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Representatividade Indígena nos cursos de
Licenciatura em Teatro
Entrevista com Eliana Silva Santos Pataxó e
Edimar Srenokra Xerente
Concedida a Ana Carolina Fialho de Abreu e
Juliano Casimiro de Camargo Sampaio
Para citar este artigo:
PATAXÓ, Eliana Silva Santos; XERENTE, Edimar Srenokra; ABREU,
Ana Carolina Fialho de; SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo.
Representatividade Indígena nos cursos de Licenciatura em
Teatro. [Entrevista concedida a Ana Carolina Fialho de Abreu e
Juliano Casimiro de Camargo Sampaio].
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v.1, n.43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0502
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
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Eliana Silva Santos Pataxó e Edimar Srenokra Xerente
Entrevista concedida a Ana Carolina Fialho de Abreu e Juliano Casimiro de Camargo Sampaio
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-36, abr. 2022
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Representatividade Indígena nos cursos de Licenciatura em Teatro
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Entrevista com Eliana Silva Santos Pataxó e Edimar Srenokra Xerente
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Concedida a Ana Carolina Fialho de Abreu
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e
Juliano Casimiro de Camargo Sampaio
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Resumo
Nesta entrevista, realizada durante o Seminário Internacional de Pedagogias
Teatrais e Povos Indígenas: descolonizando a formação da pessoa artista-
docente pesquisadora, a licenciada em Teatro pela Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (UESB), Eliana Silva Santos Pataxó e o licenciado em Teatro
pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), Edimar Srenokra Xerente, ao
lado das orientadoras de seus Trabalhos de Conclusão de Curso, Maria
Aparecida de Souza (UESB) e Karylleila Andrade (UFT) comentam as vivências
nas suas comunidades, as dificuldades para entrar e permanecer na
universidade, as relações com os currículos e disciplinas dos cursos, as
intervenções artísticas e pedagógicas realizadas durante o período de
graduação e ao final, o retorno para a comunidade e a continuidade dos
estudos. Em maio de 2021, diante da crise sanitária ocasionada pelo novo
coronavírus (COVID-19), a entrevista foi realizada através de uma chamada de
vídeo.
Palavras-chave
: Representatividade Indígena. Licenciatura em Teatro. Pataxó.
Xerente.
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Esta entrevista foi realizada durante o Seminário Internacional de Pedagogias Teatrais e Povos Indígenas:
descolonizando a formação da pessoa artista-docente pesquisadora, no dia 24 de maio de 2021, às 20 horas,
através da plataforma virtual Google Meet e disponibilizada através do link de acesso:
https://www.youtube.com/watch?v=tsuATzuV68U
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Eliana Silva Santos Pataxó é licenciada em Teatro pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
Edimar Srenokra Xerente é licenciado em Teatro pela Universidade Federal do Tocantins (UFT).
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Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) com cotutela em Antropologia pela
Universidad Nacional Mayor de San Marcos/Peru. Mestrado em Artes Cênicas (UFBA). Bacharel em Direção
Teatral e Interpretação (UFOP)., Licenciada em Teatro (Mozarteum). Professora Substituta no curso de
Licenciatura em Teatro na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
anacarolinaabreu1886@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5819844630801911 http://orcid.org/0000-0002-5881-4061
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Pós-Doutorado em Educação. Doutor e Mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Bacharel
em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Licenciado em Teatro (Mozarteum).
Professor Associado da Licenciatura em Teatro e da Pós-Graduação em Letras (UFT).
juliano.casimiro@uft.edu.br
http://lattes.cnpq.br/3311297887691146 https://orcid.org/0000-0002-8952-1368
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Indigenous Representativeness in Theater Degree courses
Abstract
In this interview, carried out during the International Seminar on Theatrical
Pedagogies and Indigenous Peoples: decolonizing the formation of the artist-
teacher-research person, the graduate in Theater from the State University
of Southwest Bahia (UESB), Eliana Silva Santos Pataxó and the graduate in
Theater from Federal University of Tocantins (UFT), Edmar Srenokra Xerente,
alongside the supervisors of their Course Completion Works, Maria Aparecida
de Souza (UESB) and Karylleila Andrade (UFT) comment on the experiences
in their communities, the difficulties to enter and remain in the university, the
relationships with the curricula and subjects of the courses, the artistic and
pedagogical interventions carried out during the graduation period and at the
end, the return to the community and the continuity of the studies. In May
2021, given the health crisis caused by the new coronavirus (COVID-19), the
interview was conducted through a video call.
Keywords
: Indigenous Representation. Degree in Theater. Pataxó. Xerente.
Representatividad Indígena en las Carreras de Teatro
Resumen
En esta entrevista, realizada durante el Seminario Internacional sobre
Pedagogías Teatrales y Pueblos Indígenas: descolonizando la formación del
artista-docente-investigador, la licenciada en Teatro de la Universidad
Estadual del Sudoeste de Bahia (UESB), Eliana Silva Santos Pataxó y el
licenciado en Teatro de la Universidad Federal de Tocantins (UFT), Edmar
Srenokra Xerente, junto a las supervisoras de sus Trabajos de Finalización de
Curso, Maria Aparecida de Souza (UESB) y Karylleila Andrade (UFT) comentan
las vivencias en sus comunidades, las dificultades para ingresar y permanecer
en la universidad, las relaciones con los currículos y materias de los cursos,
las intervenciones artísticas y pedagógicas realizadas durante el período de
graduación y al final, el retorno a la comunidad y la continuidad de los
estudios. En mayo de 2021, dada la crisis sanitaria provocada por el nuevo
coronavirus (COVID-19), la entrevista se realizó a través de una videollamada.
Palabras clave
: Representación Indígena. Licenciatura en Teatro. Pataxó.
Xerente.
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Figura 1- Cartaz de divulgação do Seminário Pedagogias Teatrais e Povos Indígenas
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A arte do cartaz e as fotografias que aparecem neste material foram produzidas por Ana Carolina Fialho de
Abreu. As fotografias foram feitas durante as pesquisas de campo no período de doutoramento. A primeira
foto em 2018 no
amjĩkĩn
(ritual)
Pàrti
ou
Jàt pĩ
(Festa da Batata) na aldeia Manoel Alves Pequeno,
comunidade indígena Krahô, Tocantins, Brasil; a segunda em 2017 na Festa em Honra a Virgem Carmem, na
cidade de Paucartambo, Peru e a terceira em 2016 na
Sequia Tusuy
(Festa da Água), nos
ayllus
de Puquio,
região de Ayacucho, Peru.
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Figura 2- Cartaz de divulgação da programação do
Seminário Pedagogias Teatrais e Povos Indígenas
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A arte do cartaz de divulgação da programação foi produzida por Ana Carolina Fialho de Abreu.
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Figura 3- Cartaz de divulgação da entrevista realizada com Eliana Pataxó e
Edimar Srenokra Xerente
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A arte do cartaz de divulgação da entrevista foi produzida por Ana Carolina Fialho de Abreu. As fotografias
foram enviadas por Eliana Pataxó e Edimar Srenokra Xerente.
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Apresentação
Ana Carolina Abreu
- O Seminário Pedagogias Teatrais e Povos Indígenas:
descolonizando a formação da pessoa artista-docente-pesquisadora, está sendo
realizado pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), pela
Universidade Federal do Tocantins (UFT) e conta com o apoio da Federação de
Arte/Educadores do Brasil (FAEB). Esse encontro está sendo organizado por mim
(eu vou me apresentar já... já...) e pelo meu irmão de vida e de outras vidas, o
professor Juliano Casimiro de Camargo Sampaio da UFT. A roda de hoje (vocês
viram o nosso cartaz que foi feito com muito carinho) se chama
Representatividade Indígena nos cursos de Licenciatura em Teatro. E aí, a gente
agradece imensamente a presença e a generosidade de Eliana Silva Santos Pataxó
(UESB) (ver figura 4) e a orientadora de seu Trabalho de Conclusão de Curso, Maria
Aparecida de Souza (UESB), do Edimar Srenokra Xerente (UFT) (ver figura 5) e da
sua orientadora Karylleila Andrade (UFT). Também agradecemos aos mediadores
e a mediadora de hoje. A mediação está por conta da estudante Mariana Caroline
(UESB), do Iure Nascimento (UESB) e representando a UFT, o licenciado em Teatro,
Fabrício Carvalho que com muito carinho e generosidade fizeram a leitura
completa das monografias de Eliana e de Edimar e ficaram ao longo da semana
pensando em perguntas para realizar para vocês
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. Começamos então, eu me
apresento, eu entro pra essa roda, eu sou Ana Carolina Fialho de Abreu, sou filha
do coração de um pai palhaço e de uma mãe que tem descendência indígena,
meu apelido é Cataguases e eu estou atuando como professora substituta no
curso de Licenciatura em Teatro da UESB. Eu vou puxar pra roda o meu amigo,
professor Juliano Sampaio que topou essa aventura, companheiro de muitas
aventuras, bem-vindo Juliano. Ao final, desejo uma excelente noite para você que
está aqui nesse encontro que tem como objetivo ser ponte e partilha. Em tempos
virulentos, violentos e pandêmicos, severinos de outrora e de agora, convidamos
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Esta atividade faz parte do projeto de pesquisa Pedagogias do Teatro: Culturas e Saberes da Tradição Popular
em Sala de Aula, coordenado pela professora Ana Carolina Abreu com a colaboração do professor Juliano
Sampaio. Neste sentido, diversos estudantes e egressos da UESB e da UFT foram convidados para mediar
as rodas de conversas e participar da atividade pedagógica que antecedeu o Seminário. Tratou-se de realizar
a leitura prévia e discussões sobre as monografias e artigos das pessoas convidadas para que as perguntas
fossem elaboradas e os estudantes atuassem no seminário não apenas na equipe técnica, mas também
como propositores, fazedores de conhecimentos.
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você para ser vaga-lume e vagalumear conosco na dança errática e coletiva que
começa nesse instante, no acender de nossas câmeras.
Figura 4- Eliana Silva Santos Pataxó
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Figura 5- Edimar Srenokra Xerente
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Fonte: Eliana Silva Santos Pataxó. Arquivo pessoal de Eliana Pataxó.
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Fonte: Edimar Srenokra Xerente. Arquivo pessoal de Edimar Xerente.
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Juliano Sampaio
- Eu sou professor da UFT, no curso de Teatro e na pós em Letras,
de Porto Nacional que é uma cidade próxima a Palmas e que Karylleila também
está, então somos colegas da graduação, amigos de vida, colegas da pós e é um
prazer imenso ter a minha irmã de vida que é a Ana Carolina Abreu nesse projeto
que perpassa tanta coisa. A gente organiza uma revista, a gente faz um Seminário,
a gente junta pessoas e a gente ouve pessoas que é o que tem dado mais prazer
nesses tempos. Puxo para esta roda o estudante Iure Nascimento.
Iure Nascimento -
Boa noite a todos, todas e todes. Meu nome é Iure
Nascimento, sou estudante da UESB, estou no sétimo semestre do curso de
Licenciatura em Teatro e
minhas perguntas vão para Eliana Pataxó. Quais
foram os desafios encontrados por você ao sair da sua comunidade e entrar
na universidade? Existia na época, políticas voltadas para a sua permanência
enquanto indígena na universidade?
Eliana Pataxó
- Bom, boa noite a todos, eu sou Eliana Pataxó, sou graduada em
Teatro pela UESB desde 2016. Creio que na época eu fui a primeira indígena a
entrar por cota na UESB, digo pelo choque e estranhamento das pessoas ao
saberem que uma indígena ia entrar na UESB. Um dos maiores desafios foi voltar
a estudar porque eu tinha parado de estudar há 13 anos e uma irmã que já estava
estudando pedagogia na UESB, resolveu me inscrever por cota indígena. Ela não
entrou por cota, mas eu sim, foi quando começou a abrir cotas indígenas na UESB,
então ela falou: “vou colocar você por cota indígena, pode?”, e eu falei “sim, pode”.
Mas eu não tinha ideia do que eu ia enfrentar, do que eu esperava, então, ao chegar
na UESB, todos queriam saber quem era a indígena que estava ali. Eu lembro muito
bem quando numa aula de Teatro com o professor Roberto Abreu (
in memoriam
),
ele me apresentou como indígena e cantou em círculo uma música indígena. Isso
pra mim foi muito emocionante, essa receptividade dele e dos colegas de cantar
uma música indígena pra me receber. Foi uma surpresa muito grande, porque de
certo modo eu não esperava. Mas, em outras salas de aula, as pessoas queriam
saber quem era a indígena que ali estava chegando, porque não me viam como
indígena, porque eu não estava com nenhum grafismo no corpo e nenhum cocar
na cabeça. Cheguei na UESB como qualquer um, com calça jeans, blusa branca e
assim estava, porque ser indígena não está nos trajes, não está no meu cocar,
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traço no braço, no meu grafismo, está na minha cultura, na minha alma. Então,
isso foi um primeiro choque, “mas você não parece ser índia”. tinha uma
colega que tinha mais os traços, vamos supor, os traços físicos indígenas, e aí eu
falava para minha colega: “mas eu sou indígena”. Creio que não só pra mim, como
pra muitos, o indígena quando chega na universidade, se faz a pergunta: “eu afirmo
quem eu sou ou eu nego quem eu sou?”. Esse momento foi de afirmar a minha
identidade indígena, então eu falei: “eu sou indígena, eu sou da etnia Pataxó”. Pra
mim essa foi uma das primeiras coisas que vieram à tona como indígena porque
quando eu saio da minha Aldeia de Coroa Vermelha, sou da Aldeia de Coroa
Vermelha, cenário do suposto “Descobrimento do Brasil”, foi um achado. Ali eu
convivia com brancos e indígenas, então eu não sentia tanta diferença, mas ao
entrar na universidade eu recebi esse choque e tive muita dificuldade em
permanecer na universidade pela falta de apoio. Sim, tentei a bolsa do Programa
de Assistência Estudantil (PRAE), que foi negada duas vezes, não me aceitaram
para ser bolsista e foi com a ajuda da professora Sônia Mattos e de Marina que
consegui escrever uma carta para a reitoria para ter a bolsa auxílio, isso foi uma
dificuldade. Nós não temos apoio, na minha época eu como indígena não tive apoio
logo de começo para permanência, então foi uma luta sim. Eu percebi a
necessidade, e senti que na UESB não tinha tanto apoio, tanto didático (na grade
curricular), quanto em políticas afirmativas para nós indígenas. Acho que a minha
chegada deu uma mexida nessas políticas e com tudo isso, bom, passei pela fase
da greve também. Poderia ter desistido como muitos colegas desistiram, então eu
falei “não, eu vou ficar até o fim, por todas as dificuldades, por todos os desafios
que eu vou passar, eu vou permanecer”. Suportei todas as dificuldades financeiras,
foi muito difícil sair da minha aldeia, deixar uma loja que eu tinha, deixar a casa
dos meus pais, voltar a estudar, assumir a minha identidade indígena, passar
dificuldade sim, não eu como os colegas também em período de greve.
Permaneci, cheguei até o final do curso, graças a deus e aos meus ancestrais que
me deram muita força né, de continuar, isso pra mim foi muito importante, ter o
apoio de todos os professores. Uma coisa que não esqueço do professor Roberto
é que ele falava: “Liu, afirma sua identidade, mostra seu potencial, você é capaz,
vai em frente, não desista”, e isso pra mim ficou marcado a vida toda, quando ele
falava: “assuma quem você é, mostra sua força”, ficou em mim. E é isso.
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Ana Carolina Abreu - Oi Liu, obrigada! Eu vou puxar pra roda, a estudante que
me apresentou você.
Eliana Pataxó
- Ah, sim (risos).
Ana Carolina Abreu
- Bem-vinda, Mariana Caroline.
Mariana Caroline
- Olá, boa noite. Primeiramente, gostaria de saudar as
nossas ancestres que nos permitem estar aqui e continuar sempre. Me
chamo Mariana Caroline, estou vestida com um vestido de estampa de
papagaio, um
japamala
que foi feito por Eliana Pataxó. Estou licenciando em
Teatro, termino este semestre, sou pesquisadora, multiartista, fazedora de
cordel, enfim, estou muito feliz de estar aqui, com o convite para estar
participando com vocês. E vai minha pergunta pra você, Liu Pataxó. Vivemos
em um país onde desvalorizam e matam os povos indígenas, essa luta os
acompanha e as acompanha desde a invasão dos portugueses nas terras de
Pindorama, onde com audácia, impuseram sua cultura, tentando descartar
as culturas existentes ali. Com isso, muitos estereótipos foram criados e
infelizmente ainda são utilizados na Educação Básica.
Então, Liu, como é que
foi pra você que é artista, professora de Teatro, pesquisadora e mulher
indígena, dialogar com as e os estudantes a respeito da história e quais foram
as primeiras perguntas que surgiram quando você contava pra essas pessoas
que você pertencia à etnia Pataxó?
Eliana Pataxó
- Bom, eu vou começar a falar ainda pela UESB, porque esse choque
teve, vamos dizer, um choque de aceitação mesmo, dos próprios colegas que não
me viam como indígena, porque eu não carrego esses “traços” que eles esperavam
encontrar. Porque na verdade, eu também estudei em escola pública e na época
que eu estudava também era colocado o “índio” como ser selvagem, seminu que
vivia de caça e pesca, isso eu também aprendi nas escolas. Na verdade, os povos
indígenas, eles estavam na invisibilidade até para nós indígenas. Eu não cresci em
aldeamento, eu cresci em uma cidade pertencente a aldeamento. Hoje em dia ela
é afirmada como terra indígena. Tive esse período de negação da identidade devido
a parte da família que veio do meu pai, ele teve que negar a identidade, pra
sobreviver com a família. Na escola também aprendi que “índio” batia na boca e
fazia “uuuu”, mas acontece que com o tempo, lá na década de 1980, quando veio
o aldeamento, veio a mudança da Constituição e veio a busca dos indígenas que
estavam morando na cidade pra ir pro aldeamento, foi quando meu pai disse não:
“não vamos porque eu não quero passar fome, não quero deixar vocês passarem
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fome”. Então, ele se negou a ir para a aldeia e ficamos na cidade. Eu penso que
essa questão não é minha, é de outros indígenas também, a própria negação,
isso não é culpa nossa, é culpa da sociedade que não via a gente como ser
humano, achava que “índio” era bicho, que a gente era preguiçoso ou que “índio”
era cachaceiro, então não só o, meu pai como muitos negaram. Além disso, tinha
o lance do
bullying
né, que “índio” é preguiçoso, não vai ter trabalho. Então nós
não tivemos essa noção de ser indígena desde criança, o que acontece é que
quando fomos para Coroa Vermelha, já tinha mudado a luta e a questão indígena.
Os indígenas tinham mais voz, então meu pai falou: “eu sou índio também, então
meus filhos também são”. Porque a história em Coroa Vermelha, começou com
uma luta por território, por permanência, porque os povos indígenas Pataxó é um
povo de resistência. Como você mesma disse, a nossa história de resistência
começou com a entrada dos portugueses no Brasil, uma terra que existia
indígenas e permaneceram até hoje. Os povos indígenas nessas terras é
resistência, então quando nós temos o direito de estar numa faculdade e ser uma
das primeiras indígenas a entrar ali, eu percebi que aquele espaço também é meu,
mesmo que eu tivesse que ver o olhar de negação pra mim, eu iria permanecer.
Eu comecei no curso de Teatro a dar visibilidade pra minha cultura dentro da
universidade e depois da universidade, dentro das escolas públicas e privadas, a
usar o Teatro como uma ferramenta de visibilidade da cultura indígena, fazer o
oposto do que os jesuítas fizeram com os indígenas. Eles roubaram, aproveitaram
uma arte existente entre os povos indígenas, que eram carregados de arte, de
dança, de música, de dramaturgia no corpo, de tudo isso. Quando eles usam a
dramaturgia indígena para catequizá-los ou para destruir uma cultura, o que eu
faço? Eu uso o Teatro para a educação, para ensinar a respeitar e a desconstruir
esses pensamentos preconceituosos, essa imagem estereotipada que colocaram
nas nossas cabeças desde a escola. Mostro que nós indígenas não somos
selvagens, que nós temos capacidade como qualquer ser vivo, somos seres
humanos como qualquer outro ali. Naquelas escolas eu comecei a receber nome
de bruxa: “lá vem fazer bruxaria”. Quando eu pegava meu
maracá
e balançava no
círculo, quando eu fazia um
auê
e quando eu cantava Pataxó (Pataxó muká mukaú),
eu ouvia os alunos: “lá vem, vai começar a macumba, a feitiçaria, Deus é mais,
sangue de Deus tem poder”, essas coisas né. E eu falava: “não, isso é cultura, isso
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é tua história, é a minha história”. E quando eu começava através dos mitos a
contar, narrar essas histórias, eles se interessavam e aos poucos através da arte,
através do Teatro eu fui, de um certo modo, clareando as ideias desses alunos e
de alguns professores nessas escolas que passei. Fui desconstruindo, porque é
incrível que em pleno século XXI, os professores têm a capacidade de não mudar
o contexto que foi implantado nos livros de história para hoje contar a história
corretamente, eles não buscam. Então é preciso, nós indígenas, chegarmos dentro
das escolas e contarmos como realmente somos, nós não somos como eles nos
chamam, nós não somos selvagens. Para eu ser indígena eu não preciso ficar com
a cara pintada ou com um cocar na cabeça, cultura é questão de aceitar e nascer
dentro dela, de você resistir e persistir, então um dos maiores orgulhos pra mim
era dar aula para alunos que não conheciam nada da cultura. Eu tive uma
professora indígena e eu aprendi que o “índio” não é só o “índio” ele pode estudar,
ser doutor, pode usar roupa normal, pode usar celular, é gente como a gente, e a
única diferença é que ele carrega a cultura e a proteção da natureza. É algo
ancestral, conta a história de quem já foi, nós somos a continuidade do que já foi,
eu sou uma ancestralidade renascida, eu me vejo assim. Então eu sinto que a
minha lição de vida, depois que eu me formei em Teatro é na educação voltada
para não indígenas, porque é ali que eu percebi que a gente tem que descontruir
pensamentos preconceituosos. Para mim é importante estar falando com vocês,
mesmo de longe, de outro país. Eu pensei: “puxa, aqui não se fala de indígenas”, e
eu tive uma apresentação, eu recebi um convite da minha afilhada, a Letícia para
apresentar com ela um Seminário no Centro Educacional Mediterrâneo, e nós
falamos da nossa cultura, dos nossos ancestrais, dos primeiros do nosso país, e
foi lindo apresentar aqui, cantar a oração em Atxôhã e perceber nos olhares deles
o respeito por isso, foi uma apresentação muito bonita, então até aqui eu fui para
a educação e isso para mim é rico demais.
Ana Carolina Abreu
-
Onde você está agora Liu?
Eliana Pataxó
- Eu tô na Espanha, numa cidade chamada Benencase, província de
Castellón. Vai fazer dois anos que estou aqui, cheguei aqui no olho do furacão da
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pandemia, vim com o objetivo de estudar, mas até agora está fechado, não tem
como, não tem possibilidade ainda de eu estar continuando meus estudos, mas
futuramente pretendo sim fazer mestrado, percebi que aqui tem uma faculdade
de Arte e Cultura que eu posso pensar em fazer também.
Ana Carolina Abreu
-
Obrigada, Liu. Eu vou puxar pra roda Fabrício Carvalho.
Fabrício Carvalho
- Vamos lá, boa noite. Eu estou muito emocionado, muito
incrível. Então, sou Fabrício Carvalho, formado em Teatro pela UFT.
Vou fazer
uma pergunta para o Edimar
. Edimar, sua monografia é de uma riqueza
inestimável, percebemos diversas tochas acesas para a discussão sobre as
identidades, desafios e conquistas dos povos indígenas, entre as muitas
conquistas está a educação intercultural indígena, onde você expõe um
pouco da sua trajetória, desde a infância na terra indígena Xerente, sua
passagem pela escola indígena, até a sua graduação na UFT.
Você pode
compartilhar quais desafios você teve durante a graduação e como o
currículo acadêmico pode ser uma ferramenta de afirmação das identidades
e das culturas dos alunos?
Edimar Xerente
- Boa noite, boa noite a todos e todas, é um prazer revê-los,
principalmente os professores e professoras. Sou do povo Xerente no Tocantins,
atualmente moro na aldeia, sou formado em Teatro, estou trabalhando como
professor na escola indígena, então vamos lá. Vou começar agradecendo a
pergunta e compartilhar aqui os desafios que foram tantos, mas quando ingressei
na universidade o que encontrei de desafios foi a comunicação e a adaptação.
Você vir de uma aldeia e entrar em uma universidade pela primeira vez é
totalmente diferente. Tem que se adaptar aos colegas, aos professores e pra gente
que é indígena é um pouco complicado porque ali em um primeiro momento, por
causa da recepção, porque ingressei em 2012, eu fui o primeiro da minha etnia a
entrar no curso e isso impacta né. Minha história começou, eu lembro que nas
primeiras semanas eu não me comunicava por estar aí no lugar pela primeira vez,
com pessoas desconhecidas pra falar comigo. Acolher, isso foi difícil de acostumar
e uma das questões foi a disciplina chamada Antropologia Cultural e Matrizes
Populares da Amazônia. Naquele primeiro momento me desestabilizou porque eu
me senti oprimido por estar na sala e nessa disciplina. A próxima questão é a de
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identidade tanto da Amazônia como de Tocantins num geral, então a gente se
apresentava na sala, no primeiro dia de aula e a professora perguntou se tinha
indígena na sala de aula, eu levantei a mão e minha colega levantou a mão. A aula
foi fluindo e a professora perguntou o que os colegas achavam dos indígenas e
uns falavam “ah, eu acho que os povos indígenas andam pelado”, outro falava
“exóticos” e “ah eu acho que indígenas aquilo, é isso” então pra mim como era
minha primeira semana, eu praticamente fiquei oprimido, não sabia o que falar,
não sabia o que fazer dentro da sala de aula. Foi que comecei né, sentei e
conversei com a professora e ela falou comigo pra não me expor né, mas ser eu
mesmo, encarar a realidade dentro da sala de aula e fora, me comunicar, falar da
minha cultura, do valor que a cultura tem e foi aí que surgiu a ideia de trabalhar e
voltar pra escola que eu vim. Ao mesmo tempo eu pensava “o que que eu vou
fazer pra colocar na cabeça dos colegas que índio não é isso, que índio não anda
mais pelado?”. Assim, a forma de trazer a nossa cultura pra dentro da universidade
foi a ideia de fazer uma viagem, então a gente organizou para os colegas verem
que a realidade na aldeia é diferente, por ter uma visão aqui da cidade, porque
muitos veem como citei agorinha, tem uma visão do passado, e então fizemos
essa viagem e deu tudo certo. Quando voltamos foi totalmente diferente né, os
colegas compreenderam, tanto é que assim, nas minhas apresentações eu tentava
ligar português e xerente e deu certo. Pra afirmar quem você é mesmo como
acadêmico você vai enfrentar barreiras, ser você mesmo, falar da sua identidade
e da sua cultura e você que é da aldeia trazendo o que seus ancestrais te
proporcionaram e mostrar pra todos, não negar sua identidade, não é fácil. Num
primeiro momento eu não neguei minha identidade, mas por causa da opressão
eu não me defendi, pode-se dizer assim e essa disciplina pra mim foi importante
porque abrangeu toda a minha ideia e no final deu tudo certo e eu consegui falar
da minha cultura, consegui mostrar quem eu era e também consegui que meus
colegas e meus professores todos conseguissem ver a minha pessoa. E assim,
agradeço muitos aos meus professores que me ajudaram e me orientaram porque
lá pelo quarto, quinto período, eu quase desisti, queria ir embora, pra mim acabou
tudo porque eu entrei por cota, porque não fiz Direito, que é um curso que é bem-
visto, eu falava “não, é o curso que eu escolhi, que estou gostando”. Nessa queda
também tive que me sentar com a professora, que me orientou e me disse pra
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Eliana Silva Santos Pataxó e Edimar Srenokra Xerente
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não abaixar a cabeça, ficar firme. eu pensei por que era a fase principal
também, no quinto período eram as disciplinas que me davam visões de como
seria trabalhar na escola indígena, então eu fiquei feliz, falei pra mim mesmo que
eu ia seguir e que aquele momento ruim pra mim tinha acabado. Eu fiquei quase
uma semana pensando se ia largar ou não e decidi voltar porque eu lembrava
muito das crianças e várias disciplinas que me proporcionaram muito o olhar
pra trás e ver que desistir não era a melhor forma de trazer coisas boas para a
comunidade indígena. O que eu tenho pra falar é isso, tenho que firmar, mostrar
nossa identidade e a luta né, então é isso, valorizar.
Fabrício Carvalho
- Edimar, muito obrigado pela sua resposta, por
compartilhar com a gente. Para continuar, na sua escrita você traz
contribuições suas não para o povo Xerente mas para as escolas indígenas
em geral. Nesse mês de junho, exatamente no dia 10, nós completamos
quatro anos da defesa do seu Trabalho de Conclusão de Curso então,
compartilha com a gente como está a escola, a educação indígena nesses
tempos tão difíceis.
Edimar Xerente
- Então, vamos lá. A escola graças a Deus indo bem né, em bom
estado, tanto física, a estrutura quanto a educação né. Nesse tempo assim,
complicado porque tivemos que nos adaptar né, às aulas remotas e tivemos que
acessar muito esse meio da tecnologia para que pudéssemos alcançar os alunos
de alguma forma, trazer a educação e atender eles da melhor forma. Assim, é uma
coisa muito nova pra nós porque a escola em si tem pouco acesso a essa
tecnologia mas tem alguns que tem, principalmente nós da minha situação
né, tivemos que adaptar muitos computadores para que os professores
trabalhassem, respeitando todas as medidas de saúde e tivemos que fazer muitas
adaptações no sentido de acolher os professores, porque como estão sendo muito
rígidas as prevenções, a gente está fazendo um cronograma tanto da limpeza
quanto da parte pedagógica, mas estamos alcançando, não todas as metas,
porque não é 100%, porque é muito difícil, mas 80% dos alunos estamos
alcançando.
Ana Carolina Abreu - Edimar, na escola indígena tem professores indígenas e
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não-indígenas?
Edimar Xerente
- Então, algumas tem e algumas não tem, por causa da distância
né. Quando a escola é bem distante da cidade, muitos não vão por causa da
distância, aí quando tem escolas que ficam a 15, 20 até 30 quilômetros da cidade,
tem professores não-indígenas que atuam na reserva indígena. Eu como
professor responsável mais na administração, na direção, que eu sempre
junto com o coordenador pedagógico e ajudando os professores.
Ana Carolina Abreu
- Muito obrigada Edimar, vou puxar pra roda novamente a
Mariana Caroline para a gente continuar com as perguntas.
Mariana Caroline
- “Vou contar aqui em trova, um pouco de mim, de lá. Sem saber
quem eu era, sem nunca me encontra, minha tia disse um dia: -Sá menina, senta
cá...pra mode eu te contar um segredo de famia, qui pur medo de falar a muito se
escondia: tu é índia Pataxó, parente de Barretá!”.
Eliana Pataxó
- “Assustada então fiquei. Mais perdida me senti. Com um aperto no
peito, sem vontade de partir. Com os zói cheio d’água, meu vozinho a pressentir...”
Mariana Caroline
- “A sina d’ minha vida que logo eu ia sentir, sardade dentro do
peito, do lugar donde nasci. Mas logo descobriria o motivo de ‘star ali. Na terra de
Vera Cruz, onde a nação se descobriu. O país dos papagaios, uma mistura que saiu
do índio, branco, negro: brasileiro assim surgiu!”
Eliana Pataxó
- “A cultura de um povo, pura miscigenação. Tem reisado, tem toré,
tem culto, adoração, tem colheita e cultivo, canturia e diversão!”
Mariana Caroline
- A minha pergunta, lendo a sua monografia me fez recordar
muito meu processo de me afirmar com o peito cheio que eu sou uma
mulher preta. Também proporcionou algumas lembranças sobre
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espetáculos, especialmente o
Trovinhas
e Naftalinas
, onde pudemos
compartilhar em versos um pouco da nossa ancestralidade, sou muito grata
por isso.
Conectarmos com nossos ancestres é algo que sempre
conversamos em nossos encontros, não é mesmo? Durante o processo
cênico, como foi pra você trazer essas lembranças sobre sua história e
transformá-las em versos e Teatro, como esse recitado agora por nós e
escrito por você? Qual sentimento que ficou, que fica, quando você mulher
indígena pisa em um palco e conta sua ancestralidade e uns causos para
tantas pessoas?
Eliana Pataxó
- Bom, tudo começou nesse processo lindo né, com a professora
Maria Souza, mexendo no baú das nossas memórias. Mexer no baú é mexer na
nossa ancestralidade, é mexer no que ficou atrás, mas que está presente aqui
com a gente né. Então, quando fui convidada com as outras colegas que só eram
mulheres para o grupo
Ciganas, Cigarras e Cirandas
e para o espetáculo
Trovinhas
e Naftalinas
e falar do que guardávamos dentro da gente, porque fomos pra
infância, fomos lá pro nosso baú revirar o que estava guardado e não esquecido,
guardado. O que tá guardado nunca esquecido, basta dar uma mexida nele que
ele vem à tona. Então, quando começou esse processo, eu voltei pra cidadezinha
de Itajú do Colônia e aí me vieram memórias, lembranças do meu avozinho como
cito no cordel, da minha tia Edna que entrava dentro da minha casa, era como
se eu estivesse vendo ela com seu esposo, com uma lança na mão escrito
Pataxó
Ha-há-hae
e ele carregava um cocar na cabeça. Aquela imagem dele entrando
dentro da minha casa e eu olhava e pensava “gente ele é um índio” e eu não tinha
aquele reconhecimento ainda de ser né, aquela mentalidade de entender que eu
também pertencia àquela cultura. A minha tia saía da aldeia e entrava na minha
casa na cidade e eu falava “gente, minha tia é índia” e ela falava “mas você também
é” e quando minha tia disse um dia “tu é índia Pataxó, parente de Barretá”. Barretá
é uma “personagem”, uma escola numa reserva indígena em Catarina Paraguaçu,
na proximidade de Pau Brasil, tem uma sala que leva o nome dela, Barretá. Essa
índia Barretá, essa anciã, eu lembro dela bem pequenininha, ela passava nas casas,
ela morava nas proximidades no aldeamento, passava nas casas pedindo
miangue
e manguete
, muitas vezes ela ia na casa da minha mãe pedir
miangue
que é
comida em patchorrã. Ela era um desses livros antigos, velhos que carregava muito
conhecimento sobre a língua pataxó, a língua patchorrã, a língua dos povos Pataxó.
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Ela foi um desses livros que foram abertos enquanto viva na pesquisa da língua,
da língua que estava perdida, perdida entre “aspas” porque ela estava guardada
com essa senhora né, com essa anciã indígena. Então, ela também no cordel,
esse processo de trazer a memória de volta, no processo de
Trovinhas
. Nossa, me
levou a um túnel do tempo, me resgatou memórias que não estavam esquecidas,
mas guardadas né. Quando eu saio de Itajú do Colônia e vou pra Coroa Vermelha,
foi um encontro com a minha fortaleza de identidade, com os “primeiros”, porque
sabemos que os “primeiros” foram os Tupinambá, os Tupiniquim e os Pataxó. Se
os Pataxó não fossem resistentes naquela terra, aquela terra seria da classe
hoteleira. Os Tupinambá hoje têm a região de Ilhéus e outras regiões, mas os
Pataxó estão ali resistindo. Quando eu falo “meu avozinho disse um dia que eu ia
sentir saudade”, é que um dia eu ia entender o motivo de estar ali na terra de Vera
Cruz que era o nome dado né, terra de Pindorama, terra dos Papagaios, Vera Cruz
que é Santa Cruz Cabrália né. Então, ao construir, ao rememorar essas memórias
do passado e transformar em um cordel, eu tive, eu tenho uma ligação muito
grande com a natureza e com a minha força ancestral dos meus acós né, de uma
força antepassada que eu não conhecia, mas no processo do curso do Teatro, no
processo de trabalhar com esse processo de criação de
Trovinhas
vieram à tona
muitas coisas boas, resgate ancestral mesmo. Inclusive o fato de minha mãe falar
pra mim que eu tenho muito da minha avó. A minha avó foi minha indiazinha que
foi pega no laço e tem essas histórias que não são ficção, foram reais. As nossas
avós foram pegas no laço, ela foi pega a força, foi violentada e muitos brasileiros
são, como se diz, foram feitos a partir de uma violência e minha avó foi uma
dessas. Minha mãe fala que eu tenho muito dela, então eu carrego essa força
ancestral da minha avó materna e esse cordel fez esse processo de trazer minhas
memórias. Pra mim foi muito rico porque fortaleceu mais ainda a minha
fortaleza de identidade feminina como mulher, quando eu subo no palco com esse
grupo lindo né,
Ciganas, Cigarras e Cirandas
e faço o meu cordel girar ali, isso me
cada vez mais força, é como seu eu tivesse com todos eles ao meu redor.
Quando eu pego o
maracá
e começo a cantar eu não estou só, eu sempre trago a
força dos meus ancestrais comigo. Isso pra mim é grande, isso foi fantástico, eu
agradeço muito essa mulher, Maria Souza, que mexeu no meu baú, me trouxe
essas memórias tão lindas dos meus antepassados, do meu vô, da minha tia, da
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minha terra, da saída dessa cidade que foi um resgate pra essa terra de
descobrimento, é isso.
Iure Nascimento- Então Maria, eu gostaria de saber como foi o processo de
troca entre vocês, durante a orientação do Trabalho de Conclusão de Curso
de Eliana
.
Maria Souza
- Meu nome é Maria, tenho perto de mim um presente que a Eliana
me deu que é uma
maracá
, ela o fez com as escritas Pataxó, com enfeites que
são bolas de madeira, penas e tem esse som, um carinho, um coração rítmico que
a Eliana me presenteou. Então, tem uma coisa que eu acho bem especial falar
nesse momento e pra estender assim as nossas influências, eu tenho aqui na
nossa companhia, na nossa reunião, meu orientador, tanto do mestrado quanto
do doutorado, e tem uma coisa importante que eu aprendi com o Daniel Marques
que é deixar a pessoa encontrar o caminho dela, dar a liberdade. A liberdade em
princípio é bem caótica porque a gente quer ser orientado no sentido de faz isso
aqui, faz aquilo ali. A gente tem caminhos que realmente são facilitados pelo fato
de estarmos no meio acadêmico mas não tinha como eu ser tão definitiva assim
com as escolhas que a Eliana tinha no processo, então uma coisa que foi
interessante é que com certeza tem vários trabalhos dos alunos que nos chamam
a atenção, em função da potência do que tem ali e acho que de vários da turma e
das turmas a gente gostaria de estar por perto, então não vou dizer que eu tive
uma predileção, mas com certeza eu tinha afinidades com a Eliana, por vários
movimentos. Nós nos encontramos e eu acho até interessante falar que a
primeira coisa que me chamou atenção em Eliana, logo de imediato é, eu a
conhecia como artista, conhecia como artesã, como mulher e conhecendo ela,
sabendo dessa raiz indígena dela, eu senti uma série de potências, valores
expressados na arte e nas escolhas dela. Então assim, a luta que ela vai
empreender na pesquisa dela é um dos caminhos, porque ela também empreende
na luta em arte, né, em arte com as histórias e culturas indígenas, então tem esses
dois temas muito especiais. O meu contato com a cultura indígena tinha o
imaginário meio comum. Mas eu tive contato na Umbanda né, então nesse caso é
um outro lugar de se falar em cultura indígena. E uma coisa que eu acho que nos
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uniu também, a mim e a Eliana, foi que eu aprendi alguns cânticos e esses cânticos
são uma espécie de vibração mântrica pra nos alinhar. Eu tenho acompanhado
algumas coisas do Kaká Werá Jecupé. O Kaká é um feiticeiro, um pagé, ele faz
mantras também desde a cultura indígena, no sentido de colocar o equilíbrio, a
pessoa na terra para deixá-la mais leve. Então, quando eu estudava não tinha
como eu não reconhecer a capacidade que a Eliana tinha e uma outra coisa linda
foi o de traduzir para a ambiência acadêmica e reverter o processo histórico que
ela mesma falou. Mas assim, se no início do Brasil colônia a gente tem essa invasão
que toma os saberes indígenas pra fazer aquele teatro e doutrinar, ela usou o
Teatro aqui em formato similar à essa raiz europeia para dizer, para contar a
história dela e de muitos que fazem parte do seu campo de saber, do seu campo
de conhecimento, então com certeza eu fui bastante tocada nesse ponto aí.
Nesses itens, além da grande sabedoria que essa mulher tem de investigação,
então junta tudo né.
Mariana Caroline - Maria, como que foi pra você substituir Eliana em
Trovinhas
? Quais foram os aprendizados, as sensações e reflexões que você
carregou e carrega na sua bagagem depois desse momento?
Maria Souza
- Eu vou explicar para quem talvez não conheça,
Trovinhas e
Naftalinas
foi um espetáculo que surgiu depois da gente ter feito um projeto de
extensão chamado
Teto Comunidade
, em que cada aluno foi orientado para a
escrita de uma poesia em formato de sextilha né, uma sextilha de sete sílabas.
Cada um escreveu e o motivo (assunto/tema), era sua própria história. Então,
nesse projeto a gente fez apresentações e não tinha um fio que unisse as histórias,
cada um trazia a sua coisa e a gente brincava no meio, depois disso, por iniciativa
de minha companheira Mônica, nós complementamos essa experiência com
cordéis meus e de Mônica, e criamos o coletivo e a partir daí ele se afirmou, ele já
tinha práticas, mas ele se afirmou e fez o espetáculo
Trovinhas e Naftalinas
. Muitas
vezes nós começávamos as apresentações com quatro pessoas atuando, as vezes
com cinco, as vezes com três, e a gente se substituía e uma vez eu substituí Liu,
que é o que Mariana Caroline chamou atenção aí. Eu cantei a escrita de Liu, só que
eu começava dizendo: “uma comadre minha contava assim”, e eu fazia como
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se fosse a Eliana, era um dos cordéis que eu sabia de memória, eu gosto muito da
rítmica, ela escreveu, ela usou muito bem, né, esse elemento da cultura popular.
Quando eu vou colocar os braços, sou vestida com uma gola assim, né, porque é
para facilitar na hora de colocar o cocar, aquilo me deu um “arrupéio” e se eu tinha,
digamos, afinidade com o tema, com a experiência, com a consideração, desse
nosso passado tão presente que talvez não sustente na vida contemporânea que
são essas ligações com a natureza, inclusive os indígenas fazem essa ponte né,
nesse momento do espetáculo foi muito, sabe. Foi a macumba, né, pra dizer uma
palavra, foi um saravá, foi um
auérê
, foi uma onda. Mas eu falando isso com
uma experiência de artista que várias coisas no palco mexem com a gente, mas
ali era uma coisa que também me pedia humildade, sabe? Recebi aquela vibração
muito boa e depois continuou o Teatro né. Acho que teve um chamamento
muito especial para essa experiência, do que nos liga, do que está próximo a nós.
Então, de qualquer forma, uma coisa que chamou atenção aqui é que na época a
gente sempre fez essas trocas de “personagem” pra poder adequar à possibilidade
de as atrizes estarem ou não em cena e a gente nunca tinha pensado nisso, de
uma pessoa “se dizer” o outro. Mas esse cuidado a gente tinha, de tentar sempre
mencionar: “ahh, é uma comadre minha”. As escritas eram originais, cada uma
falando de si, então a gente tentava contemplar àquela que foi a autora do cordel
e sua própria história. Então essa experiência foi muito forte, foi bonito e confirma
cada vez mais, toda vez que a gente pensa nela. Esses dias eu assisti de novo a
peça. A importância de falar como a Eliana comentou logo no comecinho né, de
falar das mulheres de nossa família, das nossas mães, das nossas tias, ir
recuperando essa força dentro de nós, porque ela está presente.
Fabrício Carvalho - Dando sequência, eu gostaria de trazer um objetivo que
o Edimar apresenta na escrita da monografia dele, o de aproximar a
universidade e a comunidade. Como está hoje em dia na aldeia acontecendo
a continuidade de sua pesquisa? E por fim, um apoio do governo com a
comunidade nesse tempo de pandemia?
Edimar Xerente
- Temos um projeto com a UFT que se baseou nisso, de trazer um
pouco da comunidade para a universidade e trazer um pouco da universidade para
a aldeia. A comunidade, a escola em si, porque trabalhando com arte vejo que a
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cultura está sempre presente no dia a dia da aldeia, tanto na dança, no canto e
principalmente nas crianças. E esse projeto trouxe essa dimensão de ver a escola
não com outro olhar, mas com a oportunidade de alcançar e trazer muitos alunos
para esse projeto, participando dessa integração com a aldeia. A gente trabalhou
muito, temos até livro feito junto com a comunidade trazendo inclusive as noções
do Teatro para a aldeia, e a gente trabalhou bastante, a comunidade entendeu o
trabalho. No dia a dia na escola os professores participaram bastante. E assim,
quando eu comecei a falar no início a respeito do trazer, integrar a comunidade
com a questão da universidade, isso surgiu no primeiro momento quando eu
estava passando dificuldades. Isso no final da monografia foi realizado, trazer
alguns pontos positivos da universidade para a comunidade e quando a gente sai
da universidade, sai pensando no futuro, em quem vai vir para a universidade, para
essas pessoas não passarem o que passamos. E tivemos melhoras, muitas
melhoras na recepção do aluno indígena. que sempre existe a transição, a
dificuldade está em se manter na universidade, e respondendo à pergunta: nesse
tempo, o projeto tem nos ajudado sim, de muitas formas na educação indígena,
nesse livro mesmo que citei, na alimentação também, o apoio em si, eu falo só da
UFT mesmo. Mas assim, de outros, como o governo em si, eu não tenho muito a
falar pra vocês, porque não é que nesse tempo a comunidade está largada, a
realidade está na aldeia, está no lugar, a gente sabe o que passamos e o que
estamos enfrentando nesse tempo de pandemia, tanto na questão da educação,
da saúde, e outras demais faltas. Mas na questão de trazer mesmo, tem essa
questão do projeto né, que ampliou mais a visão da comunidade em participar
mais da educação em si, e é isso.
Fabrício Carvalho
- Obrigado Edimar. Gostaria de chamar para a roda a
Karylleila e saber como foi o processo de orientação de sua pesquisa.
Karylleila Andrade
- Boa noite a todos e todas, eu sou Karylleila Andrade. Então,
falar do Edimar é tudo de bom né, mas antes de falar do Edimar é bom situar as
pessoas que não são da UFT quanto à política de cotas aqui na universidade. A
política de cotas para os povos indígenas é de 2004, foi uma das primeiras
universidades do Brasil a aprovar uma política de cotas, de entrada. É bom frisar
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isso, porque o problema hoje não é a política de entrada, mas é a política de
permanência, então isso realmente tem sido um problema muito difícil de lidar.
Aqui no Tocantins nós temos uma população indígena que com todos os
perrengues está crescendo demograficamente, hoje no Brasil a gente tem em
torno, pelo menos nos dados do IBGE de 2010, de mais de 900 mil indígenas que
se auto identificaram indígenas e cerca de 300 povos indígenas, mais de 200
línguas e naturalmente somos um país pluricultural. Acho que isso é um fato né,
então daí a gente precisa pensar numa universidade plural, diversa e pública de
qualidade, mas isso não garante, o discurso não garante. Essa política de
entrada na UFT, ela garantiu, como o próprio nome diz, a política de entrada né,
então nós temos muitos alunos indígenas e muitos deles com uma história de vida
parecida com a do Edimar. E eu acho que a gente precisa ter clareza de que
uma diferença, principalmente da entrada, do aluno que se auto identifica indígena
e que tem a língua indígena, a língua materna como sua primeira língua. Eu acho
que isso é um diferencial muito grande. O Edimar teve suas dificuldades,
principalmente por ter a língua materna, o Akuem, que é como os Xerente se
autodenominam. A gente tem aqui no Tocantins, povos Krahô, Xerente, Karajá,
Javaé, Xambioá, e temos os Apinajé. Então a gente tem povos do tronco Macro-jê
que é um tronco de línguas muito próximas e essas línguas estão concentradas
mais no centro, centro norte do país e no Sul. Então a gente tem uma grande
quantidade de povos indígenas do tronco Macro-jê. Na UFT, hoje, o grande dilema
de uma política para os povos, para os alunos indígenas é de fato a permanência.
Ainda mais agora que os recursos destinados do governo federal para os alunos
de uma forma geral e os alunos vulneráveis vêm sofrendo com os cortes, todos
os anos, cortes e ameaças. Então de fato hoje, a dificuldade desse aluno não é
entrar, é uma dificuldade, mas a dificuldade em si não é uma dificuldade de
entrada, ela foi facilitada obviamente pelas políticas afirmativas, então houve de
fato um avanço com as políticas afirmativas, as políticas de inclusão. O problema
não é incluir, o problema é permanecer, e a gente tem grande evasão e desistência.
E de fato, o Edimar como bem colocou, ele teve realmente muitas dificuldades. E
olha que ele não falou aqui tudo o que ele viveu no primeiro período, realmente
foram muitas dificuldades, Edimar?! De dormir na universidade, de não ter para
onde ir, de ficar com a mesma roupa, então ele sofreu muito e o porto seguro
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passa a ser a comunidade, a comunidade é que é o calor, o que aquece, o que dá
vida. A evasão está no curso de Teatro, no curso de Filosofia, em todos os cursos
da universidade. Então para uma política de permanência é preciso que todas as
universidades do Brasil de fato repensem uma política de permanência e hoje cada
vez mais a dificuldade é fazer com que esse aluno permaneça. Um aluno que
desiste da universidade porque ele não tem condições de se alimentar, condições
de transporte, condições de moradia, condições até mesmo de apoio psicológico,
porque o choque cultural é muito grande, principalmente para aquele aluno
aldeado que tem pouco contato, por exemplo, com a segunda língua, no caso, a
língua portuguesa, com o desenvolvimento dessa habilidade, da leitura e da escrita,
e isso passa a ser um problema muito sério para os alunos. E a gente tem aqui
estudos na UFT, principalmente com os alunos de algumas áreas, as áreas das
exatas, por exemplo. Isso não é um problema dos alunos indígenas, é um problema
que as vezes não está no aluno, está no professor de reconhecer, por exemplo, a
diversidade social, a diversidade linguística e a diversidade cultural. Hoje a gente
tem que pensar que as vezes é muito fácil colocar a culpa no aluno e dizer que o
aluno não sabe, que o aluno não entende, e as vezes o que a gente percebe são
professores doutores que não têm um mínimo de respeito com a diversidade. Isso
não é nada novo, por exemplo, que a gente tenha professores na área de medicina
que dizem claramente e defendem que o aluno indígena tem menos capacidade
cognitiva de estar num curso de medicina. Isso a gente vê, ouve e se arrepia. Você
ouve determinados estigmas dos próprios professores, e a gente pensa: e os
alunos né, como ficam os alunos? De qualquer forma, eu acho que, estendendo
isso além dos muros da universidade é o debate, a gente precisa é do debate, é
necessário. Então, quando eu conversava com o Edimar eu dizia: “olha, você
precisa se portar com a sua língua. Se você tem dificuldades com a língua
portuguesa, é porque você tem dificuldades com a segunda língua”. Eu, por
exemplo, quando nós fomos à comunidade Riozinho, ficamos uma tarde
aprendendo o Akuem. E aí a gente percebe que não é assim né, é uma língua, com
toda sua estrutura, que tem toda a sua complexidade. Sentar-se na cadeira e os
alunos e professores indígenas ensinarem pra gente o Akuem foi uma experiência
magnifica. E a gente percebe que teria que viver um bom tempo na comunidade
para aprender bem né. Em alguns momentos eu dizia: “olha, vamos imaginar um
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alemão, um americano, um inglês aqui que não sabe português, como seria o
nosso comportamento com um aluno que veio da Alemanha, que veio da
Inglaterra, que veio estudar Teatro aqui com vocês? Qual seria o comportamento?
Como é que vocês enxergam?”. E claramente a gente percebe um
comportamento eurocêntrico, etnocêntrico. Eu acho que o movimento é o diálogo
permanente, deslocar os alunos para a comunidade foi antes de tudo um
movimento de ruptura. Você precisa olhar para além das janelas da universidade
e quando a gente vai com o pezinho no chão e e sente a terra, esse outro
momento, esse outro movimento, essa outra vida que não é a nossa vida, mas é
a vida do outro, a gente conhece o outro a partir do outro. E é aí que a gente tem
rupturas. Eu acho que isso é necessário. E que eu falava para o Edimar que
aprendemos muito, foi o primeiro TCC a ser (e isso foi uma ideia dele) defendido
na comunidade indígena, no caso de Edimar, na comunidade Xerente, na aldeia
Riozinho. Foi uma experiência fantástica, toda a comunidade parou para assistir,
uma parte do texto foi em Akuem, então mobilizou a todos. Todos estavam ali,
todos os professores, então foi uma experiência fantástica. Aqui na UFT, tanto no
mestrado e no doutorado onde eu trabalho, a depender da situação, dependendo
da disponibilidade, os trabalhos voltados para a temática indígena são defendidos
nas comunidades indígenas. E eu acho que assim, ter provocado o Edimar na
quebra do seu silenciamento, porque ele se auto silenciava, e não esse auto
silenciamento, a partir do outro também que não conseguia perceber esse sujeito,
que tinha uma cultura diferente, uma língua diferente, uma visão de mundo
diferente e que o mais importante daquilo seriam as trocas, que são fundamentais
na vida de qualquer ser humano. Eu mais provoquei o Edimar, eu lembro quando
nós estávamos na escrita do texto, eu me lembro que chegou um dia e eu dei
vários textos para ele ler, ele leu, e trouxe um texto, e eu olhei e disse: “cadê o
Edimar? Cadê o Edimar, eu não estou enxergando o Edimar”. Isso aqui fulano disse,
isso aqui ciclano disse em uma visão colonizadora, e eu percebi que o Edimar
caminhava para uma visão colonizadora, e eu disse: “espera aí, vamos aquietar
aqui a nossa mente, eu queria que você voltasse e você enxergasse isso a partir
da sua visão de mundo, esquece todo esse povo aqui”. E eu acho que foi aí que o
texto começou a fluir, foi que o Edimar começou a fluir em relação a essa
escrita, e ele começou a se empoderar. Quando a gente percebeu, ele estava
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Eliana Silva Santos Pataxó e Edimar Srenokra Xerente
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grande e hoje quando a gente olha para as políticas públicas, eu percebo no Edimar
aquilo que se confirma quando você tem oportunidade, então essa oportunidade
de você entrar na universidade, com todos os desafios, com todos os problemas
que ele enfrentou, e não foram poucos, foram muitos, ele se empoderou, tanto é
que ele volta para a comunidade e nessa comunidade você percebe mudanças,
mudanças no seu entorno, você provoca mudanças. E nós tivemos a ideia de
pensar em um projeto, passou por um projeto de doutoramento, agora de pós-
doutoramento também, que é a produção de materiais didáticos, mas não a partir
de uma visão colonizadora, mas sim, a partir de uma visão descolonizadora. E aí,
nós da universidade e o Edimar que é egresso, a gente começa a pensar o seguinte,
que nós podemos apenas ser indutores. Então a gente vai lá, a gente provoca,
começa, digamos assim, a balançar um pouco algumas questões mais
pragmáticas de estrutura mesmo do projeto pedagógico, mas os atores são eles
né, os responsáveis são eles. Então a gente orienta, nós somos muito mais os
facilitadores, e aí as rodas de conversa foram fundamentais. A gente percebe que
os materiais didáticos que os professores e alunos produziram são méritos deles,
não tenho dúvida. Nós começamos a organizar, porque a lógica do tempo e a lógica
do espaço também são diferentes, nós temos uma lógica temporal, uma lógica
espacial, digamos assim, mais capitalista, mais mercantilista, mais pragmática,
mais cartesiana, e quando você vai pra comunidade você tem que dar um clique,
aqui é um outro tempo, é um outro espaço, é uma outra cultura, então isso tem
um movimento também de desconstrução, e eu acho que é um grande ganho pra
gente, eu sempre digo: “eu ganho mais quando eu vou, do que quando eu penso
que eles estão ganhando”. Somos nós que estamos ganhando e nós que estamos
nos modificando. Então, assim, foi uma experiência fantástica, não tenho dúvidas
desse empoderamento do Edimar e a mudança na comunidade é perceptível e a
gente quer continuar junto com eles trabalhando. A professora Adriana está
trabalhando a questão das músicas, a transcrição das partituras. A Adriana está
aqui? Ô Adriana, que coisa boa, estou falando de você, né? Então o trabalho da
Adriana é um trabalho que infelizmente não será feito da forma como nós
pensamos que seria uma pesquisa dentro da comunidade junto com os
professores, estendendo isso para os mitos, para os cantos, enfim, então a gente
tem uma trajetória grande. O curso de Teatro tem muito a colaborar, e em
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muitas áreas, não só nas disciplinas de artes, mas em todas as áreas. Então esse
é nosso desejo, que a Comunidade Riozinho continue nos recebendo. É importante
dizer, que é uma comunidade invisível, porque nós temos no Tocantins as
comunidades tanto tradicionais remanescentes e quilombolas quanto as
comunidades indígenas, aquelas que a gente chama de visíveis e invisíveis. Então
a gente tem aquelas comunidades que o poder público uma atenção, maior
visibilidade. Então é aquela que o governo quando quer levar alguém, leva para
aquela comunidade, então ela tem mais assistência. Quando a gente pensa em
assistência, é assistência à saúde, assistência à moradia, política pública na
educação. E a comunidade Riozinho é uma comunidade que fica distante, ela fica
um pouco à margem dessa visibilidade. É uma comunidade que não está tão
próxima da capital como outras comunidades, então essa invisibilidade faz com
que essa comunidade tenha mais dificuldades. As vezes a assistência do poder
público demora a chegar, e isso faz com que o trabalho do Edimar, agora na
direção da escola, se torne ainda mais importante. Acho que esse empoderamento
dele modificou as práticas, não só as práticas voltadas ao ensino das artes, mas a
prática pedagógica da escola. E dizer que é muito legal que as crianças estão muito
orgulhosas do Edimar e isso é uma satisfação muito grande. O sonho de entrar na
universidade, de se ver modificado, de modificar o seu entorno. A gente percebe
que o Edimar passou a ser uma referência e isso faz também com que ele tenha
mais responsabilidade. Então é isso pessoal, é isso, obrigado.
Ana Carolina Abreu - Obrigada Karylleila! Agora eu acho que ainda tempo
né Juliano, do público fazer perguntas.
Juliano Sampaio
-
Eu anotei as perguntas que foram aparecendo. A primeira
é da Joana Abreu, professora da Universidade de Goiás (UFG), ela fez uma
pergunta direcionada pra Liu, e eu tô redirecionando também para o Edimar,
sobre os currículos do curso de Teatro estarem majoritariamente voltados
para uma perspectiva eurocêntrica e colonizada. O Edimar e a Karylleila
falaram bastante sobre isso no processo, a Liu até exemplificou sobre o tema,
mas acho legal a gente falar um pouco mais sobre isso, como é essa
experiência. Acho que para ir um passo adiante que é dizer como vocês
que passaram pelo curso veem a diferença, porque o curso mudou
também com a presença de vocês, me parece nos dois casos né?! Então isso
é legal a gente entender o que mudou.
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Eliana Silva Santos Pataxó e Edimar Srenokra Xerente
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Eliana Pataxó
- Então, a grade curricular do curso de Teatro quando eu entrei,
realmente eu percebi que não tinha nada voltado para a cultura indígena, isso
estava claro. A única disciplina que ainda se ouvia falar era a de Antropologia, tanto
que eu participei de um seminário com a professora Sônia Matos que dava a aula
de Antropologia, creio que foi no primeiro semestre ou no segundo, não me
recordo bem. Eu participei e outras colegas, a partir dali eu também percebi que
a arte existe nos povos indígenas, era algo que eu poderia estar levando para
dentro da disciplina no meu contexto indígena, no meu conceito de vivência e de
história. Poxa, eu estou no curso de Teatro, eu vejo a minha cultura muito rica em
artes, então por que não levar um pouco dessa riqueza artística e cultural para
dentro das disciplinas? Então quando eu percebi, quando o meu professor cantava
em círculo e balançava o
maracá
e cantava os mantras pra mim, foi uma força
muito grande, logo nos primeiros dias eu fui recebida com um canto indígena e eu
confesso que no começo eu mesma tive um pouco de rejeição, eu falei assim: “eu
vou ficar no meu canto, eu não vou aparecer muito, eu vou ficar quietinha porque
aqui a coisa é diferente”. Mas é aquela questão, ou eu me assumia ou eu pulava
fora, então a partir do momento em que criávamos textos dramáticos,
dramaturgias, quando se falava da história da arte, eu sempre buscava alguma
referência na cultura indígena. Eu acho que isso fez com que o curso pensasse em
algo voltado para esses novos que estavam chegando, porque o currículo, a grade
curricular da UESB, eu não falo nem no curso de Teatro, mas na Pedagogia e
outros, não se falava muito sobre as histórias e culturas indígenas, creio que por
agora deve ter mudado um pouco né, creio que sim, porque nós temos vários
indígenas da etnia Atikum e Pankará também dentro da UESB em cursos de
Odontologia, Farmácia, creio que agora deve ter mudado um pouco. Acredito
que essa chegada da minha pessoa como indígena, trouxe sim uma mudança na
UESB e na grade curricular. Pra mim é fantástico estar sendo convidada pela
professora Ana Carolina Abreu do curso de Teatro.
Edimar Xerente
- Então, sobre a grade curricular pra mim foi totalmente diferente,
no sentido da dificuldade, porque quando eu entrei eu não fazia ideia do que ia
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enfrentar nas disciplinas, tanto é que eu fui aprendendo aos poucos, o primeiro, o
segundo período, foram muito difíceis. Era como se fosse em branco mesmo e
como citei o que me tocou foi a disciplina de Antropologia e Matrizes Culturais da
Amazônia. Quando eu falei que queria desistir, foi porque eu não compreendia as
disciplinas, eu pensava: “eu não vou dar conta de seguir com as disciplinas”, então
veio à tona o desistir ou o ficar, mas quando os professores me acolheram, me
ajudaram a entender a cultura e a disciplina, é como a colega falou, foi com a ajuda
dos professores. Eu comecei a dançar nas disciplinas, eu comecei a falar mais, eu
perdi a vergonha de me apresentar, porque como você falou, são currículos
variados né, e no campo das apresentações cênicas eu tentava entender, porque
eu já não falava muito, então pra eu estar na frente eu tinha que falar para mim
mesmo “tem que deixar a vergonha, o medo de lado”, tanto que quando os colegas
falavam: “daqui pra frente vai ter disciplina de Teatro”, então eu pensei que
não ia dar conta de falar e apresentar ao mesmo tempo e dançar, mas quando eu
falei para mim mesmo que eu ia seguir né, eu perdi o medo. Os professores e
professoras de muitas formas me ajudaram a manter o ritmo, tanto na dança,
como na fala, me incentivaram a não ter medo, a não ter vergonha. Como a colega
falou, temos a nossa cultura e os professores me proporcionaram vários modos
de apresentar, por exemplo, eu me apresentava pintado, com o cocar, assim eu
me sentia mais tranquilo. Uma vez eu apresentei na língua Akuem e minha colega
traduziu pra mim. Então todos foram me acolhendo, eu me sentia tranquilo, eu
senti que os colegas compreendiam minha dificuldade e os professores também.
Mas no começo eu não entendia os conteúdos, as metodologias das disciplinas e
ficava mesmo perdido, mas a partir do terceiro, quarto semestre, aos poucos fui
perdendo o medo e seguindo até o final do curso.
Ana Carolina Abreu
- Eu tive a honra de ter a participação especial do Edimar em
uma das minhas aulas, quando eu fui professora substituta na UFT. O grupo do
Fabrício, que está aqui fazendo perguntas para o Edimar, o convidou para estar
em uma das aulas. Tratava-se da criação de planos de aula voltadas para as
histórias e culturas indígenas dos povos do Tocantins. A equipe fez um recorte nas
corridas de tora e o que elas poderiam revelar sobre a cultura e a atual luta social
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Xerente. A equipe do Fabrício mediou um jogo de aquecimento criado por eles
onde o nosso corpo deveria imaginar e expressar o peso de diferentes toras.
Depois realizaram uma corrida em duplas, onde a tora seria o corpo do colega, nos
revezamos brincando e carregando estes corpos-tora. Na sequência o grupo
chamou o Edimar para falar sobre os exercícios e sobre a importância e os
significados da corrida de tora entre os Xerente. A primeira coisa que ele fez foi
dizer: “vamos para fora da sala”. Aquela ação nos deixou arrepiados. Fomos para
fora da sala, Edimar ficou procurando uma tora, achou um pedaço de madeira e
improvisou com ele. Sem dizer nada, emanando um cântico realizou os
movimentos com o seu corpo e nós o seguimos com os nossos corpos. Depois,
sentindo as ressonâncias daquela experiência, voltamos para a sala e
conversamos. Foi muito importante vivenciar essa troca, nos movimentar e ouvir
seus conhecimentos, suas experiências Edimar, muito obrigada!
Juliano Sampaio
- Bom, acho que é importante essa coisa do currículo e da ação
né, como essas duas, que são na verdade estruturas que a universidade mantém,
porque ela se organiza como uma estrutura hoje né, ela perdeu a característica de
ação, que vai se descobrindo no fazer, enfim, virou uma estrutura que você segue,
como uma receita pronta. Acho importante pensar não que o currículo
engessou, mas como é possível tornar o currículo acessível às pessoas, aos
estudantes, às estudantes que estão ali. Eu digo isso, por exemplo, porque eu
trabalhei com o Edimar na graduação, no quarto semestre. A gente estava com
uma disciplina de estudos corporais, recebia um outro nome, mas era isso, e toda
a ideia de presença que o teatro ocidental fica quebrando a cabeça para ver como
é que constrói, bastava ele entrar na sala que estava ali a presença inteira, e não
adiantava chegar para os estudantes e dizer: “olhem para o Edimar, ele é a noção
de presença que a gente estudando ali”, porque é uma experiência de vida, e
para ele não adiantava muito, porque a presença que ele tem, não é a presença
que a gente busca, a forma é que se encontra entre o que a gente busca e o que
ele apresenta, são caminhos muito diferentes para isso. Então acho que o currículo
exige que eu apresente uma série de coisas, mas ele também se tornou uma ação
estruturada, que a gente não consegue mais, que algumas pessoas sequer olhem
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para isso, infelizmente. Elas acham que as aulas estão muito bem resolvidas e que
se elas trocarem o tema, ou seja, entrou tema, entrou conteúdo, entrou a forma,
entrou alguma coisa que fale sobre indígena, e tá resolvido, não está resolvido, na
verdade tá camuflado, o que é mais perigoso, porque serve a um discurso político
que pode dizer: não, mas está acontecendo, nós garantimos nos currículos tantas
horas relacionadas à, e a universidade vai e descreve que ela tá cumprindo as
tantas horas. A Karylleila disse que tem uma política de ingresso, mas e aí, entrou
faz o que? Então as vezes uma série de coisas que a gente também, na própria
militância e em todos os aspectos dela, não percebe que a gente constrói
discursos perigosos para quem não tá com boas intenções em relação aos temas
que a gente trabalhando, mesmo que pra gente sejam essenciais e muito
importantes né. Essa inversão que surge de uma ideia da Ana Carolina, a partir do
dossiê que a gente lançou na revista, para a realização deste seminário pra mim é
fundamental, quer dizer, que as nossas curiosidades também possam ser sanadas
pelas próprias pessoas e não por alguém que está falando em nome das pessoas,
quaisquer que sejam elas. E aí, pra encerrar essa rodada de perguntas, pelo nosso
horário, eu queria saber de você Eliana e do Edimar, o que que a gente precisa
ouvir de vocês sobre ensino de Teatro, que a gente ainda não ouviu.
Eliana Pataxó
- Eu penso que os professores de Teatro, do ensino de Teatro,
deveriam conhecer, quem não conhece, conhecer um pouco da presença da
cultura indígena dentro das aldeias. Eu creio que vocês aprenderiam muito sobre
arte, sobre teatro, mais do que vocês sabem. Como eu venho dizendo, os povos
indígenas carregam uma arte, eu vou dizer, completa, se você observar um ritual,
ali tem uma dança dramática, ali tem uma história contada no corpo, ali tem a
vestimenta, a indumentária dos indígenas que carregam os seus sinais, os seus
símbolos, a sua maquiagem no corpo, que são os seus traços referentes a sua
cultura, a sua afirmação. Então se vocês fazem uma visita dentro de uma aldeia e
vão pra dentro de um auê ou de um toré, vocês vão sentir na alma, no corpo, essa
força maior pra pensar como trabalhar a cultura indígena ou qualquer outra cultura
dentro das disciplinas de Teatro, eu acho que até pra pensar como montar a grade
curricular, algo diferente realmente sobre a temática indígena, vivenciada dentro
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de vocês, eu acho que isso seria muito importante. Como eu penso na educação,
nas escolas não indígenas, como trabalhar as histórias e culturas indígenas
também para eles isso ser importante, não no curso de Teatro, mas também
em outros cursos. Sentir, viver, pisar naquela terra, ouvir os mais velhos, os livros
abertos, eu acho que vocês ajudariam muito ao trazer à tona, ao vivenciar isso
dentro do curso de Teatro, isso seria muito bom, é isso.
Edimar Xerente
- Então, só para complementar a fala, foi muito importante o que
ela falou. Na universidade os professores em si, tinham que ter essa troca. Os
professores que vivenciam alguns momentos na comunidade devem ter sentido
esses movimentos da dança, da cultura, da pintura, dos cânticos e isso se torna
muito importe para nós, enquanto indígenas. E essa troca de experiência você
o valor da cultura indígena que em muitos aspectos se inserem na arte, tanto nos
artesanatos, tem muitos artesanatos e diversos modos de fazer, como o tanque
de buriti, de capim dourado, de pau-Brasil. E é como ela falou, acho que a
universidade deveria ver isso né, ver o lado do indígena pra trazer essa experiência
pra dentro da universidade, e a partir disso ganhar vida dentro da universidade. E
é como vocês falaram agora, isso seria como se fosse um espelho pra mim, porque
a todo momento quando me propuseram a fazer as coisas nas disciplinas, eu
tentava me descobrir, tentava descobrir meu corpo, eu mesmo né, a disciplina e
eu. Então, eu tentava ao máximo permanecer na disciplina, tentando seguir, mas
é isso, a colega aí falou tudo e a minha fala é só isso mesmo.
Juliano Sampaio
- Muito obrigado, agradeço muito, muito mesmo a fala de vocês.
Ana Carolina, pode encaminhar para os encerramentos.
Ana Carolina Abreu
- Infelizmente é hora da gente se despedir. Como eu falei no
começo, o nosso desejo com esse encontro é que a gente possa ser ponte,
partilha, para que este seja um espaço de celebração e provocação. Que a gente
saia daqui voando, vagalumeando nossas danças erráticas e errantes,
descolonizando não apenas os nossos pensamentos, mas nossos movimentos,
corpos e a língua com que nomeamos o mundo. Que as nossas micropolíticas,
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nossos lampejos arruaceiros façam presença nas disciplinas que mediamos e nas
nossas relações arte-vida. Subversivos que a gente continue remexendo os lugares
por onde passamos. Agradeço a todas, todos e todes, vou enviar para vocês, as
monografias de Eliana e de Edimar e abro espaço agora para os recadinhos finais.
Eliana Pataxó
- Eu quero deixar meu grande auê e meu grande obrigado a todos,
auê patxôhã
. Agradeço o convite, foi maravilhoso estar com vocês, encontrar
vocês, rever vocês, falar da cultura indígena, falar do processo de criação do meu
TCC e do espetáculo
Trovinhas
. Mesmo estando longe de casa, mesmo passando
pela dificuldade que for, não tem país igual ao Brasil, não tem. Eu amo demais a
minha terra, as minhas raízes, estou aqui para aprender também com outras
culturas e valorizar ainda mais as minhas raízes, e sou grata por vocês, pelas raízes
e por lembrarem da minha, muito obrigada Maria, Ana Carolina, Juliano, Daniel
Marques, a todos vocês, Edimar Xerente estamos juntos, longe, mas a nossa força
é uma só, muito obrigada a todos.
Auê
.
Edimar Xerente
- Obrigado você, quero agradecer também a Ana Carolina, ao
professor Juliano, foi bom compartilhar o que a gente passou né. Espero poder ter
contribuído, em especial quero agradecer a minha orientadora, sempre agradeço
a ela, pois ela aceitou o desafio enorme comigo e lutou muito e sempre falo pra
ela que foi muito bom trabalhar com ela e ter essa experiência e principalmente
por ela ter me ajudado imensamente e incansavelmente e é isso né, estamos na
luta, resistiremos. Vamos trazer essas questões das culturas, das identidades, das
vivências diárias da comunidade. Estaremos por aí, agradeço a todos os
participantes. É isso, muito obrigado.
Juliano Sampaio
- Tenho pensado cada vez mais, o que eu entendo como ensino
e para que serve isso. E uma das coisas que me movimenta atualmente é pensar
que, ensinar é devolver a pessoa para ela mesma e em tudo que isso significa e
na medida em que a gente ensina, a gente é ensinado, e, portanto, eu também vou
sendo devolvido para mim mesmo na medida em que ensino. Então, acho que
encontros como o de hoje, quando eu ouço você dizendo coisas como “eu precisei
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me entender como eu sou na minha graduação”, o Edimar falando “eu preciso me
firmar na minha cultura pra continuar nesse curso”, é quase como um gozo
mesmo, de falar caramba, parece que faz sentido o que eu pensando, porque
para as pessoas, nesse momento mais importante é o que fez sentido, então eu
também fico bem feliz de poder ouvir vocês e reverberar em mim outros caminhos
que não é o caminho de uma pessoa indígena, mas é o caminho de uma pessoa
que está cruzando com outras pessoas o tempo inteiro e pensando isso. Eu sou
muito grato por esse momento, por conseguir de alguma forma usar os privilégios
que a gente tem para abrir caminhos, dos mais diversos que a gente possa, e que
a gente faça isso cada vez mais. Então, muito obrigado mesmo.
Maria Souza
- Eu também quero agradecer. Eu quero dizer que eu vejo cada
vez mais que diálogo é luta e que conhecimento é luta, que não se faz política sem
conhecimento e sem diálogo, e isso foi pleno hoje e eu tô muito feliz, muito feliz.
Fabrício Carvalho
- Muito muito obrigado, eu falei para a Ana Carolina desde o
convite o quanto eu estava agraciado mesmo com essa participação, muito
obrigado Edimar e Liu. Muito obrigado pela contribuição, pela participação e legal
o Juliano ter mencionado isso, eu acredito que eu fui devolvido a uma parte de
mim agora com as vivências na graduação e a partir de agora também, desse
momento, então sou muito grato e vamos continuar, vamos perseguir esses
objetivos. Obrigado a todos e um beijão.
Iure Nascimento
- Então eu quero agradecer a todos os professores, quero
agradecer principalmente o convite de Ana Carolina. Foi um dia muito especial
para mim essa noite, essa partilha, esse encontro, essas encruzilhadas, esses
saberes e fica meu agradecimento também para a Edimar e para Liu, foi um prazer
ler seu TCC, tão poético e tão sensível, gratidão.
Mariana Caroline
- Eu sou muito grata desde o convite de Ana Carolina.
Quando ela explicou, eu achei incrível, e achei mais incrível ainda falar de alguém
que faz parte assim da minha caminhada, como pessoa e como estudante de
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licenciatura e como artista, que é Liu. Muito obrigada, foi muito potente e
necessário fazer essa leitura. Foi muito necessário estarmos aqui hoje em meio a
tantas turbulências, tantos problemas que nós passamos e que outras pessoas
passam, estar aqui foi uma honra, eu agradeço muito. Quanto mais a gente
compartilha mais a gente aprende. Muito obrigada.
Ana Carolina Abreu
- Muito obrigada!!!
Recebido em: 15/01/2022
Aprovado em: 30/01/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br