O processo documental no espetáculo
Mi Vida Después
: a transformação da vivência em experiência
Ernesto Gomes Valença; Letícia Pavão Schinelo
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
Em
Mi vida después
, a vivência de cada participante foi reorganizada a partir
de uma singularidade: a ditadura militar argentina. São histórias aparentemente
independentes, efetivamente experimentadas como individuais e vividas como
exclusivas, cuja conexão só se tornou perceptível, comunicável e mesmo
materializada por meio da encenação, uma forma totalizante – ainda que
fragmentária – capaz de articular/reinserir essas vivências individuais em
experiência social. A encenação não pode ser resumida à junção de depoimentos,
fotos, gravações e outros documentos; há algo além, que escapa à análise de suas
partes separáveis e que é o que faz com que
Mi vida después
constitua-se na
própria estrutura de sentimentos daquele grupo de pessoas: experiência
estruturada na forma de uma convenção teatral.
No momento em que uma experiência está sendo estruturada, ela surge de
um amontoado amorfo de sentimentos e emoções, um tanto sem forma, que vai
pouco a pouco encontrando um ordenamento. O que se está propondo aqui é que
a experiência, no espetáculo em questão, seja entendida como um sentimento
estruturado, ou seja, uma sensação (pessoal e maleável) organizada numa forma
(definida e sólida): “é tão firme e definido quanto ‘estrutura’ sugere, mas é baseado
nos elementos mais profundos e frequentemente menos tangíveis de nossa
experiência” (Williams, 1969, p.18)
. É essa estrutura que empresta sentido ao
sentimento, como uma espécie de estabilidade momentânea que permite com
que uma vivência se torne experiência. Assim, a apresentação pública de fotos
pessoais e particulares, acompanhada de comentários e intervenções sobre cada
uma no decorrer da encenação, tal como abordado há pouco, vai paulatinamente
conformando uma estrutura palpável de lembranças capaz de revelar significados
que não estão na superfície das imagens. O ato teatral transforma a foto do álbum
they were self-contained, it is obvious that this is only how they may be studied, not how They were
experienced. We examine each element as a precipitate, but in the living experience of the time every
element was in solution, an inseparable part of a complex whole. And it seems to be true, from the nature
of art, that it is from such a totality that the artist draws; it is in art, primarily, that the effect of a whole lived
experience is expressed and embodied. To relate a work of art to any part of that whole may, in varying
degrees, be useful; but it is a common experience, in analysis, to realize that when one has measured the
work against the separable parts, there yet remains some element for which there is no external counterpart.
It is this, in the first instance, that I mean by the structure of feeling” (Williams, 1969, p.17-18). (Tradução de
Ernesto Valença).
It is as firm and definite as ‘structure’ suggests, yet it is based in the deepest and often least tangible
elements of our experience (Williams, 1969, p.18). (Tradução de Ernesto Valença).