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Reorientando fundamentos teatrais nas
encenações
site-specific
José Jackson Silva
Para citar este artigo:
SILVA, José Jackson. Reorientando fundamentos
teatrais nas encenações
site-specific
.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0107
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Reorientando
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fundamentos teatrais nas encenações
site-specific
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José Jackson Silva
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Resumo
Neste artigo problematizamos os fundamentos teatrais nas encenações
site-
specific
, a fim de tramar conhecimentos que auxiliem na assimilação prática
e conceitual dessa poética contemporânea. Para tal, partimos de abordagens
teóricas, distinções de realizações criativas e exemplos históricos do teatro
brasileiro.
Palavras-chave
: Teatro
site-specific
. Encenação. Espaço cênico. Teatro
contemporâneo.
Reorganizing of theatrical fundamentals in site-specific theater
4
Abstract
In this article, we problematize the theatrical fundamentals in site-specific
theater to weave knowledge that helps in the practical and conceptual
assimilation of this contemporary poetics. To this end, we start with
theoretical approaches, creative distinctions, and historical examples of
Brazilian theater.
Keywords
: Site-specific theater. Staging. Scenic space. Contemporary theater.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Thalyta Cavalcante Alencar, Mestre em
Ciência da Informação pela Universidade Federal do Pernambuco (UFPE). Graduada em Biblioteconomia pela
Universidade Federal do Cariri (UFCA).
2
Este artigo resulta em 82% de partes de minha tese de doutorado denominada: O
Site-Specific
na
Perspectiva da Direção Teatral. Defendida no Programa de pós-graduação em Artes da Cena da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob orientação de Walter Lima Torres Neto, em 2020.
https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/215493/001119783.pdf?sequence=1&isAllowed=y
3
Doutor em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Bacharel em
Teatro pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor adjunto da Universidade de Brasília (UnB).
jacksontea@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4004929540126640 https://orcid.org/0000-0003-3255-8001
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Tradução nossa.
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Reorientando los conceptos básicos teatrales en las puestas en
escena
site specific
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Resumen
En este articulo problematizamos los conceptos teatrales básicos en las
puestas en escena
site specific
, con el fin de construir conocimientos que
ayuden en la asimilación práctica y conceptual de esa poética
contemporánea. Para este fin, partimos de abordajes teóricos, una selección
de realizaciones creativa y ejemplos históricos del teatro brasileiro.
Palabras clave
: Teatro
site-specific
. Puesta en escena. Espacio escénico.
Teatro contemporáneo.
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Tradução Fernanda Lamelas, licenciada em teatro pela Universidade de Tucuman (Ar).
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Embora os agentes do teatro tenham experimentado realizar eventos em
espaços não-teatrais séculos (haja visto o desenvolvimento do Teatro
Medieval), foi somente na década de 1980, segundo Fiona Wilkie (2004) que o
termo
site-specific
passou a ser usado em larga escala no teatro inglês, e, desde
então, tem sido matéria de pesquisa de vários criadores, que se detém sob esta
modalidade para tentar definir suas particularidades conceituais e metodológicas.
No contexto brasileiro, como notamos na nossa tese de doutorado
6
, ainda
que o termo seja pouco conhecido pelos nossos criadores, sua aplicação prática
está diretamente relacionada com o que entendemos por “teatro em espaços
alternativos”, o que, genericamente, englobam as práticas teatrais fora dos
espaços tradicionais, sem, contudo, se ater às especificidades dos espaços
selecionados para a criação cênica, como ocorre na arte
site-specific
.
A título de especulação, no campo teórico, destacamos similaridades com os
estudos de André Carreira, que na sua formulação enfatiza aquilo que denominou
de
Teatro de Invasão
, terminologia que o autor usa para definir o instante em que
o teatro invade, literalmente, o espaço público e instala nele uma ficção.
Levando, deste modo, o espaço funcionar sob novas perspectivas, ao
proporcionar à linguagem teatral um rearranjo espacial e metodológico para
desenvolver as encenações, sejam eles espaços abertos ou fechados.
Baseando sua abordagem a partir do entendimento do espaço cênico como
tecido urbano, o autor comenta:
O ato de invasão não pode ser entendido simplesmente como colocar
um espetáculo no espaço público, senão como um ato de criador que se
inscreve no interior do tecido da cidade, estimulando a participação ativa
do espectador no jogo. Invadir é tratar de romper com as microestruturas
de funcionamento do cotidiano, mesmo que ocorra em um pequeno
seguimento de espaço (Carreira, 2017, p. 84).
Esta prática de teatro urbano pode revelar o grande potencial que a cidade
tem em funcionar com os códigos da linguagem teatral e se configurar como um
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Silva, 2020.
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exercício de ressignificação de espaços públicos depreendidos,
fundamentalmente, da prática de habitar esses espaços, desorganizá-los e
configurá-los de maneira a criar estados lúdicos, nos explica o autor.
Entendimento partilhado por Silvia Fernandes (2013), naquilo que ela
denominou
Teatros do Real
, expressão utilizada para identificar espetáculos e
intervenções artísticas que se apoiam em espaços da cidade, com forte carga
dramática, para desenvolver um discurso, partindo de uma rede de referências
que poderá potencializar a fruição, como sintetiza a autora:
Este teatro de vivências e situações públicas não pretende,
evidentemente, representar alguma coisa que não esteja ali. Ao contrário,
a tentativa é de escapar do território específico da reprodução da
realidade para tentar a anexação dela, ou melhor, ensaiar sua
apresentação sem mediações (Fernandes, 2003, p. 83).
Essa miscelânea de territórios das propostas em espaços não-teatrais inclui
diversos eventos cênicos que buscam enfatizar a análise do uso da cidade e suas
especificidades ambientais como elemento da criação do teatro contemporâneo,
e ainda que não se designe
site-specific
, no contexto brasileiro, compartilham
horizontes teóricos semelhantes.
O teatro
site-specific
, estrito senso, tal qual as artes homônimas, se constitui,
como bem resume Mike Pearson (2010), a partir do estabelecimento de uma
ocupação e investigação do espaço não-teatral como possibilidade de criação,
ambiente no qual a obra será concebida e condicionada pelas particularidades do
espaço, sem as quais o trabalho se esgota.
Nesta esfera:
A encenação configura-se a partir de um lugar não-teatral, fator que, de
início, apresenta uma dificuldade para quem pretende aventurar-se em
esboçar uma definição que possa dar conta de todas as complexidades
dos espaços disponíveis para essas encenações, dado a variedade de
lugares apoiados nesta modalidade teatral: espaços encontrados,
espaços arranjados, espaços adaptados, espaços desmaterializados, em
espaços abertos, fechados ou virtuais (Silva, 2020, p.71).
Notemos que o termo
site-specific
(literalmente traduzido) se constitua
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através de duas palavras:
site
(espaço) e
specific
, derivada de
specificity
(especificidade), que vinculam a linguagem teatral ao que de específico nos
espaços nomeados para a criação cênica.
Neste sentido, ao se deter sobre o tema, Fiona Wilkie (2004), revela que
alguns criadores reivindicam aquilo que de único no espaço, mais do que as
especificidades, ao entender que, de certa forma, todo o trabalho teatral é, até
certo ponto, específico do local, pois foi feito para um conjunto particular de
espaços, planejados para um determinado momento, seja ao ar livre, em
ambientes fechados ou em espetáculos de salas de teatro, nos quais a
dramaturgia e ensaios são feitos especificamente com esse espaço em vista.
Para a autora, trata-se de uma nova terminologia, na qual é possível
encontrarmos diversas formulações tipológicas que animam tais encenações.
E apesar de admitir que tenham poucas diferenças, nos revela que pelo
menos três formulações concernente às encenações que animam
conceitualmente tal prática: o
site-sympathetic
(um espaço apropriado a um
determinado texto); o
site-generic
(trabalhos gerados para uma série de espaços
semelhantes); e o
site-specific
(especificamente gerado por ou para um espaço
selecionado).
No que tange ao
site-specific
, destaca que a singularidade espacial se une à
obra de maneira estrutural, em tão alto grau que diversos artistas assinalam para
uma sensação de esvaziamento quando as peças são reterritorializadas em outros
lugares. Isso porquê o espaço é considerado mais por suas camadas históricas,
sociais e discursivas, do que pela espacialidade em si.
Essa particularidade, portanto, em maior ou menor grau conforma todos os
trabalhos cênicos nesse gênero teatral e, por isso mesmo, sustentam algumas
distinções que dizem respeito a essa forma artística, como assente Fiona Wilkie,
partindo da questão que norteia a sua pesquisa: Sendo os espaços exclusivos, é
possível sair em turnê com os trabalhos
site-specific
? A pesquisadora observa que
há duas maneiras de lidar com esse enigma:
Alguns projetos são totalmente específicos do local, ou seja, eles não
poderiam ocorrer em nenhum outro lugar sem perder o elo de significado
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e conexão; enquanto outros projetos mais flexíveis podem trabalhar em
torno de um certo senso de lugar, isto é, uma atmosfera ou conceito no
centro do projeto, que funcionaria em várias passagens, mas não em
todas as localizações (Wilkie, 2004, p.53).
De tal modo, para que uma peça seja realmente
site-specific
, seguindo o
raciocínio de Wilkie, significa que ela estará totalmente vinculada ao seu espaço,
tanto em seu conteúdo quanto na forma. Caso contrário, se for adaptável, ela
tornará o espaço veículo/ plataforma, o que estará mais próximo da designação
de site-generic.
Além das questões conceituais e práticas que envolvem o teatro
site-specific
,
que dificultam ou anulam a possibilidade de circulação do espetáculo, Fiona
destaca que os custos operacionais por trás da poética, muitas vezes, inviabilizam
que produtores e festivais desloquem tais propostas para outros espaços,
diferentes daqueles em que foram concebidos.
Na prática isso tem sido muito difícil, impossível, na verdade, porque
simplesmente não dinheiro suficiente para retrabalhar os espetáculos
em relação ao espaço específico. Existem muito poucos promotores que
podem pagar os custos de criar um trabalho nessa escala (Wilkie, 2004,
p. 55).
A realidade britânica, neste quesito, talvez não seja tão distante da brasileira
e por essa razão fica fácil entender que as demandas advindas das escolhas
espaciais podem condicionar o espetáculo a cumprir poucas apresentações e,
mais que isso, impossibilitar (em alguns casos) que novas temporadas possam vir
a acontecer, tanto pelo valor da transposição, quanto pelo número limitado de
espectadores pagantes.
Não obstante, Silva (2020) salienta que as encenações
site-specific
confiam
suas concepções, produções e recepção à complexa convivência material do
espaço (instalações, histórico e contexto) e à imaterialidade inerente à linguagem
artística (artificial, imagética, efêmera), que se sobrepõem e interpenetram-se a
partir daquilo que antecede a obra e aquilo que é a obra: “a presença material do
espaço, o tempo histórico e referências culturais que não consegue ser apagada
pelo trabalho artístico. Contribuindo, assim, para uma narrativa passível de
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múltiplas leituras e significados” (Silva, 2020, p.78).
Justamente por essa razão, Mike Pearson (2010) defende que os espetáculos
realizados sob esses termos são inseparáveis de seus espaços, pois conseguem
ser inteligíveis a partir daquele contexto no qual (ou para o qual) foram criados.
Consequentemente, nesta acepção, qualquer possibilidade de um espaço
neutro na encenação
site-specific
torna-se uma incongruência abissal, ressalta
Jackson Silva (2020), uma vez que estas proposições teatrais se valem da própria
identidade do local para compor o espetáculo, seja como especulação narrativa,
seja como símbolo para alguma questão que esteja sendo debatida, ou ainda como
contraponto material para o discurso da peça.
Logo, é pouco provável que o espaço seja um cubo branco, sobre o qual os
agentes do espetáculo irão operar e aplicar suas técnicas, pois, como bem definiu
Lehmann (2008, p.281:
O teatro específico ao local procura uma arquitetura ou uma localidade
não tanto porque o “local” corresponda particularmente bem a um
determinado texto, mas, sobretudo, porque se visa que o próprio espaço
seja trazido à fala por meio do teatro.
Compreende-se desta leitura, que a encenação norteada por esse conceito
decide por um espaço que tenha a possibilidade de responder e interrogar uma
série de preocupações que o circundam, representando escolhas formais e
estéticas, afinal, estamos no campo das artes, mas, do mesmo modo, “políticas e
discursivas pela própria concretude e significados dos espaços cotidianos
performatizados neste tipo de encenação” (Pearson, 2010, p.8).
Além disso, é particularmente significativo que, ao se constituir a partir de um
espaço ordinário do cotidiano de uma comunidade (com função completamente
distinta dos espaços dados às artes cênicas), a encenação
site-specific
leve o
teatro a operar em um campo dimensional ambíguo:
Por um lado, constrói uma ficção, ao fazer uso das ferramentas e códigos
da linguagem teatral. Por outro lado, está inserido dentro de um espaço
funcional da realidade concreta e tangível da polis e suas imensas
complexidades, que por si se opõe ao artifício, ao efêmero e fictício onde
as artes operam (Silva, 2020, p.79)
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Assim, como resultado, essas propostas cênicas acabam não criando uma
representação do real, nem tampouco uma interpretação de realidade, mas,
“criando uma intervenção sobre o real, que tentam converter o espectador em
participante de uma forma coletiva, ou na forma de ações diretas sobre o espaço
não delimitado pelas instituições artísticas” (Sánchez, 2007, p.76 apud Carreira,
2011, p.334).
Em todo caso, ao interrogar o seu próprio campo de atuação e as convenções
praticadas no estabelecimento de um ambiente que busca combinar forma e
conteúdo (e lugar teatral, cenografia e ações cênicas), a encenação
site-specific
se fundamenta, do mesmo modo, a partir do conceito de vivência, que se constitui
pela coparticipação de todos os agentes da encenação, permitindo, inclusive, que
o espectador encontre seu próprio espaço na encenação, perante a complexidade
da fruição na qual este estará inserido, como bem descreve André Carreira (2017,
p.7):
Quando se experimenta um teatro no qual a intimidade é o elemento
vincular, ou pelo menos sua promessa e o espaço nos coloca em um
território de risco, busca-se explorar potência da ação da experiência da
arte. Não há dúvidas que ao se oferecer aos espectadores a proximidade
extrema e o compartilhamento da gestão do acontecimento se busca
criar um evento que se desloque do simples espetáculo. Esta oferta
define lugares e propicia pensar sobre a noção espacial, ambiental da
cena.
De fato, um dos raciocínios na prática do teatro
site-specific
diz respeito ao
papel vital do espectador para completar o trabalho artístico, a partir do vínculo
que estabelece com a obra. Concepções veiculadas desde o início do século XX
em proposições de Artaud, Kantor a Schechner que propunham uma fruição
íntima e processual entre todos os agentes da cena.
Como exemplo, observemos a reflexão de Tadeusz Kantor ao comentar a sua
obra:
[…] em 1956 realizamos o
The Octopus
, sem nenhum palco e em um
verdadeiro café. Todo mundo estava bebendo e então, em meio a essa
atmosfera de café, apareceu o papa Júlio II, o ditador, a prostituta e
grandes atores como Witkiewicz. Eles apareceram na cena como
fantasmas, em vez de atores disfarçados. Eles agiram como teriam feito
em um café e toda a sua atitude assumiu gradualmente uma nova
realidade - a da sala (Kantor apud Breton, 1989, p.14).
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O encenador ressalta que seu grupo estabeleceu uma transformação nas
relações entre cena e público ao fazer uma apresentação em um café, onde as
pessoas/espectadores bebiam, comiam e ouviam música, constituindo uma
realidade autêntica, viva, em oposição a um público passivo, neutro, estacionado
em assentos dos teatros oficiais.
Nessa passagem, de certa forma, Kantor sequestrou o espectador da sua
condição tradicional de espectador ao colocá-lo em situações incomuns,
perturbadoras, referente ao espaço vivo de apresentação, nos diz Denis Bablet
(2008), e, desse clima de instabilidade, surge a participação do público, como
assume Kantor (2008, p.106):
[…] a copresença analítica e contemplativa torna-se uma copresença
fluida e quase ativa, nesse campo da realidade viva. A exposição perde
sua função habitual, torna-se uma ambiência ativa conduzindo o
espectador em peripécias e emboscadas, recusando-lhe não
satisfazendo sua razão de existir enquanto espectador, observador e
visitante.
No teatro
site-specific
, portanto, se oferece ao espectador uma grande
parcela do evento cênico, ao solicitar que este faça sua jornada através do espaço
da encenação e, partindo dessa experiência, possa decodificar a obra, ciente de
que o espaço não é apenas uma simples ordenação estética, ou plataforma de
exposição, mas parte indivisível daquela experiência cênica, na qual ele pode
intervir, se desejar.
De modo semelhante, essa vivência comunal em um espaço-tempo
compartilhado entre atores e público, num ambiente alheio ao teatro de sala, onde
todos os agentes do evento são estranhos àquele lugar, seria mais uma
característica destas encenações, uma vez que todos nós (atores, espectadores,
cenógrafos, iluminadores, maquiadores, figurinista, etc.) somos “convidados” do
espaço, sentencia Lehmann: “todos são estrangeiros no universo de uma fábrica,
de uma central elétrica, de uma oficina de montagem” (Lehmann, 2008, p. 282).
Acontece que, ao abdicar do seu lugar de conforto (o edifício teatral) e ocupar
lugares insólitos e ordinários do cotidiano como espaço cênico, instaurando neles
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uma ficção, intuímos que, de alguma maneira, o teatro abdicou o mundo
dramático e fictício, para anexar os espaços heterogêneos da esfera do cotidiano,
que passam a ser uma espécie de palimpsesto permanente nos trabalhos dessa
natureza, como nos elucida Lehmann.
De modo semelhante percebe Carreira (2017), ao anotar que a relação cidade-
praticada, cidade-imaginada é a chave para pensarmos os processos em relação
aos espaços urbanos, dado que estes dois elementos existem de forma justaposta.
Assim, compreendemos que a encenação se estabelece como site-specific
quando o espaço não-teatral é admitido como possibilidade cênica a partir da
realidade histórica (ou das conjecturas imagéticas), daquele lugar no qual os
produtores irão se deter para criar seus trabalhos num diálogo permanente com
as circunstâncias próprias do ambiente.
Esse elemento fundante, mediará a criação das cenas e convenções teatrais,
modo de comunicação, meios de acesso, permanência e fruição, que tendem a
ser distintas das práticas realizadas no teatro de sala, ao incorporar a natureza, as
funções e os imaginários dos lugares onde o teatro vai habitar.
Temos, então, que esse ambiente conduz a encenação e estabelece
abordagens operacionais distintas das vivenciadas nos espetáculos de sala, como
demarca o quadro abaixo, adaptado de uma proposição realizada por Claire
Doherty
7
, que apresenta algumas diferenciações entre o espetáculo de sala e a
encenação
site-specific
:
7
Doherty, 2004, p. 9 apud Pearson, 2010, p. 17.
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Quadro 1 – Diferenças entre Espetáculo de sala e
site-specific
No espetáculo de sala o
espaço cênico é fechado em si
mesmo.
No
site-specific
, os limites espaciais podem ser
evidentes, mas demandam uma constante expansão.
No espetáculo de sala as
condições ambientais são
estáveis.
No
site-specific
, as condições ambientais podem
mudar e necessitam ser aceitas ou ativamente
combatidas pela encenação.
O espetáculo de sala é escuro
e silencioso.
O
site-specific
é silencioso e escuro se for
escolhido por tais qualidades ou se assim exigir a
concepção da encenação.
No espetáculo de sala a cena,
em geral, está localizada em
um só lugar.
No
site-specific
, as cenas podem acontecer em vários
lugares do espaço.
No espetáculo de sala o
arranjo do público geralmente
é fixo.
No
site-specific
, pode haver várias disposições para o
público: organizado, fluido, negociado, etc.
No espetáculo de sala, o
público é escalado para ser
apenas espectador:
propositalmente apreciador.
No
site-specific
, o público pode ser ocasional e pode
ser solicitado a intervir na ação cênica.
No espetáculo de sala a cena
é ligada ao universo da peça.
No
site-specific
, a perspectiva da cena é ajustada ao
universo o espaço.
No espetáculo de sala a cena
ocorre à meia distância.
No
site-specific
, os eventos ocorrem de formas
variadas e mudam de distância.
No espetáculo de sala a
encenação é apresentada ao
público.
No
site-specific
, a encenação é gerada em função do
espaço e requer participação do público.
No espetáculo de sala os
efeitos são discretos e
controlados.
No
site-specific
, os efeitos podem invadir e chamar
atenção.
No espetáculo de sala a
maquinaria teatral preexiste
ao espetáculo.
No
site-specific
, a maquinaria teatral inexiste, mas
pode ser instalada unicamente para aquele evento e,
também, pode ser adaptada das instalações do
próprio espaço.
No espetáculo de sala o
artifício é disfarçado.
No
site-specific
, o artifício está à vista e menos
mascarado.
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Fonte: (Doherty, 2004), adaptado pelo autor
Estas oposições, provavelmente, podem ser expandidas para outras relações
que envolvem a concretização de uma encenação site-specific, que a mesma
contribui para o entendimento sistemático do espaço da encenação de maneira
dialógica com a criação e a recepção desses eventos cênicos.
Tais distinções, em síntese, podem apontar para uma progressiva
repactuação dos procedimentos adotados pelos artistas para uma composição
cênica, ao ampliarem o território de atuação ficcional sob um limite dilatado pelos
ambientes percorridos e assimilado na encenação, como anotamos na nossa tese
de doutorado
8
.
Aliado a isso, a prática
site-specific
oferece aos artistas a possibilidade de
examinarem alguns princípios criativos amplamente praticados nas salas de
ensaio (que visam a exibição em um equipamento teatral padronizado que
receberá tal experimento), e colocá-los em questão, pois as alusões espaciais
8
Silva, 2020.
No espetáculo de sala as
técnicas e controles são mais
ou menos suficientes para a
tarefa da encenação.
No
site-specific
, as técnicas devem ser inventadas ou
adaptadas.
No espetáculo de sala, uma
coisa de singular importância
está acontecendo.
No
site-specific
, muitas coisas podem estar
acontecendo ao mesmo tempo.
No espetáculo de sala as
ocupações anteriores são
apagadas.
No
site-specific
, as ocupações anteriores dos espaços
são evidentes e operatórias.
No espetáculo de sala esse
tipo de coisa (evento cênico)
aconteceu antes.
No
site-specific
, o evento cênico pode estar
ocorrendo pela primeira vez.
No espetáculo de sala o
espaço é projetado para
facilitar a repetição.
No
site-specific
, pode não haver recursos para mais
de uma apresentação ou mais de uma temporada.
O espetáculo de sala pode ser
apresentado em outro espaço
semelhante.
No
site-specific
, o espetáculo dificilmente será
apresentado em outro espaço, ainda que semelhante.
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praticadas na criação site-specific, podem demandar outros acordos operacionais.
E, do mesmo modo, ainda que o espaço apareça como uma chave relevante
para desvendar alguns aspectos narrativos do texto cênico, a constituição do
espaço no teatro
site-specific
, incontornavelmente, deve ser levada em
consideração por suas histórias e referências, que acrescentam camadas
significantes e expressivas ao conjunto da trama cênica.
Diante destas implicações, a linguagem teatral passa a funcionar sob o signo
do performativo, posicionando a realidade e os precedentes dos lugares ocupados
pelo teatro como um moto-contínuo do acontecimento teatral. E, por essa razão,
também, institui no território do teatro uma intersecção com outras linguagens
artísticas, comunidades e discursos que nem sempre os espetáculos de sala
permitem se aproximar, por sua própria natureza.
Em contrapartida, por se tratarem de obras porosas e abertas às anexações
diversas, o evento teatral
site-specific
passa a coexistir com a realidade imaterial
daquele espaço, que, por vezes, pode suplantar as demandas da ficção e
comprometer todo o trabalho cênico. Cabendo aos agentes da cena,
especialmente à direção, trabalhar no sentido oposto ao da realidade espacial,
para manter a coerência basilar da encenação e reestruturar o trabalho diante das
intempéries desencadeadas por aquele lugar ocupado pelo teatro (Silva, 2020,
p.84).
Diante dessa possibilidade, o ambiente controlado da linguagem teatral (que
em geral é fechada em si), passa a visitar novos territórios e considerá-los
mediante as trocas e arranjos possíveis de serem configurados para compor a
encenação, sem se deixar dirigir pelos apriorismos e convenções dos edifícios
teatrais.
De pronto, podemos observar que esses espaços apresentam uma
complexidade inerente às suas próprias funcionalidades, bem distantes do
universo cênico, às quais os agentes da cena se submetem para expandir um
debate, não apenas a respeito do que o espaço cênico é ou pode ser, mas,
sobretudo, acerca daquilo que a linguagem cênica pode oferecer à sociedade
como ponto de reflexão, ao apresentar possibilidades imagéticas para lugares que,
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antes da encenação se fazer presente, são apenas espaços arquitetados a cumprir
uma determinada função.
Porém, quando o teatro se instala, o espaço recebe uma licença poética para
atuar de maneira completamente distinta daquela para o qual foi projetado (nem
que seja por uma pequena fração de tempo) e, nela, a experiência do local será
submetida a novas lentes e ângulos que, revelando novas perspectivas, apontarão
para novos territórios possíveis, inclusive para a linguagem teatral.
Tal compreensão pode ser registrada em diversas encenações brasileiras da
segunda metade do século XX, desde
O Cemitério dos automóveis
(1968), Victor
Garcia, em São Paulo, em um galpão onde funcionava uma oficina mecânica cujas
características foram preservadas para a encenação; passando por
A grande
viagem ao centro da terra
, de Ricardo Karman e Otávio Donasci, encenação
realizada em São Paulo (1992), no túnel abaixo do Rio Pinheiros; bem como de
Aderbal Freire e sua encenação
A morte de Danton
(1977) dentro de um canteiro
de obras do Metrô, no centro do Rio de Janeiro; ou em
O tiro que mudou a hist
ória
(1991), do mesmo encenador, no Palácio do Catete - RJ, local onde Getúlio Vargas
realizou o famoso disparo de arma de fogo contra si.
Igualmente, podemos recorrer aos experimentos cênicos realizados nos anos
2000, assinados por Antônio Araújo e seu coletivo Teatro da Vertigem; aos
trabalhos de Wladia Moura, que encenou espetáculos em porões da cidade de
Belém, PA (2000-2005); Inês Marocco, que criou o espetáculo
O Cortiço
(2008)
dentro do Museu do Rio Grande do Sul; Fabiana Monsalú, encenadora de
A Casa
de Bernarda Alba
(2007), realizada dentro de um casarão histórico em Salvador
(BA). Bem como os trabalhos do Grupo XIX de Teatro (SP); o Grupo Erro (SC); o
Teatro do Instante de Brasília (DF).
Ou, ainda, espetáculos contemporâneos realizados em ambientes virtuais
como anotamos no capítulo de um compêndio publicado em 2021.
Essas e tantas outras encenações partilham de uma poética cênica singular
que, enquanto expandem seus territórios, oferece à linguagem novas camadas de
leitura fruição e análise, reorientam, substancialmente, os fundamentos das
encenações.
Reorientando fundamentos teatrais nas encenações
site-specific
José Jackson Silva
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-17, dez. 2022
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Desse modo, como arremate, ao relacionarmos a pertinência dessas práticas
às diferenças metodológicas entre o teatro de sala e o site-specific, conseguimos
inferir que esta poética, além de funcionar como o laboratório cênico que dará
forma e conteúdo à encenação, também possibilita:
a) criar o espetáculo em diálogo com o espaço: percebendo suas
camadas e atravessamentos materiais e virtuais (imaginários
socialmente construídos), que irão influenciar diretamente na criação
cênica;
b) conectar o espaço à encenação de forma indivisível;
c) desmaterializar a cenografia: utilizar todo o ambiente como
prolongamento do movimento dos atores.
d) reestruturar o espaço levando-o a basear-se alternadamente no seu
contexto (sociopolítico, cultural) e no desejo da encenação: termos que
superam a visão do senso comum da cenografia como mera superfície
revestida.
e) “abrir” o espaço cênico e multiplicar os pontos de vista a fim de
relativizar a percepção única e fixa do espetáculo de sala, ao distribuir
o público em volta ou eventualmente dentro do evento teatral;
f) vincular o espectador à ação cênica. Se o palco do espetáculo de sala
é percebido como anacrônico, hierarquizado e baseado numa
percepção distante e ilusionista, no site-specific as relações e
percepções, em grande parte, se devem ao envolvimento (sensorial,
referencial, dialógico) do público e equipe enquanto a encenação se
desenvolve (Silva, 2020, p.160).
Além das características elencadas acima, vemos que nessa modalidade se
restringe o número de temporadas, visto que após a primeira temporada haverá
dificuldades estruturais para retornar ao espaço fundante, ou mesmo para se
deslocar por outros sítios, ainda quem similares.
Examinamos, portanto, nestes breves apontamentos, que as encenações
realizadas sob o conceito de
site-specific
assinalam direções singulares para os
eventos cênicos, sobretudo, quando os agentes da cena estiverem conscientes
dos atravessamento e contribuições atinente aos espaços praticados e
incorporados à gênese da criação.
Referências
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Theaters
. New york: Princeton Architectural Press, 1989.
CARREIRA, André. A intimidade e a busca de encontros reais no teatro.
Revista
Reorientando fundamentos teatrais nas encenações
site-specific
José Jackson Silva
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-17, dez. 2022
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, Porto Alegre, v. 1, n. 2, p. 331-345, jul./dez., 2011.
CARREIRA, André.
Teatro de invasión: la ciudad como dramaturgia
. Cordoba:
Ediciones Documenta/Escenicas, 2017.
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Teatralidades contemporâneas
. São Paulo: Perspectiva, 2013.
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. Tradução: Jacó Guinsburg, Isa Kopelman,
Maria Lúcia Pupo e Sílvia Fernandes. Prefácio: Denis Bablet. São Paulo: Perspectiva/
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Paulo: Cosac Naify, 2008.
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O Site-specific na Perspectiva da Direção teatral
. 2020. Tese
(Doutorado em Artes Cênicas) Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Instituto de Artes, Porto Alegre, 2020.
WILKIE, Fiona. Out of place: The Negotiation of Space in Site-Specific Performance.
Tese (Doutorado em Filosofia) University of Surrey, School of Arts, Guildford,
2004.
Recebido em: 11/05/2022
Aprovado em: 16/10/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
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