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Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e
empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Para citar este artigo:
MORAES, Juliana Martins Rodrigues de. Coreografia da
Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino
na cena paulista –
Lobo
.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0206
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Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento
feminino na cena paulista
Lobo
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Juliana Martins Rodrigues de Moraes
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Resumo
A partir da análise do espetáculo
Lobo
, de Carolina Bianchi e Cara de Cavalo,
de 2018, a autora deste artigo aponta a hipótese de que alguns trabalhos
recentes da cena paulista, produzidos majoritariamente por mulheres,
apresentam corpos convulsivos, cujas características os aproximam das
descrições dos corpos histéricos, do final do século XIX e início do XX. O texto
menciona outros quatro trabalhos para afirmar que há, nesse movimento
criativo, um sinal de empoderamento feminino, de afirmação de seu “lugar
de grito”. Por fim, a autora articula a sua experiência de espectadora às
diversas referências teóricas e artísticas, incorporando na escrita, as
impressões e o processo de registro daquilo que viu nas obras. Ademais, o
estudo se baseia na espectação como metodologia e situa essa prática entre
a recepção e a crítica. Refencias exteriores ao campo especificamente
cênico, especialmente à psicanálise, contribuem para a análise das
ambivalências e ambiguidades colocadas em jogo.
Palavras-chave: Coreografia. Histeria. Espectação. Corpos Convulsivos.
Dança Contemporânea.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Vânia Carolina Gonçalves Paluma, doutoranda em
Estudos Literários e Mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
2
Doutora em Artes e Bacharel em Dança pela UNICAMP. Mestre em Dança pelo Trinity Laban Conservatoire
for Music and Dance, em Londres. Professora e pesquisadora do Departamento de Artes Corporais da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). jumoraes@g.unicamp.br
http://lattes.cnpq.br/2645941853332386 http://orcid.org/0000-0003-0623-8178
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Hysteria Choreography: convulsive bodies and female
empowerment on the São Paulo scene
Lobo
Abstract
Based on the analysis of the performance
Lobo
, by Carolina Bianchi Y Cara
de Cavalo, from 2018, the author hypothesizes that some recent works from
the São Paulo scene, produced mostly by women, present convulsive bodies,
whose characteristics bring them closer to the descriptions of hysterical
bodies of the late 19th and early 20th centuries. She mentions four other
works to affirm that there is, in this creative movement, a sign of female
empowerment, of affirmation of their “place of screaming.” The author
articulates her experience as a spectator with different theoretical and artistic
references, incorporating impressions in her writing and recording what she
sees in the works. Spectation is used as a methodology, placing this practice
between reception and criticism. References external to the performing arts,
especially psychoanalysis, contribute to studying the ambivalences and
ambiguities put into play.
Keywords: Choreography. Hysteria. Spectation. Convulsive Bodies.
Contemporary Dance.
Coreografía de la histeria: cuerpos con espasmos y
empoderamiento femenino en la escena paulista
Lobo
Resumen
A partir del análisis del espectáculo
Lobo
de 2018, de Carolina Bianchi Y Cara
de Cavalo, la autora formula la hipótesis de que algunas obras recientes de
la escena paulista, producidas en su mayoría por mujeres, presentan cuerpos
con espasmos, cuyas características son muy similares a las descripciones
de cuerpos histéricos de finales del siglo XIX y principios del XX. Menciona
otras cuatro obras para afirmar que en el movimiento creativo hay señales
de empoderamiento femenino y de afirmación de su “lugar de grito”. La artista
articula su experiencia como espectadora mediante distintas referencias
teóricas y artísticas, incorporando impresiones en su escritura y el proceso
de registro de aquello que ve en las obras. Además, se basa en la espectación
como metodología, y sitúa esta práctica entre la recepción y la crítica. Las
referencias externas al campo específicamente escénico, sobre todo al
psicoanálisis, contribuyen al análisis de las ambivalencias y ambigüedades
que están en juego.
Palabras clave
: Coreografía. Histeria. Espectación. Cuerpos con espasmos.
Danza contemporánea.
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Introdução
Este texto faz um relato de uma experiência espectatorial específica, o
encontro com a obra
Lobo
(2018)3, de Carolina Bianchi e Cara de Cavalo, utilizando-
o como fonte para reflexões teóricas. Em estilo ensaístico, a narrativa em primeira
pessoa faz uso da metodologia de espectação, proposta por Skantze (2013) e
aprimorada por Montagner (2018), para percorrer os caminhos entre a experiência
de assistir à obra, os impactos que ela provocou e os desenhos teóricos que a
reflexão, ancorada na experiência, delineou.
O artigo é formado por três partes. Inicialmente, descreve-se a metodologia
de espectação, que ancora todo o artigo. Para tanto, a escrita se permite fazer uso
de "palavras por vezes mais próximas do coração, do cérebro ou do estômago"
(Moraes, 2013, p.19). A seguir, a primeira metade de
Lobo
é analisada sob tais
premissas, passando pelos subtemas O Coro Masculino Nu, A Pintura de Artemísia,
A Protagonista Feminina,
Lobo
é
Camp
e Ela Mata o Homem Errado. Finalmente,
segue-se uma reflexão nomeada A Coreografia da Histeria, na qual os temas
levantados anteriormente culminam na hipótese teórica de que certas obras
cênicas contemporâneas, apresentadas em espaços de renome na cidade de São
Paulo, levam à cena corpos convulsivos, cujas características os aproximam das
descrições sobre os corpos histéricos, feitas no final do século XIX e na primeira
metade do século XX, especialmente por médicos e psicanalistas.
Propomos que, enquanto no passado tais corpos eram social, cultural,
econômica e politicamente subjugados, privados da sua liberdade e até
aprisionados, atualmente, vemos que algumas integrantes da nova geração de
coreógrafas, dramaturgas e intérpretes que se apresentam na cena paulista (por
vezes em parceria com colegas do gênero masculino - como vemos no coro
numeroso de homens em
Lobo
), apropriam-se do corpo em convulsão como
3 Informações textuais e visuais sobre essa obra podem ser encontradas no site:
https://www.carolinabianchiycaradecavalo.com/l-o-b-o. Acesso em: 14 mar. 2021.
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forma de empoderamento, subvertendo as expectativas patriarcais vigentes até
recentemente.
Esse movimento estético, ligado à terceira onda feminista4, não nos parece
ser exclusivo do território paulista. Todavia, a busca por circunscrever o contexto
espacial deriva da preocupação em não universalizar processos, contrariando o
histórico da reflexão crítica sobre dança contemporânea no nosso país que, muitas
vezes, toma a produção cênica do eixo Rio-o Paulo como toda a produção
nacional. Não nos cabe universalizar processos, mas esmiuçar aquilo com o que
se tem, efetivamente, contato.
Espectação
Escrevo essas linhas em ato de espectação (Skantze, 2013) construído pela
artesania de quem assiste, décadas, a inúmeras peças e acumula essas
experiências comparando-as, percebendo as diferentes emoções derivadas de
cada obra. Como ressalta Marvin Carlson (2020, p.6): “podemos levar conosco um
repertório acumulado de memórias de eventos semelhantes que podemos
utilizar para entender e apreciar a nova experiência”.
A espectação é uma ação continuada e parte indissociável da minha vida de
artista-pesquisadora. Um ir e vir de arquiteturas, cidades, ruas e línguas - busco
teatro, dança e performance em qualquer lugar em que me encontre.
Espectadores seriais são mariposas da energia que emana do palco, mesmo
quando a encenação acontece em espaços inesperados como buracos, neis,
subsolos, asilos, igrejas ou hospitais. “[…] Uma prática de espectar, uma prática
que pode ser tão intuitiva, cumulativa e trabalhada quanto a de fazer
performances, dirigir e escrever (Skantze, 2013, p.7)5. Sou diretora, bailarina,
coreógrafa e professora, bem como espectadora assídua. Isso é parte fundamental
4 A terceira onda feminista, iniciada nos anos 1990, questiona a centralidade da experiência das mulheres
brancas de classe média nas lutas anteriores do movimento. A causa se expande para questões enfrentadas
por grupos subalternizados, especialmente mulheres negras e indígenas. A terceira onda feminista também
luta contra formas de representação estereotipadas de mulheres na indústria de entretenimento, e revela as
experiências de machismo e assédio enfrentadas pelas mulheres nos espaços doméstico e de trabalho.
5 […] a practice of spectating, a practice that can be as intuitive, cumulative and crafted as that of making
performances, of directing and writing. (Tradução nossa)
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da minha prática (como criar se não vejo o que os outros criam, se não me insiro
no universo poético dos palcos da minha cidade, ou das cidades, que frequento?).
!Aquilo que experienciamos enquanto espectadores forma-nos tanto enquanto
espectadores quanto indivíduos. Não seria essa também uma prática criativa, que
nos inventa à medida que nos constitui?” (Montagner, 2018, p.16).
A palavra espectatorial constitui-se em um neologismo e não é
encontrada nos dicionários de português. Espectatorial parece derivar
diretamente de spectatorial, adjetivo utilizado na língua inglesa para
referir-se ao espectador. Foi dessa forma, através dessa tradução direta
feita necessária pela limitação terminológica encontrada no português,
que também passei a empregar espectatorial como adjetivo para o que
concerne o espectador. Assim, o adjetivo !espectatorial é também aqui
proposto enquanto uma derivação necessária para o espectador,
complementando e acompanhando a espectação (Montagner, 2018, p.47).
A espectação pode ser entendida como “uma metodologia de sugestão em
vez de argumento, um convite para olhar juntos, em vez de uma renderização
plana da s-imagem, a superfície restante da performance lembrada” (Skantze,
2013, p.7)6. Espectar acontece com os outros, mas nunca como os outros - daí a
impossibilidade de um espectador ideal. A atenção espectatorial depende das
múltiplas vivências de cada um, além das experiências derivadas do acaso nos
tempos anteriores e subsequentes à experiência. “[S]eria mais viável falarmos de
práticas da espectação
em vez de presumir que um processo único ocorra na
interação espectatorial com a cena, pois não existe um espectador que possa
exemplificar todos os restantes” (Montagner, 2018, p.47).
A espectação entende o evento teatral como um campo interminável de
experiências, que não se limita ao tempo da ação, mas se prolonga para a vida:
“Espectação é uma forma de abordagem dos estudos do espectador, que aqui se
estabelece pela aproximação com experiências pessoais e com seus
desdobramentos perceptivos e corporificados, suas repercussões imediatas e
suas ressonâncias” (Montagner, 2018, p.29). A cada peça presenciada, o corpo do
espectador se altera e se expande, sustentando uma rede de associações a nutrir
6 A methodology of suggestion rather than argument, an invitation to look together rather than a flat rendering
of the afterimage, the leftover surface of the remembered performance. (Tradução nossa)
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vivências futuras, além de rearranjar experiências passadas por adequações,
reparações e reavaliações. “[O]
corpo espectatorial
, rebelado no enquadramento
espaço-temporal da performance, reivindica sua parte no evento, como evento
que performava-se na espectação” (Montagner, 2018, p.93). Como diz Skantze, o
corpo do espectador responde com “aquela dança mimética estranha e constante
que acontece a uma espectadora envolvida; eu o estou fazendo a ação, mas
como a ação é feita afeta como eu a recebo, onde em meu corpo eu a recebo”
(2013, p.104)7.
Como ação que se instaura na escrita, a espectação impõe um desafio à
linguagem, pois precisa de linhas que descrevam não somente o evento, mas
também o que se sentiu naquele momento, como espectadora, assim como o que
se experimenta neste momento, como escritora. !A escrita, de certa maneira, torna
presente, é uma luta contra a ausência” (Roudinesco, 2019, p.15). Sabemos que a
nossa memória nunca é testemunha fiel, ela mexe nas lembranças, defasa, apaga,
aumenta, inventa, nega, obstrui, reduz, ataca, ignora e recria o evento. Como
escrevi anteriormente: “a mesma peça, se assistida em momentos diferentes da
vida, geraria arquivos diferentes de lembranças, pois cada contato depende de
inúmeras variáveis da 'vida que mexe muito'”8 (Moraes, 2013, p.15).
Sobre essas obras que tenho a intenção de escrever, elas são assistidas com
caderninho, no qual anoto rapidamente as cenas e as minhas impressões, muitas
vezes sem ver as suas páginas, pois es escuro e não quero deixar de olhar para
a ação. O caderninho me alguma ancoragem para o texto, certa segurança
contra a “vagabundagem em primeira pessoa” (Roudinesco, 2019, Loc. 438). Com
ele, navego nos dois tempos do evento, o de assistir e o de escrever, pendulando
entre o que vi e o que ainda está em mim. Segundo Skantze (2013, p.28)9: “existe
uma fronteira no espetáculo teatral no tempo entre os momentos de recepção do
espetáculo e considerações posteriores fora do espaço quente da apresentação”.
7
[…] that constant odd mimetic dance that comes from engaged spectating; I am not doing the action, but
how the action is done affects how I receive it, where in my body I receive it. (Tradução nossa)
8 Fala recorrente de Riobaldo em
Grande Sertão: Veredas
, de Guimarães Rosa.
9 […] a border exists in theatrical performance in the time between the moments in reception of the
performance and later considerations outside the host space of the live. (Tradução nossa)
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8
Por se instaurar na fronteira entre receber e considerar, espectar oferece não
somente uma metodologia, mas um novo campo de estudos em performance.
Portanto, este texto não trata de recepção nem faz uma crítica da obra, mas é
tecido como um ensaio a respeito dos efeitos sentidos por uma espectadora
traquejada, em uma tentativa de articular a experiência sem o distanciamento do
crítico nem a ingenuidade do espectador eventual. Se é óbvio que qualquer sujeito
vive uma experiência ao assistir a uma peça cênica, não é verdade que a
experiência seja similar. Mesmo que assistam à mesma obra, no mesmo dia,
sentados lado a lado, cada um que assiste vive uma experiência única, afinal, “o
trabalho cognitivo de atribuição de sentido pode ser feito em certos contextos
de referência, e estes não são universais, mas culturalmente determinados”
(Fanon, 2020, Loc. 526). O espectador traquejado é capaz de tecer comparações e
contextualizações. Nas palavras de Carlson (2020, p.12): “Quanto mais teatro se
assiste, mais rica se torna a interação entre uma experiência nova e uma
experiência lembrada”. Além disso, frequentar repetidamente o teatro permite
visualizar laços de referências contemporâneas e históricas. Afinal, “[A]s obras
mais interessantes da arte contemporânea estão cheias de referências à história
do meio; na medida em que comentam a arte passada, exigem um conhecimento
pelo menos do passado recente” (Sontag, 2018, p. 36).
Lobo
Assisti à obra
Lobo
, dirigida por Carolina Bianchi e apresentada no Teatro de
Contêiner, duas vezes. Na primeira, anotei algumas palavras soltas no meu celular
logo ao sair do teatro. A seguir, escrevi mais algumas linhas ao chegar em casa e,
nos dias subsequentes, fui anotando mais e pesquisando elementos músicas,
pinturas, biografias, dentre outros aspectos. Depois de alguns dias, resolvi assisti-
la novamente, dessa vez com um caderninho para anotar a ordem das cenas, as
músicas que conseguia identificar e os letreiros projetados no fundo do palco. Nos
aplausos, ficou claro que muita coisa da minha primeira lembrança tinha sido
inventada. Eu colocara até mesmo uma canção inexistente,
Wuthering Heights
, de
Kate Bush. A sica o aparece, mas o figurino da cantora no videoclipe,
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9
disponível no
YouTube
10, é muito parecido com o primeiro usado por Carolina
Bianchi. A minha memória trocou a roupa pela canção em um deslize freudiano
clássico.
O Coro Masculino Nu
É sábado à noite, dia 15 de setembro de 2018. Entramos em fila na sala de
espetáculos do Teatro de Contêiner, no centro de São Paulo, e buscamos lugares
disponíveis. O meu parceiro e eu sentamos em cadeiras na lateral do palco,
enquanto mais de uma dezena de jovens rapazes correm nus com tênis,
segurando, cada um, uma garrafa vazia de vidro. São todos magros, alguns mais
atraentes do que outros, uns mais peludos e uns mais… Por desconhecimento,
que não possuo órgão genital masculino, pergunto baixinho ao meu parceiro,
sentado ao lado, se não incomoda correr com os genitais soltos e ele me responde
que somente se estivessem rígidos incomodaria. Olho para os moços e vejo os
membros murchos, pendurados e balançando enquanto correm e sinto um misto
de pena, curiosidade e vontade de rir.
Esses pedaços extras de carne percorrem o espaço na altura dos meus olhos,
pois me encontro sentada em cadeira posicionada no chão do palco. Durante os
primeiros dos longos minutos enquanto os rapazes correm, transpiram e
exaurem-se, fico sem saber se devo ou não olhar tão declaradamente para os
seus órgãos expostos e compará-los ou se não deveria me importar mais com
seus rostos, mãos ou joelhos.
Penso que os seus corpos são exibidos nus de propósito, com o
consentimento de cada um deles, justamente para nos causar um misto de
curiosidade, desejo e culpa, e, depois dessa breve reflexão, entrego-me à análise
das suas figuras, cuidando somente para que o meu rosto não denote as minhas
interpretações (afinal, estou na primeira fila e quase tão iluminada quanto os
atores/bailarinos). Nesse momento, trava-se a aliança entre a obra e minha
percepção: de um lado o exibicionismo louco, transviado, suado, babado, arriscado,
10 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fk-4lXLM34g. Acesso em: 15 mar. 2021.
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contorcido e desvairado dos artistas em cena; do outro meu
voyeurismo
mascarado pelos músculos do meu rosto, que mantêm a impressão de
distanciamento, enquanto, por dentro, imagens, associações, desejos, atrações,
nojo e repulsa invadem a minha percepção.
A cena é acompanhada por uma sequência de músicas
pop
sampleadas.
Reconheço Kid Abelha (“eu quero você como eu quero”),
Wicked Game
(de Chris
Isaak), Maria Betânia (!negue meu amor e meu carinho”),
Guns in Roses
, Marina
(!solidão com vista pro mar”) e
Total Eclipse of the Heart
(de Bonnie Tyler). Tento
continuamente contar o número de jovens, mas não consigo, pois eles não param
quietos e são muitos. Fico na dúvida se são treze, quatorze ou quinze. Depois de
muitas tentativas, confirmo que são 15. Às vezes, batem as garrafas entre si sem
querer. Certa vez, um deles deixa cair a garrafa, mas ela não se quebra. Quando a
música para, todos param juntos, respiram alto e exaustos.
Depois de correrem loucamente por vários minutos, vivendo o risco de
tropeçarem e se cortarem caso quebrassem as garrafas de vidro vazias que
levavam nas mãos, parando individualmente somente quando estavam quase
desmaiando, os rapazes começam a passar as mãos nos próprios corpos suados,
ainda segurando as garrafas. Depois, levam os objetos ao chão e, aos poucos, tiram
as meias e os tênis. Um a um, colocam as garrafas embaixo das cadeiras da
primeira fila da plateia e voltam para a cena. Eles colocam as mãos dentro da
boca, nos sexos, deitam-se no chão e começam a se lambuzar no próprio suor.
Silêncio. Enfiam os pés na boca, giram, escorregam e arrastam-se no chão,
umedecido pela transpiração. Os seus cheiros impregnam o ar do teatro. Um
moço, enrolado aos meus s, causa-me repulsa pela proximidade extrema e
imposta. Prefiro olhar para outros corpos, mais distantes.
A um metro e meio à minha esquerda, noto nas costas de um dos jovens um
machucado recente, na altura de sua lombar: um raspão fundo, ainda sem casca.
Ele começa a rolar no tablado desnivelado do chão e as frestas, entre as tábuas,
me contam que talvez tenham sido elas que, nos dias anteriores, tenham talhado
aquela pele. Uma citação de Freud me vem à mente: “[…] toda dor, em si, contém
a possibilidade de uma sensação de prazer” (Freud, 2016, p.54). Prazer do ator ou
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meu? Fico esperando se sai sangue novamente. Enquanto me entrego ao meu
sadismo, os muitos corpos se arrastam para o centro do palco e formam a imensa
imagem de uma suruba coletiva. Cenas dos bacanais de
Calígula
no filme de Gore
Vidal (1979), imagens do filme
Anticristo
(2009), de Lars Von Trier, figurinhas de
Pieter Bruegel (
the Elder
), cenas de sexo grupal e outras imagens de modos de
satisfação com gozo excessivo invadem minha cabeça - a diferença entre o que
imagino e o que vejo é que os membros dos atores continuam murchos. A pegação
coletiva pode ser fingida pelos diversos sculos dos seus corpos, mas não por
esse excesso de carne pendurado. Sim, estamos no teatro, não estamos em uma
sauna gay ou em uma casa de
swing
.
A Pintura de Artemísia
A imagem de uma mulher segurando um martelo preparado para fincar um
enorme pino de ferro na cabeça de um homem dormindo é mostrada em projeção
na grande parede branca ao fundo do palco: Giaele e Sisara, pintura do barroco
italiano feita por Artemísia Gentileschi, por volta de 1620. Uma voz feminina em
off
nos explica que o nome Giaele quer dizer cabra selvagem da montanha. Pesquiso,
nos dias subsequentes, que a obra representa uma narrativa famosa do primeiro
testamento, na qual, após perder a batalha contra os Israelitas, Sisara, um grande
general Canaanitas, foge e encontra acolhida na tenda de Giaele, mulher que não
pertencia a nenhum dos dois povos em guerra. Ela lhe promete segurança,
oferece-lhe comida e repouso, mas, enquanto ele dorme, ela martela um enorme
pino de barraca no seu crânio, cravando a sua cabeça no chão.
Inúmeras interpretações foram feitas sobre essa passagem da blia e
estudiosos debatem os motivos de Giaele - se sua figura deveria ser vista como
maternal, pois ela oferece leite a Sisara, ou como uma
femme fatale
, pois
indicações de que ela possa -lo seduzido e o exaurido com sessões de sexo
ardente. De qualquer maneira, em ambas interpretações, a personagem feminina
apresenta enorme capacidade de dissimulação. que não existe um motivo claro
para o assassinato, uma leitura possível considera a sua ação um ato de vingança
a todos os homens. O autor Järlemyr, ao tentar oferecer uma leitura para a história,
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faz uso das ideias de Niditch: “Em sua interpretação, Giaele está realizando um
estupro reverso, derrubando as convenções usuais de guerra, onde as mulheres
às vezes são vítimas de estupro”11 (2016, p.53).
Essa leitura parece bastante adequada à obra
Lobo
, na qual nenhum dos
muitos atores/bailarinos em cena possui nome ou protagonismo. Transformados
em uma massa masculina em oposição à única mulher, cada um que rola no chão
ou é devorado (de fato, em uma das cenas Bianchi arranca as tripas de um deles
e mergulha o seu rosto no ventre do cadáver estendido no chão), parece
representar todos os homens do mundo - assim como Sisara parece ter sido
morto por Giaele pelo simples fato de ser um homem.
O texto em
off
, em voz feminina, que acompanha toda a cena, traz imagens
como "eu nunca durmo", !quanto mais enferma mais estacas guardo na cintura”,
!eu quase não tenho seios, mas dentes, dentes tenho muitos”, “eu tenho uma
boca com cinquenta e seis dentes afiados apontando para o seu coração”, !a
minha bandeira não tem nada escrito, porque se tivesse não seria em nenhuma
língua desse mundo”, !a humanidade é o nome de uma hiena pequena com dentes
assassinos”, !quando falo sinto que meus dentes mudam de cor”, !ainda é uma
novidade estar diante do terror?”, !eu nunca estive na Itália, eu imagino como
seja” e !faça a luz e uma voz sobre o fim da guerra”. A escrita dramatúrgica de
Carolina Bianchi aparece fortemente nos textos em
off
e constroem imagens que
se repetem ao longo do trabalho, especialmente a de uma boca com muitos
dentes. Essa boca é ameaçadora, monstruosa, arquetípica do feminino que devora
e ameaça o falo de decepação. Enquanto os 15 homens dormem, como Sisara, as
suas mortes estão sendo fantasiadas e a devoração dos seus corpos imaginada
pelo feminino instaurado na voz desencarnada.
11
In her interpretation Jael is performing a reversed rape, overthrowing the usual conventions of war where
women would sometimes fall victims to rape. (Tradução nossa)
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A Protagonista Feminina
Os homens se levantam e fazem juntos uma dancinha ridícula em uníssono
para uma música italiana. A seguir, saem correndo para o limite do palco e, ao
retornar, trazem uma jovem nos braços: Carolina Bianchi, diretora, coreógrafa e
dramaturga do trabalho. Ela veste blusa vermelha de babados, fechada até o
pescoço, calças também vermelhas, botas de
cowboy
e um cinto que suporta
duas pistolas à frente de seu quadril, formando um grande triângulo na altura do
seu órgão genital. O seu corpo feminino não possui um pênis (por que ela teria
inveja dos membros frouxos mostrados até então?), mas ela tem ao seu poder
dois revólveres - objetos que, potencialmente, expelem balas que atravessam
corpos, penetram, marcam paredes, muros, tetos e árvores.
As suas pistolas têm canos longos e duros (a forma fálica é óbvia) e ela as
usa para encenar o assassinato de cada um dos homens, indefesamente passivos
à sua frente. Ela diz: "Boa noite, vamos começar. As últimas palavras de vocês
serão de Emily Dickinson”. Ela empunha uma arma em cada mão, aponta para um
deles e grita “Você!” (eles não têm nome). O rapaz fica em e começa a recitar
“morri pela beleza…” quando ela, no meio da fala, interrompe-o com a sentença
“Morre!”. Ela encena um disparo e o jovem cai no chão. Um por um, todos vão
sendo derrubados, até que um deles recita o poema tão lindamente que ela se
emociona. Em vez de matá-lo, abraça-o e lhe um beijo na bochecha um
gesto de carinho amigável e gentil. A imagem de poder da jovem de vermelho (a
relação com chapeuzinho vermelho é direta) sobre os homens fica clara: ela não
é devorada pelo coro masculino (pelo lobo), pelo contrário, ela submete os seus
integrantes às suas pistolas. Nessa cena, a diretora também se parece com a
rainha de copas, de
Alice no País das Maravilhas
, com o seu famoso bordão
“Cortem-lhe a cabeça!” (no caso, declamem lindamente ou morram!).
Os homens formam um coro de homens pujantes no início (jovens, fortes,
corredores, desbravadores e corajosos), que vão sendo pacificados ao longo da
obra, curvando-se ao regime de um desejo feminino apresentado pela única
mulher em cena: complexo, violento, agressivo, autoritário, imprevisível, mordaz,
manipulador, sádico, atraente, despudorado, excêntrico e masoquista. Pelas suas
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
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ações no decorrer da trama, a jovem invoca as bruxas queimadas nas fogueiras da
inquisição, as histéricas aprisionadas e mortas no Salpêtrière, em Paris, no
Sanatório Pinel de Pirituba, em São Paulo, e em tantos outros depósitos para as
recusadas do convívio, as lésbicas dentro e fora dos armários da história, as
sufragistas, as que ficaram para titia, as avós que tomavam injeções de insulina e
choques de eletrochoques para aguentar suas vidas modorrentas. Um ódio
feminino se instaura no palco como o retorno do reprimido. Homens, aguentem,
pois vocês serão aniquilados. O lobo é um animal que não se presta à
domesticação. Qual é a alternativa? “Morre”!
Lobo
é
Camp
Carolina se desfaz do abraço e diz !gente, tudo bem, todo mundo vivo,
vai gente, se mexe”. A estratégia de metalinguagem reaparece algumas vezes
quando a personagem indomável, grandiosa e excêntrica lugar a uma moça que
fala com voz comum, diretamente ao espectador, pede com educação e brinca
como se fôssemos colegas. Desse breve momento de quebra de encenação,
entra-se de súbito novamente no teatro como representação, agora parodiando
os karaoquês. Bianchi dubla a música
Those Were The Days
(1968), de Mary Hopkin,
enquanto os homens passam as mãos no seu corpo e a jogam para cima no refrão.
A dramaturgia de Bianchi faz do
Camp
(Sontag, 2018) a sua estrutura de
montagem. Tudo é exagerado: o karaokê, o
lip sync
, a dancinha ridícula dos
homens em uníssono para música italiana, a cor de seu figurino, as duas
espingardas na sua bis, suas botas de
cowboy
, seu jeito de andar, as sicas
cafonas que sabemos de cor, o bicho empalhado falando pelas gravações, as tripas
de linguiça amarradas na barriga do ator com filme de PVC, o sangue
declaradamente falso que espirra de uma bexiga e o ovo que ela pare no final.
Susan Sontag, na sua longa lista descritiva sobre a estética Camp, escreve: “Na
verdade, a essência do
Camp
é seu amor pelo não natural: pelo artifício e exagero”12
(2018, p. II). Mais à frente, a autora coloca: “Camp afirma que bom gosto não é
12 Indeed the essence of Camp is its love of the unnatural: of artifice and exaggeration. (Tradução nossa)
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Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
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simplesmente bom gosto; que existe, de fato, um bom gosto de mau gosto”13
(Sontag, 2018, p.31). Muitas das cenas de
Lobo
são boas de tão ruins, falsas,
desmedidas e hiperbólicas. Uma das frases mais famosas da grande ensaísta
norte-americana me vem à cabeça: !A declaração final do
Camp
: é bom porque é
horrível”14 (Sontag, 2018, p.33).
Um dos rapazes se senta no piano, nu, e improvisa suavemente enquanto lê-
se projetado INTERMEZZO. Uma raposa empalhada é colocada na diagonal do
palco. Ouvem-se sons de respiração feminina e uma voz em
off
recita um
monólogo: !depois de dar à luz um ovo gigante, desconfio que minha bacia tenha
se destroçado. […] a porca vai torcer o rabo”. A raposa não é um lobo, mas na cena
faz as vezes de um “lobo”.
Camp
tudo entre aspas. Não é uma lâmpada, mas uma 'lâmpada'; o
uma mulher, mas uma 'mulher'. Perceber o Camp em objetos e pessoas
é compreender o Ser-Enquanto-Desempenha-Um-Papel. É a extensão
mais ampla, em sensibilidade, da metáfora da vida como teatro”15
(Sontag, 2018, p.9-10).
Camp
é canastrão, decadente, aberrativo e “converte o rio em frívolo
(Sontag, 2018, p.1).
Ela Mata o Homem Errado
Bianchi retorna ao palco com peruca loira, blusa de alça, sapatos de salto e
saia rodada azuis. O coro masculino nu segura equipamentos de filmagem e um
dos jovens, à frente, veste terno preto, camisa branca e sapatos sociais. Um dos
rapazes do coro usa óculos escuros - objeto que o distingue dos outros e o
caracteriza como o diretor da cena de filmagem a ser representada. Bianchi e o
moço vestido interpretam os atores da cena. O diretor, enquanto coordena a
13
Camp asserts that good taste is not simply good taste; that there exists, indeed, a good taste of bad taste.
(Tradução nossa)
14
The ultimate Camp statement: it
s good because it
s awful. (Tradução nossa)
15
Camp sees everything in quotation marks. It
s not a lamp, but a
lamp
; not a woman, but a
woman
. To
perceive Camp in objects and persons is to understand Being-as-Playing-a-Role. It is the farthest extension,
in sensibility, of the metaphor of life as theater. (Tradução nossa)