1
Entre a atriz e a performer: a visibilidade
feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos)
Isabela Augusto Rosa
Para citar este artigo:
ZÁPHAS, Ronaldo; ROSA, Isabela Augusto. Entre a atriz e
a performer: a visibilidade feminina construindo um
corpo em arte.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0106
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
2
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em
arte
1
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos)
2
Isabela Augusto Rosa
3
Resumo
Este artigo tem o interesse de compreender como pode acontecer a construção de
um corpo em arte, nos possíveis limites entre uma atuação teatral e uma ação
performática. Limita-se a explorar essa temática através de algumas vozes
femininas inseridas no campo teatral e performático. O principal foco
na investigação desses materiais se deu pela observação do trabalho corporal de
mulheres, a partir de seus corpos em cena, objetivando uma visibilidade feminina e
suas questões. Assim, usa-se como materiais de análise a peça
Tem alguém que
nos odeia
que engloba a representatividade lesbo-feminina , e a performance
intitulada
6 minutos
, que trata de questões a respeito do aborto.
Palavras-chaves
: Atuação teatral. Ação performativa. Visibilidade feminina.
Between the actress and the performer: female visibility building a body in art
Abstract
This article intend to understand how can occur the construction of a body in art, in
the possible limits between a theatrical performance and a performative action. It
limits to explore this questioning through some female voices inserted in the
theatrical and performative field. The main focus in the investigation of these
materials was the observation of women's body work, from their bodies on stage,
aiming to a female visibility and their questions. Thus, were used as materials for
analysis the piece “Tem alguém que nos odeia” that encompasses lesbo-female
representation and the performance entitled “6 minutos” which deals with
questions about abortion.
Keywords
: Theatrical performance. Performative action. Women's visibility.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Rony Farto Pereira, Mestre (1983) e Doutor em Letras
(1991) pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" UNESP, campus de Assis-SP.
ronyfarto@gmail.com.
2
Doutorando em Artes da Cena e Mestre em Artes da Cena (2017), ambos pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Especialização em Gestão e Políticas Culturais (2011) pela Escola Itaú
Cultural/Universidade de Girona/Espanha. Licenciando em Teatro pela Mozarteum. Licenciando em Arte pela
FAAL. Graduado em Artes Cênicas (UNICAMP). ronaldozaphas@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2870830100319239 https://orcid.org/0000-0002-0469-7269
3
Bacharela em Teatro pelo Centro Universitário Sagrado Coração (UNISAGRADO 2019). Educadora Social
com ênfase em Teatro, na instituição SORRI - Bauru (2022). Produtora Cultural na Aflorar Cultura (2021) e
Diretora Teatral no Lar Santa Luzia para Cegos (2019). isaarosa14@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8135306775195004 https://orcid.org/0000-0002-3695-1591.
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
3
Entre la actriz y la performer: la visibilidad femenina construyendo un cuerpo
en el arte
Resumen
Este artículo se interesa por comprender cómo puede ocurrir la construcción
de un cuerpo en el arte, en los posibles límites entre una representación
teatral y una acción performativa. Se limita a explorar este tema a través de
algunas voces femeninas insertas en el campo teatral y performativo. El foco
principal en la investigación de estos materiales fue la observación del trabajo
corporal de las mujeres, a partir de sus cuerpos en el escenario, con el
objetivo de una visibilidad femenina y sus preguntas. Así, se utiliza como
materiales de análisis la obra de teatro
Tem alguém que nos odeia
que
engloba la representación lésbico-femenina y la performance
6 minutos
,
que trata cuestiones relativas al aborto.
Palabras clave
: Representación teatral. Acción performativa. Visibilidad
femenina.
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
4
Possíveis limites entre a atuação teatral e a ação performática
Interessa-nos compreender como se dá a construção do corpo, nos possíveis
limites entre a atuação teatral e a ação performática. Como esse é um assunto
extenso, delimitamos nossa perspectiva, usando como norte o olhar das mulheres
que ocupam o centro da cena, por meio de duas obras: a performance intitulada
6 minutos
, de Camila Bacellar, e a peça
Tem alguém que nos odeia
, da Cia.
TeatroEnlatado, com as atrizes Maíra de Grandi e Mariana Mantovani.
Nós nos limitamos a explorar esses questionamentos a partir do pequeno
recorte que discutiremos aqui, qual seja, a pluralidade de vozes das mulheres que
estão inseridas no campo teatral e performático. Acreditamos na importância de
promover, incentivar e dar visibilidade ao trabalho de outras pessoas, além de
homens cisgêneros. E, por tal fato, quando existir uma flexão nominal de gênero,
preferimos adotar a desinência “a”, ou seja, no feminino. Fugindo das regras de
concordância tradicionais, nas quais a generalização é sempre escrita no
masculino, buscamos a desconstrução normativa do vocabulário. Isso não impede
que o leitor, que se identifica como homem, faça a transcrição da palavra para seu
gênero; exemplo: ao ler “atriz”, entendê-la para si como “ator”. Assim também
sendo para quem não se identifica dentro de nenhuma categoria de gênero binário,
pode entendê-la para si, na forma neutra da escrita. Esse aspecto é relevante,
neste estudo, uma vez que tal exercício intenta questionar o império do
patriarcado no campo discursivo e lançar foco a outras vozes.
Em nossa sociedade, por conta da estrutura patriarcal em que vivemos,
a exclusão feminina não é um fenômeno regional ou atual, mas uma
prática consagrada durante séculos, fundamentada apenas em crenças
ou opiniões que nada tem de científico ou razoável, mas sim escoradas
na opressão e no desejo de controle de um gênero por outro, ou seja, das
mulheres pelos homens. Entender e explicitar as vertentes dessa
opressão é conscientizar homens e mulheres hodiernos a combater e
renegar uma tradição perversa que continua a fazer vítimas e oprimidas
entre muitas populações desse mundo pretensamente globalizado (Trigo,
2015, p.37).
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
5
Isso posto, era nosso desejo escolher duas referências para utilizar como
objeto de estudo: uma do campo teatral e outra da performance. Por que, então,
não ocupar esse espaço com exemplo de atrizes, ao invés de atores?
O principal foco na busca por esses materiais se deu pela observação do
trabalho corporal das atrizes, em função de seus corpos em cena. Não menos
importante, o tema dos trabalhos foi fortemente considerado, até mesmo para
que houvesse um alinhamento, o qual, de fato, dialogasse com o desejo de
visibilidade feminina. Assim, selecionamos a peça
Tem alguém que nos odeia
4
que focaliza a representatividade lesbo-feminina, e a performance intitulada
6
minutos
5
, que trata de questões a respeito do aborto.
Tem alguém que nos odeia
A peça é protagonizada pelas atrizes Mariana Mantovani e Maíra de Grandi, com
o texto e direção de Michelle Ferreira.
A história que o espetáculo conta é de duas mulheres, um casal lésbico,
onde uma delas é brasileira e a outra é estrangeira. Elas se conhecem no
exterior e decidem vir morar no Brasil, no apartamento do avô da Maria,
que é brasileira. A peça é um
thriller,
um suspense, um terror psicológico...
Elas começam a sofrer ataques homofóbicos e isso vai transformando
tanto a relação delas quanto as personagens mesmo. Esse seria o mote
da peça, a temática da homofobia contra um casal de lésbicas (Rosa,
2021, p.46).
É relevante frisar a dificuldade em localizar materiais com essa temática.
Camila Grillo salienta que “[...] mulheres lésbicas encontram cada vez menos
espaços de representatividade e escuta” (Grillo, 2019, p. 39), considerando o
apagamento e a tentativa de higienização da memória da lesbianidade, no Brasil.
Não é apenas nas montagens de teatro e nas ações performáticas que a
invisibilidade lésbica é gritante, mas também em todo o contexto geral de
4
O vídeo do espetáculo, na íntegra, pode ser acessado no link:
https://www.youtube.com/watch?v=p7Gq2eRhqSc&t=80s
5
Para acessar o conteúdo da performance, você pode contatar Camila Bacellar, pelo e-mail
camilabastosbacellar@gmail.com.
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
6
produções acadêmicas. “Ao contrário do que acontece com o Movimento LGBT e
Movimento Feminista, a revisão de literatura apontou a ausência de estudos,
pesquisas e investigações sobre o Movimento Lésbico no Brasil nas Ciências
Sociais e Humanas” (Lino, 2019, p.13).
Grillo nota esse desfalque ainda nos estágios iniciais de sua pesquisa, quando
se apresenta uma “[...] situação de invisibilidade devido à escassez de referências”
(Grillo, 2019, p.15).
Em outras palavras, acerca da emergência dos grupos lésbicos no Brasil,
pouco se tem notícia. As informações aparecem difusas nos estudos
sobre a história do Movimento Homossexual e Feminista, o que exige
dos/as leitores/as a construção de uma história dentro da exposição da
história [oficial]. Esse árduo exercício explicita o pouco interesse, por
parte dos pesquisadores/as por este movimento (Lino, 2019, p.13).
Como reflexo dessa lógica patriarcal, fica evidente o silenciamento dessas
mulheres e a falta de interesse nos assuntos que permeiam o “ser” lésbico.
Justamente por esse motivo é que se torna tão importante incentivar e exaltar a
memória dessas mulheres e dessas histórias que continuam sendo símbolos de
resistência.
Figura 1 – Tem Alguém que nos Odeia. Cena da porta do apartamento
com desenhos lesbofóbicos
Fonte: Arquivo pessoal do TeatroEnlatado
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
7
6 minutos
A performance intitulada
6 minutos
trata sobre o aborto, outro assunto urgente
e necessário no nosso país, principalmente por ser recheado de estereótipos,
preconceitos e visões conservadoras, os quais invadem o espaço da liberdade da
mulher perante seu próprio corpo.
6 minutos
é uma peça de performance que faz uso do sangue menstrual
dentro de banheiros masculinos e, preferencialmente, de banheiros
públicos, no sentido de que esses equipamentos culturais - eu considero
eles como equipamentos públicos - você não tem que pagar pra acessar.
Isso se deu de diferentes maneiras, mas todas as vezes que eu fiz essa
performance nunca havia uma cobrança de bilheteria nos eventos e nos
contextos assim. Então, é uma performance que faz uso de sangue
menstrual próprio, dentro de banheiros masculinos pra estabelecer um
estado sensorial que pressiona as fronteiras impostas pelas diferentes
conjunturas globais relacionadas a direitos sexuais e reprodutivos de
corpos que têm útero. Alguns corpos podem ser vistos como colonizados
e como territórios ocupados por relações desiguais de poder. Então, é…
Essa seria uma espécie de sinopse desse trabalho (Rosa, 2021, p.63).
Até o presente momento, o ato é considerado crime no Brasil, indo na
contramão de vários países latino-americanos que já descriminalizaram o aborto,
como, por exemplo, Uruguai, Cuba, Guiana, Guiana Francesa, Porto Rico e, mais
recentemente, Argentina.
Existem algumas cláusulas na lei brasileira que permitem o aborto, em certas
situações, como em casos de estupro, mas isso não garante que, na prática, essas
mulheres (muitas vezes crianças) possam fazer isso de maneira segura e íntegra.
Muitas vezes, elas são expostas, rechaçadas e ridicularizadas pela mídia, pelos
médicos e manifestantes apoiados em discursos religiosos. É o caso de uma
menina de dez anos, recentemente exposta a uma situação humilhante no
hospital em que estava, para realizar o procedimento, o qual era permitido pela
lei:
O local se tornou campo de batalha. Um grupo, baseado principalmente
em preceitos religiosos, se opôs ao direito legal da menina de realizar a
interrupção gestacional terapêutica. Vídeos deram conta de agressões
verbais aos profissionais de saúde presentes. Outro grupo foi ao local
com o objetivo de manifestar apoio à menina e a seu direito de
interromper a gravidez (Assessoria..., 2020).
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
8
Figura 2 –
6 Minutos
. A performer Camila Bacellar sobre o mapa,
com conta-gotas nas mãos, 2016
Fonte: Martino Frongia
É justamente a respeito dessas questões que a ação performativa se
desenvolve. Bacellar explica que “[...] a ação instaura um estado sensorial
interessado em tensionar os limites impostos pela conjuntura global sobre os
direitos sexuais e os direitos reprodutivos de corpos que possuem útero” (Bacellar,
2016, p.211). Portanto, 6 minutos não trata apenas das questões que envolvem o
aborto, no Brasil, mas também reflete política e geograficamente a respeito do
tema, tendo em vista todo o planeta.
A partir de todas essas perspectivas, dessas vozes e experiências, buscamos
compreender os possíveis limites entre a atuação teatral e a ação performática,
utilizando os corpos dessas artistas como referência.
O corpo no limite da teatralidade e da performatividade
Esses limites que atravessam os corpos atuantes, no campo da ficção e da
realidade, foram borrados, a ponto de começarmos a duvidar dessas instâncias
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
9
enquanto verdades. Após grande variedade de mecanismos de atuação cênica que
nos afastam da tradicionalidade, como ainda podemos retornar à tradição? Ou ela
não tem nada mais a nos oferecer? São com base nessas questões que nos
movemos.
A teorização dentro do campo das artes da cena, mais especificamente do
teatro, se deu muito pouco tempo, se comparada com outras artes, fervilhando
do início para o meio do século XX. Como ponto de partida, começamos a
pesquisar os materiais que tinham abordado as discussões e possíveis
definições do termo “teatralidade”.
Patrice Pavis aponta que o conceito “[...] tem algo de místico, de
excessivamente genérico, até mesmo de idealista e etnocentrista” (Pavis, 2008,
p.372), não sendo fácil definir genericamente um termo tão profundo e que tem a
potência de levantar os mais diversos diálogos. para Josette Féral, o conceito
de teatralidade começa a surgir a partir da noção de literalidade. No século XX, o
texto começa a perder sua força onipotente, dentro da cena, uma vez que, em sua
modalidade escrita, era o cerne do teatro, até esse tempo:
Diria que o século XX colocou em xeque as certezas do teatro e das
outras artes, se é que se pode falar assim. O que ainda era importante
para as estéticas teatrais definidas e essencialmente normativas do final
do século XIX, foi questionado no século XX, ao mesmo tempo que a cena
distanciou-se do texto e do lugar que ele deveria ocupar na realização
teatral (Féral, 2015, p.82).
Lúcia Romano assinala que a performance, “[...] na aproximação com o teatro,
provoca a tradição teatral e desafia as modalidades de realismo e teatralismo que
dominavam a cena desde meados do século XIX” (Romano, 2009, p.434). Além
disso, esses dois gêneros artísticos começam a introduzir o corpo em local de
evidência na cena, abarcando possibilidades que vão além da visão de corpo
centrado, fechado e definido.
Essa crise abalou as mais diversas linguagens artísticas, como a dança, a
performance e as artes plásticas, instaurando-se justamente no momento e
contexto de uma crise política ocidental, com a pulsão de diversos movimentos
de luta por direitos, pois
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
10
[...] a crise que o teatro estava passando não é uma crise especificamente
desse gênero artístico. Existiam várias crises de representação naquele
momento nos anos 60 por exemplo, no momento em que vão eclodir a
luta de vários grupos pelos seus direitos criticando a forma como o
regime vigente lidava com suas problemáticas. Então nesse momento a
gente vai ver ocorrer a insurgência de corpos contra o sistema de
representação política estético social, desde, sei lá, a revolta dos
estudantes em maio de 68 na França… se a gente for pensar no que foi
feito, é uma forma de luta. São várias formas de luta, mas de forma geral
é uma forma de luta muito estética, que tem uma pulsão estética muito
grande (Rosa, 2021, p.74).
Noções de teatralidade
Como conceituar essas linguagens, em função das novas perspectivas que
começaram a surgir? O quão expandido o teatro, apartado do texto, que até então
era considerado sua base sustentadora, se tornou?
Colocar-se hoje a questão da teatralidade é tentar definir o que distingue
o teatro dos outros gêneros e, mais ainda, o que o diferencia das outras
artes do espetáculo, particularmente da dança, da performance, e das
artes multimídia. É esforçar-se por atualizar a natureza profunda do
teatro, para além da multiplicidade de práticas individuais, teorias de
atuação, estéticas. É tentar encontrar parâmetros comuns a toda
realização teatral desde sua origem (Féral, 2015, p.81).
É válido lembrar que muitas referências utilizadas neste trabalho têm uma
visão ocidental dessas perspectivas, podendo, por conseguinte, nos limites aqui
impostos, trazer proposições que não sejam tão abrangentes, ao se ter em vista
outras culturas, povos e territórios, literalmente e poeticamente falando.
Assumindo que essas problemáticas são muito tênues e que, por sua vez, acabam
tensionando essas fronteiras, Bacellar aponta que essas percepções
[...] não estão levando em consideração várias formas cênicas que não
são ocidentais ou não estão levando em consideração também, a relação
que vários artistas importantes da Europa desenvolveram ou a relação
deles com outras culturas com outros povos. E a maioria desses, são
povos e culturas que foram colonizados. Então, muito se fala do Artaud
e do teatro da crueldade, e do tipo de cena que Artaud concebia e pouco
se fala da relação de Artaud com os Tarahumaras, que são indígenas do
norte do México. Ele passou um tempo lá… Então a gente esbarra de novo
nessa questão (Rosa, 2021, p.73).
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
11
Partindo desse contexto e cientes de nossa visão limitada e,
consequentemente, ocidental, buscamos a palavra “teatralidade”, no
Dicionário de
Teatro
de Pavis. Logo no início, o autor faz um alerta, enfatizando que geralmente
se acredita que esses materiais levam em conta apenas a etimologia das palavras,
com objetivo único de indicar o que elas significam. Pelo contrário, o objetivo
também inclui tecer proposições e expandir diálogos, ao invés de conceituar
definições indissolúveis. “O teatro é uma arte frágil, efêmera, particularmente
sensível ao tempo. Ninguém poderia apreendê-lo sem requestionar seus próprios
fundamentos e revisar periodicamente o edifício crítico ao qual incumbe, supõe-
se, descrevê-lo” (Pavis, 2008, p.11).
Ele ressalta que “[...] uma das marcas específicas da teatralidade é constituir
uma presença humana entregue ao olhar do público. Essa relação viva entre ator
e espectador é que constitui a base da troca.” (Pavis, 2008, p. 7). Seguindo por essa
via, para esmiuçar o que seria a teatralidade, a partir de uma perspectiva que não
considere necessariamente o texto enquanto elemento primordial, percebe-se um
consenso no que se refere a duas potências essenciais para a existência da
teatralidade: é fundamental que exista a figura da atriz e a do(a) espectador(a).
De acordo com Ludwik Flaszen, “[...] a única arma do teatro é a teatralidade.”
(Flaszen apud Grotowski, 2010, p. 49). Pensando também nas questões
propostas anteriormente sobre esse possível hibridismo entre teatro e as outras
linguagens, fazemos uma conexão com as últimas anotações desse registro:
Observou-se que, depois de ter eliminado um a um os outros fatores, o
único elemento no teatro que não seja nem as artes plásticas, nem
literatura e nem esteja ao alcance do filme, é o contato humano vivo, a
ligação entre o ator e o espectador (Flaszen apud Grotowski, 2010, p.49).
A teatralidade não se resume, portanto, apenas a esses dois elementos. É
necessário que “algo” aconteça entre essas duas figuras. O que seria esse algo?
Para Féral (2015), a relação que se cria nesse contato desperta uma outra
“qualidade” de percepção, tanto da figura da atriz quanto do(a) espectador(a):
Portanto, em princípio a teatralidade aparece como operação cognitiva e
até mesmo fantasmática. É um ato performativo daquele que olha ou
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
12
daquele que faz. Cria o espaço virtual do outro [...]. Permite ao sujeito que
faz, e àquele que olha, a passagem daqui para outro lugar (Féral, 2015,
p.87).
O interessante é que, quando Féral propõe que “[...] a teatralidade não
pertence, em sentido exclusivo ao teatro” (Féral, 2015, p.84), essa visão também
entra em consonância com a relação entre a performer, aquela que faz a ação, e
o público. A professora e pesquisadora Eleonora Fabião se refere a esse espaço
como um “entre-lugar”, o qual ocorre no atrito das presenças:
A atividade do ator não é autônoma, mas relativa; o ator é relativo ao
espectador por reciprocidade e complementaridade. Em termos
dramatúrgicos, a relação entre aquele que atua e aquele que assiste é
tão significativa quanto a relação entre Hamlet e Ofélia, ou entre ator e
atriz. Se a cena for, de fato, o espaço conectivo entre aqueles que veem
e se sabem vistos, um sistema de convergências, a ação cênica acontece
fora do palco, entre palco e plateia, fora dos corpos, no atrito das
presenças. Neste sentido, a famigerada “presença do ator”, longe de ser
uma forma de aparição impactante e condensada, corresponde à
capacidade do atuante de criar sistemas relacionais fluidos, corresponde
a sua habilidade de gerar e habitar os entre-lugares da presença (Fabião,
2010, p.323).
Dessa forma, percebemos mais uma vez que os elementos teatrais e
performáticos se esbarram e se misturam, numa mescla heterogênea difícil de
decantação ou definição. Estão num contato tão próximo, tão sutil, que a linha
divisória se perde de vista.
A performance e o desafio de conceituar uma arte subversiva
Dado, nesse primeiro momento, o conceito inicial de teatralidade, percebemos
que o contato entre performer e espectador(a) também se pode constituir em um
elemento de teatralidade, mesmo que dentro de um contexto performático. Então,
quais constituem os elementos principais da performance e o que a difere do
teatro em si?
Conceitualmente, a arte da performance é complexa e polêmica, não
apenas porque abriga uma multiplicidade de formas, mas também
porque, enquanto “gênero”, tem estado em permanente transformação
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
13
desde o seu surgimento (Bernstein, 2001, p 91).
Algumas proposições são sugeridas por Pavis, para quem “[...] ser um
performer significa: a) ser si mesmo, ao invés de representar um papel; b)
apresentar ao invés de representar; conseguir executar diferentes tarefas técnicas:
cantar, dançar, praticar esgrima etc.” (Pavis, 2016, p.174). O corpo da performer
seria, por conseguinte, o tema e o suporte da ação, onde se foge do lugar de,
necessariamente, estar vinculado a uma personagem, como exemplifica Camila
Bastos Bacellar:
[...] pra mim uma das importâncias de trabalhar com questões que
perpassam o meu corpo está em utilizar o meu corpo como tema e como
suporte da ação, que é uma das características da performance. Porque
eu entendo que quem trabalha com performance são complicadores
culturais, que é uma coisa que a Eleonora Fabião fala, que existe um
trabalho de complicador cultural, de ativador da percepção, de ativação
da latência paradoxal do vivo (Rosa, 2021, p.76).
Quando Bacellar se refere aos elementos que usa para sua performance,
ela frisa que tudo é pensado, tudo tem um motivo de estar ali: o espaço onde a
ação vai acontecer, a materialidade política dos objetos que ela utiliza e,
principalmente, a configuração visual do seu corpo, como ele será “apresentado”,
se suas tatuagens irão aparecer, se irá usar esmalte etc. Assim, existe uma
concepção da ação; nada está ali por acaso, mas, ao mesmo tempo, se afastando
de uma estrutura teatral mais “tradicional”, ainda se tem um distanciamento da
construção de uma personagem. “Eu acho que é diferente de se trabalhar com
um personagem, né, eu não to criando um personagem, eu não to tentando ir pra
um corpo que não é o corpo da Camila” (Rosa, 2021, p.77).
A razão dessa dificuldade em distanciar o performer de sua linguagem e
gestos reside precisamente no fato de que na performance as funções
do artista, autor e persona estão fundidas. Além disso, a fusão do autor
e performer é ainda mais complicada pela imbricação do sujeito e do
objeto, tanto pelo uso do corpo como um lugar de representação quanto
pelo emprego frequente de material autobiográfico (Bernstein, 2001, p.92).
Todos esses atravessamentos se dão na arte da performance: o corpo da
artista e sua relação com o espaço, os entrecruzamentos da arte-vida e o fato de
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
14
tensionar, a todo momento, limites previamente estabelecidos. Conforme
exemplifica Eleonora Fabião, a força da performance consiste em “[...] turbinar a
relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente
com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo” (Fabião, 2009, p. 237).
A performer coloca-se em lugar de escuta sensível, de um corpo disponível
aos acontecimentos do mundo. Contudo, existe algum tipo de treinamento para a
ação que realiza e, se houver, como ele se daria? Camila aponta a yoga e a
meditação como possibilidades, pois encontra nesses lugares uma alternativa de
se sentir confortável no desconforto. Mas também, de acordo com o trabalho ou
a ação que for realizar, outros tipos de treinamentos são feitos, principalmente os
que envolvem algum grau de risco:
Uma coisa que, pra mim, na minha trajetória, e pensando também no
6 minutos
especificamente, é a importância de realizar treinos ou práticas
corporais que envolvam algum grau de risco ou de situações de
vulnerabilidade calculada. Então, assim, eu não preciso treinar perna de
pau pra fazer
6 minutos
, eu ando de perna de pau mais de dez anos,
mas, algumas vezes que eu estava fazendo treinamento de perna de pau,
para alguma outra coisa, e ao mesmo tempo fazendo
6 minutos
, eu sentia
que essa vulnerabilidade calculada que tem, ou correr à noite, enfim…
Que tem uma vulnerabilidade da noite, do corpo que correndo sozinho,
acionam corporalmente lugares que eu acho interessantes de ter eles
ativos no meu corpo quando eu vou fazer a ação
6 minutos
(Rosa, 2021,
p.68).
Esses treinamentos possibilitam que o corpo acesse lugares de receptividade,
sensibilidade, escuta e potência. Porém, por mais que a artista tenha sua rotina de
treino, mesmo que passe dias, horas e semanas em uma sala de ensaio, na hora
da performance ou da cena teatral, tudo pode acontecer. Apesar de ser paradoxal,
não significa que, por conta disso, não seja importante se preparar, que as coisas
podem “sair do controle”. Na verdade, justamente por isso, a artista precisa ter
essa preparação, a fim de que possa lidar melhor com situações e contextos para
os quais não estava, necessariamente, preparada.
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
15
Corpo cotidiano e corpo cênico: fronteiras do entre-lugar
O corpo é a chave. A cada porta que se abre, mais portas se descobrem.
Entretanto, o que é o corpo? O corpo é o que somos? O que é corpo cênico? Ou
o que define um corpo cotidiano? Essas divergências existem? uma barreira
que separe um e outro? Alguma atividade, jogo, pensamento ou ação? Ou
podemos alcançar um entre-lugar? Um território que permeia ambos os estados,
mas que tenha mais potência em um que em outro? Como o lugar e o tempo em
que vivemos interferem nessas questões?
Segundo o dicionário
Priberam
(2020), corpo é tudo o que ocupa espaço e
constitui unidade orgânica ou inorgânica. Todavia, sabemos que definições como
essa não alcançam todos os âmbitos, seja político, seja artístico, seja ainda
filosófico etc. Muitas vezes, pensa-se que o corpo é nossa principal ferramenta;
nesse sentido, Ferracini (2004) nos provoca com um questionamento necessário:
se é ferramenta, então, quem a utiliza? A mente? Seria ela algo superior ao corpo?
Ou se poderia ter um corpo superior à nossa razão, que a controlasse, por assim
dizer? O autor acrescenta:
O corpo não é uma unidade organizada envolta por uma pele com um
interno estável e estático. Esse corpo é definido não enquanto identidade
e/ou substância fixa, mas enquanto devir e multiplicidade para além de
qualquer conotação dualista. Portanto, quando digo corpo, e mais
precisamente, corpo cotidiano, estou falando sobre um diálogo
músculo/pensamento, corpo/razão, no qual um não se subordina ao
outro. O corpo cotidiano, em si, atravessa essa dualidade em diagonal
(Ferracini, 2004, p.80-81).
Pensar corpo enquanto totalidade em si mesma é uma questão que dialoga
com pesquisas de outras áreas, como, por exemplo, o ensino da dança:
O termo corpo que utilizamos tem o entendimento de uma totalidade
física, emocional e intelectual. Como sabemos, o conhecimento, de
qualquer coisa, passa pelo corpo. Não é possível negar que a experiência
subjetiva (pensamento, raciocínio, razão, emoção, sentimentos) e a
experiência sensório-motora (as sensações, o calor, o medo, a excitação
de descobrir algo novo, pegar algo para senti-lo/conhe-lo melhor)
atuam em conjunto, em cruzamento (Renger; Schaffner; Carmo, 2016,
p.19).
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
16
Inclusive, Renger, Schaffner e Carmo (2016) fazem considerações muito
interessantes, quando propõem que “[...] qualquer operação mental que se faça e
que envolva linguagem, pensamento, inferências inconscientes, memória,
consciência visual [...] requerem estruturas neuronais, as quais são partes do
sistema sensório-motor” (Renger; Schaffner; Carmo, 2016, p.19). Portanto, é o
próprio corpo que interpreta tudo o que acontece, não sendo possível, assim,
existir uma separação, algo que não seja o próprio corpo, que é por ele que
compreendemos e vivenciamos o mundo, que interpretamos visualmente e
sensorialmente o que acontece, e apenas por meio dele acessamos a realidade,
por assim dizer.
Pensar “corpo versus mente”, por conseguinte, seria algo dicotômico e,
certamente, superficial. O corpo sai do lugar de máquina para ocupar um lugar
central: “corpo é o que sou”. Fabião também concorda que o corpo é algo que o
sujeito é, e não algo que possui:
No palco, assim como na filosofia de Merleau-Ponty, o sujeito não possui
um corpo, mas é corpo; o mundo não é ocupado pelo corpo, é uma de
suas dimensões [...]. O corpo não é receptáculo ou recipiente, anuncia
Merleau-Ponty, mas “tecido conectivo” [...]. O palco, matriz de
conectividade, é corpo, é mundo, é mundo-corpo e corpo-mundo (Fabião,
2010, p.323).
Logo, de certa forma, pensar em corpo cênico e corpo cotidiano, na concepção
binária desses dois lugares, poderia ser um equívoco, porque eles estariam nos
limites desses territórios fronteiriços. “O corpo é o lugar em que essas
contradições ocorrem” (Bernstein, 2001, p.92).
O corpo que atua é o mesmo corpo que vive o dia a dia, no sentido de que a
pessoa é aquele corpo, mas com uma certa diferença, na qualidade de percepção
dos gestos, movimentos, das pessoas, do espaço. Uma tensão outra com a qual
se relaciona com o mundo. Essa diferença na atenção, por exemplo, considerada
por Eleonora Fabião uma pré-condição da ação cênica, é bem enfatizada, quando
ela afirma:
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
17
O corpo cênico está cuidadosamente atento a si, ao outro, ao meio; é o
corpo da sensorialidade aberta e conectiva. A atenção permite que o
macro e o mínimo, grandezas que geralmente escapam na lida
quotidiana, possam ser adentradas e exploradas. Essa operação
psicofísica, ética e poética desconstrói hábitos. Atentar para a pressão e
o peso das roupas que se veste, para o outro lado, para as sombras e os
reflexos, para o gosto da ngua e o cheiro do ar, para o jeito como ele
move as mãos, atentar para um pensamento que ocorre quando rodando
a chave ao sair de casa, para o espírito das cores. A atenção é uma forma
de conexão sensorial e perceptiva, uma via de expansão psicofísica sem
dispersão, uma forma de conhecimento. A atenção torna-se assim uma
pré-condição da ação cênica; uma espécie de estado de alerta
distensionado ou tensão relaxada que se experimenta quando os pés
estão firmes no chão, enraizados de tal modo que o corpo pode expandir-
se ao extremo sem se esvair (Fabião, 2010, p.322).
Para Mantovani, quando questionada sobre as concepções e pensamentos a
respeito de seu corpo cênico, seu trabalho foi sempre voltado para um lugar de
pesquisa do teatro físico, da dança, realçando que o condicionamento físico é
primordial para permitir essa disponibilidade que o trabalho da atriz exige. “Seu
corpo tem que estar preparado pra qualquer coisa que possa acontecer em cena
e eu acho que isso é um corpo cênico, um corpo potente, é um corpo pulsante, é
um corpo vivo” (Rosa, 2021, p.49). Maíra de Grandi, sua companheira de cena e que
atua tanto em peças teatrais quanto em ações performáticas, concorda que
sempre é desafiada a transpor suas certezas, para que a ação tenha qualidade.
“Você sai da sua zona de conforto, você vai pro desconhecido, o que é ótimo,
porque começar um trabalho com ‘ah eu sei como vai ser, sei o que eu vou
fazer’, provavelmente vai ser ruim” (Rosa, 2021, p.50).
O corpo-repertório, o corpo-memória
“Será que vai ser tipo andar de bicicleta, Maíra? A gente não vai esquecer
nunca?” (Rosa, 2021, p.56). É o que Mariana pergunta, de forma descontraída, para
Maíra, quando surgem questionamentos a respeito da memória do trabalho
corporal que elas realizavam, em seus treinamentos, o qual, durante a pandemia,
6
fica impossibilitado de acontecer.
6
Este artigo foi produzido dentro de um período pandêmico, quando todo o mundo é assolado pelo
Coronavírus, desde 2020.
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
18
Os corpos que acessam esses lugares de vulnerabilidade, desconforto,
potência e entrega, como os treinamentos de yoga e meditação descritos por
Bacellar, por exemplo, e dos trabalhos de montagem de espetáculo das
integrantes da Cia., criam uma “memória” dessas ações? Essas memórias podem
ser esquecidas, caso essas atrizes fiquem sem treinar por um tempo, como é o
caso, nesse momento de isolamento social? A partir de suas pesquisas, o médico
e cientista Ivan Izquierdo (1989) assevera que
[...] o aprendizado e a memória são propriedades básicas do sistema
nervoso; não existe atividade nervosa que não inclua ou não seja afetada
de alguma forma pelo aprendizado e pela memória. Aprendemos a
caminhar, pensar, amar, imaginar, criar, fazer atos-motores ou ideativos
simples e complexos, etc.; e nossa vida depende de que nos lembremos
de tudo isso (Izquierdo, 1989, p.90).
“Eu acho que tudo, que toda a experiência que a gente tem é repertório, é
experiência, a gente viveu isso. O corpo tem essa lembrança desse repertório e
isso vira um lugar” (Rosa, 2021, p.54). Maíra continua contando que, após tantos
anos ensaiando e treinando juntas, os dois corpos dialogam de maneira muito
orgânica, são corpos que já se conhecem, que têm uma sinergia.
Em um espetáculo de dança que fizeram, a atriz conta que esses corpos se
batiam, se encontravam, se chocavam, e que isso acabou aparecendo também na
construção da peça
Tem alguém que nos odeia
. “Mas não assim, que a gente
pensou ‘ai, a gente vai fazer assim’. De algum jeito isso veio e ele ali num
pedacinho daquela peça. A gente faz isso, esse choque, a gente se colide” (Rosa,
2021, p.55). É o que Maíra chama de “alfabeto de quedas”; de certa maneira, seu
corpo criou uma tendência a ir para esse lugar de se chocar, de se trombar e cair,
e, a cada vez que isso acontece, essas quedas são ressignificadas, transformadas
e se dão de maneiras diferentes. É a mesma coisa acontecendo, contudo, nunca
é a mesma queda. Não seria isso, pois, a memória corporal?
Essas memórias são atualizadas independentes de nossa vontade: um
cheiro que nos remete a uma atualização de sensação como um gosto
que atualiza uma memória involuntária [...] a ação de atualização não é
uma ida do presente ao passado em uma espécie de re-vivência da
lembrança, mas uma atualização é uma vinda do passado ao presente
que gera uma recriação da lembrança enquanto potência virtualizada no
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
19
aqui agora. É por isso que toda atualização é uma criação: a vinda do
passado ao presente recria o passado nesse mesmo presente (Ferracini,
2009, p.129).
para Jorge Larrosa Bondía, a memória acaba sendo severamente afetada
por conta de as informações se darem cada vez numa velocidade mais rápida, um
estímulo sendo substituído rapidamente pelo próximo e assim sucessivamente:
[...] a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se
passa, passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. [...] A
velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela
novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem a
conexão significativa entre acontecimentos. Impedem também a
memória, que cada acontecimento é imediatamente substituído por
outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar
qualquer vestígio. Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de
silêncio e de memória, são também inimigas mortais da experiência
(Bondía, 2002, p.23).
Voltamos, então, ao ponto primordial para a qualidade da experiência em cena:
o corpo que observa, que pausa, que se atenta aos detalhes, um corpo aberto e
sensível, o qual se permite entrar completamente em contato consigo e com o
espaço à sua volta. Vai na contramão do mundo que corre com pressa, que escapa
aos dedos, onde a artista dança, fluindo em um movimento corporal que é mais
lento e ao mesmo tempo rápido, pois esse corpo está sempre pronto para lidar
com possíveis adversidades.
Mais uma vez, o campo do teatro e da performance dialogam, ao se tratar da
necessidade de existir essa disponibilidade do corpo e escuta sensível, quando em
atuação. Mantovani se utiliza desses elementos performáticos, possibilitando
trazer para seu trabalho esses atravessamentos:
O que eu gosto, eu, Mariana, de trazer desse corpo do performer, da
performance é: a presença, o estado de, sempre 90% de presença e
vulnerabilidade, que é uma coisa que eu acho que é o que o performer
apresenta, assim. Ele não vai chegar nunca com um texto pronto, ele vai
estar sempre ouvindo o espaço e o que acontecendo pra agir depois.
Eu acho que isso é gigante e potente em cena, mesmo dentro de uma
formatação mais restrita, sabe? (Rosa, 2021, p.52).
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
20
E sua parceira Maíra complementa a ideia: “Porque você tem que estar… vivo.
E ‘estar’ é uma condição, né, em cena. [...] De reagir ao que acontecendo. Jamais
negar o que tá acontecendo” (Rosa, 2021, p.53). E Bondía completa,
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque,
requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos
tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar
para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais
devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes,
suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender
o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos
e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar
aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-
se tempo e espaço (Bondía, 2002, p.24).
O corpo é o que é e está onde está
Nesta reflexão, nós nos deparamos com diversas questões que se mostraram
muito tênues: definir o que é o corpo, onde a artista está, o que seria corpo
cotidiano e corpo atuante, corpo cênico e performativo. Afinal, não estariam todas
as pessoas performando possibilidades diferentes? Identidades diferentes?
Buscamos olhares diversos. De mulheres e homens, atrizes, atuadoras,
performers e, mesmo assim, não conseguiríamos abranger toda a multiplicidade
de pessoas, realidades e visões a respeito do tema. Em certo momento,
percebemos que não se tratava de buscar uma definição do que se entende por
teatralidade e performatividade, porém, de ampliar o olhar para essas gradações
possíveis, esses espaços territoriais fronteiriços e borrados. Logo, não é possível
aludir a uma teatralidade e performatividade única, visto que corpos definidos
como “mulher”, dentro da nossa sociedade, também têm suas performatividades
singulares, assim como corpos lésbicos, corpos negros, corpos trans, corpos
gays
.
Como dizer que todas essas questões não influenciam o atuar, tendo em vista que
o corpo que atua é a própria pessoa, com as suas particularidades?
Esse corpo que atua, que está e que é, se faz por trajetórias: memórias, afetos,
dúvidas, lembranças. Um corpo político, o qual está para além da nossa
individualidade. Corpo atriz, pesquisadora, lésbica, mulher que poderia ser um
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
21
corpo, ator, pesquisador, trans, homem. Corpo e corpos que atravessam nossas
vivências. São tantas mulheres importantes que atravessam nossos corpos
masculinos e femininos. São antecessoras, antepassadas, queimadas na fogueira,
presas em instituições psiquiátricas. Caladas, malfaladas, histéricas, poéticas,
esquizofrênicas, bruxas. O corpo da artista é o corpo do presente, o corpo do aqui-
e-agora, o corpo que é. Esse corpo está no espaço, no tempo. É o corpo cotidiano,
o corpo em cena, o corpo que atua e que performa. O corpo é o que é e está onde
está.
Referências
ASSESSORIA de Comunicação do IBDFAM. Gravidez de menina de 10 anos acende
debate sobre aborto e necessidade de combate à violência sexual contra crianças.
IBDFAM
, Belo Horizonte, 20 ago. 2020. Disponível em:
https://ibdfam.org.br/index.php/noticias/7637/Gravidez+de+menina+de+10+anos+
acende+debate+sobre+aborto+e+necessidade+de+combate%C3%A0+viol%C3%A
Ancia+sexual+contra+crian%C3%A7as. Acesso em: 11 jul. 2021.
BACELLAR, Camila Bastos. 6 minutos: para habitar o corpo-encruzilhada.
Anais
ABRACE
, v. 17, n. 1, 2016.
BACELLAR, Camila Bastos. Entrevista da Performance “6 minutos” de Camila
Bacellar. 2021. Entrevista concedida à pesquisadora. Rio de Janeiro, 08 mar. 2021.
BERNSTEIN, Ana. A performance solo e o sujeito autobiográfico.
Sala Preta
, São
Paulo, v. 1, p. 91-103, 2001.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência.
Revista
Brasileira de Educação
, n. 19, p. 20-28, 2002.
CORPO. In:
DICIONÁRIO Priberam da Língua Portuguesa
[on-line], 2008-2020.
Disponível em: https://dicionario.priberam.org/corpo. Acesso em: 22 abr. 2020.
DE GRANDI, Maíra; MANTOVANI, Mariana. Entrevista “Tem alguém que nos odeia”
da Cia. TeatroEnlatado, com as atrizes Maíra De Grandi e Mariana Mantovani.
Entrevista concedida à pesquisadora. Bauru, 08 fev. 2021.
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena
contemporânea.
Sala Preta
, São Paulo, v. 8, p. 235-246, 2009.
FABIÃO, Eleonora. Corpo cênico, estado cênico.
Revista Contrapontos
, Rio de
Janeiro, v. 10, n. 3, p.321-326, 2010.
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
22
FÉRAL, Josette.
Além dos Limites: teoria e prática do teatro
. São Paulo:
Perspectiva, 2015.
FERRACINI, Renato. Corpos em criação: café e queijo. 2004. 345 p. Tese
(Doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas,
SP, 2004. Disponível em:
http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/284233. Acesso em: 3 ago.
2021.
FERRACINI, Renato. Ação física: afeto e ética.
Urdimento
- Revista de Estudos em
Artes Cênicas, v. 2, n. 13, p.123-133, 2009.
GRILLO, Camila Karla.
A visibilidade lésbica nos espetáculos teatrais da cidade de
São Paulo/SP entre 2012 e 2018
. 2019. Tese (Doutorado em Artes Cênicas)
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
GROTOWSKY, Jerzy. A possibilidade do teatro: materiais de trabalho do teatro das
13 filas. In: GROTOWSKI, Jerzy; FLASZEN, Ludwik.
O Teatro Laboratório de Jerzy
Grotowski 1959-1969: textos e materiais de Jerzy Grotowski e Ludwik Flaszen com
um escrito de Eugênio Barba
. Trad. Berenice Raulino. São Paulo: SESC; Perspectiva;
Fondazione Pontedera Teatro, 2010.
IZQUIERDO, Ivan. Memórias.
Estudos Avançados
, São Paulo, v. 3, n. 6, p.89-112.
1989. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40141989000200006&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 09 maio 2021.
LINO, Tayane Rogeria. Nas fissuras da história: o movimento lésbico no Brasil.
MovimentAção
, v. 6, n. 10, p.10-22, 2019.
PAVIS, Patrice.
Dicionário de Teatro
. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
PAVIS, Patrice. Para Repensar o Trabalho do Ator: algumas considerações
improvisadas e provisórias sobre a atuação hoje.
Revista Brasileira de Estudos da
Presença
, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p.173-182, 2016.
RENGEL, Lenira; SCHAFFNER, Carmen Paternostro; CARMO, Carlos Eduardo
Oliveira do. Dança, corpo e contemporaneidade. Salvador: UFBA, Escola de Dança;
Superintendência de Educação a Distância, 2016.
ROMANO, Lucia Regina Vieira.
De quem é esse corpo? A performatividade do
feminino no teatro contemporâneo
. 2009. Tese (Doutorado em Artes Cênicas)
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
ROSA, Isabela Augusto.
Teatralidade e performatividade do corpo na atuação sob
a ótica das mulheres que ocupam o centro da cena
. 2021. Monografia (Graduação
em Teatro) – Centro Universitário Sagrado Coração, Bauru-SP, 2021.
TRIGO, Luiz Gonzaga Godoi. As milenares origens do preconceito de gênero.
Revista
Entre a atriz e a performer: a visibilidade feminina construindo um corpo em arte
Ronaldo Záphas (Francisco dos Santos) ; Isabela Augusto Rosa
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-23, set. 2022
23
Turismo & Desenvolvimento
, n. 23, p. 37-47, 2015.
Recebido em: 13/01/2022
Aprovado em: 21/02/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br