Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
A cena autoficcional desnaturaliza a ilusão de um “eu” autocentrado e
expõe radicalmente o processo de subjetivação produzido por ela. O “eu”
é, ao mesmo tempo, desconstruído e construído no próprio ato de
performar a si mesmo [...]. Portanto, a cena autoficcional não produz
discurso tranquilizador com a ordem social, nem pode ser uma pura
exibição egocêntrica de si mesmo. Ao contrário, a cena autoficcional é
um ato potente estética e politicamente, pois produz subjetividades,
corporeidades, modos de existência e/ou imaginários que escapem dos
modelos hegemônicos (Morais, 2020, p.129).
Ao criar a partir dos embaraços de sua trajetória, suas investigações,
obsessões e fracassos, a poeta abre espaço para que outras narrativas sejam
também contadas. A exposição da banalidade em seu caminho constrói um
espaço seguro para que outras trocas sejam possíveis. A cena poética autoficional
funciona como um tipo de trampolim para outros corpos saltarem. Quando a
vulgaridade se torna assunto, ou seja, quando ela rompe barreiras que censuram
o discurso, as bocas se multiplicam. Nesse sentido, a autoficção colabora com a
ativação desse falatório para que mais vozes possam ser escutadas. A experiência
pessoal, sabemos, é política. E faz política principalmente quando trabalha pelo
aumento dos espaços de escuta.
Em um ambiente que quer nos tornar cada vez mais assépticas, Mila é a
primeira a indagar: “quantos furos uma calcinha pode ter”? (Teixeira, 2021, p.61). E
sua pergunta é, na verdade, um plano de afirmação. Como quem diz: carrego
buracos por todos os lados, estou sempre vazando. Seu ato de proclamação traça,
então, um campo de proximidade com a leitora ao admitir que a vulgaridade borra
qualquer contexto. Assim como os eletrodomésticos, o corpo pode sempre
quebrar. As ligações de São Paulo tocam no nosso número, mas nunca chamam
o nosso nome. Afinal, “poetas não recebem / salário / direitos trabalhistas /
prestígio ou / podem tirar férias / ninguém lê poesia” (Teixeira, 2021, p.50) e as
poetas são pobres.
Somos tão ridículas que uma foto de perfil é capaz de nos provocar a paixão.
Cortinas são caras e, mesmo se fossem baratas, continuaríamos zanzando peladas
de um lado para o outro da casa. Gozamos antes ou depois da hora para nos
lembrar de que é preciso afastar o relógio da cama. Somos feias e,
independentemente da crença, fazemos nossa fé. Em nosso altar misturamos