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(des)educação estética em
Weapon is a part
of my body
: Corpo e política em discurso
Jean Carlos Gonçalves
Michelle Bocchi Gonçalves
Para citar este artigo:
GONÇALVES, Jean Carlos; GONÇALVES, Michelle Bocchi.
(des)educação estética em
Weapon is a part of my body
:
Corpo e política em discurso.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0102
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Jean Carlos Gonçalves; Michelle Bocchi Gonçalves
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
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(des)educação estética em
Weapon is a part of my body
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:
Corpo e política em discurso
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Jean Carlos Gonçalves
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Michelle Bocchi Gonçalves
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Resumo
O artigo apresenta reflexões desencadeadas a partir do espetáculo
Weapon
is a part of my body
, uma coprodução entre Brasil, Israel e Reino Unido, com
atuação do brasileiro Pedro Granato e da israelense Ruthie Osterman,
tomando como princípio norteador o conjunto de potencialidades que a obra
oferece para se pensar o que nomeamos, neste ensaio, como (des)educação
estética e suas reverberações para os debates sobre corpo e política na cena
contemporânea. O quadro teórico-metodológico tem sua moldura
envernizada pela Análise Dialógica do Discurso. Elegemos como texto base o
ensaio O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária,
escrito por Bakhtin em 1934, no qual o autor oferece elementos para uma
reflexão sobre estética geral.
Palavras-chave
: (des)educação estética. Corpo. Política. Discurso.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Cintia de Oliveira Pontes Rosa. Mestra em Educação
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Licenciada em Letras pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG) e Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional (Uninter). cissapontes@gmail.com
2
Trabalho realizado com o apoio do CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
3
Pós-doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP/CNPq). Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em
Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB/CAPES). Licenciatura e Bacharelado em Teatro
pela FURB. Professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua no Setor de Educação Profissional e
Tecnológica e no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Professor credenciado no Programa de
Pós-Graduação em Letras - Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande (PPGL - FURG).
Pesquisador com bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq. jeancarllosgoncalves@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8274122800491884 https://orcid.org/0000-0003-2826-3366
4
Pós-doutorado em Educação pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI/CAPES). Doutora e Mestre em
Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/CAPES). Licenciatura e Bacharelado em Biotecnologia
Ciência Biológicas pela UNIVALI. Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua no Setor de
Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). michellebocchi@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2300087220820176 https://orcid.org/0000-0002-2401-8470
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Aesthetic (dis)education in
Weapon is a part of my body
:
Body and politics in discourse
Abstract
The article presents reflections triggered by the show
Weapon is a part of my
body
, a co-production between Brazil, Israel and the United Kingdom, with
the performance of the Brazilian Pedro Granato and the Israeli Ruthie
Osterman, taking as a guiding principle the set of potentialities that the work
offers to think about what we call, in this essay, as aesthetic (dis)education
and the intersections with the debates about body and politics in the
contemporary scene. The theoretical-methodological framework has its
framework varnished by the Dialogical Analysis of Discourse, of which we
chose as the base text the essay The problem of content, material and form
in literary creation, written by Bakhtin in 1934, in which the author proposes a
discussion about general aesthetics.
Keywords
: Aesthetic (dis)education. Body. Politics. Discourse.
La (des) educación estética en
Weapon is a part of my body
:
Cuerpo y política en el discurso
Resumen
El artículo presenta reflexiones desencadenadas por el espectáculo
Arma es
una parte de mi cuerpo
, una coproducción entre Brasil, Israel y Reino Unido,
con la actuación del brasileño Pedro Granato y la israelí Ruthie Osterman,
tomando como principio rector el conjunto de las potencialidades que ofrece
la obra para pensar en lo que llamamos, en este ensayo, como (des)
educación estética y las intersecciones con los debates sobre el cuerpo y la
política en la escena contemporánea. El marco teórico-metodológico tiene
su marco barnizado por el Análisis Dialógico del Discurso, del cual elegimos
como texto base el ensayo El problema del contenido, material y forma en la
creación literaria, escrito por Bakhtin en 1934, en el que el autor propone un
discusión sobre estética general.
Palabras clave
: (des)educación estética. Cuerpo. Política. Discurso.
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Para nossos filhos, Antonia e Isaac
Para mães e pais que também são professores, cientistas e artistas
Introdução
Weapon and art
Pedro: Ser pai é o maior desafio que eu tive. Mas você recebe muito
amor. Estar na política também é difícil. Mas, em contrapartida, você
recebe ódio.
Ruthie: Na maternidade você recebe amor, mas perde sua liberdade.
A arte cria uma nova forma, como uma nova relação axiológica com
aquilo que se tornou realidade para o conhecimento e para o ato: na
arte nós sabemos tudo, lembramos tudo (no conhecimento não sabemos
nem lembramos nada, não obstante a fórmula de Platão); mas é
justamente por isso que na arte o elemento da novidade, da originalidade,
do imprevisto, da liberdade tem tal significado, pois nela um fundo
sobre o qual pode ser percebida a novidade, a originalidade, a liberdade
o mundo a ser conhecido e provado, do conhecimento e do ato, e é ele
que na arte se apresenta como novo, é pela relação com ele que se
percebe a atividade do artista como sendo livre (Bakhtin, 2014, p.34).
Weapon is a part of my body
é um espetáculo com transmissão online
simultânea em São Paulo e Liverpool, que estreou no dia 24 de outubro de 2021
no Festival Porto Alegre em Cena e depois passou a ser veiculado no canal do
Youtube
da Contorno Produções, em sessões e/ou períodos específicos. Com
performance e criação de Pedro Granato e Ruthie Ostherman e direção técnica de
Gustavo Bricks, assinam a produção do trabalho a Pequeno Ato e a Contorno
Produções.
O fio condutor da narrativa transita por elos de referência com questões de
maternidade/paternidade. Cada um dos artistas tem perto de 40 anos e tem em
comum o fato de serem pai e mãe recentes. Os questionamentos levantados pela
peça têm como pauta a relação da violência com as identidades das personagens,
seus modos de lidar com a própria sobrevivência e suas conexões aos lugares em
que vivem.
A sinopse da obra nos auxilia a compreender esse contexto:
Uma mãe e um pai, com continentes de distância, refletem sobre como
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o poder e a violência moldaram suas trajetórias. Em telhados de suas
cidades compartilham histórias pessoais que cruzam nascimentos,
guerras, mortes e conquistas.
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No caso de Ruthie Ostherman, nascida em Israel e morando em Liverpool,
entramos em contato com a forma com que a violência moldou seu modo de viver
a partir de relatos que abordam a opressão sofrida durante sua juventude em meio
à Guerra do Golfo, e nos deparamos, ainda, com sua experiência no Exército
Israelense e com a presença da figura de sua avó, sobrevivente ao Holocausto
(Balsanelli, 2021).
Já, Pedro Granato, faz um paralelo entre o tema do espetáculo e sua
experiência com o poder público e os jogos de poder envolvidos na política
brasileira.
A cidade é o cenário.
Ruthie atua em cima de um prédio abandonado, em reconstrução, - o espaço
das ações; enquanto Pedro utiliza, como palco, o terraço da Secretaria Municipal
de Cultura de São Paulo, onde vivenciou parte dos episódios narrados em cena
(Balsanelli, 2021).
O trabalho de análise que aqui se apresenta foi realizado durante a
temporada de 10 a 19 de dezembro de 2021, período em que o espetáculo ficou
disponível
online
no modo
todos os dias on demand
, gratuitamente. É importante
ressaltar que a disponibilização da peça por um período maior de dias, podendo
ser acessada em qualquer horário, foi fundamental para o processo de descrição,
análise e interpretação, procedimentos necessários ao caráter teórico-
metodológico que ancora esta pesquisa.
Compreendendo que o espetáculo só se encontra disponível até o momento,
dentro de projetos específicos (festivais e temporadas), optamos por não divulgar,
nesse artigo, qualquer imagem ou
link
relacionados à peça. O leitor pode ter acesso
a informações sobre o espetáculo,
teaser
e novas estreias nas páginas e redes
sociais da Contorno Produções e da Pequeno Ato, agências de produção às quais
5
Balsanelli, 2021.
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o trabalho encontra-se vinculado.
Em
Weapon is a part of my body
, as cenas surgem em pequenos blocos,
como se fossem atos, nomeados e tematizados, entre os quais escolhemos
discutir os seguintes:
Father, Mother, A good man, Interview
e
Panic
. Optamos,
neste ensaio, por não apresentar dados cronológicos referentes ao vídeo da peça
e preferimos, também, não descrever a visualidade das cenas em detalhes, de
modo a preservar a fruição de futuros espectadores do trabalho, já que o mesmo
se encontra gravado e pode, eventualmente, ser disponibilizado em outras
oportunidades. Há, no entanto, no decorrer da discussão, alguns trechos
transcritos, que seguem rigorosamente a legenda em português (o espetáculo
ocorre inteiramente em língua inglesa).
De Bakhtin, utilizamos, neste artigo, o texto
O problema do conteúdo, do
material e da forma na criação literária
, escrito em 1924 para a revista O
Contemporâneo Russo (não publicado à época). Nesse texto Bakhtin propõe uma
discussão de caráter metodológico a respeito dos “principais conceitos e
problemas da poética, a partir de uma estética sistemática e geral” (Bakhtin, 2014,
p.13).
O presente artigo se subdivide em três partes: esta, 1
. Introdução Weapon
and art
, na qual situamos a obra e o estudo, a segunda, 2.
(des)educação estética
,
dedicada à discussão e análise por blocos do espetáculo, e a terceira, 3.
Considerações Corpo e Política no olho do furacão
que apresenta as
potencialidades do trabalho aqui desenvolvido para a ampliação do conhecimento
científico sobre os temas abordados.
(des)educação estética
Ruthie: Eu sempre duvidei da nossa profissão, teatro e o seu significado...
mas eu pensei que isso poderia ser uma peça.
Comecemos pela (des)educação. Mobilizar o sentido de educação é o
primeiro acordo que fazemos com o leitor. Cabe nesse escopo, então, tudo aquilo
que nos pareça um movimento contra a corrente, contra a maré, no que tange a
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uma ideia de resistência aos pressupostos para uma educação calcada em boas
condutas ou boas maneiras, em voga de forma abruptamente crescente no Brasil
pós 2018. Embora o uso dos termos (des)educação, deseducação ou des-
educação, entre outros, ainda careça de maior aprofundamento e rigor teórico-
metodológico quanto à sua construção histórica e utilização no campo científico,
é possível iniciar um diálogo no sentido de não vinculá-lo a uma ou a outra esfera
de produção enunciativo-discursiva
6
, o que seria, já, um ato de poder que o
enquadraria, de modo incoerente com a própria etimologia da expressão, em
espaços aos quais a (des)educação não quer pertencer.
(des)educação poderia se constituir, então, como um processo ao revés, uma
espécie de desaprendizagem proposital daquilo que um dia foi aprendido e
apreendido enquanto forma higiênica de se relacionar com o mundo e com os
outros. Neste processo estão implicados discursos e práticas que podem ou não
ser proferidos/realizadas em determinadas esferas de atividade. Entram nesse
combo subjetivo questões como rebeldia e transgressão que, em termos
bakhtinianos, aproximam-se da noção de degradação do
sublime
, que tomamos
emprestada da obra
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais
, escrita na década de 1940 e publicada na Rússia
em 1965:
[...] quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente,
mata-se e -se a vida em seguida, mais e melhor. Degradar significa
entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre
e dos órgãos genitais e, portanto, com atos como o coito, a concepção, a
gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das
necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar
lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor
destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador. É
ambivalente
, ao mesmo tempo negação e afirmação (Bakhtin, 2013, p.19).
Nessa direção, podemos então argumentar que a (des)educação passa por
um viés de destruição radical do conceito de educação, para que seja possível uma
nova configuração do que se entende por educação nos tempos atuais. Longe de
uma discussão sobre as relações entre tradicional e o contemporâneo, entre o
6
Optamos, nesse trabalho, pela utilização do termo (des)educação sem, no entanto, diferenciá-lo
semanticamente das outras grafias possíveis.
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velho e o novo ou entre o inadequado e o aceitável, pensar a noção de
(des)educação pela perspectiva dialógica requer, mais do que afirmações de
conceitos ou categorizações, a busca de motivações para o enfrentamento de
questões limítrofes e fronteiriças interessadas na resistência como mote
aglutinador, ou seja, em termos prontos, (des)educação é resistência, mas por
entender-se como processo (sempre em construção), não se permite à redução,
nem mesmo ao contorno fechado da silhuetas englobantes que o termo
resistência
possa esboçar. A noção de (des)educação, como defendemos nesse
texto, alia-se, assim, à uma festa de renovação que se no campo da linguagem,
com todas as suas subjetividades e envolvendo sujeitos situados nas mais diversas
esferas.
Para o campo da estética, a (des)educação nos parece bastante apropriada,
justamente por que desestabiliza e atualiza as relações entre estética e educação,
sob um ponto de vista amplo e não reducionista, em contraponto ao que se tem
compreendido atualmente, em determinadas áreas e, a nosso ver,
equivocadamente, como educação estética.
A amplitude do termo pode ganhar um reforço significativo, no entanto,
quando se reconhece a estética, primeiramente, como “uma interrupção
inesperada no fluxo do cotidiano” (Gumbrecht, 2010, p.55), sendo que o
pressuposto desta acepção se refere à manifestação de um sentimento que
ultrapassa tanto as dimensões quanto os conceitos a partir dos quais enfrentamos
o mundo / a vida. O caráter múltiplo desta empreitada teórica de Grumbrecht
distancia a noção de estética, ainda, de sua acepção erroneamente vinculada ao
belo e/ou ao esplêndido. Por isso, é importante compreender que:
O campo da formação estética passa, hoje, por significativas mudanças
que sinalizam a necessidade de ver e ouvir outros modos e mecanismos
de funcionamento da produção artística, com suas próprias frentes de
resistência e estilos possíveis de sobrevivência (Gonçalves & Lecheta,
2019, p.155).
Dessa forma, importa reforçar que ainda sobressaltam em determinados
contextos, ao longo da história e do orbe das ideias, perspectivas que produzem e
querem manter concepções de arte e de acesso à cultura vinculadas a campos
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hegemônicos e centralizadores. Nesse sentido, o presente artigo contribui para o
campo em questão ao tomar como texto referência o conceito de (des)educação
estética por uma perspectiva múltipla, descentrada, que a arena teórica
escolhida nos permite pensar outros modos de formação estética na atualidade,
que ultrapassam a vinculação com a arte e se mesclam as vidas real e fictícia de
forma plena e radical, considerando os jogos enunciativo-discursivos
entrelaçados.
Ruthie e Pedro
Em
Weapon is a part of my body
podemos, de diferentes modos e em
momentos distintos, identificar a presença de elementos discursivo-enunciativos
que aproximam o espetáculo da noção de (des)educação estética. Vejamos:
This is Ruthie
Ela é uma artista israelense que vive o Reino Unido. Ela é mãe de dois
meninos. Sua história é atravessada por guerras, mas agora ela está em
guerra por dentro.
This is Pedro
Um artista brasileiro. Dois anos atrás, duas grandes mudanças
aconteceram em sua vida ao mesmo tempo: entrou na política e se
tornou pai. Quando criança sempre evitou conflitos. Mas agora ele tem
todos os conflitos ao mesmo tempo.
Após uma introdução, que apresenta memórias de Ruthie, a apresentação
dos atores-personagens, descrita acima, acontece por entre imagens em
movimento e as expressões
This is Ruthie e This is Pedro
em letras garrafais em
cor-de-rosa. Em seguida, Pedro encara a câmera e começa a narrar fatos
relacionados à expectativa e ao dia do nascimento de sua filha. Isto que podemos
chamar de primeiro bloco de depoimento situa o espectador quanto ao tema da
obra, de forma a colocá-lo na posição de escuta. Sabemos, nós, espectadores,
neste início do espetáculo, que vamos acompanhar narrativas teatralizadas.
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Importa, então, pensar o discurso teatral em perspectiva expandida
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como
uma potência para se pensar a (des)educação estética nos termos elencados
acima.
Em
Weapon is a part of my body
percebemos a forma como a ação é
teatralmente acordada e calculada entre os partícipes da cena. Cabe ao
espectador aceitar seu lugar de público de teatro à mercê do jogo íntimo que se
estabelece e cruza as narrativas. Quando recorremos à expressão
teatralmente
,
faz-se necessário posicionar o leitor quanto ao que temos escrito sobre
teatralidade expandida, a partir de Diéguez, para quem tal perspectiva
compreende:
[...] um discurso e uma estratégia que atravessa o teatro e o
transcende, possibilitando inclusive a expansão e o deslocamento dos
limites do teatral e do artístico.[...]. As transformações e expansões do
performativo, do teatral e do cênico não têm ocorrido somente por conta
das contaminações e disseminações indisciplinares das artes, senão
insistentemente pelas demandas e contaminações que os
acontecimentos da vida propõem à arte, pela urgência com que nos
interpelam as cenas e teatralidades das polis. Dessa forma, a teatralidade
como campo expandido não nos exige reconhecer as outras cenas e
o outro teatro que emerge nos interstícios artísticos, mas também nos
intima a reconhecer a teatralidade que habita na vida e nas
representações sociais, tal como o fizeram Artaud e Evreinov. A
teatralidade como campo expandido para além das artes (Diéguez, 2014,
p.125, 129).
Pensar a cena em campo expandido por meio da noção de teatralidade abre
espaço para uma análise que insiste, de algum modo, na defesa de que a noção
discurso teatral
ultrapassa o campo
in situ
da encenação (inclusive da encenação
presencial), o que sugere uma abordagem radical do termo, especialmente para a
análise das distintas formas de expressão e comunicação humanas produzidas na
esfera virtual em virtude da pandemia global de Covid-19
8
, incluídas, aí, as Artes
7
Para mais informações a respeito dos pressupostos fundantes que embasam a noção de discurso teatral
em perspectiva expandida sugerimos a leitura do texto
Circo Negro: o discurso teatral em perspectiva
dialógica
, publicado no livro
Dialogismo: Teoria e(m) Prática
(Gonçalves, 2014).
8
Este é um dos principais objetivos do projeto de pesquisa
O discurso Teatral em perspectiva dialógica:
potencialidades, urgências e demandas
, desenvolvido com apoio do CNPq (Bolsa de produtividade em
pesquisa PQ), que conta com a participação dos seguintes pesquisadores: Dick Mc Caw (University of
London Inglaterra), Jean-Frédéric Chevallier (Trimukhi Platform Índia), Tiago Porteiro (Universidade do
Minho Portugal), Carla Marcelino (Universidad Técnica Particular de Loja Equador), Angela Brand
(Universidade de Antioquia Colômbia) e Sônia Machado de Azevedo (Escola Superior de Artes Célia Helena
São Paulo/Brasil).
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do Corpo. A cena e o que se entendia por cena teatral passou por mudanças
drásticas e, ao nosso ver, irreversíveis quanto ao seu modo de confecção e fruição.
Torna-se importante, então, dizer que o sustentáculo do Dialogismo, tal como
defendido por Bakhtin e o Círculo, parte da premissa de que a análise de uma
materialidade se constitui enquanto “relação axiológica com os fenômenos
humanos e construída através do diálogo entre pontos de vista distintos sobre
homem, sua natureza e sua história” (Castro, 2007, p.94).
Nesse aspecto, o espetáculo que tomamos como objeto neste trabalho
transborda de sentidos que apontam, ao mesmo tempo, caminhos para uma
(des)educação estética e conexões entre corpo e política na cena contemporânea,
como podemos averiguar nos blocos seguintes.
Father
Pedro: Minha filha deve nascer perto da véspera de Ano Novo. Nos
organizamos para ficarmos tranquilos e calmos. Estou sempre com
pressa, trabalhos, com um monte de coisas, mas agora queremos estar
de boa. [...] Roberta está gritando de dor, mas quanto mais dor ela sente
mais feliz ela fica. Então ela está gritando de dor com um grande sorriso.
Eu coloco um reggae e a enfermeira diz: “Em algumas horas seu bebê irá
nascer”. Então é realmente o dia mais feliz da minha vida. Quando a
doutora chega ela que Rosa está nesse líquido escuro, chamado
mecônio, em um nível perigoso. Então medem os batimentos cardíacos
para ver se inconsistências, se ela está bem, se não está sofrendo. E
quando ela analisa ela diz que vamos ter que fazer uma cesárea.
Pedro nos conta de sua relação com o parto de sua esposa e, visualmente,
passa a utilizar uma máscara que opera, enquanto objeto cênico, a partir de ao
menos dois códigos: remete ao centro cirúrgico e à pandemia de Covid-19. O
funcionamento deste signo ideológico
9
surpreende pela relação de identificação
com o espectador que o objeto
máscara
propõe. Seu relato da espera e do dia do
parto envolve música, visualidade solar, ironia e o ponto de vista de um pai imerso
em trabalho e compromissos. Nada de novo quanto ao tema,
à priori
. Basta, no
entanto, que prestemos atenção à não linearidade proposta pelo espetáculo, para
9
A noção de signo ideológico é discutida na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais
do método sociológico na ciência da linguagem, de Valentin Volóchinov (Círculo de Bakhtin) (Volóchinov,
2017).
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que entendamos que a crítica está justamente no fato de o mesmo mobilizar a
forma como pessoas de diferentes gêneros e sexualidades lidam com as
intersecções entre vida privada e pública, o que põe em cheque a urgência das
discussões sobre gênero quando estão na vitrine elementos como corpo e política.
O que cabe no universo privado e público de pessoas que precisam, ainda,
lidar, de formas distintas e singulares, com a produtividade e as responsabilidades
familiares? Em quais aspectos uma (des)educação estética poderia se configurar
enquanto mote de resistência para o enfrentamento teórico-prático de temas
como maternidade e paternidade em um universo onde ainda ressoam vozes da
tradição e da ordem, que ditam o que compete a mães e/ou pais fazer ou não
fazer? Que conceitos de família estão imbricados nas modalidades
coaching
que
tentam ensinar como educar filhos e como mantê-los saudáveis corporal e
emocionalmente? As recentes teorias e modismos aliados à positividade (diga-se,
positividade tóxica) podem dar conta de tamanha complexidade quando
desconsideram esferas e contextos outros e suas peculiaridades
10
?
Nesse ponto, concordamos com Bakhtin, para quem:
[...] o fato e a singularidade puramente fatual não tem o direito à voz; para
consegui-lo eles precisam transformar-se em sentido; mas não podem
transformar-se em sentido, sem ter adquirido unidade: um significado
isolado é um contradicto in adjecto (Bakhtin, 2014, p,16).
O espetáculo nos provoca de diferentes modos a olhar, por lentes múltiplas,
os temas que discute, atualizando-os para os contextos em que se inserem. O
ponto de vista de Ruthie, por exemplo, sobre sua maternidade, transcende a
relação que Pedro parece ter com o tema, levando o espectador a refletir sobre
outras questões, como podemos ver nas cenas que se seguem.
Mother
Ruthie: Já se passaram 27 anos desde que vi minha e grávida. E não é
minha mãe que está grávida, sou eu. Meu primeiro filho. Tenho tido fortes
contrações há 24 horas. Eu já fui mandada de volta para casa três vezes.
Estou vomitando sem parar e ficando desidratada, e quando finalmente
10
Sobre a crítica às perspectivas de positividade e analgesia contemporâneas, sugerimos a leitura de
Sociedade Paliativa: A dor hoje
, de Byung-Chul Han, obra traduzida no Brasil em 2021 pela Editora Vozes.
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estou em trabalho de parto, recebendo a epidural e pronta para dar à luz,
a parteira me diz “Ruthie, sinto muito, perdemos os batimentos cardíacos
do bebê, devo apertar o alarme”, e em um segundo uma equipe de
emergência com 15 pessoas entra na sala. Eles estão um vácuo e
trazendo Eliya tão rápido que meu corpo está entrando em trauma e meu
útero para de funcionar. Estou tremendo e perdendo muito sangue. A
equipe médica precisa imitar as contrações para estancar o sangramento,
dois médicos estão me socando na barriga por longos minutos até que
meu útero volte à vida.
O primeiro aspecto que nos interessa discutir é a memória. Ruthie abre sua
narrativa com a imagem de sua mãe grávida. Esta imagem se conecta
discursivamente à sua própria persona, uma mãe de primeira viagem, uma mulher
que é mandada para casa mesmo com fortes contrações e que, ao se deparar
com um dos momentos mais importantes de sua vida, se na condição de um
corpo de grávida entregue à equipe médica. A experiência corporal da maternidade
ganha, na narrativa cênica, uma amplitude dimensional incomparável à perspectiva
do pai, que mesmo preocupado e tenso com o momento do parto, consegue
colocar um
reggae
e enxergar o sorriso e a felicidade da parturiente gritando de
dor. Dois mundos absolutamente distintos se auto narram em
Weapon is a part
of my body
, de modo que se estabelece uma relação íntima e, ao mesmo tempo,
abismal, entre as personagens, especialmente no que tange ao teor das narrativas
apresentadas.
Não estão em jogo somente os dilemas de Ruthie e Pedro, mas os nossos, de
espectadores, pessoas de gêneros distintos, que conseguem se relacionar a
partir de complexidades e subjetividades próprias, de um lugar no mundo que é
único e intransferível. Talvez o texto de Bakhtin nos ajude a pensar nessa questão:
A particularidade principal do estético, que o diferencia nitidamente do
conhecimento e do ato, é o seu caráter receptivo e positivamente
acolhedor: a realidade, preexistente ao ato, identificada e avaliada pelo
comportamento, entra na obra (mais precisamente, no objeto estético) e
torna-se, então um elemento constitutivo indispensável. Nesse sentido,
podemos dizer: de fato, a vida não se encontra fora da arte, mas
também nela, no seu interior, em toda plenitude do seu peso axiológico:
social, político, cognitivo ou outro que seja (Bakhtin, 2014, p.33).
Urge pensar, então, na possibilidade de enfrentamento do tema da recepção
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da obra artística em sua vinculação intrínseca aos processos de criação, ou seja,
somos todos essencialmente humanos, criadores-autores e espectadores, e nos
encontramos dialogicamente na espiral de uma partilha dos dilemas comuns que
existem entre nós. Os temas paternidade e maternidade, focalizados na narrativa
de
Weapon is a part of my body
chegam, especialmente, às pessoas que têm
filhos, pelas vias de uma identificação que supera a relação entre vida e arte.
Embora, entre os atores, existam poços culturais com relação ao tema que se
afundam ainda mais quando o assunto é gênero e as formas com que cada gênero
lida com aspectos geracionais, o espetáculo consegue movimentar a questão
discursivamente, colocando em destaque o caos que se estabelece corporal e
politicamente, nas mais diversas esferas de atividade humana, quando processos
subjetivos dessa estirpe estão em voga.
Interview
Pedro: Vão usar essa sua entrevista para me atacar
Ruthie: Atacar você? Pedro, você acha que corre riscos porque é um
artista que entrou na política?
A relação com os efeitos de teatralidade se dá quando o espectador imagina
que está, agora, diante do texto desta entrevista tal como aconteceu. Por um
momento Ruthie se desloca da personagem que se auto narra para emprestar sua
voz e corpo à personagem repórter da qual Pedro fala. As primeiras perguntas
parecem uma simples reprodução do acontecido no ato da entrevista. Somos
surpreendidos, no entanto, quando Pedro indaga Ruthie: “Você não entende? Você
não entende o que é se colocar em risco pelo que você acredita ou pelo seu país?”.
Ruthie responde de forma afirmativa e Pedro diz: “Você foi soldada”.
Nesse momento o espectador consegue virar uma chave sígnica que parece
recolocar as personagens em seus devidos lugares. É possível compreender, então,
que em nenhuma ocasião da encenação Pedro e Ruthie se distanciam de quem
são. Permanecem, a todo tempo, com suas personagens auto ficcionadas, em um
processo obstinado e de uma incrível força semântica, que preenche o diálogo que
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estabelecem entre si e entre os depoimentos costurados, de modo a contribuir
para que o espetáculo se configure em um enunciado concreto que abarca
realidades distintas e temas milimetricamente afinados no tempo e no espaço da
ação.
Para a estética enquanto ciência, a obra de arte se apresenta, é claro,
como objeto de conhecimento, mas essa atitude cognitiva para com a
obra tem um caráter secundário, pois a atitude primeira deve ser
puramente artística (Bakhtin, 2014, p.21-22).
O ato ético refere-se de forma um pouco diferente à realidade
preexistente do conhecimento e da visão estética. Esta relação é
habitualmente expressa como relação do dever para com a realidade
(Bakhtin, 2014, p.32).
Neste bloco cênico a temática da alteridade também parece vir à tona, que
deslizam sentidos entre o que é ser artista e o que é participar da política. O
espetáculo sinaliza, assim, um interessante e importante movimento de
(des)educação estética, ao colocar em jogo o que pode e o que não pode um
artista. A citação que abre esse texto nos provoca nesse sentido, porque fala da
possibilidade de um artista livre o que poderia ser mais (des)educado nos dias
atuais do que ser livre? Para além das teorias do discurso, que apontam
atravessamentos ideológicos que constituem os sujeitos, e para além, também, da
concepção de sujeito bakhtiniana, para a qual a liberdade é preciosidade cara e
legítima, nos interessa pensar a autonomia do artista em tempos nebulosos,
considerando, nesse processo, seu corpo e seu exercício político enquanto cidadão
de um país, enquanto partícipe de jogos de poder, de sistemas opressores e
sistemáticas de ódio. O artista não pode, simplesmente, se conformar com a
educação tal como a conheceu. É preciso que, no exercício de sua arte, exista um
espaço para transgressões conscientes, para que se possa chegar à degradação
do que se concebe por moral, por civismo, por “boa” educação. O artista não pode,
simplesmente, se conformar em (e nem querer) ser apenas uma boa pessoa ou
um “homem de bem”.
A good man
Avance. Nós ouvimos que você é um bom homem. Você não pode ser
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comprado, mas o raio que atinge a casa também não pode ser comprado.
Você se atém ao que disse. Mas o que você disse? Você é honesto. Você
diz sua opinião. Qual opinião? Você é corajoso. Contra quem? Você é
sábio. Em relação a quem? Você não considera suas vantagens pessoais.
Quais vantagens você considera, então? Você é um bom amigo. Você
também é um bom amigo das pessoas boas? Ouça-nos, então: nós
sabemos. Você é nosso inimigo.
A máscara ressurge nesta parte do trabalho nomeada
A good man
, que,
agora, sob outra dimensão. Pedro coloca uma máscara preta sobre os olhos, em
uma evidente referência à forma como o atual presidente do Brasil se relacionava
com o objeto máscara, especialmente no início da pandemia, de forma
equivocada. Além de retardar e negar o uso da máscara, o presidente apareceu
em algumas ocasiões utilizando a máscara de proteção de forma inadequada e
destoante das recomendações dos órgãos de saúde. Nesta cena, vemos o rosto
de Pedro, com os olhos cobertos pela máscara, enquanto Ruthie enuncia o
fragmento destacado acima.
As relações entre estética e ética voltam à cena, agora com um tom irônico
e desacreditado quanto a crenças sobre honestidade, sabedoria e amizade no
campo da política. A verbo-visualidade que constitui esta cena se mescla a
interrogações que permeiam toda a narrativa do espetáculo. Quem somos e como
agimos quando ninguém nos vê? O contraste entre verdade e violência constitui
todo o percurso de
Weapon is a part of my body
e parece, neste bloco, em
específico, chegar ao seu auge. A construção de sentidos repousa e ferve na
interface entre realidade e ficção. No texto bakhtiniano ao qual estamos
recorrendo ao longo deste ensaio, há, na discussão dedicada ao problema do
material, um caminho de reflexão que pode nos auxiliar a sustentar teoricamente
esta questão:
Numa obra poética, as palavras organizam-se, por um lado, no conjunto
das orações, do período, do capítulo, do ato, etc., e por outro, constroem
o conjunto da aparência do herói, de seu caráter. De sua situação, de seu
ambiente, de sua conduta, etc., e, enfim, o conjunto do evento ético da
vida, esteticamente formulado e acabado; com isso deixam de ser
palavras, proposições, estrofes, capítulos, etc. (Bakhtin, 2014, p.51).
Cabe ao artista, do corpo e da palavra, se pudermos assim abordá-lo, embora
cientes de que qualquer dualidade sucinta não pode dar conta do todo complexo
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que a figura do artista representa, viver na corda bamba e amarrada pelas pontas
da ética e da estética, do modo como, de forma brilhante, o fazem Ruthie e Pedro.
O projeto discursivo-enunciativo de
Weapon is a part of my body
contém, mais do
que depoimentos de si, lentes para a compreensão de realidades outras, imersas
nos temas que os artistas discutem ao longo da obra. Um caso exemplar desse
fenômeno pode ser visto no bloco a seguir.
Panic
Ruthie: Não sei se isso acontece com todo mundo, mas quando você tem
uma filha, quando você tem um filho, comigo acontece muito, que eu
penso que vou morrer, e não a verei. Eu vou morrer e ela ficará sozinha,
eu vou morrer e ela não terá ninguém. Eu vou morrer e [silêncio]. Então
eu entrei em pânico. É o primeiro aniversário, você para pra pensar. Um
ano e você faz tudo... Amamenta e tudo...E quando eu penso sobre isso
agora, é claro que eu entraria em pânico. [silêncio].
Esta fala de Ruthie é acompanhada visualmente de sua imagem segurando
balões cor-de-rosa e roxos. Enquanto ela diz o texto podemos ver os balões ao
vento, com as cores que se destacam no quadro imagético cinzento e frio. Neste
bloco, a morte é o eixo que importa. A preocupação com a finitude se estabelece
como diálogo não resolvido, justamente pelo caráter provisório e imprevisível da
vida. Viver é, em si, ato de resistência. Uma (des)educação estética com relação à
vida e às formas de viver se torna primordial, então. Dada a certeza de que todos
morreremos, os sonhos e planos se tornam o vislumbre de um possível (mas não
certo) novo dia. Aqui, a proposição de uma (des)educação estética ganha
contornos absolutamente filosóficos, porque põe em xeque a própria existência,
no mesmo instante em que situa a inexistência em um segundo próximo
qualquer - como fato palpável. Novamente recorremos a Bakhtin, para quem:
A análise estética não deve estar diretamente orientada sobre a obra na
sua realidade sensível, e ordenada somente pela consciência, mas sobre
o que representa a obra para a atividade estética do artista e do
expectador, orientada sobre ela. (Bakhtin, 2014, p.22).
A reflexão do artista, e neste caso específico, do artista da cena, sobre sua
própria realidade e seus mais profundos dilemas é, por si só, nesta perspectiva,
uma ação de (des)educação estética para si mesmo e para o espectador.
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Desaprender a viver ilusoriamente, e fazer isso com seu público, a partir de
movimentos de tomada de consciência, seria algo como uma espécie de missão
do artista. Cabe a ele, ao artista, ser o professor de si e de seus outros, ensinando
a si mesmo e aos seus espectadores sobre degradação, sobre corpos que, no fim
das contas, são apenas pó. Em tempos nos quais a morte tem sido assunto
frequente, o espetáculo toca em uma ferida aberta da sociedade: o medo de
morrer. Morte, parto e dor são as personagens principais de uma narrativa
discursivo-enunciativa na qual arma e corpo estão coladas. Frustração, risco e
esperança andam, em
Weapon is a part of my body
, de mãos dadas.
Considerações Corpo e Política no olho do furacão
Ruthie: O coronavírus nos obrigou a ficar em casa. Mas onde é a nossa
casa? Para sobreviver a esse período estou subindo a esse telhado para
respirar um pouco de ar fresco e olhar a cidade com olhos de pássaro.
Do ponto de vista da gaivota, para ser mais precisa. Liverpool está cheia
de gaivotas. Que pássaro. O oposto da imagem Tchekoviana que você tem
em mente. O oposto de inocência e liberdade é agressivo e violento. Eu
sou uma gaivota. “Nunca soube o que fazer com minhas mãos”, nossas
mãos! De repente tudo isso se concentra em nossas mãos, esfregando,
limpando por 20 segundos embaixo da água, higienizando, evitando
cumprimentos...Como se fôssemos todos uma sociedade de ladys
Macbeth, cheias de culpa. Nunca soube o que fazer com as mãos...Para
escrever uma peça, para segurar meu bebê, cozinhar o jantar, dançar,
rezar... A primeira coisa que nos perguntamos ao iniciar este projeto foi:
existe uma violência dentro de mim? Ambos respondemos sim. Desejo
de poder, modo de sobrevivência.
Fato é que em
Weapon is a part of my body
vemos corpo e política
disputando papéis de protagonismo, enquanto as urgências e demandas da vida
se apresentam na existência das personagens que narram suas histórias de uma
forma elegantemente revolucionária. Ruthie e Pedro clamam por revolução à
espreita do tiro que pode, a qualquer momento, matá-los e acabar com seu desejo
de fazer arte. Nesse ponto a arte se mostra aliada do que aqui denominamos
(des)educação estética, pois é por meio dela, de uma arte degradada, visceral e
sem limites, que se pode dizer ao mundo das mazelas provocadas por uma
violência munida das forças do corpo e da política.
Um espetáculo desse teor em meio a uma pandemia global se mostra como
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um voo de possibilidades por vários fatores, entre os quais o alcance geográfico
do trabalho e sua recepção entre diferentes públicos, que ultrapassa aquela
perspectiva espectatorial mais ligada ao teatro presencial. Embora os fenômenos
de teatralidade estejam presentes durante todo o projeto da encenação, o discurso
teatral se expande, de algum modo, para além do que ocorre em um espaço
cênico fechado ou aberto onde o evento teatral se ajusta aos moldes que
conhecíamos antes pandemia. É inegável, no entanto, que estamos diante de uma
obra cênica, o que se estabelece no acordo entre artistas e espectadores que,
mesmo diante de outros modos de presença, se reúnem para comungar o culto a
um teatro vivo, pulsante e reflexivo.
Ruthie e Pedro conseguem trabalhar com efeitos de sentido entre ficção e
realidade que surgem na malha discursivo-enunciativa de narrativas sobre si,
elencadas de forma a espelhar a conjuntura política de seus países no que tange
ao universo público, e da intimidade de suas vidas, que contada na esteira de
detalhes autobiográficos, remete ao caráter privado da violência. Em resumo,
Weapon is a part of my body
nos apresenta um universo de frentes investigativas
para a compreensão da noção de (des)educação estética. Além disso, o espetáculo
contém sustentação suficiente para a afirmação de que temas urgentes em corpo
e política devem avançar, sem receios, nesses tempos difíceis e sombrios, rumo
ao olho do furacão.
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UDESC
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