar
central nas teorias do teatro e da atuação. A ênfase está na tensão entre
o corpo fenomenal do ator, ou o seu ser-no-mundo incorporado, e sua
representação da personagem dramática (Fischer-Lichter, 2008, p. 252).
11
Estas abordagens contemporâneas geraram movimentos artísticos que têm
como característica a desconstrução de um mero impulso mimético enquanto
princípio epistemológico para a criação. Assim sendo, conforme conclui Féral, a
aproximação entre performance e teatralidade torna-se evidente quando:
Tudo coloca certas performances atuais ao lado do teatro, em particular,
sua escritura cênica, sua relação com o corpo da performadora, com o
tempo de representação, com o real, com o espaço. [...]. A performance
se propõe, com efeito,
como modo de intervenção e de ação sobre o real
,
um real que ela procura desconstruir por intermédio da obra de arte. Por
isso ela vai trabalhar num duplo nível, procurando, de um lado,
reproduzi-
lo em função da subjetividade do performer;
e, de outro,
desconstruí-lo,
seja por meio do corpo performance teatral
seja da imagem
imagem do real que se projeta, constrói ou destrói a performance
tecnológica (Féral, 2008, p. 136-137, grifos nossos).
É deste modo, enfim, que esta reflexão busca apresentar as problemáticas
do campo de estudo delimitado ainda que trans, inter e multidisciplinar
11
The peculiar role of the body as aesthetic material has had a central place in theories of theatre and acting.
The emphasis lies in the tension between the phenomenal body of the actor, or their bodily being-in-the-
world, and their representation of the dramatic character. (Tradução nossa)
Teatro performativo no contexto das afasias:
elaboração de procedimentos e pedagogias nas artes da cena
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14
desveladas durante a travessia do mestrado e depois, no seu deslizamento para o
doutorado, bem como a complexidade com que elas se interpenetraram: as
fissuras que provocaram, os espaços abertos que ainda restaram e que se
afirmaram na apreensão das experiências, dos achados teóricos e práticos,
histórias e referências, que a seguir convoco para dialogar com a noção de
performatividade e teatralidade contemporâneas, visando avançar para o
mapeamento e constituição de procedimentos criativos e pedagogias nas artes da
cena a partir de pessoas com corpos afásicos performativos e fenomenais.
Afasia antes do teatro, uma história que atravessa mais de duas décadas e o
ainda aqui e agora
Cena Exclusiva 1: “Prólogo”
DADO 1 - Corpus:
AphasiAcervus
12
(07/03/2013)
Contexto: sessão do PET com a presença das pessoas não afásicas EM
(professora orientadora), JC (eu), RP, NF e NE e das pessoas afásicas MS, LM, SP, RB, OB.
Contexto: Retomada do PET sob minha orientação no início do mestrado, após a minha
última participação no grupo, em julho de 2007, ao final da IC. Começo o encontro com roda
da conversa. Em seguida, faríamos o aquecimento para iniciarmos o módulo Rasaboxes
13
1:
Introdução ao Tabuleiro e às Nove Rasa.
14
01 MS
o que é afasia?/ vo::você pergunto(u)/ “O que é afasia”? ((fala apontando para JC))
12
Para a constituição e visibilidade do corpus desta e de pesquisas anteriores, fiz uso do mesmo sistema
transcricional do COGITES, reelaborado em 2011 para a pesquisa de mestrado (Cf. Calligaris, 2016).
13
Concebido na década de 1980 e 1990 por Richard Schechner, a técnica dos Rasaboxes oferece às intérpretes,
atrizes e performers, uma ferramenta concreta física para acessar, expressar, e gerir seus
sentimentos/emoções no contexto das artes cênicas em geral. Útil como treinamento da intérprete, os
Rasaboxes também têm muitas outras aplicações em vários campos profissionais, incluindo (mas não
limitado a) terapias comportamentais e emocionais, educação e negócios. Basicamente, os Rasaboxes
treinam as participantes para expressar fisicamente oito emoções-chave identificadas pela primeira vez na
Natyasastra
, um texto sagrado hindu em sânscrito que ensina como lidar com teatro, dança e música
daqueles tempos imemoriais. Os Rasaboxes integram esta teoria ancestral juntamente com a pesquisa
contemporânea de vários autores, sobretudo a de Schechner (2003), sobre emoção e sobre o “cérebro na
barriga” (o sistema nervoso entérico), integram também estudos acerca da expressão facial da emoção,
acerca da neurociência das emoções e sobre a teoria da performance - incluindo a afirmação provocativa
de Antonin Artaud de que o ator é “um atleta de as emoções”. Os Rasaboxes são uma ferramenta totalmente
corporal e individual para expressar aquelas oito emoções-chaves principais, separadamente e em
combinação com a prática física direta.
14
A palavra sânscrita “rasa” pode ser traduzida como “sumo, sabor, aroma, essência”. O conceito subjacente
é que o “rasa” permeia e habita nossos sentimentos. “Rasa” é mais um processo do que uma coisa. Ainda
assim, as oito “rasas” podem ser identificadas e conjugadas. “Rasas” são os sabores primários como salgado,
azedo, doce, picante, adstringente e amargo. Ou cheiros. Ou como a pessoa se sente “vermelha”, “rosada”,
“pesada”, e assim por diante. Rasas” são os diferentes “sabores” de energia e emoções que são sentidas
durante uma performance artística ou numa situação da vida cotidiana. As oito rasas (em tradução livre)
são:
adbhuta
(surpresa, deslumbramento),
sringara
(amor,
eros
),
bhayanaka
(medo, vergonha),
bibhatsa
(nojo,
repulsa, revolta), vira (coragem, bravura),
hasya
(risada, o cômico, alegria),
karuna
(tristeza, compaixão,
melancolia), e
raudra
(ira, raiva). No século XI, o teórico da performance budista Abhinavagupta adicionou
um nono rasa,
shanta
(paz, bem-aventurança).
Shanta
é a “clara luz”, a combinação perfeitamente
equilibrada da mistura das outros oito rasas.
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15
02 JC
a primeira pergunta é/ “O que é afasia”?/ né?/ O que ela falou?
03
((indica EM com a cabeça))
04 MS
ela sabe o que é a a-afasia(.) ((apontando para EM)) é quando a gente
05
não consegue falar e nem pensar direito ((sorriso cínico))
06 JC
você concorda com isso?
7 MS
sim/ sim/ é... é::é... o corpo/ tem o corpo também/ ((mostrando o corpo com a mão direita))
08
não é só a cabeça/ porque-porque ela ((apontando para EM)) disse que tem que...
09
porque vários tipos de afasia/ né/ é... é/ fica mais difícil falar
10
mas aqui ó ((apontando para própria cabeça))/ tá tudo em ordem
11
é só aqui ó ((aponta a própria boca)) que fica difícil
12 JC
sim/ e o corpo/ igual você faLOU ((refere-se a MS com ambas as mãos))
13 MS
eu falo MUITO ((risos de todes))
14 MN
tem que tentar/ não pode ficar parado/ tem que fazer/ fazer/ fazer... ((gesticula
15
animadamente com os braços))
16 SP
claro/ claro/ justamente/ justamente/ mexer/ mexer/ mexer ((faz círculos no ar com a mão direita)
17 MS
isso que é afásico/ fala mu::uito/ fala pouco/ faz mu::ito/ faz pouco/
18
pensa/ conversa/ “ma-ra-vi-lha!” ((finalizando seu bordão conhecido no grupo))
Os diálogos referidos acima e ao longo desta travessia textual têm como
palco o Centro de Convivência de Afásicos (CCA), do Instituto de Estudos da
Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O CCA
funcionava em sede própria desde 1998. O coletivo focalizado nesta pesquisa foi
coordenado pela Profa. Dra. Edwiges Morato, cujo grupo de pesquisa COGITES
Cognição, Interação e Significação
15
integra o Laboratório de Fonética e
Psicolinguística – LAFAPE do IEL:
O CCA foi concebido, de acordo com Morato (2001), Vezali (2011) e Tubero
(2006), como um espaço de interação, como um espaço para o exercício
efetivo de práticas cotidianas de linguagem entre os participantes
afásicos e não afásicos de forma a contribuir para o maior entendimento
da condição de afasia e oferecer alternativas para a reintegração social
dos afásicos pela convivência e enfrentamento mútuo das inúmeras
dificuldades que a afasia implica (Calligaris, 2016, p. 19).
Quanto às participantes afásicas que frequentam o CCA, estas eram, em
geral, encaminhadas pelo Departamento de Neurologia do Hospital de Clínicas da
UNICAMP, onde, previamente, recebiam alguma assistência médica necessária ou
eram encaminhadas através de indicação de pessoas que haviam ouvido falar
do centro ou dos trabalhos realizados nos campos da afasia e Neurolinguística no
15
O Grupo de Pesquisa COGITES Interação, cognição e significação tem reunido pesquisadores de Iniciação
Científica e pós-doutorado de diferentes formações (tais como Linguística, Filosofia, Medicina,
Fonoaudiologia, Artes Cênicas, Pedagogia) da Unicamp e de outras instituições e está consagrado ao estudo
das relações entre linguagem e cognição por meio da análise de práticas linguístico-interacionais, em
especial as que envolvem indivíduos com afasia e com Doença de Alzheimer. Disponível em:
http://cogites.iel.unicamp.br/. Acesso em: 29 mar. 2022.
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IEL, seja via
internet
ou via indicação direta. As demais pessoas não afásicas, que
eventualmente frequentavam o CCA (como em ocasiões festivas), eram amigas,
familiares e outras pesquisadoras convidadas.
Um dos objetivos primordiais do CCA se traduzia na busca de um melhor
entendimento do que fosse a afasia e seus efeitos, bem como na divulgação dessa
condição para a sociedade. Fruto de uma ação conjunta entre o Departamento de
Linguística do IEL e o Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências
Médicas, dentro da UNICAMP, o CCA surgiu com o intuito de “desmedicalizar”, de
humanizar o entendimento das afasias:
Os participantes no CCA interagem como explica Tubero (2006), atuam
com e sobre a linguagem, no exercício vivo da linguagem em diversas
situações discursivas, em diferentes rotinas significativas e configurações
textuais, colocando em relação o sistema linguístico, a linguagem
(imbricada com semioses verbais e não verbais), a língua com seu
exterior discursivo o mundo de referências culturais no qual somos e
estamos inscritos. (Calligaris, 2016, p. 21).
Apesar de as afasias acometerem as pessoas em diferentes graus de
severidade e deixá-las, sem dúvida, em uma situação instável do ponto de vista
linguístico, cognitivo e social, geralmente, a afásica não perde a memória sobre os
vários usos e funcionamentos da linguagem nas situações cotidianas, por exemplo,
como a interpretação de ironias, provérbios e expressões idiomáticas usadas no
dia a dia:
Os encontros semanais do CCA são estruturados em dois programas de
atividades: o Programa de Linguagem e o PET. O primeiro é caracterizado,
como esclarece Mira (2007, p. 59), por explorar os diversos gêneros e
eventos que constituem o uso da linguagem no cotidiano tais como
diálogos, comentários, narrativas, exposição e a discussão de notícias de
jornais e revistas, leituras diversas, discussões sobre temas sociais e
culturais diversos (principalmente de produções culturais como filmes,
peças de teatro, e música), comentários sobre o noticiário e a vida política
do país, assim como também relatos da vida cotidiana e familiar dos
membros do grupo (Calligaris, 2016, p. 22).
Nesse espaço interacional caracterizado por diversas rotinas sociais, práticas
de comunidade, configurações textuais verbais e não verbais, e estruturas
conversacionais, procurava-se restituir à afásica a expressão da sua subjetividade
e o seu papel social, vinculados à linguagem e seu funcionamento, perturbados
pela afasia.
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Em Calligaris (2016) vê-se que o CCA era caracterizado como “comunidade
de práticas”, além de ter outras características importantes como as
consequências positivas da autogestão das atividades, ao percebermos o
deslocamento da identificação do CCA de mera “comunidade de fala” para a de
“comunidade inserida socialmente”.
O teatro performativo no PET pôde ser extremamente renovador de
potencialidades para a atuadora afásica. Sobre isso, Tonezzi comenta o seguinte:
Quando convidado a trabalhar no CCA, não fazia ideia do que seria a
afasia. Claro, tinha visto pessoas com parte do corpo paralisado, que
caminhavam arrastando uma perna, e sempre relacionava isto a algum
tipo de “paralisia infantil”. Também havia conhecido pessoas com
dificuldade em se expressar ou em entender, mas isto para mim dizia
respeito a “problemas da cabeça”. Eu fazia parte de um coro social que,
desinformado e sem qualquer contato com alguém naquelas condições,
preferia obviamente “deixar isto pra lá”. (Pereira, 2003, p. 34)
O fenômeno teatral-performativo, tal qual instaurei, pôde apresentar os
“processos da vida” de uma forma mais tangível, simbólica e intensa às atuadoras,
por estar a vida ali, ritualizada, mais concentrada por causa da condensação do
espaço-tempo nesta relação fundante da teatralidade que é constitutiva da
performatividade: emissora-receptora, ainda que a receptora seja si mesma.
Apoiada neste cabedal da prática enquanto pesquisa (Haseman, 2015) é que
descreverei o propósito e alguns processos do PET, e como disso se derivou o
empreendimento teórico, analítico e prático desta pesquisa.
Articulações entre criação artística e a possiblidade de uma pedagogia do
teatro a partir da afasia no Programa de Expressão Teatral - PET
Cena Exclusiva 2: “Emergir”
DADO 2 - Corpus:
AphasiAcervus
(14/03/2013)
Contexto: sessão do PET com a presença das pessoas não afásicas EM (professoras
orientadoras) JC (eu), RP, NF e NE e das pessoas afásicas MS, LM, SP, RB, MN.
Contexto: Segundo dia da minha retomada do PET. Inicio o encontro com a roda da conversa.
Logo após, faríamos o aquecimento e, em seguida, jogo do “Diálogo das Emoções” entre os
nove Rasa.
01 MS
02
03
04 RP
05
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A prática teatral realizada ao longo da minha atuação junto ao PET focalizou
a mobilização pela atuadora afásica de complexas semioses concomitantes,
complementares, paradigmáticas, simbólicas e compensatórias utilizadas para
gerar a teatralidade do seu
ato performativo
. Ainda que apresentem dificuldades
de produzir semioses (tanto verbais quanto não verbais), afásicas não deixam de
atuar e agir competentemente em cena, de maneira reflexiva, com relação à
atividade que o uso da linguagem constitui durante o fazer teatral, gerando
mímese performativa, que, segundo Ramos (2015, p. 13), é um tipo de
performatividade “mais apta para dar conta de uma produção espetacular de
invenção que sustenta, contemporaneamente, a perspectiva de uma cena
expandida, agregando artes visuais, plástica e a performance”. Tanto mais
preparada, a ponto de o autor “estar propondo um modelo alternativo para pensar
as questões do teatro e das artes performativas hoje” (Ramos, 2015, p. 15):
Ela [a mímese] é performativa no sentido de que opera e apresenta uma
cena parteira de discursos que não são mais necessariamente verbais e
encadeados, discursos que não se destinam a uma compreensão racional
para que se entenda alguma coisa ou se revele algum referente estrito,
como é o caso de toda a tradição dramática, inclusive, ainda, na
perspectiva de Brecht. (Ramos, 2021, p. 192)
A performatividade afásica vivenciada no PET e que amadureceu com o
tempo, inscreveu-se como prática artística privilegiando o uso de sistemas e
recursos semióticos multimodais coocorrentes (palavra, silêncio, movimentos,
gestos, ação, dramaturgia etc.), que promoveu o incremento da imaginação e do
senso crítico sobre aquilo que é público e o que é privado por parte da atuadora,
desta forma, funcionando como ferramenta propulsora e motivacional para o
despertar de situações teatrais e para a elaboração de um procedimento
pedagógico de criação estética.
O teatro performativo propiciou o comparecimento de diversas dimensões
interacionais: entre atuadoras, entre atuadoras e autoras, entre atuadoras com a
06 LM
07 JC
08 MN
09
(...)
10 JC
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diretora, enfim, entre pessoas com diferentes papéis. Uma dimensão, contudo, é
peculiar, sem a qual este teatro não existiria: uma espécie de diálogo de
singularidades entre a atuadora-performadora e a sua receptora, aquela que
apreende a expressão suscitada pela atuadora. Por meio deste diálogo, a atuadora
“aprende” a conduzir os gestos, as palavras, as pausas, o olhar, a ação presente de
cena, enfim, todas as diversas semioses da atuadora. A reação da receptora, para
onde ela olha, se boceja ou se ri, ou se comove, todas as diversas semioses da
receptora configuram, para quem está gerente da situação de atuar, uma resposta
ao ato de ser intérprete, uma resposta aos seus conceitos sobre o ser ficcional e
a dramaturgia do espetáculo ou sobre o roteiro performativo etc., e se expande
para fora da cena. Segundo Féral (2008, p. 207):
[...] Vale ainda dizer que nas outras formas teatrais (particularmente as
dramáticas), o teatro performativo toca na
subjetividade do performer
.
Para além dos personagens evocados, ele impõe o diálogo dos corpos,
dos gestos e toca na
densidade da matéria
, sejam as do performer em
cena ou das
máquinas performativas
: vídeos, instalações, cinema, arte
virtual,
simulação
(Grifos nossos).
No teatro performativo do PET, houve o aprendizado de uma linguagem
própria, ou seja, o aprendizado de um específico
sistema simbólico verbal
e não
verbal multimodal, que expressou duas situações de fricção das presenças: (i) o
sentimento e as escolhas artísticas de quem fez e (ii) a resposta de quem assistiu.
Nesse sentido, o teatro performativo do PET foi relacional e teve como traço
particular e distintivo a priori a imbricação entre estas duas situações
fundamentais, que não foram tomadas de forma dicotômica.
O estudo destes dois elementos interssemióticos e multimodais intrínsecos
ao sistema simbólico verbal e não verbal constituinte das teatralidades singulares
do PET favoreceu a compreensão de vários aspectos da relação entre cognição,
ressignificação simbólica e a representatividade do mundo enquanto mímese
performativa afásica. Como já apontou Tonezzi (2007, p.23):
O teatro pode ser esta ponte entre vida e arte, ao longo do qual estará
um sentido maior para um trabalho como esse, [com pessoas afásicas]
que solicita do sujeito uma ação concreta de observação, assimilação e
intervenção, qualidades que são próprias do fazer teatral.
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O teatro performativo do PET, por esta via, demandou da atuadora
mobilização para compreensão textual: i) de dramaturgias e de roteiros, o que
pôde, inclusive, decorrer em processos improvisacionais; ii) intertextual,
a
dramaturgia de cena
que, no caso do teatro afásico, pôde surgir como
ato
performativo
. Demandou, também, capacidade de administrar diversas formas de
teatralidade
(narrativas, farsas, atitudes irônicas, atitudes pós dramáticas etc.) que
emergiram durante os exercícios de expressividade e imaginação. Tais capacidades
possibilitaram às vivências e experiências do PET tornarem-se ferramentas para a
produção e a ressignificação de sentidos de semioses coocorrentes multimodais:
O que saltou à vista em nossos dados foi precisamente o levantamento
das semioses coocorrentes e simultâneas e de como elas se dão
solidariamente; constatamos que o atuador, seja afásico ou não afásico,
tem na ação física, nos movimentos faciais e corporais e nos gestos uma
ferramenta que auxilia na construção de significados, no direcionamento
do foco da atenção conjunta aos objetivos de cena e para dar coerência
à história e às falas dos personagens (Calligaris, 2016, p. 33).
É nesta direção bastante específica de contexto de teatro – neste caso, com
pessoas afásicas e sua relação performativa com seu fazer singular e com seus
corpos – que nos orienta Féral (2008, p. 146, grifos nossos):
O performador não tem um duplo. Ele não é o lugar de nenhuma emoção.
Ele permanece um olhar que observa, um tocar que apalpa, um gesto
que faz. Em outras palavras, ele é sensação e não emoção. Ele joga
(representa) com seus sentidos e não com o coração. Ele recusa toda a
interioridade. Ele é na unicidade da matéria,
na imediaticidade do fazer,
na urgência da experiência, lá onde o ator é na urgência de um estado
.
Isto posto, reflito que:
A base da presente pesquisa -se na contraposição a uma interferência
externa que, ditando as regras do saber, impõem ao afásico e,
consequentemente, ao seu corpo, uma avaliação em que se valorizam os
preceitos do dito “normal” e “anormal”. Foi preciso, pois, confrontar tais
práticas com o fato inequívoco de que há, por parte do corpo afásico,
uma amplitude bastante própria e particular em que ele será capaz, se
assim estimulado, de valer-se de meios originais para a busca de sua
reinserção social (Calligaris, 2016, p. 27).
Da maneira como defendida por Féral (2008, p. 147, grifos da autora):
O performer não tem estado (ou ele o os projeta). Ele não tem
interioridade. Ele é (está) todo na superfície. Ele fabrica e não se deixa
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habitar por nenhuma outra. Sempre só, filtra o mundo através de si. É
dele que parte toda palavra, todo gesto. É a ele que ele retorna. E se
nesse percurso, nessa palavra ou nesse fazer, ele encontra o outro
espectador e a alteridade do seu olhar, seu procedimento se
especulariza, se teatraliza a ponto de que esse olhar importa o teatral lá
onde ele não deveria registrar senão um fazer.
É olhar do espectador que
faz nascer a teatralidade da performance
onde havia apenas o
especular. A arte da performance deveria, portanto, ler-se em primeiro
grau.
Desta forma, com a perspectiva de continuidade da investigação das
questões aqui levantadas e do aprofundamento do trabalho desenvolvido no
contexto do doutorado, é que, a seguir, apresento as demais “cenas exclusivas” e
seus desdobramentos.
Cena Exclusiva 3: “Estopim”
DADO 3 - Corpus:
AphasiAcervus
(25/04/2013)
Contexto: sessão do PET com a presença das pessoas não afásicas EM (professora
orientadora), JC (eu), RP, NF e NE e das pessoas afásicas MN, SP, SI, MS, LE, EC, RB.
Contexto: Módulo de materialidades pessoais com Máscara Neutra nos
Rasaboxes
3: A
máscara neutra interpreta os desenhos das pessoas nos Rasa. Início do encontro com a roda da
conversa. Depois do aquecimento, perguntei ao grupo quem iria performar alguma que gostasse
de fazer, que fosse uma atividade exercida exclusivamente como forma de lazer, de distração, de
passatempo etc.
[...]
01 JC
vamos para a cena/ ENTÃO ((levantando-se e abrindo os braços))
02 MS
demoro(u)/ maravilhA:: ((risos))
03
((nesse momento, RB, muito tímida, sorri e pede para começar))
04 RB
tá/ tá/ eu quero dan::çar!
05 JC
Não acredito//((sorrindo))
06 RB
Sim! ((risos))
(Obs.: continua).
O percurso cognitivo-performativo realizado por atuadoras afásicas indicou
que a produção de sentido não dependeu apenas do sistema linguístico, porém,
constituiu-se também de processos
meta
16
e de processos interpretativos, ambos
na forma de teatralização ficcional, de processos discursivos e culturais incluídos
nos diferentes modos por meio dos quais os objetos do mundo se apresentam a
nós, revelados através do jogo teatral.
Sob este ponto de vista, é possível afirmar que as práticas artísticas e
pedagógicas que ali apliquei articularam-se entre si e conviveram sem fronteiras
16
Metafóricos, metadiscursivos, metonímicos, meta-enunciativos.
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definidas no trabalho com as atuadoras. Se, por um lado, o fato de o PET não ter
tido a menor intenção de ser um grupo de teatro ou um núcleo fixo de atrizes
gerou uma espécie de formação contínua de atuadoras afásicas no interior dos
processos de ressignificação semiótica e criativa, por outro, as práticas
pedagógicas, com os diversos módulos performativos que realizamos, resultaram
em teatralidades/performatividades relevantes do ponto de vista dos estudos
estéticos ampliados e da renovação dos procedimentos empregados em criação
na cena contemporânea.
A associação da ideia de uma pedagogia de ensino e criação às práticas do
PET até pode ser refutada por pessoas mais conservadoras, com a alegação de
que tais práticas não possuem o objetivo de formar ou educar afásicas como
atuadoras, nem mesmo de transmitir um conhecimento ou uma técnica, e sim de
realizar experiências puramente sociocognitivas, interacionais ou linguísticas.
Nesta pesquisa, porém, insisto em associar a palavra pedagogia ao trabalho
do PET, pelo menos por duas razões: a primeira delas é o reconhecimento de que,
apesar dos objetivos não pedagógicos iniciais, as práticas do PET constituíram, sim,
um ambiente significativo de formação de pessoas no âmbito do teatro
contemporâneo, mesmo que nós (eu e o elenco) não soubéssemos disso num
primeiro momento ou não tivéssemos essa intenção:
Verificamos que os afásicos, apesar do comprometimento neurológico e
das alterações metalinguísticas, conservaram e reorganizaram uma
competência de natureza textual-discursiva teatral e, por conseguinte,
artística e multimodal. Competência que possibilitou que participassem
de
uma educação teatral semiótica
e que fossem instruídos quanto à
densidade modal e, desta forma, que
conduzissem ativamente o jogo
teatral
, que sustentassem o ato cênico, a conversação, a troca de turnos
e a elaboração semiótica pela via do processo colaborativo, tão caro ao
fazer teatral.
Podemos chamar esta competência de conduta teatral
[...],
através da movimentação dinâmica e cooperativa dos turnos,
contribuindo para a coordenação das ações e para a construção dos
sentidos (Calligaris, 2016, p. 121, grifos nossos).
A segunda razão diz respeito ao propósito que assumi posteriormente, de
buscar uma forma de pedagogia da atriz e do teatro que estivesse em consonância
com as práticas artísticas contemporâneas, ou seja, como espaço de produção e
de compartilhamento de vida e de sentidos e como lugar de experimentação.
Teatro performativo no contexto das afasias:
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23
Cena Exclusiva 4: “Des-cisão Parte 1 (ou Movimentos para Dançar, Depois
depois do AVC)”
Continuação: DADO 3 - Corpus: AphasiAcervus (25/04/2013)
07 RB
Eu
QUEro dançar// ((fala, levantando a mão direita)) / vo-você pe::diu/ né?
pediu?/ né? ((sorri)).
08 JC SIM/ dona Rafaela// ((risos)). (es)(u) pedindo faz um MÊS//
09 RB
/ vou tentar// tem música? / ((dirigindo-se ao pesquisador colaborador RP)).
10 JC Rodrigo/ põe o funk dela/ por favor//
(Obs.: Continua a seguir.).
A título de exemplo de ganho sociocognitivo, de mímese performativa e de
reorganização das competências comunicativas e expressivas como um todo,
evoco esse desempenho de RB “Rafaela17e sua
performatividade
no PET de
março a junho/2013. RB, 33, era, segundo ela mesma, “uma dançarina de funk muito
boa e competente” antes do AVC. Vejamos a seguir.
Cena Exclusiva 5: “Des-cisão Parte 2 ou ‘Vai, Você Consegue!’”
Continuação: DADO 3 - Corpus:
AphasiAcervus
(25/04/2013)
11 RP
é pra por a música agora?
12 JC
((sinaliza com a o direita em espalmada à frente para que ele espere))
13 RB
eu.. de::descia até embaixo e subia facinho/ ((sentanda, toca ambas as pernas com as mãos))
14
agora...// ((ainda sentada, alude a seu corpo hemiplégico e hemiparético))
15 JC
((gesto dêitico para RP colocar a sica))
16
vai com tudo
/ [Ra]//
Va
mos que VAMOS// ((gesto dêitico para RB se levantar))
17
não tem regra para DAAR/ o funk é SEU/ o corpo é SEU/ é você que vai DANÇAR//
18
quero ver alguém conseguir te copiar/ DEPOIS//
19
((RP coloca a sica de funk preferida dela no aparelho de som da sala.))
20 RB
AI/ meus deus... ((ela se levanta))
21
((o grupo aplaude com entusiasmo; RB vai para o meio do rculo de cadeiras e se prepara))
22 EC
vai/vai vo::ocê consegue-consegue/
VAI
(Obs.: continua).
Depois de muita vontade e pouca coragem, finalmente ela dançou. Aquela
jovem mulher afásica, que re-dançou para se re-descobrir. Foi um ato performativo
totalmente ressignificado e cheio de multissemioses gestuais e corporais recém-
nascidas e que emergiram pela primeira vez aos nossos olhos encantados.
Cena Exclusiva 6: “Des-cisão Final ou Olhos Recém-nascidos
Continuação: DADO 3 - Corpus: A
phasiAcervus
(25/04/2013).
Obs.: A sigla “TD” significa “todas e todos.
17
A fim de preservar a identidade das pessoas, todos os nomes apresentados em diálogos, neste artigo, foram
substituídos por outros, cujas iniciais são as mesmas, conforme instrução do Comitê de Ética em Pesquisa
CEP/UNICAMP.
Teatro performativo no contexto das afasias:
elaboração de procedimentos e pedagogias nas artes da cena
Juliana Pablos Calligaris
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-34, dez. 2022
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01 TD
((aplausos entusiasmados e exclamações de “parabéns, “muito bem, “que lindo!”, eu
disse que você ia conseguir!”))
02 RB
((rindo, um pouco tímida, ao sentar-se)) eu-eu de::desci até::é embaixo/ vo-você VIU?
03 JC
GICO que vi// eu sabia que você ia dar um jeito de fazer//
04
você estava/ era/ escondendo o ouro// I S SO SI M//
05 RB
((sorrindo, olhando para JC significativamente))
O quadro de hemiplegia18 que surgiu após o AVC a inibia de duas formas: na
limitação motora e na vontade de dançar. Então, não dançar de maneira
competente significava não apenas que ela esbarrava na hemiplegia, mas
também que teria que aprender como dançar de novo. E, apesar da resistência e
inibição, ela se dispôs a dançar, motivada pela compartilha de vida, de sentidos e
de experimentação do PET e pela interação com as frequentadoras do centro. Ela
reconstituiu esta competência de
forma reflexiva
, articulando processos inéditos
para ela de significação não verbal; RB pôde ressignificar sua prática para aprender
de novo e de outro jeito as semioses que categorizam o estilo ao qual ela se
dedicava muito, o
funk
, sendo assim competente novamente, gerando e fazendo
emergir semioses coocorrentes originais (para ela e seu corpo) e adequadas a essa
forma de dançar. A atuadora não desistiu, adquiriu outra maneira de dançar, não
somente porque a travessia para uma nova forma de mover seu corpo estava mais
decifrada para ela, porém porque quando treinamos nossa cognição/mente
incorporada (
embodiment
), o nosso equipamento, como um todo, responderá de
um jeito ou de outro semiológica e coerentemente, aos estímulos provocados
pelo treino, aos
gatilhos psicofísicos
(Minnick, 2018) acionados.
A despeito de já conhecermos a capacidade adaptativa da mente e do corpo
humano, as reviravoltas performadas pelo cérebro são muitas quer dizer, a
plasticidade neuronal para dar conta de novas competências cognitivas de
reformulação semiótica.
O teatro performativo do PET acabou desmistificando certas atitudes e pôde
indicar uma via alternativa para que tais competências pudesser ser vasculhadas
eficiente e transformativamente. Os conhecimentos e as experiências e
vivenciadas pelas afásicas no teatro, a meu ver, tiveram, também, um importante
18
Hemi -metade, -plegia paralisia: é a
paralisia
de metade sagital (esquerda ou direita) do corpo. É mais grave
que a hemiparesia que se refere apenas à dificuldade de movimentar metade do corpo.
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significado para o desenvolvimento social e emocional delas, porque não me
escapava o fato de que, quando chegava ao PET, a atuadora carregava tanto os
conhecimentos que já trazia consigo quanto os novos conhecimentos surgidos em
decorrência da afasia.
O jogo teatral gerador de teatralidade performativa foi um valioso instrumento
para a aquisição de conhecimentos pela afásica e, neste caso, foi minha própria
experiência profissional que me ofereceu o maior suporte para chegar a esta
constatação.
Cena Exclusiva 7: “Olhar o horizonte e não ter medo de voar”
DADO 4 - Corpus: AphasiAcervus (09/05/2013)
Contexto: sessão do PET com a presença das pessoas não afásicas: EM (professora
orientadora), JC (eu), NE, NF, RP e das pessoas afásicas SP, LE, RL, RB.
Contexto: Módulo de materialidades pessoais do PET através de Máscara Expressiva - Parte
1: construção da ação através do caráter tipificado da máscara: Vida profissional antes do
AVC. Depois do aquecimento, perguntei ao grupo quem gostaria de começar.
(...)
01 RL
ma::mas é p(a)ra faz::zer como era antes?/ ((ele pergunta a JC))
02 JC
((sorrindo)) antes do quê, então?/
03 RL
a::antes do/do AVC?/ ((fala, fazendo gesto de “para trás” com a mão esquerda))
04 JC
você separa sua vida em antes e depois?/
05 RL
EU SEPARO/
06 JC
então/ se é tão distinto/ vamos tentar recriar o antes e o depois/ pode ser/ gente?//
07 TD
((Todas e todos aprovam))
08 RL
en::tão/ eu era engenheiro/ né?// pre::preciso de ma::material/
09 JC
então vamos montar o seu MAteriAL//
Nesta sessão (09/05/2013), investiguei atividades práticas e laborais do
cotidiano (antes e depois do AVC) das atuadoras afásicas através do uso da
máscara expressiva, pois nós vínhamos seguindo de uma prática de jogos de
investigação performativa deste a máscara neutra, que culminaria com o
rasaboxes
.
Neste exercício, o atuador afásico RL usava a meia máscara expressiva, ou
seja, sua boca estava à mostra. Solicitei que recriasse teatralmente,
simbolicamente, seu antigo universo de trabalho (de antes do AVC que o
acometeu). Ele, que havia sido engenheiro elétrico de profissão, construiu, com
cadeiras e uma, uma “estação de trabalho cenográfica, utilizando-se tesoura, lápis,
réguas, giz de cera etc., enfim, de materiais disponíveis normalmente nas
dependências do CCA, para representar suas ferramentas de trabalho. RL foi
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convocado a
performar mimeticamente
suas semioses, à maneira e conforme os
códigos do teatro de máscara expressiva (no caso, ele vestia a meia-máscara
expressiva), a fim de representar um fragmento de sua antiga vida profissional;
além disso, solicitei que ele não emitisse explicações, pequenas narrativas ou sons
inteligíveis com a boca comum procedimento de uma pessoa afásica como
forma de semiose compensatória à sua apraxia, hemiplegia ou hemiparesia – com
a máscara no rosto (porque isso contraria o código do jogo, inclusive), mas que
usasse os demais sistemas semióticos de seu corpo, ampliando a gama sígnica de
gestos,
atos performativos
, olhares e ações “para falar”, metalinguisticamente,
enquanto a boca fizesse apenas sons onomatopaicos e interjeições de sentido, se
desejasse ou sentisse necessidade. A esse respeito, observo que toda a apreensão
de dados aqui apresentada pôde ser tomada por causa do ambiente do CCA,
com pesquisadoras e câmeras como testemunhas da emergência das semioses
multimodais que mais emergiram para que o atuador conseguisse performar.
Graças a esses procedimentos metodológicos é que pude perceber como cada
uma das multissemioses (ou semioses multimodais) emergiram, recategorizadas
pelo jogo da máscara expressiva, que revelaram as estratégias do afásico RL e sua
competência mimético-performativa para agir, para criar e gerir seu
ato
performativo.
Nas condições mencionadas acima, o [atuador] afásico [RL] em cena, teve
que lidar com todas as preocupações com as quais qualquer ator deve
lidar: desde ações de “nível modal mais básico” [...], como quer Norris
(2006), como atentar-se para a pressão e o peso das roupas que se veste
(figurino), até para ações de “nível modal mais alto” (Norris, 2006), como
atentar para a forma e escolha dos gestos e palavras (texto verbal e não
verbal), para as sombras e os reflexos, para o olhar do parceiro e para a
escolha da direção do seu próprio olhar, para o jeito como ele move as
mãos, atentar para um pensamento que ocorre enquanto a cena
transcorre e julgar se tal pensamento é relevante e, até, para o “espírito”
da encenação e seu contexto (Calligaris, 2016, p.55).
O teatro performativo aplicado ao PET tornou-se, pois, um dipositivo a partir
do qual uma espécie de arbitragem multidisciplinar entre a Performance/Teatro,
a Semiótica e a [Neuro]Linguística, transpareceu completamente. Por este
dispositivo multi, inter e transdisciplinar, investiguei a relevância do gesto, de cada
olhar, do movimento e execução das sequências de ações físicas, dinâmicas e
cenas criadas. Todos os detalhes foram tomados quanto a análise da refacção
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multimodal de semioses pelas atuadoras afásicas na urgência da interação.
O corpo performativo multimodal: corpo cênico, estado cênico,
estado semiótico
No campo da Linguística Interacional, segundo aponto em Calligaris (20016,
p. 51), de pontual importância para esta pesquisa, está o trabalho de Goodwin
(2003, p. 90-116) que discorre sobre a sincronia dos múltiplos sistemas semióticos
em funcionamento nas interações cotidianas, como a movimentação de corpos e
olhares na dinâmica das interações, sobre a
multimodalidade
19
e a “corporificação”
(
embodiment
) da ação social quando observa que “uma pessoa afásica pode atuar
como uma falante poderosa”. Para explicitar sua reflexão, o autor não se restringe
apenas à situação específica de uma “pessoa com afasia”, porém, oferece-nos a
análise de como o conhecimento é organizado “através de práticas interativas
corporificadas” (Goodwin, 2003, p. 103).
A ideia de uma análise multimodal da interação social foi introduzida na
minha prática como pesquisa ainda no mestrado, com uma crítica profunda à
tradição logocêntrica, isto é, à visão de que a linguagem verbal é central na ação
social. Goodwin (2003) determina como uma espécie de limitação que a análise
da interação se volte apenas para a linguagem verbal logocentrica. Segundo o
autor, a linguagem não é um sistema independente, pois funciona integrada a “um
sistema ecológico mais amplo” (Goodwin, 2003, p. 98). Assim como ocorre em
relação à linguagem verbal, que é vista como central em tradições estruturalistas
em Linguística (e digo mais, também em algumas tradições teatrais), da mesma
forma, o corpo e seus movimentos têm sido vistos como fruto de ações
individuais.
Para Goodwin, o processo de corporificação é feito na interação, em
colaboração reflexiva entre participantes de uma ação social; exatamente
conforme analisei aqui, pois uma ação
performativa coletiva
nada mais é do que
uma ação social. Segundo Bastos (2010, p. 101),
19
O termo multimodalidade surgiu no final do século XX e esteve relacionado, inicialmente, aos vários modos
semioticamente possíveis para produções textuais orais e não orais que ultrapassam os limites do verbal
para atingirem outros sistemas semióticos/linguagens.
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É identificando a sequência de múltiplos sinais semióticos que
conseguimos perceber como o afásico é um interagente competente, e
como o aprendizado profissional se faz como uma ação corporificada
cooperativa.
E este é o tema deste estudo: nesta pesquisa verifiquei a construção da
teatralidade através de mímese performativa por atuadoras afásicas (análise da
performatividade cênica no contexto das afasias) e como isso pode se transformar
numa prática pedagógica de formação artística e de construção da cena. Ainda,
justamente, se essa construção acontece de uma forma modal ou de outra, apesar
de nem sempre semioses coocorrentes se infundirem, mesmo que, naturalmente,
auxiliem-se mutuamente a se constituírem, por causa da densidade modal.
Retomando Norris (2006), a pesquisadora ainda defende que “nas atividades
multimodais cotidianas, o ponto de partida da observação reside no fato de que
os participantes não apenas falam juntos, mas também gesticulam e
movimentam-se de modo coerente e coordenado” (Norris, 2006, p. 417). E, a fim
de exemplificar o sofisticado conceito de densidade modal, ela explicita que:
Quando você está conversando com outro ator social em um jantar, você
não está ciente apenas do ato de conversar, mas também do ato de
comer; num restaurante também estará ciente das ações do garçom e
das pessoas à sua volta. Na análise de (inter)ação multimodal, a
ferramenta heurística de densidade modal ajuda-nos a entender o
quanto e em que os atores sociais em (inter)ação prestam atenção
(Norris, 2006, p. 407).
Multimodalidade semiótica ou multissemiose, desta forma, envolve
combinações de vários modos: fala, ações, expressão corporal, processamento de
imagem – do outro, de pensamentos, de memórias – os gestos (dêiticos, icônicos,
metafóricos), o olhar, a voz (risadas, ruídos, entonações, trejeitos), “a prosódia, a
expressão facial e a mímica, os movimentos da cabeça e das mãos, a postura, as
posições das pessoas em relação umas às outras, a distribuição das pessoas no
espaço da interação” (Calligaris, 2016, p. 54), a disposição dos corpos no espaço da
criação de um “território de interlocução” e o contexto da interlocução se
caracterizam como modos que são mobilizados enquanto interagimos
sociocognitivamente e/ou teatralmente e/ou performativamente. Assim,
estabeleci, no escopo desta investigação, relações de sentido entre dois ou mais
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sistemas sígnicos, tais como gesto-olhar, ação-reação, corpo-voz e assim por
diante, quer dizer, sistemas cossemióticos como a forma estratégica pela qual a
atuadora constrói e ressignifica teatralidade em suas ações de mimese
performativa, provocando ou gerando o
ato performativo afásico
. Desta maneira:
Defino
multimodalidade
ou
multissemiose
como o uso de diversos
modos semióticos na concepção de um produto ou evento semiótico,
juntamente com a maneira particular segundo a qual esses modos são
combinados. A multimodalidade lida com questões comuns a todos os
modos e com as relações existentes entre eles: cada modo semiótico
empregado em um produto multimodal tem função específica, com
potencial distinto para construção do significado. Nestes termos, os
estudos em multimodalidade visam investigar os principais modos de
representação em função dos quais um determinado discurso ou texto é
produzido e realizado. Estes estudos também visam compreender o
potencial de origem histórica e cultural utilizado para produzir o
significado de qualquer modo semiótico (Calligaris, 2016, p. 46).
E as ideologias às quais estes modos semióticos possam estar vinculados,
por exemplo. Dessa maneira, a multimodalidade procura abordar as
particularidades e a inter-relação dos modos, as regularidades de suas
combinações e seus valores em contextos sociais específicos.
No teatro (ou no teatro performativo que pratiquei):
Tanto as semioses verbais quanto as não verbais acontecem num
ambiente multimodal criado criticamente, ou seja, onde fala, gesto,
ações, mímica, olhares e movimentos vários (de luz, sonoplastia, cenário,
além do movimento corporal) acontecem de forma pensada,
previamente estabelecidos de forma dramatúrgica através de critérios
estéticos (Calligaris, 2016, p. 46).
Esse aparato multimodal associa-se, imediatamente, às ações físicas, à ação
presente de cena, aos jogos, e o traço mais evidente da coexistência de semioses
verbais X não verbais é sua natural dicotomia dialética, o que propicia às semioses
coocorrentes que surgirem desse procedimento participar de, ao menos, outras
duas situações de emergência modal simultânea: i) inicialmente, uma autora se
dirige a um público através da representação de sua peça ou roteiro performativo;
trata-se, portanto, da representação ou do fenômeno teatral que constitui o ato
de emergência semiótica; ii) em um segundo momento, a situação representada,
aonde seres ficcionais intercambeiam frases num contexto de ação
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supostamente independente em relação à representação.
De fato, a análise dos meus dados mostrou que uma abordagem teórico-
metodológica a qual não considere a multimodalidade, possivelmente encobrirá
ou distorcerá as múltiplas ações nas quais as atuadoras em interação estão
simultaneamente envolvidas:
A performance não visa um sentido, mas ela faz sentido, na medida em
que trabalha precisamente nesses lugares de articulação extremamente
frouxa de onde acaba por emergir o sujeito. Nesse sentido, ela o
questiona de novo enquanto sujeito constituído e enquanto sujeito social,
para desarticulá-lo, para desmistificá-lo (Féral, 2008, p.154).
Nesta direção, Féral (2008), comentará acerca da performance como “morte
do sujeito” e sobre a pulsão de morte inscrita na performance. Contudo, é
justamente da oposição e na relação especular no que concerne a essa
performance realizada por
performers
consagradas que contraponho o teatro
performativo do CCA, pois colocamos em cena no PET, voluntariamente, uma
pulsão de vida, posta em campo por um jogo de repetições livremente assumidas
e pretendidas. Por isso, apoiada em Féral (2008) alinhavada com Norris (2006),
concluo que a linguagem verbal não é necessariamente o único modo de produzir
teatralidade e/ou performatividade, porquanto posso me utilizar de conceitos
básicos e fundamentais como
modo, recurso semiótico e potencial de significado
do modo
para criar teatro ou performance.
O trabalho de Norris (2006), por exemplo, oferece-me:
i) análises detalhadas e a compreensão mais profunda dos textos e das
interações que neles ocorrem; foco dado à produção do significado; ii)
foco na demanda por concepções multimodais mais amplas; iii) interesse
em contextos situacionais e culturais em que se dão as relações sociais;
iv) foco na elaboração e interpretação do significado; v) foco na gama de
ferramentas interacionais que esses estudos podem proporcionar aos
indivíduos (Calligaris, 2016, p. 53).
Ou seja, todas as materialidades com as quais eu pude contar, no PET, para
o desenvolvimento do teatro performativo com atuadoras afásicas.
Para esta pesquisa, assumi que as interações apresentadas nas sessões
vídeogravadas do PET selecionadas para compor meu
corpus
são mediadas por
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modos
performativos teatralizados
, isto quer dizer que tais modos são a forma de
existir da própria prática pedagógica do teatro performativo do PET em si. Essa
perspectiva permitiu-me investigar a negociação do significado entre atuadoras
em uma interação mediada por mais de um modo peformativo. Norris (2006)
discute que a distinção entre ação mediada e a interação face a face não é possível
de ser delimitada. Sua proposta de investigação está centrada nas interações em
tempo real filmadas. A autora deriva a noção de interação face a face das
discussões promovidas por Goffman (2007, p. 23), que considera “a interação
como a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando
em presença física imediata”. O termo encontro no lugar de presença, segundo
Goffman (2007), também seria apropriado. Norris (2006) também adota a noção
de interação mediada, pois, para a autora, toda interação é mediada por “modos
comunicacionais” que, nesta pesquisa, foram resignificados como modos
performativos, por causa dos
atos performativos
da atuadora afásica.
Considerações Finais
Tendo em vista o exposto neste artigo, a condição de teatralidade com as
atuadoras no PET instaurou uma prática multimodal performativa de cunho
interacionista uma vez que, de maneira natural, várias ações verbais ou não verbais
são performadas por atrizes sociais concomitante e sequencialmente, de modo
coerente e coordenado.
No âmbito da pesquisa de Doutorado, estas chaves de compreensão
multimodal performativa habilitaram a análise dos processos de teatralidade nas
situações de mímese performativa durante a expressão teatralizada e a criação
poética, nas quais se encontraram estreitadas as relações entre linguagem e
cognição. O corpo cênico fenomênico da atuadora afásica no PET, por tudo isso,
esteve cuidadosamente atento a si, ao outro, ao meio e este é o corpo da
sensorialidade aberta e conectiva às experiências perceptiva e performativa.
A abordagem multimodal permitiu dar visibilidade a estes outros modos
semióticos também relevantes para a significação, seja em contextos afásicos ou
não afásicos, em interações específicas, seja em uma sala de trabalho teatral com
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atuadoras afásicas ou não afásicas.
A atenção conjunta do fazer teatral no PET permitiu que o macro e o mínimo
das semioses significativas pudessem ser adentradas e exploradas, a fim de
desenvolver um campo de estudos tripartite entre Teatro Performativo, Linguística
e Semiótica, que contribua com as práticas e pedagogias de criação, e formação
nas artes da cena.
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Recebido em: 23/05/2022
Aprovado em: 01/08/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br