
O processo documental no espetáculo
Mi Vida Después
: a transformação da vivência em experiência
Ernesto Gomes Valença; Letícia Pavão Schinelo
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
Logo em seguida, vemos outra foto, com sua mãe, o irmão recém-nascido e
Vanina ainda criança. Para demonstrar sua confusão com a chegada do irmão, já
que ela não se lembra de ter visto a mãe gestante, desenha-se na foto, também
com caneta vermelha, um ponto de interrogação e linhas que interligam as
personagens da história. Ao longo das apresentações da peça, a atriz descobriu
que o bebê da foto descrita acima era na verdade filho de militantes políticos de
esquerda e havia sido sequestrado e entregue à guarda do pai da atriz, um policial
ligado à repressão - um tipo de crime infelizmente muito realizado pela ditadura
militar argentina. A apresentação de ambas as fotos poderia ser enquadrada como
um
testimonio
, segundo os níveis performáticos estabelecidos por Brownell.
Estes testemunhos (ou biografias) trazem uma qualidade viva, pulsante à
peça, já que as mudanças da vida dos atores vão se incorporando às narrativas
encenadas a cada apresentação. A história de Vanina, por exemplo, que desejava
testemunhar contra o pai a favor de seu irmão adotivo, mas era impedida por lei
por seu vínculo consanguíneo com o acusado, transformou-se durante os anos
em que a peça foi apresentada. Em 2010, segundo ano de apresentações da peça,
o pedido para testemunhar apresentado diretamente à juíza do caso foi aprovado.
O que para Vanina era uma reivindicação pessoal transforma-se em fato histórico,
que permitiria a muitos outros familiares a possibilidade de testemunhar contra
seus pais
.
As outras histórias presentes na peça também são contadas em primeira
pessoa e de corpo presente, com o apoio de objetos que assumem papel de
testemunhos de vida. Segundo a pesquisadora María Fernanda Pinta, da
Universidade de Buenos Aires, “los objetos testimoniales cobran una particular
relevancia, ya que se presentan como indicios, como huellas de lo que está
ausente y se pretende hacer presente mediante la escenificación” (Pinta, 2013,
p.714).
Em entrevista ao jornal
Página 12
sobre a autorização da Câmara Federal da Capital de sua declaração contra
o pai, a atriz faz o seguinte comentário: “En el juicio que lleva mi hermano, desde un principio, con los
abogados de [las] Abuelas [de Plaza de Mayo] empezamos a pensar que era importante que yo declarara
porque hay muchas cosas que puedo confirmar. [...] Fue un momento muy fuerte [cuando la cámara aprobó
el pedido]. [...] Es un fallo histórico: sienta el precedente de que una hija pueda declarar contra su padre y
esto habilitaría a que otros familiares puedan también hacerlo. Esto abre un campo importante para la causa
y lucha de Abuelas. Es una alegría y una gran responsabilidad” (Giménez, sem página, 2010).