1
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam:
O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin
Mepaeruna Tikuna
Para citar este artigo:
BORDIN, Vanessa Benites; TIKUNA, Mepaeruna. Diferentes
tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas
artistas em Manaus.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0112
Este artigo passou pelo Plagiarism Detection Software | iThenticat
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
2
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam:
O encontro de duas artistas em Manaus
1
Vanessa Benites Bordin
2
Mepaeruna Tikuna
3
Resumo
Duas mulheres artistas de diferentes tradições - a artista-performer indígena e a
artista-performer não indígena - se encontraram pela primeira vez ao realizarem
uma performance artística juntas e descobriram afinidades que as levaram a trilhar
um caminho onde vida e arte se entrelaçam, estabelecendo um diálogo entre os
diferentes saberes de cada uma, buscando novas possibilidades de criação para as
suas práticas poéticas, se reinventando a cada novo desafio que se apresenta, como
a pandemia de COVID-19.
Palavras-chave
: Mulheres artistas. Performance. Povos indígenas. Tradição.
Different traditions, lives that intertwine: The meeting of two artists
in Manaus
Abstract
Two women artists from different traditions - the indigenous artist-performer and
the non-indigenous artist-performer - met for the first time when performing an
artistic performance together and discovered affinities that led them to tread a path
where life and art intertwine, establishing a dialogue between the different
knowledges of each one, seeking new possibilities of creation for their poetic
practices, reinventing themselves with each new challenge that presents itself, such
as the COVID-19 pandemic.
Keywords
: Indigenous People. Performance. Women artists. Tradition.
1
Revisões de português feitas pela Professora Odete de Jesus Benites da Silva formada em Letras português
pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). odete.jbenites@gmail.com
2
Doutora em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Mestre
me Artes (ECA-USP). Graduação em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Professora Adjunta do Curso de Teatro da Universidade do Estado do Amazonas (UEAM).
vavabb@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/0717531333053959 https://orcid.org/0000-0002-4675-0849
3
Artista e professora indígena da etnia Tikuna. elizetetuirimaribeiromepaeruna@gmail.com
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
3
Diferentes tradiciones, vidas que se entrelazan: El encuentro de
dos artistas en Manaus
Resumen
Dos mujeres artistas de diferentes tradiciones -la artista-performer indígena y la
artista-performer no indígena- se conocieron por primera vez al realizar juntas una
performance artística y descubrieron afinidades que las llevaron a transitar un
camino donde la vida y el arte se entrelazan, estableciendo un diálogo entre los
diferentes saberes de cada una, buscando nuevas posibilidades de creación para sus
prácticas poéticas, reinventándose con cada nuevo desafío que se presenta, como
la pandemia del COVID-19.
Palabras clave
: Mujeres artistas. Performance. Pueblos indígenas. Tradición.
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
4
PISANDO NA HISTÓRIA
No chão do meu passado,
Vejo a nação ecoar
Um canto de resistência
Dos espíritos daquele lugar.
Cantam do fundo da terra,
Em meio à cerâmica milenar,
Cantam sentindo a dor,
Por uma história
Que teimamos em pisar.
Esquecendo que ali está,
Pedaços do nosso Brasil,
Dos donos desse lugar,
Ao relento, exposto ao frio.
Nos artefatos o registro,
De quem por ali passou,
Os valentes Aikewara,
Que na terra seu registro enterrou.
Pisei no chão da história,
Toquei num pedaço da memória,
Da luta de quem caminha,
No parque das Andorinhas.
(Kambeba, 2020, p.21)
Tradições que se entrelaçam entre memórias reveladas a partir de vivências,
conversas e compartilhamentos dos mais diversos. O encontro de duas artistas
de diferentes tradições, que performando juntas se conheceram e estabeleceram
laços que ultrapassam a esfera da prática artística, tornando-se amigas e
comadres
4
. Fortalecendo as relações entre vida e arte, pois, além do
desenvolvimento de projetos artísticos e culturais, essa relação transcende o
espaço de trabalho e permite uma proximidade mais humana e familiar, o que
contribui na construção de práticas poéticas dialógicas, respeitando os saberes
dos diferentes sujeitos envolvidos.
Mepaeruna Tikuna, artista e professora indígena da etnia Tikuna
5
e Vanessa
4
Vanessa é madrinha da filha de Mepaeruna.
5
Tikuna, Ticuna, Tukuna, são algumas das grafias utilizadas para denominar a etnia indígena que hoje vive no
Brasil, Colômbia e Peru, região Amazônica da tríplice fronteira, sendo a etnia com a maior população indígena
do Brasil. Optamos pela grafia Tikuna, como é usada por Mepaeruna.
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
5
Benites Bordin, artista e professora brasileira
6
, se encontraram pela primeira vez
em outubro de 2017 na Sala Samambaia da Escola Superior de Artes e Turismo
(ESAT) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), durante a oficina
“Sincronicidade e Expressão”. Ministrada pela artista e pesquisadora Maria Júlia
Pascali, como proposta de vivência para o processo de criação da performance
Uwanary Tendawa
7
, que na língua indígena Aruak quer dizer “Casa de Guerreiro”.
A oficina foi realizada em parceria com o TABIHUNI
8
Núcleo de pesquisa e
experimentações das teatralidades contemporâneas e suas interfaces
pedagógicas diretório de pesquisa do CNPQ - UEA, liderado pelo artista,
antropólogo e professor Luiz Davi Vieira Gonçalves
9
do Curso de Teatro da UEA.
Dentro do diretório de pesquisa, Luiz Davi coordena o grupo de experimentações
performativas TABIHUNI, e nesse período estava dirigindo a performance
Uwanary
Tendawa
”.
A proposta de Luiz Davi Vieira Gonçalves, que há alguns anos está em diálogo
e parceria com comunidades, lideranças indígenas e antropólogos da região
amazônica, era abordar as questões de ocupação e reintegração de posse que
ocorreram na comunidade indígena Parque das Tribos
10
- que fica no perímetro
urbano de Manaus, AM - em uma performance artística. A abordagem seria
especificamente em torno do conflito que aconteceu entre policiais e indígenas
no primeiro mandato de reintegração de posse em 2015, que ocasionou grandes
prejuízos para a comunidade, com malocas destruídas e indígenas levados detidos,
um deles foi a principal liderança da época, o Cacique Messias Kokama, hoje
falecido, vítima de COVID-19 no ano de 2020.
6
Por parte de mãe descende de família indígena Guarani vinda do Paraguai e da região das Missões do Rio
Grande do Sul. Essa origem nunca foi valorizada sempre colocada de lado e foi a relação com os indígenas
do Amazonas que a despertaram para saber mais sobre essa ancestralidade. Também descende de italianos,
austríacos, portugueses e espanhóis (até onde se sabe).
7
Para mais informações sobre o trabalho sugiro a leitura do artigo de Gonçalves, 2018. Disponível em:
http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce
9
Luiz Davi Vieira Gonçalves atua junto ao povo indígena Yanonami da região amazônica. Podemos ter acesso
ao seu trabalho a partir de sua tese de doutorado (2019) intitulada: O(s) corpo(s) Kõkamõu: a
performatividade do pajé-hekura Yanonami da região Maturacá. Disponível em:
https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/7109
10
Situada no perímetro urbano de Manaus, onde moram famílias de cerca de vinte e quatro etnias indígenas.
Esses povos lutam para manter as características fundamentais de seus modos de vida, preservando
aspectos vitais de sua cultura, especialmente relacionados à sua língua.
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
6
Luiz Davi, em contato com os antropólogos do Instituto Nova Cartografia
Social da Amazônia
11
, tomou conhecimento da luta dos indígenas no Parque das
Tribos pelo reconhecimento do espaço como uma área indígena. Isso fez com que
buscasse conhecer as lideranças do lugar, e, após muito diálogo, nasceu o desejo
de intervir artisticamente para de alguma forma dar visibilidade ao que estava
acontecendo a partir do olhar dos indígenas. “O objetivo deste trabalho é apoiar o
grupo nas reivindicações e apresentar essa realidade de forma impoluta à
população que desconhece as agressões realizadas sobre estes povos indígenas
em contexto urbano” (Gonçalves, 2018, p.31).
Vanessa foi instigada a conhecer, estudar e mergulhar nas questões indígenas
a partir do momento em que conheceu Luiz Davi e passou a integrar como
performer e pesquisadora o grupo TABIHUNI em julho de 2014. Os ensinamentos
trazidos pelo artista-antropólogo ampliaram os horizontes a partir de indagações,
provocações e compartilhamento de conhecimentos, nos fazendo pensar em
como trabalhar com os povos indígenas, dando-lhes protagonismo, para que as
propostas surgissem a partir de suas necessidades e desejos de expressão através
da arte, que está presente no dia a dia desses povos.
Na realidade, os conceitos de arte e cultura ao longo da história sempre foram
definidos a partir do olhar dos não indígenas e, algumas vezes, utilizados pelos
indígenas como uma forma de tentar se aproximar desse pensamento, que é
hegemônico ainda, embora os estudos decoloniais tenham avançado no sentido
de apontar outros caminhos para o entendimento de alguns conceitos, levando
em consideração o olhar da alteridade sobre diferentes questões e dando-lhes
espaço de fala. Els Lagrou (2009) nos faz pensar a respeito disso, ao dizer que os
povos indígenas não têm a mesma noção de arte e estética conhecidas a partir do
padrão vigente, e, nem mesmo palavras ou conceitos para defini-las, porque o que
11
“O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) tem como objetivo dar ensejo à auto-cartografia
dos povos e comunidades tradicionais na Amazônia. Com o material produzido, tem-se não apenas um
maior conhecimento sobre o processo de ocupação dessa região, mas sobretudo uma maior ênfase e um
novo instrumento para o fortalecimento dos movimentos sociais que nela existem. Tais movimentos sociais
consistem em manifestações de identidades coletivas, referidas a situações sociais peculiares e
territorializadas. Estas territorialidades específicas, construídas socialmente pelos diversos agentes sociais,
é que suportam as identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais. A força deste processo de
territorialização diferenciada constitui o objeto deste projeto. A cartografia se mostra como um elemento
de combate. A sua produção é um dos momentos possíveis para a auto-afirmação social.” Trecho de
apresentação retirado do site do Instituto Nova Cartografia Social do Amazonas:
http://novacartografiasocial.com.br/apresentacao/. Acesso em: 29 nov. 2020.
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
7
consideramos arte, a partir das referências da cultura hegemônica, são para eles
objetos com funções específicas dentro de suas sociedades, uma vez que tudo
perpassa por uma cosmovisão de mundo muito particular.
Deste modo, Luiz Davi Vieira Gonçalves sempre ressaltou as questões que
envolvem a folclorização e a exotização a respeito da cultura dos povos indígenas,
cercada por muitos clichés e pré-conceitos, que uma boa parte da população
ainda tem a ideia romantizada de que o “índio”
12
é aquele que vive isolado. No
entanto, sabemos que essa não é a realidade atual, pois muitos indígenas vivem
em centros urbanos mantendo seus costumes e principalmente falando sua
língua, que é um aspecto fundamental da constituição identitária de cada povo.
Para entrarmos nesse universo dos povos indígenas, pedimos licença às
“mães” e aos “donos”
13
da floresta. Deste modo, Luiz Davi nos apresentou sua
metodologia Kõkamõu, estar juntos, fazendo juntos, que surge da sua percepção
de construção de seu corpo de forma afetiva na relação com os pajé-hakua
(Gonçalves, 2019, p.161). A experiência da coletividade é algo precioso para os
artistas da cena, intrínseca ao modo de vida dos povos indígenas, assim,
aprendemos a questionar a heresia da separatividade que assola os pensamentos
da maioria e geram diversas ações prejudiciais à sociedade moderna. Acreditamos
que temos domínio sobre a natureza, sendo que não dominamos nem nossos
próprios corpos, e esquecemos que somos parte de um todo. Ailton Krenak,
indígena ambientalista, nos faz pensar sobre isso:
centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam,
viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa
humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessadas no mundo, somos
parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que
nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo
com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente
(Krenak. 2019, p.31).
No espaço de criação entregamos nosso ser psicofísico, nossas sensações e
12
Utilizo aspas, pois é um termo utilizado por muitas pessoas, até com um sentido pejorativo,que foi como
os europeus denominaram os povos que viviam aqui nas Américas. O termo mais apropriado é indígena, em
referência aos povos originários.
13
Para os indígenas tudo no universo tem uma “mãe”, um “dono”, e sempre que vamos entrar em algum
território que não nos pertence devemos pedir licença para esses encantados.
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
8
emoções para vivermos outras vidas, que não são as nossas, mas poderiam ser,
transitando por narrativas de diferentes lugares, épocas, mundos, realidades,
tempos. Essa percepção nos ajuda a nos conectar e a entender na prática como
funciona essa ideia de integração, que respeita a diversidade, sabendo que cada
um é importante para o todo.
A oficina conduzida por Maria Júlia Pascali proporcionou o encontro de corpos
indígenas e não-indígenas em um momento único onde as singularidades de cada
um se complementaram formando o todo da obra artística. Durante essa imersão,
o encontro das artistas Mepaeruna Tikuna e Vanessa Benites Bordin aconteceu.
Mepaeruna envolveu a todos com seu canto que ecoou na Sala Samambaia, a
canção ancestral Tikuna, entoada com a dança de seus antepassados, reverberou
nos corpos dos performers indígenas e não-indígenas fazendo com que se
conectassem, mesmo sem saber a canção e a dança, aos poucos todos foram se
integrando e juntos se tornando um coro. Mepaeruna aprendeu a cantar com sua
avó, ouvindo-a desde que era bem pequena.
O canto é um conhecimento que fica preservado no corpo daquele que sabe,
o conhecimento memória que se na relação com o outro, uma troca que se
estabelece estando junto com os mais velhos, ouvindo os cantos e
progressivamente aprendendo a cantar. É um saber que se elabora pela
experiência, “o saber do corpo” (Lagrou, 2007), o saber “incorporado” (Viveiros de
Castro, 1996)
14
, a experiência de repertório (Taylor, 2013)
15
. Na mesma perspectiva
que Zumthor (2002) fala que o conhecimento não somente se faz pelo corpo, mas
é do corpo, pois se trata de uma acumulação de conhecimentos que ultrapassa a
racionalidade e são da ordem da sensação.
A beleza daquele momento com a canção Tikuna, que poucos compreendiam
14
A palavra “encorporar” é utilizada por Viveiros de Castro que acredita ser a melhor forma de tradução
encontrada para expressar a ideia das experiências vivenciadas e apreendidas corporalmente: Traduzo a
forma inglesa
to embody
e seus derivados, pelo neologismo ‘encorporar’ visto que nem encarnar’ nem
‘incorporar’ são realmente adequados” (1996, p.136).
15
Diana Taylor (2013) - nesse entendimento do “saber do corpo” - traz o conceito de
embodiment
traduzido
por incorporar, relacionando-o ao conceito de repertório que, diferente do arquivo que se refere à hegemonia
da escrita como única fonte de pesquisa valorizada, remete justamente ao que não está escrito, mas se
revela por ações num gesto de descolonização do saber, em que a escrita tem papel predominante na dita
cultura ‘culta’ em forma de arquivo. Assim, o arquivo estaria relacionado à cultura letrada e o repertório à
cultura não letrada. O repertório está nas performances do corpo, do efêmero, daquilo que vivemos.
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
9
o significado, mas com um ritmo e intensidade que se complementavam com a
dança, nos proporcionava a percepção de estarmos em outro plano de realidade,
como se o tempo e o espaço se modificassem. A Sala Samambaia da Escola
Superior de Artes e Turismo da Universidade do Estado do Amazonas, não era a
mesma, tinha outro cheiro, outras cores, permitindo que criássemos partituras
cênicas através de nosso contato e do fluir de nossa imaginação, transformando
o espaço e os nossos corpos.
A condução de Maria Júlia Pascali vem de uma longa vivência com os povos
indígenas, ela tem um trabalho inter/trans cultural de diálogo com as diferentes
culturas com as quais conviveu, especialmente o povo indígena Nhambiquara, que
vive na região do Mato Grosso e Rondônia, somadas às suas vivências na China e
Japão estudando as danças tradicionais, destaque para a prática com o Butô. Além
da oficina ministrada, Maria Júlia Pascali nos presenteou com sua performance
músico-teatral: "Verde - minha terra verde", onde percebemos de forma sútil todas
as suas experiências entrelaçadas a partir de seu olhar, revelando as variadas
culturas que constituem sua identidade, inclusive as de suas origens genealógicas.
A artista realizou duas apresentações de sua obra, uma no miniauditório da ESAT
- UEA e outra no Espaço Cultural de Educação Indígena
Uka Umbuesara Wakenai
Anumarehit
16
localizado no Parque das Tribos.
Maria Júlia Pascali criou sua metodologia de trabalho a partir das diferentes
referências incorporadas, trazendo algo autoral, permitindo que seu corpo
revelasse aquilo pelo qual é afetado, o efêmero se eterniza, se transforma e
reverbera de diferentes maneiras, tornando visível o invisível, através de
movimentos, gestos, ações, sons, cantos, falas, produzindo imagens e
proporcionando sensações diversas a partir das referências de cada um.
É pelo corpo, pelo fazer, que performers e indígenas desenvolvem
aprendizados e processos criativos que provocam sensações e percepções que
depois podem ser canalizadas e refletidas racionalmente. O relato trazido por
Maria Júlia Pascali, a partir de sua experiência com os indígenas, revela isso, ao
dizer que eles simplesmente são, agem, porque estão conectados com a terra e o
16
Na língua geral Nheengatú significa casa de aprender a origem dos guerreiros.
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
10
céu, sentindo-se parte de um todo. A coletividade é intrínseca à forma de vida dos
povos tradicionais, por isso é natural a organização em roda, as danças circulares
e a noção de que o que é comunitário é de responsabilidade de todos.
O fio condutor proposto por Maria Julia Pascali foi desenvolvido em etapas,
começando com aquecimento em duplas até irmos agregando com todo o grupo,
para no final se transformar em uma dança regida pelos indígenas. Depois da
experimentação, a artista sugeriu que cada um desse seu depoimento sobre a
prática, a maioria relatou que em muitos momentos conseguiu estabelecer uma
relação de contato profundo com as pessoas, percebendo seus corpos em
harmonia na composição de uma dança única daquele grupo, que aconteceu de
forma orgânica e que provavelmente não se repetiria da mesma forma em outro
momento. Isso, graças a uma condução de sensibilidade e escuta, onde as
partituras performativas eram criadas do interior de cada um em diálogo com o
outro, onde os corpos se tornavam as matrizes poéticas de criação e se
transformavam através do contato e das sensações provocadas por esse contato.
Além das práticas na UEA, também nos encontrávamos no Parque das Tribos.
Essas trocas e interações nos diferentes espaços fortaleciam as nossas relações
e ampliavam as possibilidades criativas. Nas reuniões com os indígenas do Parque
das Tribos (que representavam oito etnias: Kokama, Tikuna, Baré, Witoto, Karapanã,
Sateré-Mawé, Mura, Tukano), eles falaram sobre as questões que envolviam a
comunidade, além dos mandados de reintegração de posse, o descaso das
autoridades e a falta de infraestrutura, por isso, acreditavam ser tão importante
realizar um trabalho que pudesse trazer à tona algumas dessas questões.
Os indígenas do Parque das Tribos estão bem articulados politicamente,
atualmente ocupam lugares dentro das universidades, cargos públicos e de
liderança. A partir de seus discursos percebemos a consciência de seu lugar de
fala e da importância em manter sua identidade dentro do território urbano. As
palavras proferidas em conversas particulares, reuniões e eventos, revelam o
desejo da maioria em continuar resistindo, sendo reconhecidos enquanto
indígenas, mesmo fora das aldeias, já que em contexto urbano, muitas vezes, essa
questão é utilizada em discursos negacionistas que querem deslegitimar os
direitos indígenas daqueles que vivem fora de territórios demarcados. E essa falta
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
11
de reconhecimento acarreta muitos prejuízos que afetam não o âmbito
material, mas principalmente o psicológico, pois faz com que não se sintam
pertencentes a lugar nenhum, levando a marginalização deles. Desestimulados a
buscar um espaço de trabalho e de estudo na cidade sentem vergonha de se
assumirem indígenas, o que tem acarretado problemas com alcoolização e
suicídio dentro de diversas comunidades, não só citadinas
17
.
A integralização com as universidades e a abertura desses espaços para a
entrada do conhecimento indígena, valorizando-o, principalmente em cursos das
áreas humanas e das artes, tem sido um grande propulsor de fortalecimento dos
movimentos em prol dos povos indígenas e da elevação de lideranças indígenas.
Um exemplo, é Vanda Ortega da etnia Witoto, técnica em enfermagem, moradora
do Parque das Tribos e estudante do curso de Pedagogia da UEA, que ficou
conhecida no Brasil inteiro durante a pandemia de COVID-19 por seu trabalho
como enfermeira na linha de frente com os povos indígenas, sendo a primeira
indígena de Manaus a tomar a vacina contra a COVID-19. Vanda participou da
performance
Uwanary Tendawa
conosco em 2017, e em maio de 2018 foi
destaque no evento “Diálogo com as Mulheres Indígenas” organizado pelos
discentes do Curso de Teatro da UEA.
Durante o evento, Vanda Ortega fez um longo discurso a respeito da questão
identitária indígena, do reconhecimento em relação a sua etnia, e o quanto isso
proporciona a elevação de sua autoestima. O empoderamento em poder se
assumir indígena, utilizando as pinturas de grafismo no corpo, os colares, os
cocares e tantos outros adereços que possuem significados sagrados e
caracterizam suas etnias. Vanda falou sobre a representatividade simbólica e de
resistência no uso do cocar:
17
Nas comunidades do interior e no Parque das Tribos, essa realidade se faz presente e é motivo de
preocupação entre indígenas e indigenistas. O relatório final da ‘I Oficina sobre Povos Indígenas e
Necessidades Recorrentes do Uso do Álcool: Cuidados, direitos e gestão’, de 2018, apresentado pelos órgãos:
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Ministério da Saúde (MS), Secretária Especial de Saúde Indígena (SESAI),
Secretária de Atenção à Saúde (SAS) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostrou que o alcoolismo é
considerado uma das enfermidades mais comuns nos grupos indígenas, a qual acarreta o consumo de
outras drogas, violência e suicídio. Disponível em:
http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/cogedi/pdf/Outras_Publicacoes/Relatorio_Geral_Oficina_Povos_
Indigenas_Alcool/Relatorio_Geral_Oficina_Povos_Indigenas_Alcool.pdf
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
12
Eu faço questão de usar meu cocar, que é algo muito representativo, isso aqui
é nossa resistência, eu não preciso hoje estar de cocar para dizer que sou índia,
isso é sagrado para nós, a nossa cultura é sagrada para nós, isso é muito da
nossa identidade e é resistência também, colocar um cocar na cabeça é dizer
que nós estamos aqui e que não vamos desistir de jeito nenhum (Ortega, 2018).
Figura 1 - Vanda Witoto - ao lado da Cacique Lutana Kokama, principal liderança do Parque
das Tribos - em seu momento de fala no evento ‘Diálogo com as mulheres indígenas’. ESAT
UEA, Manaus, AM. Em: 05 maio 2018
Arquivo pessoal da pesquisadora Vanessa Benites Bordin.
Acreditamos que as trocas entre universidades e comunidades fortalecem os
discursos gerados em ambos os espaços, fazendo com que cada vez mais
pessoas, de diferentes lugares, conheçam trabalhos nesse sentido através de
artistas e pesquisadores indígenas que estão ganhando espaço nos meios
acadêmicos e culturais.
A grande preocupação quando se trabalha com povos indígenas é como atuar
nesses espaços sem “colonizá-los”, sem levar técnicas formais trabalhadas
usualmente até eles, que a proposta é sempre o diálogo, até porque, eles
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
13
realizam suas manifestações artísticas. Na performance do TABIHUNI o Cacique
Messias Kokama foi muito direto sobre o que queriam: mostrar a visão deles sobre
o que aconteceu no ato de reintegração de posse de 2015. Assim, as ideias dos
indígenas e não-indígenas foram se complementando e fortalecendo a criação de
algo único provindo dessa mistura de referências.
Fazíamos o intercâmbio entre Comunidade e Universidade, com encontros
semanais que aconteciam no Parque das Tribos e na UEA. No final do processo
ensaiávamos somente no Parque das Tribos, no Espaço Cultural
Uka Umbuesara
Wakenai Anumarehit
, já que a maioria do grupo estava lá. Fomos nos alimentando
das narrativas relacionadas ao mandado de reintegração de posse para
construirmos a dramaturgia da performance, cada um dos indígenas que vivenciou
o conflito tinha seu depoimento, desabafando coisas que sentiam vontade de falar,
e os não-indígenas tinham textos diversos relacionados ao acontecimento
18
.
No período em que estávamos realizando o processo de criação da
performance vivemos muitas emoções e pequenos conflitos. Foi um período de
muito aprendizado e acontecimentos marcantes. Fechamos o ciclo do TABIHUNI
com uma apresentação da performance
Uwanary Tendawa
”, na feira indígena
realizada no Parque das Tribos em dezembro de 2017. A apresentação foi muito
importante para os envolvidos, gerando depoimentos motivadores para
refletirmos sobre o empoderamento que o trabalho propiciou, produzindo
pequenas transformações no cotidiano das pessoas através de gestos simples.
Uma das mulheres indígenas chorou e falou que a vida inteira teve vergonha do
seu cabelo, porque não é liso como o da maioria dos indígenas, ela disse que
sempre questionaram se ela era indígena de verdade, e que agora não sentia mais
vergonha de se assumir pertencente à etnia Baré.
A maioria das falas dos indígenas foram no sentido de valorização de sua
identidade étnica e gratidão pelo olhar da Universidade ter se voltado para a
situação de vida deles no Parque das Tribos, sendo o convite para essa parceria
muito significativo. O simples fato de a Universidade partilhar o dia a dia na
Comunidade, levantando questões e buscando soluções para os acontecimentos
18
O próprio mandado, notícias a respeito do mandado, depoimentos dos indígenas, dos policiais, de
antropólogos, políticos e advogados.
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
14
referentes à vida dos indígenas na cidade e sua condição na atualidade, era tão
significativa quanto a possibilidade de proporem ações performativas juntos.
A partir de então, o Curso de Teatro da UEA passou a trabalhar com a
comunidade Parque das Tribos em diferentes projetos, angariando parceiros de
outros cursos como Música, Direito, Pedagogia e Enfermagem, estabelecendo uma
rede de apoio que pudesse contribuir em diferentes áreas a partir das demandas
da Comunidade.
A parceria entre Vanessa e Mepaeruna seguiu. Mepaeruna começou a ensinar
a língua Tikuna para Vanessa em aulas na sua casa no Parque das Tribos.
Mepaeruna ministrava aulas de Tikuna para as crianças da comunidade no Espaço
Cultural
Uka Umbuesara Wakenai Anumarehit
e sugeriu que desenvolvêssemos
um trabalho juntas, unindo a arte e o estudo da língua e cultura Tikuna.
19
Mepaeruna convidou Vanessa para fazer parte de suas aulas de Tikuna com
as crianças e Vanessa convidou Mepaeruna para as aulas que estava ministrando
na disciplina de Expressão Vocal I no Curso de Teatro da UEA no segundo semestre
de 2018. A presença de Mepaeruna nas aulas foi um dos momentos mais
marcantes do semestre.
Durante as aulas, um dos conteúdos abordados foi a relação entre os saberes
tradicionais e as práticas teatrais. Debatemos alguns textos sobre trabalhos com
cantos tradicionais no campo das artes cênicas. Uma das referências foi o trabalho
de Maud Robart e Thomas Richards. No ano de 2015, Vanessa havia participado da
oficina: “O ator criador”, com Thomas Richards e os membros do
Workcenter of
Jerzy Grotowski and Thomas Richards
, que ocorreu na sede do Teatro Varasanta
em Bogotá, Colômbia, durante uma semana.
A oficina visava a criação artística por meio de impulsos corpóreos
provocados ao acessar alguns cantos tradicionais trabalhados durante o processo.
Sem nenhum exercício pensado em técnicas vocais, os participantes aprendem a
cantar ouvindo o outro cantar, percebendo e ativando os impulsos de seus corpos
19
O relato dessa experiência pode ser apreciado a partir da leitura do artigo: BORDIN, V. B. Contadores de
histórias Um relato da criação de espaços a partir dos encontros com os Tikuna no Parque das Tribos.
Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 38, p. 1-31, 2020. Acesso em: 20
dez. 2021. DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/14145731023820200027
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
15
para produzir aqueles sons. Ninguém ensina e nem são dadas as letras das
canções, elas são assimiladas conforme afetam os envolvidos, e assim, os
participantes criam poeticamente e improvisam em conjunto.
Durante a oficina, se falou muito a respeito do trabalho de Maud Robart, com
exibição de vídeos que mostravam o diretor polonês Jerzy Grotowski conduzindo
seus performers a partir da experimentação com cantos vibratórios tradicionais,
nessas experimentações Maud Robart se destacava. “De 1978 a 1980, Maud
trabalhou como co-diretora de Grotowski na fase de pesquisa cênica conhecida
como Teatro das Fontes” (Motta, 2019, p.38). Nesse período, Grotowski não
produzia espetáculos teatrais para serem assistidos, mas sim, experiências
realizadas para “testemunhas”, testemunhas de uma prática, de uma obra e de
uma vida daqueles com quem eles estiveram ao longo de seu percurso, o teatro
compreendido como um encontro. Maud permaneceu nesse trabalho com
Grotowski até o ano de 1993.
As proposições de Grotowski queriam aproximar suas criações artísticas de
um ato ritualístico, um ato coletivo, propiciando um espaço de encontro e
comunhão entre todos: “eu acreditava que por meio do retorno ao ritual fosse
possível reencontrar aquele cerimonial da participação direta, viva, uma
reciprocidade peculiar, a reação imediata aberta, liberada e autêntica” (Grotowski,
2007, p.19-120). Nesta direção, Grotowski dizia que para o teatro continuar vivo e
pulsante ele deveria resgatar a espontaneidade teatral original provinda dos rituais,
já que os ritos ancestrais deram vida ao teatro.
Maud Robart, haitiana, desenvolve suas práticas a partir dos cantos
tradicionais do ritual vodu afro-haitiano. No site da própria artista
20
encontramos
algumas informações sobre ela, as bibliografias a respeito de seu trabalho são
poucas, mas têm crescido recentemente.
Essas práticas que pensam o trabalho do performer indo na direção de uma
descoberta profunda enquanto ser humano, permitem ampliar nossos horizontes
e percepções para o mundo ao nosso redor. São experiências que possibilitam
tornar nossos corpos “relacionais” (Motta, 2019), como foi a oficina de Maria Julia
20
https://www.maudrobart.com/
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
16
Pascali, que trouxe uma abordagem bem próxima à da vivenciada por Cristiane
Madeira Motta com Maud Robart:
Maud aponta que o corpo humano tem a capacidade de fazer com que
nos conectemos e relacionemos com: os outros seres humanos, a
natureza, o ar, o sol, o todo ao nosso redor. Temos que tomar consciência
de que o nosso corpo é um corpo relacional e de que isto faz parte de
sua essência e para tal, temos os sentidos: olfato, tato, audição, paladar,
visão. A prática proposta por Robart nos ajuda a permitir que nossos
corpos sejam corpos relacionais (Motta, 2019, p.41-42).
As questões levantadas pelas reflexões, a partir dessas referências, foram
fundamentais antes da chegada de Mepaeruna na aula de Expressão Vocal I para
que os estudantes pudessem ter a dimensão da importância em conhecer suas
origens culturais e os saberes tradicionais de seu entorno, pois a maioria, mesmo
sendo do Amazonas, desconhece os aspectos da cultura indígena, que é múltipla,
com várias etnias, mantendo a ideia do senso comum de que índio é aquele
que ‘não tem contato’ com a nossa cultura, aquele que vive na floresta, não
imaginam que a cultura indígena está viva em muitas comunidades, inclusive
dentro da própria cidade de Manaus. Felizmente, vão sendo instigados a conhecer
a cultura indígena das diferentes etnias presentes no Estado do Amazonas a partir
do trabalho de diferentes docentes.
A presença de Mepaeruna e de seus filhos causou alvoroço na turma, todos
muito curiosos fizeram perguntas a ela, que falou principalmente sobre o
aprendizado das canções com a sua avó. Falou, ainda, sobre ser mulher na aldeia
e na cidade, das dificuldades que enfrentou e enfrenta para criar e educar seus
filhos. Apesar de ter tudo o que precisa na aldeia, no sentido de subsistência:
plantam, caçam e pescam, ao mesmo tempo, acha que os filhos precisam estudar
fora da aldeia, para que também tenham acesso ao conhecimento do mundo dos
brancos. Outra questão é a saúde, muitas vezes é preciso sair da aldeia para se
tratar de algumas doenças.
Mepaeruna contou que quando estava na oitava série do ensino fundamental
foi atrás de sua origem, perguntou aos mais velhos sobre o seu ‘DNA’ e descobriu
que além de seu sangue predominante ser Tikuna, que é o de seu pai, ela tem
sangue português e Kokama (que é o de sua mãe, mas como quem determina a
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
17
etnia é o pai, Mepaeruna é Tikuna). Para Mepaeruna somos todos parentes.
Mepaeruna fechou nosso encontro falando de sua experiência enquanto
neófita no ritual de iniciação feminina
Worecü
, A Festa da Moça Nova, foi o ápice
do encontro, pois a maioria não imaginava que existisse tal rito de passagem, que
acontece quando a menina Tikuna tem sua menarca
21
.
Mepaeruna ficou meio ano reclusa após sua menarca, fechada em casa, não
saía para nada, chegou a ficar branca, pois nem tomava sol, permanecia em casa
enrolando a fibra de tucum
22
na coxa, fazendo tipo um tapete para se sentar em
cima, esperando o dia de sua Festa.
A Festa da Moça Nova é a oportunidade para as mulheres mais velhas
aconselharem as moças que não querem obedecer aos mais velhos. O desfecho
do rito de passagem, que é quando arrancam os cabelos da Moça, é para que
sintam medo e não gritem mais com as mães, se a menina não passa pela Festa
ela briga com a mãe, fala que jenipapo é sujo, fica respondona e depois da Festa
pode cozinhar.
O ato de arrancar os cabelos durante o ritual, foi muito dolorido para
Mepaeruna, dor que foi amenizada ao beber o
payauaru
, pois deixou seu corpo
mais relaxado. O
payauaru
é a bebida típica servida na Festa, com teor alcóolico
moderado, feita da fermentação da mandioca - a macaxeira - não a mandioca
brava da qual é feita a farinha.
O curral é um espaço de madeira dentro da Casa de Festa onde a Moça Nova
fica isolada durante os três dias da Festa, sendo liberada somente no último dia,
quando então pode ver os convidados. Mepaeruna levou um susto ao sair do curral
e ver tanta gente, mas se divertiu bastante, principalmente depois que passou a
dor de arrancar seus cabelos e foi para o banho de igarapé, que é uma ação
coletiva como fechamento do ritual. Mepaeruna garantiu que após A Festa ficou
mais obediente.
No fim de sua fala Mepaeruna convidou todos para dançarem e cantarem
21
Primeira menstruação.
22
Palmeira típica amazônica.
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
18
algumas músicas tradicionais da Festa da Moça Nova, foi um momento de
descontração e improvisação, em que todos aprenderam a cantar e dançar com
Mepaeruna, uma forma de ensino-aprendizagem que dispensa muitas explicações
e se efetiva pela concentração e repetição.
Figura 2 Turma de Expressão Vocal I cantando e dançando músicas
tradicionais Tikuna. Escola de Artes e Turismo, Universidade do Estado do
Amazonas, Manaus (AM). Em: 22 set. 2018
Arquivo pessoal da pesquisadora Vanessa Benites Bordin.
No ano de 2019 nos afastamos, Mepaeruna seguiu em Manaus e Vanessa
estava em São Paulo terminando seu doutorado, nesse ano ambas engravidamos
e perdemos nossos bebês.
Em fevereiro de 2020 nos reencontramos em Manaus e retomamos os
trabalhos com as crianças no Parque das Tribos, que foi interrompido com a
chegada da pandemia do Novo Coronavírus (COVID-19), o que fez com que
ficássemos alguns meses sem atividades. No entanto, logo surgiram editais de
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
19
fomento à cultura propiciados pela Lei Aldir Blanc, ação emergencial do Governo
Federal de junho de 2020 destinada ao setor cultural devido ao estado calamitoso
provocado pela pandemia da COVID-19. A partir da Lei Aldir Blanc foi criado o edital
“Encontro das Artes” em dezembro de 2020, lançado pela Secretária de Cultura e
Economia Criativa do Amazonas. Esse edital possibilitou pensarmos novos
projetos para juntas seguirmos nossas atividades artísticas.
Assim, escrevemos dois projetos. Mepaeruna queria fazer algo que incluísse
seu trabalho de artesanato, os grafismos e as canções tradicionais Tikuna.
Elaboramos a primeira proposta intitulada “Mepaeruna: o galho bonito onde pousa
o japó”, que é o significado do nome Mepaeruna na língua Tikuna e se refere a sua
nação, ou clã
23
, que é japó, um pássaro muito comum na região amazônica.
Todos os nomes dos Tikuna são escolhidos a partir de suas nações, que
servem para regular os casamentos. Os Tikuna se dividem em duas nações: os
com plumas (que são representados por aves como: arara, gavião, mutum, japó
etc.) e os sem plumas (que são animais terrestres e vegetais: onça,
avaí
, jiboia,
saúva, buriti, jenipapo). Os da nação com plumas podem se casar com os da
nação sem plumas, que são definidas pela descendência patrilinear, sendo a nação
do pai a que define a qual pertence a filha ou o filho.
O projeto visava uma série de lives, transmissões ao vivo pelo
Youtube
, no
canal Mepaeruna Tikuna
24
. A primeira foi no dia 29 de março de 2020, em que
Mepaeruna compartilhou uma série de conhecimentos a respeito do artesanato
Tikuna. O segundo dia, 30 de março, Mepaeruna apresentou os grafismos corporais
Tikuna, que são sagrados, é como se fosse “uma maquiagem” que além de
embelezar, protege. A antropóloga Lux Vidal fala que os grafismos indígenas
representam, tanto em nível ritual, quanto em nível cotidiano, “um sistema de
comunicação visual estruturado capaz de simbolizar eventos, categorias e status
e dotado de estreita relação com outros meios de comunicação verbais e não-
verbais” (Vidal, 2000, p.144). Desse modo, os grafismos e as peças artesanais
guardam e narram as origens ancestrais dos povos tradicionais, estabelecendo
23
“um grupo de pessoas descendentes de um ancestral mítico, ou seja, do qual não é possível demonstrar
uma conexão genealógica” (Matarezio Filho, 2015, p.41).
24
www.youtube.com/channel/UCeBp8_fpnAIJOoT_6FTJqrg
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
20
uma conexão espiritual com seus antepassados, cada etnia possui a sua gama de
grafismos que são sua marca identitária.
Fechamos o evento virtual no dia 31 de março com Mepaeruna apresentando
algumas canções e danças tradicionais presentes no ritual de iniciação feminina
Worecü
, A Festa da Moça Nova, em que se celebra a fertilidade feminina e da terra,
buscando estabelecer com os diferentes seres do cosmos uma boa relação para
que a subsistência provinda da terra e a perpetuação do povo se mantenha de
forma abundante. As canções e as danças fazem parte da tradição ancestral do
povo Tikuna, passadas de geração a geração, que se mantém vivas e se renovam
ao longo dos tempos.
“Contando histórias, revelando tradições” foi o segundo projeto que
desenvolvemos, visando uma semana de oficinas na mesma linha em que
realizamos com as crianças e jovens no Parque das Tribos, trabalhando a contação
de histórias com o teatro de formas animadas e os instrumentos musicais em um
espaço de improvisação. O desafio era trazer essa proposta para o ambiente
virtual, sendo que nosso trabalho se em espaços periféricos onde o acesso à
internet é muito limitado, no entanto, ampliamos para pessoas de outras cidades
do estado do Amazonas, do Brasil e do mundo, que as oficinas ocorreram via
Google Meet e foram transmitidas ao vivo pelo Youtube
25
via portal de artes cênicas
www.mever.com.br.
As oficinas ocorrerem de 5 a 9 de abril de 2020. No primeiro dia contamos
histórias de cobra grande presentes nas culturas indígenas Guarani, Kokama e
Tikuna, abrindo a roda para que os participantes que conhecessem e se sentissem
à vontade contassem suas histórias de cobra grande.
No segundo dia, os participantes contaram um pouco das histórias de seus
antepassados, utilizando objetos pessoais que representassem suas origens e
ancestralidade.
No terceiro dia trabalhamos com a confecção de chocalhos, apresentando
25
Primeiro dia de oficina: https://www.youtube.com/watch?v=bfh8shRUAQ0
Segundo dia de oficina: https://www.youtube.com/watch?v=SP_Wk2FNMy4
Terceiro dia de oficina: https://www.youtube.com/watch?v=nfWiSdpntB0
Quarto dia de oficina: https://www.youtube.com/watch?v=f2yILyyGBF4
Quinto dia de oficina: https://www.youtube.com/watch?v=9prKU-E5hHM
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
21
várias possibilidades de materiais recicláveis que os participantes poderiam ter em
casa para essa produção. Os materiais incluíam garrafas pets, garrafas plásticas
de diferentes produtos, copos plásticos de requeijão, iogurte, entre outros,
sementes, grãos (feijão, lentilha, ervilha), arroz, cordas, tintas, tecidos e demais
elementos que surgissem a partir de suas propostas. Assim, improvisamos
histórias utilizando o chocalho como elemento de construção poética.
No quarto dia de oficina estimulamos a produção de bonecos a partir de
materiais que os participantes tivessem em casa, seguindo a mesma linha da
produção de instrumentos musicais, incluindo caixas de leite e tecidos. Os tecidos
possibilitaram a confecção dos bonecos a partir de técnicas de amarrações,
dobras e recortes. Depois, o grupo era instigado a improvisar histórias com seus
bonecos criando diferentes narrativas.
No quinto e último dia de oficina, os participantes eram convidados a
apresentarem suas histórias a partir do que havíamos trabalhado ao longo dos
dias. Esse processo de oficinas foi todo adaptado para o ambiente virtual, que
até então havíamos trabalhado nessa linha de forma presencial, logo, foi um
grande desafio para nós estarmos nesse espaço de telepresença, porém, foi uma
experiência muito engrandecera ao ampliar nossas formas de fazer artístico. Ao
final das oficinas produzimos um documentário sobre esse processo de criação
das oficinas em espaço virtual, abordando a questão da telepresença e do teatro
digital, trazendo entrevistas com especialistas e mostrando a realidade de alguns
artistas da cena nesse período. O documentário está disponível no
Youtube
26
e
pode servir como material de pesquisa para artistas, artistas-professores,
professores e interessados na área.
26
https://www.youtube.com/watch?v=Gty3lAVZwTw
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
22
Referências
BORDIN, V. B. Contadores de histórias Um relato da criação de espaços a partir
dos encontros com os Tikuna no Parque das Tribos.
Urdimento
- Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 38, p. 1-31, 2020. Acesso em: 20
dez. 2021. DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/14145731023820200027
GONÇALVES, Luiz Davi Vieira. Estudos étnicos no teatro: A Metodologia Kõkamõu
como Perspectiva Simétrica para o Processo de Pesquisa e Criação em Arte.
Revista Arte da Cena
, Porto Alegre, v.4, n.1, jan.-jun. 2018. Acesso: 10 de out. 2021.
DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v4i1.52454
GONÇALVES, Luiz Davi Vieira.
O(s) corpo(s) Kõkamõu: a performatividade do pajé-
hekura Yanonami da região Maturacá
. Tese (Doutorado em Antropologia) -
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.
GROTOWSKI, Jerzy.
O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969
. São Paulo:
Perspectiva: SESC, 2007.
KAMBEBA, Márcia Wayna.
O lugar do Saber
. São Leopoldo/RS: Casa Leiria, 2020.
KRENAK, Ailton.
Ideias para adiar o fim do mundo
. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
LAGROU, Els.
A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade
amazônica (Kaxinawa, Acre)
. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
LAGROU, Els.
Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação
. Editor: Fernando
Pedro da Silva; Coordenação: Fernando Pedro da Silva e Marília Andrés Ribeiro;
Orientações Pedagógicas: Lucia Gouvêa Pimentel e William Resende Quintal. Belo
Horizonte: Editora C / Arte, 2009.
MATAREZIO FILHO, Edson Tosta.
A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina
dos índios Ticuna.
Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade de São Paulo,
2015.
MOTTA, Cristiane Madeira.
O corpo que somos na experiência de cantar tradições
.
Tese (Doutorado em Artes) - Universidade de São Paulo, 2019.
ORTEGA, Vanda. “Evento: Diálogo com as Mulheres Indígenas”. (Fala). Manaus: UEA,
2018.
TAYLOR, Diana.
O arquivo e o repertório. Performance e memória
. Belo Horizonte:
UFMG, 2013.
Diferentes tradições, vidas que se entrelaçam: O encontro de duas artistas em Manaus
Vanessa Benites Bordin; Mepaeruna Tikuna
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
23
VIDAL, Lux.
Grafismo indígena: estudos de antropologia estética
. edição São
Paulo: Studio Nobel: Fapesp, 2000.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.
Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo
ameríndio
. Rio de Janeiro: Mana 2 (UFRJ), 1996.
ZUMTHOR. Paul.
Performance, recepção e leitura
. ed. São Paulo: Cosac Naify,
2002.
Recebido em: 11/01/2022
Aprovado em: 07/03/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br