1
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional
Serra da Capivara, possíveis interpretações
Leandro Paiva; Deise Lucy Oliveira Montardo;
Michel Justamand; Gabriel Frechiani de Oliveira
Vitor José Rampaneli de Almeida; Gabriela Rabello
Para citar este artigo:
PAIVA, Leandro; MONTARDO, Deise Lucy Oliveira;
JUSTAMAND, Michel; OLIVEIRA, Gabriel Frechiani de;
ALMEIDA, Vitor José Rampaneli de; RABELLO, Gabriela. Cenas
rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da
Capivara, possíveis interpretações.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0117
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Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
Leandro Paiva; Deise Lucy Oliveira Montardo; Michel Justamand; Gabriel Frechiani de Oliveira
Vitor José Rampaneli de Almeida; Gabriela Rabello
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-26, abr. 2022
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Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara
1
,
possíveis interpretações
2
Leandro Paiva
3
Deise Lucy Oliveira Montardo
4
Michel Justamand
5
Gabriel Frechiani de Oliveira
6
Vitor José Rampaneli de Almeida
7
Gabriela Rabello
8
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Maria Francisca da Costa Cavalcanti, Graduada em
Letras pela Escola Superior Batista do Amazonas (ESBAM) e Pós-Graduada (Lato Sensu) em Gestão Escolar
e Psicopedagogia (UNASP). fran.cavalcanti20@gmail.com
2
Artigo baseado em quase sua totalidade em dois trabalhos de Leandro Paiva: Trabalho de Conclusão de
Curso TCC (História) e Dissertação de Mestrado (Antropologia Social). Intitulados, respectivamente:
Vestígios rupestres de lutas no sudeste do Piauí: produção e difusão científica (1970-2016); Joetyk: uma
Antropologia da luta corporal alto-xinguana.
3
Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Mestre em Antropologia
Social (UFAM). Especialização em Arqueologia (Claretiano), Especialização em Museografia e Patrimônio
Cultural (Claretiano). Graduado em História pela Universidade Federal do Estado do RJ e Educação sica
(Claretiano). professorleandropaiva@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5381637906283724 https://orcid.org/0000-0002-6135-4051
4
Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Colaboradora do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Professora
Visitante do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
deiselucy@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6344437017920336 https://orcid.org/0000-0002-3986-7088
5
Pós-Doutor em Arqueologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Doutor em Ciências
Sociais/Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor Associado do
Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Permanente do
Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia PPGSCA da Universidade Federal do
Amazonas (UFAM). micheljustamand@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/7981122122060818 https://orcid.org/0000-0001-6944-5890
6
Doutor em Arqueologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Professor da Secretaria de Estado de
Educação do Piauí SEDUC/PI. gfrechiani@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/8689205095146405 https://orcid.org/0000-0003-3528-2944
7
Doutorando em Planejamento e Gestão de Territórios pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Mestrado
em Análise Geoambiental pela Universidade de Guarulhos (UNG). Especialização em Gestão Educacional
pela Universidade Anhanguera de São Paulo. Especialização em Ciências Humanas (UNICAMP). Graduação
em História pelas Faculdades Integradas de Guarulhos (FIG). vitalm@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6672192893266731 https://orcid.org/0000-0001-8470-2672
8
Graduanda em Letras (Português) pela Universidade Federal de São Paulo, Unifesp EFLCH, Campus
Guarulhos. gabrielap.rabello@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6663602156834628 https://orcid.org/0000-0001-6064-4623
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Resumo
Este trabalho é baseado em pesquisa de campo realizada no sudeste do Estado do
Piauí e, posteriormente, no Alto Xingu (Brasil Central). Por meio de um corpus de
lutas corporais nos registros rupestres, foram apresentadas possíveis inferências
sobre essas pinturas. Para além apenas do olhar de pesquisadores, remanescentes
de povos originários, que engajavam-se em lutas corporais ritualizadas,
apresentaram suas próprias interpretações. Em conclusão, se não foi possível obter
os códigos utilizados pelos grupos ancestrais que os pintaram na Serra da Capivara;
em outra medida, foi possível refletir sobre o fenômeno que permite à autóctones,
na atualidade, interpretarem aqueles registros à sua maneira.
Palavras-chave
: Arte rupestre. Parque Nacional Serra da Capivara. Cenas de lutas
corporais.
Rock scenes of wrestling in Serra da Capivara National Park, possible
interpretations
Abstract
This work is based on field research out in the southeast of the State of Piauí and,
later, in Alto Xingu (Central Brazil). Through a corpus of wrestling in rock records,
possible inferences about these paintings were presented. Beyond just the look of
researchers, remnants of original peoples, who engaged in ritualized wrestling,
presented their own interpretations. In conclusion, if it was not possible to obtain
the codes used by the ancestral groups that painted them in Serra da Capivara; to
another extent, it was possible to reflect on the phenomenon that allows natives,
nowadays, to interpret those records in their own way.
Keywords
: Rock art. Serra da Capivara National Park. Scenes of wrestling.
Escenas rupestres de luchas corporales en el Parque Nacional Serra da
Capivara, posibles interpretaciones
Resumen
Este trabajo se basa en una investigación de campo realizada en el sureste del
Estado de Piauí y, posteriormente, en Alto Xingu (Brasil Central). A través de un
corpus de luchas corporales en registros rupestres, se presentaron posibles
inferencias sobre estas pinturas. Más allá de la mirada de los investigadores, los
remanentes de los pueblos originarios, que participaron en luchas corporales
ritualizadas, presentaron sus propias interpretaciones. En conclusión, si no fue
posible obtener los códigos utilizados por los grupos ancestrales que los pintaron
en Serra da Capivara; en otra medida, fue posible reflexionar sobre el fenómeno que
permite a los nativos, hoy en día, interpretar a su manera esos registros.
Palabras clave
: Arte rupestre. Parque Nacional Serra da Capivara. Escenas de luchas
corporales.
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Os registros rupestres no Parque Nacional da Serra da Capivara (PNSC) são
ricos em cenas rituais, cenas de caça, entre outras. Suas interpretações, baseadas
em analogias feitas por cientistas até então, puderam ser cotejadas e enriquecidas
pela interpretação proporcionada pelas visitas feitas aos tios, por indígenas do
Alto Xingu. As cenas de luta foram reconhecidas por estes e é sobre esse encontro
que trata este texto.
Não obstante, a cena decolonial têm despertado inúmeras produções
acadêmico-científicas, estreitando diálogo entre epistemologias indígenas e o
indígenas na seara das artes da cena (Gonçalves, 2020; 2021). Ouvir a interpretação
dos Alto-Xinguanos, lutadores por excelência, amplia os significados possíveis da
luta como arte da cena e traz para a leitura dos registros arqueológicos uma
subjetividade no/para o mundo tal como destaca o indígena Ailton Krenak:
Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte
prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades,
que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se
existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por
consumir subjetividades as nossas subjetividades. Então vamos vivê-
las com a liberdade que fomos capazes de inventar, o botar ela no
mercado. que a natureza está sendo assaltada de uma maneira o
indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas
subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência (Krenak,
2019, p.32-33).
Sem embargo, nesse escopo reside o principal objetivo deste trabalho, isto é,
decolonizar saberes e atribuir relevância a subjetividades outras, para além de
cosmologias eurocêntricas. Para tal empreitada, será transpassado percurso mais
denso por conhecimentos arqueológicos e etnoarqueológicos9 e, logo após, serão
retomadas essas considerações iniciais, nas laudas finais do texto.
Desse modo, tendo em conta as informações supracitadas, salienta-se que,
na região nordeste do Brasil, especificamente no sudeste do Estado do Piauí (PI),
fica localizado o Parque Nacional Serra da Capivara
10
(Figura 1). Possui o maior
9
Articulação de dados arqueológicos com etnográficos.
10
O PNSC foi consolidado em decreto publicado em 5 de junho de 1979 pela presidência da república. O intuito
de sua criação foi o de preservação ecológica e do patrimônio arqueológico encontrado (Martin, 2005).
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enclave
11
de sítios arqueológicos do mundo. Dista, aproximadamente, 530km da
capital, Teresina. É delimitado por quatro municípios, de acordo com o Cadastro
Nacional de Unidade de Conservação: Canto do Buriti, São João do Piauí, São
Raimundo Nonato e Coronel José Dias (Ministério do Meio Ambiente, 2017). As
pesquisas arqueológicas foram iniciadas no PNSC na década de 1970, após a
pesquisadora Niède Guidon ser informada, casualmente, sobre estranhas pinturas
localizadas nessa região, denominadas pela população local como “coisa de índio
12
(Bastos, 2010, p.9). Ao se deparar com quantidade e variedade de registros
rupestres sem igual até então no Brasil, elegeu a localidade para análises. A partir
da década de 1980, os estudos arqueológicos na área da Serra da Capivara vêm
ocorrendo de modo ininterrupto (Fumdham, 2017). De pronto, identificaram os
sítios com pinturas e gravuras
13
rupestres. Posteriormente, iniciaram as escavações
e muitos vestígios antrópicos
14
foram encontrados
15
sendo, diversas vezes,
contextualizados com as pesquisas iniciais (Guidon, 1984). Outrossim, Bastos (2010)
apurou que, existem fortes indícios de presença humana no sudeste do Piauí, no
mínimo, 20.000 anos Antes do Presente – A.P.
16
As pesquisas realizadas na região apresentaram resultados importantes na
construção do conhecimento da arqueologia pré-histórica brasileira. Atualmente,
estão catalogados 1.335 sítios arqueológicos no local, onde 184 sítios com
vestígios cerâmicos, 946 sítios de pinturas rupestres, 206 sítios de pinturas e
11
Abrangendo ação do homem em espaço geográfico e ambiental circunscrito em estudos arqueológicos em
área territorial mais ampla.
12
Ações de Educação Patrimonial em Arqueologia podem desvelar topônimos populares com histórico-
referenciais relevantes. Por exemplo, em um projeto que cobriu vasto número de sítios com registros
rupestres na Bahia, articulou-se ações entre as populações do entorno desses locais e os arqueólogos.
Segundo Etchevarne, os moradores conheciam os sítios por “designativos étnicos genéricos: Pedra do Índio,
Toca do Índio, Lapa dos Tapuias [...], referindo entendimento generalizado de que pinturas e gravuras são
formas de ‘escrita’ com que grupos indígenas pretéritos se comunicavam ou registravam acontecimentos”
(Etchevarne, 2007, p.14).
13
Diferente das pinturas, as gravuras são caracterizadas por incisões nas rochas.
14
Resultantes da ação do homem.
15
Vale citar, dentre outros, os seguintes vestígios materiais: pontas de flecha, ticos (“pedras”) lascados e
polidos, coprólitos (fezes humanas fossilizadas), esqueletos, fogueiras etc. (Bastos, 2010; Fumdham, 2017).
16
Em Arqueologia, o termo “Antes do Presente” assume como ano-base 1950, escolhido referencialmente para
estabelecer as curvas de calibração nas datações com radiocarbono (privilegiou-se o carbono 14) (Martin,
2005).
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gravuras, e 80 sítios de gravuras (Guidon, 2014a, 2014b; Maranca & Martin, 2014).
Sem embargo, mesmo no caso de recorte temático bem específico como, por
exemplo, cenas
17
de “luta” ou “guerra”, é praticamente impossível explorar todos
os sítios arqueológicos em apenas um dia.
Figura 1 - Mapa do Parque Nacional Serra da Capivara (PI).
Fonte: FUMDHAM, 2005.
Nessa direção, tendo em tela este trabalho, salienta-se que foram
necessárias ao menos duas incursões aos sítios arqueológicos do PNSC para
conseguir razoável quantitativo de registros fotográficos, que pudesse conformar
espécie de corpus. Na primeira oportunidade, em dois dias consecutivos, foram
acessados vinte e um sítios arqueológicos no total, localizados, respectivamente,
no
Front da Cuesta
e na área do Vale da Serra Branca (veja Figura 2). Esses
levantamentos assentaram-se nas dimensões estabelecidas por Anne-Marie
Pessis (1994; 2003), organizadas em diagrama por Silva (2012), com intuito de
17
Escolhas dos autores das pinturas rupestres quanto à morfologia e padrões gráficos passíveis de
reconhecimento (Pessis, 1992).
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caracterizar e identificar padrões em pinturas rupestres (veja Figura 3). Além disso,
orientou-se por suas diretrizes, em que propôs classificar essas manifestações
pelo reconhecimento cognitivo de forma preliminar hipotética. Assim, de acordo
com sua proposição, os principais elementos utilizados para reconhecimento e
caracterização de uma cena de violência
18
/luta são: “divisão do espaço e
posicionamento das figuras na cena; movimento de uma figura em direção a outra;
movimento rítmico dos braços, pernas e corpo; [...]; figuras com alguma parte do
corpo atingida indicando a agressão” (Silva, 2012, p.51). Vale salientar, nem todos
os sítios suportavam cenas de lutas. Não obstante, foi relevante acessá-los,
presencialmente, para compreensão
in loco
das semelhanças e diferenças
gráficas, no que a literatura arqueológica sobre a região classificou de Tradição
19
,
Subtradição
20
e Estilos
21
, refletindo em suas respectivas datações.
22
Ademais, não foi difícil depreender, consoante análises publicadas
posteriormente (Paiva, 2017; Paiva, 2019), que os termos “luta” ou “violência”,
poderiam denotar referenciais sociais distintos, mas eram tratados no mesmo
bojo, em boa parte dos estudos realizados no PNSC. Por exemplo, englobavam,
18
Silva trabalha com o conceito de cenas coletivas de “violência”. Não as caracteriza como “guerra”. Todavia,
conforme apurado em trabalho anterior (Paiva, 2017), sobretudo nas primeiras décadas, os pesquisadores
(arqueólogos) atribuíram a esses registros, sobretudo, o termo “guerra”.
19
Para uma descrição sumária, “Tradição” se refere à representação visual de todo um universo simbólico
primevo (natural e imaginário), que pode ser milenar (Pessis, 1994; 2003; Guidon, 1981, 1984). No PNSC,
predomina “Tradição Nordeste”, com datação entre 15.000-6.000 anos A.P. (Pessis et al., 2018). É
caracterizada por vestígios reconhecíveis (figuras humanas, animais, plantas e objetos) e os
“puros”/“geométricos”, que não podem ser identificados.
20
“Subtradição” é uma denominação introduzida para definir um grupo desvinculado de uma tradição e
adaptado a um meio geográfico e ecológico distintos, implicando na presença de novos elementos (Pessis
et al., 2018).
21
A classe mais particular decorrente de mudanças em uma subtradição é denominada de “Estilo”, denotando
em diferenciações da técnica e apresentação gráfica, com inovações temáticas refletindo a manifestação
criativa de cada comunidade. (Pessis et al., 2018)
22
Para os registros rupestres no PNSC, estabeleceu-se cronologia baseando-se em décadas de pesquisa
arqueológica, sendo: 1) Estilo “Serra da Capivara” Datação: entre 15.000(?)-12.000 até 9.000 A.P. (figuras de
contorno fechado; traços contínuos etc.); 2) Estilo “Serra Branca” Datação: 9.000-6.000 A.P (figuras
humanas preenchidas por traços verticais; riqueza de adornos e objetos etc.) (Pessis, 2003; Pessis, 2013;
Pessis et al., 2018). Em referência ao método específico de datação, Pessis et al. (2018, p. 43) asseveram para
o fato de não existir, para pinturas rupestres no PNSC, apenas uma forma de datação. Para se ter
confiabilidade, exige “um conjunto de resultados de técnicas diferentes capazes de posicionar, no tempo, a
pintura estudada [...]”. Por exemplo, ...quando duas figuras pintadas estão em relação de superposição
parcial. A análise da superposição fornece a certeza da ordem de precedência da realização das figuras,
permitindo segregar camadas de superposição gráfica”.
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sob a mesma égide, cenas de: antropomorfos
23
lutando (portando
artefatos/“armas”?); combate corpo a corpo (sem portar objetos); execução
(violência deliberada em que o antropomorfo antagonista parece não esboçar ação
de defesa) etc. Em função disso, a primeira providência, portanto, logo após a
coleta desse corpus inicial, foi segregar as cenas de lutas corpo a corpo (sem a
utilização de objetos/“armas” e referenciais de “execução”) das demais.
Figura 2 - Mapa com distribuição dos sítios arqueológicos com registros rupestres
(em vermelho)
Fonte: Pessis et al., 2018.
Nessa chave, vale ressaltar análise detida (Paiva & Silva, 2016) de um desses
registros (Figuras 12-13). Além de pesquisa de campo exploratória, procedeu-se,
posteriormente, revisão bibliográfica e análise imagética. Enfatizou-se a cena de
luta registrada no sítio arqueológico “Toca do Nílson do Boqueirão da Pedra Solta”.
As datações relativas parciais baseando-se, principalmente, pelo contexto do
conjunto arqueológico e domínio estilístico, indicaram que pode conter datação
24
de, no mínimo, 9.000 anos A.P.
23
Registro rupestre estilizado de figura humana cabeça, tronco e membros (Martin, 2005).
24
Admitindo o período mínimo datado para o Estilo Serra da Capivara.
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9
Figura 3 - Dimensões (Temática, Cenografia e Técnica) para caracterizar e identificar
padrões gráficos em pinturas rupestres
Fonte: Pessis apud Silva (2012).
Elencou-se três hipóteses, após conclusão de análise imagética: 1.ª) não ser
a continuidade da mesma dupla de antropomorfos, quando observada
verticalmente, sendo, de fato, quatro duplas constituídas de oito antropomorfos
distintos; 2.ª) cena de luta com possível característica de “jogo”
25
, não em contexto
de “guerra”
26
(quando comparada a outras dessa temática); 3.ª) em consonância à
anterior, não referenciaria aumento da violência em função de possível pressão
demográfica local.
27
Apresentou-se, assim, inferência de possíveis aspectos
25
Coloca-se “jogo” entre aspas, pois embora, por exemplo, a luta corporal indígena (Ex.: Huka-Huka na Terra
Indígena do Xingu TIX) possa abarcar o conceito de jogo, tal como considerado por Huizinga (1999) e Caillois
(1990), escapa em período tão recuado decodificar esse registro de forma tão precisa. Aqui, poderia
facilmente adentrar na relação êmico (de uma pessoa de dentro da cultura) versus ético (descrição de
observador científico) de Harris (1976). Desse modo, algo como, por exemplo, um “jogo lúdico/performático”,
pode refletir mais uma categoria de compreensão do pesquisador. Para aquele grupo pretérito, poderia
trazer outros referenciais. Por outro lado, cabe um questionamento: será que “jogo lúdico” não seria
tautológico? Afinal, existe algum jogo que não seja, no âmago, lúdico?
26
Assim como “jogo”, utilizar o termo “guerra” pode assentar no mesmo problema da nota anterior, isto é,
êmico/ético.
27
Pessis (2003; 2013) correlaciona o aumento dos registros rupestres de cenas de violência no PNSC à possível
pressão demográfica local.
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mítico-ritualísticos.
Não obstante, aproximadamente oito meses após a primeira, protagonizou-
se mais uma incursão aos sítios arqueológicos, localizados no
Front da Cuesta
.
Foram acessados novos vestígios, ampliando ligeiramente o
corpus
inicial das
pinturas rupestres com cenas de lutas. Depreende-se, conforme reflexão de Vidal,
que essas figuras rupestres podem ser analisadas de sua dimensão simbólica,
como parte de um sistema de representações visuais (Vidal, 1992). Pessis e Guidon
(1992, p.20), as consideram “...fonte de informação antropológica, por serem
representações gráficas das representações sociais dos grupos étnicos
28
que as
realizaram”. Souza apreendeu que refletem determinado contexto socioambiental
e que também são “[...] uma forma de representação de parte desse cotidiano e
da complexidade dos indivíduos. [...] representa a vida social do grupo,
caracterizada por marcadores sociais particulares que podem ser identificados na
cenografia” (Souza, 2009, p.13). Assim, as pinturas rupestres podem apresentar
informações quanto aos grupos que habitaram e/ou transitaram pela região do
PNSC no período pré-colonial (Martin, 2005). Ainda nos primórdios dos estudos,
Guidon escreveu um artigo detalhando que, dentre as pinturas encontradas,
algumas eram baseadas em temas bem definidos, tais como “...realização de
cerimônias ou cenas de combate...” (Guidon, 1979, p.4). Nesse caminho, vale citar,
embora Pessis (2003, 2013) considere que o processo de pintura de alguns desses
registros possa ter fins lúdicos, sobretudo em períodos mais recuados,
majoritariamente, devem ser apreendidos como uma espécie de “escrita” humana,
ou melhor, de comunicação social.
Esses trabalhos auxiliaram a criar um norte para reflexões iniciais sobre as
pinturas rupestres com cenas de lutas. Além disso, seguiu-se os passos desses(as)
pesquisadores(as), quanto à decisão de acessar presencialmente, de pronto,
28
Os trabalhos de Pessis (2003; 2013) apontam inferências relacionais das pinturas do PNSC com etnias.
Especialmente em relação aos rituais, baseia pela etnografia existente. Morales Júnior (2002), por sua vez,
realizou essa aproximação considerando, principalmente, os rituais de máscaras realizados no Alto Xingu.
Os trabalhos de Souza e Silva (2009; 2012), assentam-se na identificação minuciosa de pinturas rupestres
no PNSC , verificando variações de adornos (“diademas/cocares”?) e objetos, tais como propulsores,
bordunas etc. Sem embargo, existe vastíssima literatura (arqueológica, etnológica, histórica e etnohistórica)
que referencia esses artefatos aos povos indígenas, antes e durante o encontro colonial. Etchevarne (2009,
p.43) também alude sobre miríade de elementos indígenas encontrados em figuras de antropomorfos na
Tradição Nordeste: “cocares, braçadeiras, perneiras, cestas, redes, armas (tacapes, lanças, flechas,
propulsores), maracás, sacolas, saiotes, máscaras, entre outros”.
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alguns sítios em que estes haviam atribuídos essa temática às cenas. No
entanto, conforme citado anteriormente, procurou-se ater às cenas em que
poderia ser inferido característica mais próxima de um “jogo”, privilegiando lutas
corporais sem o porte de objetos/armas. Desse modo, embora o número inicial de
cenas fosse superior a dez,
29
para essa abordagem, afunilou-se em apenas quatro.
Segue, portanto, fração do corpus inicial (Figuras 4-13)
30
, incluindo vetorização
31
e
contextualização complementar:
A Figura 4 é um registro rupestre situado no sítio arqueológico Toca da
Fumaça 1 (também denominada de Toca da Roça do Sítio da Pedra Furada 1) no
Front da Cuesta
. No que tange a ação motora representada, conforme veremos
adiante, parece ser registro comum no PNSC para representar uma luta corpo a
corpo sem objetos nas mãos (“armas”?). Um dos antropomorfos promove ataque
por meio de controle/domínio, suspendendo a outra figura por completo. Esses
dois são os únicos lutando, dentre outros registros nesse sítio, de modo que fica
latente a não constituição de uma cena de luta coletiva. Ademais, sugere-se, pelo
estilo gráfico
32
, datação mínima de 9.000 A.P. Esse sítio foi registrado em 1973.
33
Localiza-se no município de Coronel José Dias.
29
Vale ressaltar, esse número é extremamente baixo, considerando mais de 900 sítios no PNSC com registros
rupestres. Esse fato não passou despercebido pelos arqueólogos. Buco (2012, p. 434), por exemplo, registrou
que a “temática de violência
apesar de ser minoria
, são as que mais impressionam...”. (Grifos nosso) Silva
(2012, p. 59) asseverou, que sua pesquisa “[...] se deparou com a questão
do número reduzido de sítios
. [...]
Considera-se um elemento pouco representativo nas manchas gráficas, em proporção ao número e
diversidade elevados de grafismos da região da Serra da Capivara”. (Grifos nosso)
30
Pelo quesito estético, optou-se por não alocar escalas arqueológicas nessas imagens. Contudo, nas análises
em si, foram utilizadas imagens com escala (nesses casos, cedidas pela FUMDHAM). Assim, os
antropomorfos variavam, aproximadamente, de 3-6cm nos sítios arqueológicos Toca da Extrema 2 e Toca
do João Arsena. Na Toca da Fumaça 1 e na Toca do Nílson do Boqueirão da Pedra Solta, aproximadamente,
entre 7-15cm.
31
Também denominada “segregação” ou decapagem gráfica”. Em resumo, técnica utilizando programa ou
software
para transformar uma imagem em linhas e pontos essenciais, com a perspectiva de modificar seus
elementos separadamente: “...realce automático ou manual das cores (brilho, contraste, saturação, ajuste
de níveis por cores). Aplicação de efeitos de curvas de cores para dar destaque às pinturas e realização da
elaboração do decalque virtual mediante ferramenta de seleção de cor (editar, rotacionar, mover, recolorir,
entre outras mudanças)”. (Silva, op. cit., p.65).
32
Figuras simples, sem preenchimento sugerindo pintura corporal, sem ornamento, traços arredondados,
pequenas, totalmente preenchidas e com predominância da cor vermelha, atribui-se pertencimento ao
Estilo Serra da Capivara (Pessis, 2003, 2013).
33
Registro do sítio arqueológico Toca da Fumaça I. Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA).
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/sgpa/cnsa_detalhes.php?16550. Acesso em: 10 de ago. 2017.
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
Leandro Paiva; Deise Lucy Oliveira Montardo; Michel Justamand; Gabriel Frechiani de Oliveira
Vitor José Rampaneli de Almeida; Gabriela Rabello
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-26, abr. 2022
12
Figuras 4 e 5 - Detalhe da luta corpo a corpo no Sítio Arqueológico Toca da Fumaça I
(Figura 4) (Obs.: contraste aumentado em 35% no
Word
2013
Microsoft Office
) e vetorização
(Figura 5)
Figura 4 Figura 5
Fonte: Autor, 2015. Vetorização: Nilmon Filho.
A Figura 8 detalha luta corpo a corpo sem “armas”, no sítio arqueológico Toca
da Extrema 2, no Circuito Serra Branca (Vale da Serra Branca). Registrado em
1973,
34
localiza-se no município de Brejo do Piauí. Esse combate parece ser o ponto
central da ação representada como cena coletiva de “violência” (Figura 6) em que,
no total, 19 antropomorfos compuseram a temática. Número confirmado após a
vetorização (Figura 7). Pessis (2003, 2013) admite essa cena de luta ampla (Figura
6) no Estilo Serra Branca, cuja datação abarca, no mínimo, 6.000 A.P.
35
34
Registro do sítio arqueológico Toca da Extrema II. Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA).
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/sgpa/cnsa_detalhes.php?6888. Acesso em: 10 de ago. 2017.
35
Admitindo o período mínimo datado para o Estilo Serra Branca.
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
Leandro Paiva; Deise Lucy Oliveira Montardo; Michel Justamand; Gabriel Frechiani de Oliveira
Vitor José Rampaneli de Almeida; Gabriela Rabello
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13
Figuras 6 a 8 - Cena (ampla) de luta no Sítio Arqueológico Toca da Extrema 2 (Figura 6),
vetorização (Figura 7) e detalhe da cena (Figura 8), em que dois antropomorfos lutam sem armas
Figura 6 Figura 7
Figura 8
Fonte: Autor, 2015 (Obs.: contraste aumentado em 50% no Word 2013 Microsoft Office).
Vetorização: Luciano de Souza Silva.
A Figura 11 representa detalhe de possível luta corpo a corpo no sítio
arqueológico Toca do João Arsena, localizado no Circuito Serra Branca. Registrado
em 1975,
36
localiza-se no município de João Costa. Embora situado no contexto de
36
Registro do sítio arqueológico Toca do João Arsena. Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA).
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
Leandro Paiva; Deise Lucy Oliveira Montardo; Michel Justamand; Gabriel Frechiani de Oliveira
Vitor José Rampaneli de Almeida; Gabriela Rabello
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-26, abr. 2022
14
uma cena de “violência coletiva” (Figura 9), contendo 29 antropomorfos,
confirmados via vetorização (Figura 10), percebe-se diferenciação das
representações de outros sítios (Figuras 4 e 8) pelo fato de o presumível
antropomorfo ter sido suspenso pelos braços e não pela cabeça (Souza, 2009).
Ademais, ausência do restante do contorno corporal. Silva aventou hipótese
desse registro constar como intrusão às demais figuras; todavia, com o trabalho
de vetorização, “...evidenciou-se uma continuidade de traço e homogeneidade na
cor das figuras ...” (Silva, 2012, p. 76). Sem embargo, após análises gráficas (Souza,
2009; Silva, 2012), observou semelhança com a cena do sítio Toca da Extrema 2
(Figura 6). A partir desse combate (Figura 11) referenciou o plano de apresentação
da cena de “violência coletiva”, num todo. Pessis et al. (2018) conforma essa cena
de luta ampla (Figura 9) no Estilo Serra Branca, cuja datação abarca, no mínimo,
6.000 A.P.
37
Figuras 9 a 11 - Cena (ampla) de luta no Sítio Arqueológico Toca do João Arsena (Figura 9),
vetorização (Figura 10) e detalhe da cena (Figura 11),
em que dois antropomorfos lutam sem armas.
Figura 9 Figura 10
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/sgpa/cnsa_detalhes.php?7358. Acesso em: 10 de ago. 2017.
37
Admitindo o período mínimo datado para o Estilo Serra Branca.
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
Leandro Paiva; Deise Lucy Oliveira Montardo; Michel Justamand; Gabriel Frechiani de Oliveira
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15
Figura 11
Fonte: Autor, 2015 (Obs.: brilho aumentado em 30% e contraste aumentado em 50% no
Word
2013
Microsoft Office
). Vetorização: Luciano de Souza Silva.
Conquanto as cenas dos sítios Toca da Extrema 2 e Toca do João Arsena,
tenham sido inferidas por alguns pesquisadores como de “violência coletiva” ou
“guerra”, as dos sítios Toca da Fumaça I e Toca do Nílson, não foram assimiladas
dessa forma (Paiva, 2017). Não foi encontrado na literatura análise sobre a primeira.
Todavia, quanto à cena da Toca do Nílson do Boqueirão da Pedra Solta, Justamand
(2007, p.98) por exemplo, a caracterizou como uma “Cena de violência”. Buco (2012,
p.451-481) considerou como “Jogo Lúdico” ou “Duelo”, representando situações de
conflito. Ademais, não classificou “...como cenas de violência porque optamos em
observar essa arte como uma representação das distintas atividades rituais e
diversos tipos de festas, aonde os jogos, imitando situações de conflito, fazem
parte das atividades, uma espécie de treino” (Buco, 2012, p.480). Adicionalmente,
convém ressaltar sua caracterização por ações motoras mistas, isto é, englobando
técnicas de percussão (ou “impactantes” Figura 13, dupla de antropomorfos n.o
2) com as de domínio (ou “agarre” – Figura 13, duplas n.o 1, n.o 3 e n.o 4). Salienta-
se que, em ulterior foco de análise (Paiva, 2018), ou seja, quanto à recorrência de
padrão gráfico nas cenas de luta corpo a corpo sem armas no PNSC, verificou-se
repetição pictórica de ação de domínio ou “agarre”, mas não de percussão. Em
outras palavras, reincide em diversos sítios (Figuras 4, 8 e 11), antropomorfos em
posturas similares às da dupla n.o 4 (Figura 13), isto é, demarcando domínio pelos
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
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braços e/ou cabeça do antagonista, em suspensão. Todavia, seja na literatura
arqueológica ou nas pesquisas de campo no PNSC (2015 e 2016), somente foi
identificada essa cena (Figura 12) com ações motoras mistas.
38
Adicionalmente,
salienta-se que o sítio “Toca do Nílson do Boqueirão da Pedra Solta” foi registrado
por Niède Guidon em 1979.
39
Figuras 12-13: Detalhe da cena de luta no Sítio Arqueológico Toca do Nílson Boqueirão da
Pedra Solta (Figura 12) e vetorização (Figura 13).
Figura 12 Figura 13
Fonte: Autor, 2015 (Obs.: brilho aumentado em 20% e contraste aumentado em 30% no
Word
2013
Microsoft Office
). Vetorização: Luciano de Souza Silva.
Discussão
As cenas de luta nos sítios Toca da Extrema 2 (Figura 8) e Toca do João
Arsena (Figura 11) parecem ser balizadoras para inferências desse padrão gráfico
em função de referenciar a cena mais ampla de antagonismo coletivo (Paiva, 2018).
38
O que também não exclui a possibilidade de existirem outras no PNSC e ainda não terem sido encontradas.
39
Registro do sítio arqueológico Toca do lson do Boqueirão da Pedra Solta. Cadastro Nacional de Sítios
Arqueológicos (CNSA). Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/sgpa/cnsa_detalhes.php?7224. Acesso em 10
de ago. 2017.
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
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17
Isto é, talvez pintadas, propositalmente, para diferenciar-se de outras que pudesse
confundir a comunicação, tal como, por exemplo, uma dança. Nessa direção,
Pessis (2013, p. 168) assevera que, “o sistema de apresentação, do ponto de vista
gráfico, evolui muito devagar em relação aos significados”. No entorno da dupla
lutando corpo a corpo (sem armas) (Figuras 8 e 11), existem outros antropomorfos
com riqueza de adornos plumários (diadema?/cocar?), portando alguns objetos
(bélicos e não bélicos) e arremessando outros (Ex.: por meio de propulsores) (veja
Figuras 7 e 10). Nessas duas cenas, algumas figuras são representadas atingidas
pelos objetos. Em outro espectro, complementarmente, salienta-se que, na
prática, ou seja, em uma luta corpo a corpo real, é pouco eficaz, tecnicamente,
ação motora em que o antagonista seja suspenso pelos braços e/ou cabeça tal
como nesses dois casos. Assim, pode ser que essa forma de representação tenha
sido escolhida em detrimento de outra que pudesse gerar incerteza na
comunicação social. Contudo, vale ressaltar que a (de)codificação dessas
representações com respectivos significados pertenciam àqueles grupos autores
em período muito recuado e não são mais acessíveis.
Sem embargo, outro meio fértil para possíveis inferências sobre essas
pinturas pode ser alcançado pela etnoarqueologia. Entretanto, como exercer
abstração nessa seara para pinturas rupestres no PNSC, pois além de período tão
recuado, não existem mais assentamentos de povos indígenas na região?
Pode-se aventar uma resposta possível a essa questão pela conversa com a
professora doutora Niède Guidon, no ano de 2015. Naquele ano, concedeu
entrevista revelando suas memórias sobre uma performance fortuita, ocorrida
quando um grupo de indígenas alto-xinguanos
40
foi convidado ao PNSC para
“festejos” do “descobrimento” do Brasil:
[...] quando foi a comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil,
Fernando Henrique veio até aqui e a cerimônia dos 500 anos foram
abertas aqui. [...] Então, eu convidei uma tribo indígena para vir participar.
Eu achei que os índios deviam estar presentes. [...] Vieram, fizeram uma
dança, uma apresentação no cerimonial. Depois, então, que passou toda
cerimônia, que o Fernando Henrique foi embora, eu os levei a ver as
pinturas. Quando eles chegaram [...] e viram aquelas representações de
40
Ela não conseguiu lembrar naquele momento quais etnias foram convidadas. Essa informação foi obtida
posteriormente.
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
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18
seres humanos, um ao lado do outro, eles se colocaram todos na mesma
posição e começaram a dançar e a cantar. [...] Alguma coisa quer dizer,
entende? Eles viram aquela cena que a gente diz “cena cerimonial” e
começaram a fazer isso, entende? (Guidon, 2015, 23min22s).
Depreende-se desse relato de Guidon, que ocorreu uma espécie de “gatilho”
ao observarem os vestígios rupestres. De acordo com Mithen (2002) em
A pré-
história da mente
, esse “gatilho” pode ser melhor explicado como um “dispositivo
mnemônico”. Esse dispositivo agiria como um símbolo que carrega um conjunto
de informações. Assim, quem perceber esse código gráfico
41
, consegue entender
imediatamente qual é a informação pretendida nessa imagem e reproduz o ato
que está sendo representado. O símbolo, ao ser visualizado, remeteria a uma série
de ideias além do que se está vendo, ou melhor, representado visualmente.
Carrega um conteúdo simbólico que suscita conteúdo mais amplo, para além
daquela figura representada. Em outras palavras, uma espécie de “memória do
mundo”, utilizado como “mapa mental do meio circundante”, facilitando a “busca
de informações sobre o ambiente e o comportamento
humano
e animal” (Mithen,
2002, p.276).
42
(Grifo nosso)
Não obstante, transpassada as memórias de Guidon, salienta-se que,
posteriormente, outros pesquisadores exploraram os registros rupestres no PNSC,
sempre que possível, comparando-os com a iconografia etnológica indígena.
Morales Júnior (2002) em sua tese identificou antropomorfos no PNSC utilizando
máscaras muito similares às que alguns povos alto-xinguanos empregam em
rituais relacionados aos espíritos. Ademais, vale salientar que Buco (2012) em seu
doutoramento, apresentou inferências relacionais, dentre outros grupos,
similarmente, citando alto-xinguanos.
Considerando esses informes, em adição, releva-se dois novos
acontecimentos ocorridos em 2018 (com intervalo de alguns meses entre eles): 1.º)
41
Até mesmo um pequeno fragmento ritual, pode ser remetido a algo muito maior e variar de acordo com o
“aparato cultural” de quem visualiza. Por exemplo, um alto-xinguano ao se deparar com a cena de luta no
sítio arqueológico Toca do Nílson do Boqueirão da Pedra Solta (Figura 12), estaria mais familiarizado às suas
próprias práticas ancestrais e, por isso, relacionaria à luta corporal denominada Huka-Huka (com variações
locais de cognome de acordo com o tronco e/ou família linguística).
42
Adicionalmente, “não como duvidar de que muitos desses objetos serviram para armazenar, transmitir
e chamar de volta informações” (Mithen, 2002, p.276).
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
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registro da participação de um indígena alto-xinguano em um documentário
filmado no PNSC (Arqueologia da luta, 2020). Este, referenciou livremente suas
apreensões sobre as pinturas rupestres, enquanto transitava pelos sítios; 2.º)
visualização por outros alto-xinguanos mesma etnia do anterior de registros
fotográficos dos sítios visitados por ele (Paiva, 2021). Esses eventos suscitaram
nova questão: será que o relato de Guidon corresponderia à algo isolado ou o
“dispositivo mnemônico” poderia operar novamente?
Conquanto as minúcias desses acontecimentos e suas análises foram
alocadas em outro trabalho (Paiva, 2021), interessa no espaço disponibilizado para
escrita destas laudas, a descrição sumária de dois dos principais resultados: a)
algumas cenas inferidas por diversos pesquisadores como de “guerra” ou “violência
coletiva” (Figuras 6 e 9) apresentou, majoritariamente, “dispositivo mnemônico”
como ritual (jogo) de arremesso de dardos com propulsores;
43
b) a cena de luta no
sítio Toca do Nílson do Boqueirão da Pedra Solta, para boa parte dos indígenas,
relacionava-se à Huka-Huka
44
. De pronto, relevante constatação é a de que não
somente aquele grupo de alto-xinguanos em 2000, pelo “dispositivo mnemônico”,
poderia identificar e, até mesmo, engatilhar práticas corporais, associando às suas
memórias. Não foi um fenômeno isolado.
Tendo em tela inferências apresentadas pelos pesquisadores versus
apreensão dos indígenas, afinal, poderíamos conformar essas cenas como de “luta
corporal” ou “guerra”/”violência coletiva”? Sem acesso aos códigos daqueles
grupos pretéritos, essa questão permanecerá para sempre em aberto. Todavia,
pelo padrão gráfico de uma luta corporal sem uso de armas (Figuras 8, 11 e 12),
pode-se inferir, ao menos para fins didáticos sem pretensão de apresentar
conclusão precipitada e fulcral –, que a cena de luta no sítio Toca da Fumaça 1
(Figura 4)
não
pode ser enquadrada como de “violência coletiva”/”guerra”. Além do
43
O que não exclui a possibilidade de, em período recuado na história pré-colonial, seu engajamento ter
relação mais aproximada à “violência coletiva” ou “guerra” em vez de “jogo”.
44
Embora as ações motoras predominantes sejam de domínio ou agarre, na etnografia realizada no Alto Xingu
(Paiva, 2021) foi percebida a existência de apenas uma técnica de percussão válida (similar a um “tapa no
rosto”). Assim, o “dispositivo mnemônico” poderia operar, englobando essa especificidade, dada
representação gráfica da dupla de antropomorfos n.o 2 (Figura 13). Ademais, a vetorização desse vestígio
indicou quatro duplas distintas lutando, concomitantes. Nas lutas interétnicas naquela região, após os
combates principais, ocorrem lutas coletivas com (até mais de) quatro duplas em confronto,
simultaneamente.
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
Leandro Paiva; Deise Lucy Oliveira Montardo; Michel Justamand; Gabriel Frechiani de Oliveira
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padrão referenciado acima, constam apenas duas figuras lutando. Estas, não
puderam ser associadas (no estágio atual das pesquisas) com as demais cenas (e
figuras) do mesmo sítio. Em outro foco, embora as figuras com ações motoras de
domínio (ou agarre) da cena de luta no sítio Toca do Nílson do Boqueirão da Pedra
Solta (Figura 12) indiquem padrão gráfico similar às de outros sítios (Figuras 4, 8 e
11), os antropomorfos
não
portam objetos ou “armas”. Além disso, se
considerarmos a cena ampla, observando detalhamento vetorizado das demais de
padrão coletivo (Figuras 7 e 10), percebe-se que aquele padrão gráfico
não
corresponde ao observado pela vetorização desse sítio (Figura 13). Os sítios
Extrema 2 e João Arsena são apontados por diversos pesquisadores como de
“violência coletiva” ou “guerra”. Conforme citado anteriormente, pelos indígenas foi
associado ao jogo alto-xinguano de arremesso de dardos com propulsores
atividade também de esforço coletivo. Em contrapartida, se para os “éticos” e para
os “êmicos” não restam dúvidas quanto à coletividade inferida dessas pinturas;
por outro lado, ao menos para esses últimos, o dispositivo mnemônico indicaria
outra coisa. Isto é, engatilharia/despertaria para rituais distintivos daquele evocado
pela cena de luta no sítio Toca do Nílson do Boqueirão da Pedra Solta. Portanto,
conquanto visualmente coletivo, associaram às lutas corporais individuais que, em
dado momento de seus rituais, ocorrem concomitantemente.
Considerações finais
Conforme citado anteriormente, não é possível em período tão recuado e,
pela ausência dos referenciais (códigos) dos grupos que realizaram tais pinturas,
decodificar esses registros de forma capital, isto é, taxando-os de modo absoluto
como “jogo
45
(lúdico?/performático?)” (e até mesmo como “guerra”). Sem embargo,
são hipóteses baseadas em reflexões decorrentes de pesquisas arqueológicas
ininterruptas na região, realizadas durante quase cinquenta anos (Paiva, 2017, 2019).
Todavia, não impede que sejam apresentadas inferências. Tendo em conta a
literatura e o trabalho de campo antropológico, além de elucubrações na seara
45
Conquanto não se descarte a questão da intensidade, muitas vezes latente, decerto, não violência com
intuito mortal.
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21
arqueológica.
46
Outrossim, a tentação no princípio de proceder com etnoarqueologia
assentada em analogia direta foi suprimida na medida em que novas chaves
teóricas permitiram analisar o que os indígenas depreendiam dessas pinturas,
partindo de sua própria cosmologia e
ethos
. Em razão do período mais recuado
que essas figuras foram plasmadas e, dentre outros, o fato de as populações
indígenas atuais não realizarem tais pinturas do mesmo modo,
47
,
48
,
49
releva-se que,
quaisquer aproximações por meio de analogia direta foram desconsideradas na
íntegra. Assim, não houve intenção de apresentar evidências acerca de pretensa
relação objetiva (e direta) entre as manifestações rupestres de lutas situadas no
PNSC, com as técnicas corporais praticadas por alguns dos povos indígenas da
atualidade. Por outro lado, se o gatilho disparado pelo “dispositivo mnemônico”
não obtém os códigos utilizados pelos grupos ancestrais que os pintaram; em
outra medida, foi possível refletir sobre a recorrência do fenômeno que permite a
alguns dos alto-xinguanos depreender (e interagir) com aqueles registros à sua
maneira.
A importância de pesquisas, estudos e reflexões acerca desses patrimônios
culturais, como a apresentada neste trabalho, ultrapassam quaisquer marcas que
coloquemos aqui (adicionalmente, Paiva et al., 2020). Para além de conhecer e
buscar hipóteses sobre os grupos que habitaram e transitaram pela região do
PNSC, no período pré-colonial. Tal importância está em agregar, ao campo ainda
46
Pensadas tendo em conta o sentido de Longa Duração (
Longue Durée
), estrutural, proposto por Fernand
Braudel, ou seja, como fenômenos históricos extremamente longos (ver Braudel, 1965). Nesse sentido, é
enorme a possibilidade de os (re)significados das lutas corporais terem mudado desde períodos mais
recuados. Será, como diz o ditado, que “a única constante é a mudança?” Independentemente de seus usos,
contextos, regras, acepções e etnias alhures, as ações motoras que configuram uma luta corporal,
permanecem. Nessa mesma chave sem, necessariamente, intentar a morte do adversário.
47
Embora não seja o escopo deste trabalho, consideramos digno de nota destacar que, talvez, ressinta de
análise sistemática e aprofundada, comparação das imagens plasmadas no PNSC com desenhos realizados
pelos alto-xinguanos (publicados em diversos trabalhos antropológicos, desde o século XIX). Por exemplo, é
possível depreender, empiricamente, similaridade gráfica em ao menos dois desenhos coletados em campo
por pesquisadores, compostos de figuras antropomórficas e zoomórficas (Steinen, 1940; Costa, 1988).
48
Vale registrar; todavia, que existe ao menos um trabalho em que asseverou mais intensamente sobre
possíveis aproximações (Morales Junior, 2002).
49
A questão de distância espacial/geográfica como sinônimo de “barreira cultural”, pode ser relativizada.
Aventa-se que, na região da TIX tenha ocorrido fluxo dinâmico de trocas mercantis, além de
compartilhamento cultural, ultrapassando os limites regionais, com “[...] raízes históricas ligando povos
através de amplas áreas geográficas, além de vastas conexões ligando grupos coexistentes aos mesmos
processos históricos [...]” (Heckemberger, 2001, p.27).
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tão restrito de pesquisas etnoarqueológicas, que se consolida no Brasil, sua
relevância e magnitude para as artes e ciências humanas. Ademais, em especial,
para quem busca conhecer, descobrir e se conectar com outra história. Uma, que
vai muito além da consolidada com mais força e potência, que é essa visão pós-
colonial. Visão que nos permite firmar cada vez mais o território em que vivemos
e sobre o qual estudamos em toda a sua pluralidade e riqueza históricas e culturais
que vão muito além das quais se tem registros (e imposições) colocadas pelo
processo de colonização. Não obstante, atesta-se, essas observações não se
restringem somente a esse recorte temático e escopo de pesquisa. Outro exemplo
dessas afirmações encontra-se no trabalho de Bordin (2020), no qual pôde conferir
in loco
a potência das histórias, quando contadas pelos próprios indígenas.
A transcendência de pesquisas desse caráter, aqui mais especificamente, o
debate sobre as representações rupestres de contato corporal, vistas
majoritariamente sob os olhares de “lutas”, “guerras”, “violência” etc., caminha no
sentido à propor novos olhares de decodificações. Outros olhares para essas
representações são necessários em busca de possíveis significados mais amplos
e que podem estar ligados direta ou indiretamente com tradições culturais dos
grupos indígenas. Esses povos originários se encontram nos dias de hoje por todo
território brasileiro, nos dando pistas sobre essa história que vem sendo
constantemente apagada. E possibilitando registrar e marcar, principalmente a sua
força e importância fundamentais, ainda mais em um país como o Brasil,
governado por instâncias, que estão a todo momento covardemente os atacando
e aos seus territórios. Se apoiando em narrativas supérfluas e incoerentes, que
negam a magnitude desses povos, sua história e cultura.
Povos que carregam dimensões e complexidades muito mais abrangentes do
que conhecemos, merecem espaço e reconhecimento. Violência e “selvageria” em
larga escala, ao menos nas Américas, podem ser (muito) relacionadas às ditas
“civilizações” ocidentalizadas. Assim, é preciso espaço para conhecer e entender
processos e dinâmicas culturais diversas. Importante também é o ato de nos
desapegar de nossos olhares que estranham e negam o diferente, sempre abertos
a novas perspectivas e interpretações, como a possibilidade de uma luta corporal
ser conformada como uma luta ritualizada e não necessariamente circunscrita à
Cenas rupestres de lutas corporais no Parque Nacional Serra da Capivara, possíveis interpretações
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23
seara de uma guerra, por exemplo.
Referências
ARQUEOLOGIA DA LUTA. Direção: Marcos Jorge. Consultoria científica: Leandro
Paiva. Série documental “O Espírito da Luta” 2.ª temporada (01h06min), color.
Produção: Academia de Filmes/Combate. São Paulo, 2020.
BASTOS, Solange.
O Paraíso é no Piauí: a descoberta da arqueóloga Niède Guidon
.
São Paulo: Editora Família Bastos, 2010.
BORDIN, Vanessa Benites. Contadores de histórias Um relato da criação de
espaços a partir dos encontros com os Tikuna no Parque das Tribos.
Urdimento
-
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Recebido em: 25/01/2022
Aprovado em: 07/03/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
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