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O ator como encenador de si mesmo
Tiago Fortes
Para citar este artigo:
FORTES, Tiago. O ator como encenador de si mesmo.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0105
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O ator como encenador de si mesmo
Tiago Fortes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-19, set. 2022
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O ator como encenador
1
de si mesmo
2
Tiago Fortes
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Resumo
Quando discutimos o trabalho do ator, costumamos colocar o foco naquilo
que o ator faz ou como faz. Este artigo traz o foco da discussão para onde o
ator faz o que faz. O que se pretende com isso é que o olhar sobre
onde
estamos constitui o que fazemos e
como
fazemos. Este
onde
é tanto o
espaço físico do cenário, luz, arquitetura, quanto a concepção de uma
encenação, as convenções teatrais, o universo dramatúrgico e poético onde
mergulhamos para encontrar o rumo e o tom do trabalho. A reflexão deste
onde
acaba por borrar o limite entre o trabalho do ator e do encenador, pois
impele o ator a assumir um lugar de escolha por tudo aquilo que o circunda,
lugar de escolha que historicamente é destinado exclusivamente ao
encenador.
Palavras-chave
: Atuação. Encenação. Olhar de fora. Convenção Teatral.
The actor as a director of himself
Abstract
When we write about the actor’s work, we tend to focus on what he does or how
he does what he does. I’d like here to put the focus on where the actor does what
he does. By this I am affirming that the perception of where I am constitutes
what
I do and
how
I do. This where can be the physical space of the stage, the light, the
architecture, as much as the conception of mise-en-scene, the conventions, the
poetic universe where I enter to find the way and the tone of the work. Thinking on
the where blurs the limits between the actors and the directors work, because it
impels the actor to assume the choices of what is around him, choices that
historically are made exclusively by the director.
Keywords
: Acting. Directing. Spectating. Theater Conventions.
1
Este artigo resulta em 78% de partes de minha tese de doutorado denominada:
A condição do ator em
formação: por uma fenomenologia da aprendizagem e uma politização do de
bate. Defendida no Programa
de pós-graduação em Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob orientação de
Renato Ferracini, em 2018.
2
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por João Paulo de Oliveira Lima. Graduação e Mestrado
em Letras pela Universidade Federal do Ceará.
3
Professor Adjunto do Instituto de Artes da Universidade Federal do Ceará (UFC).
tiagomoreira.fortes@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4278624291545483 https://orcid.org/0000-0003-4215-107X
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El actor como director de sí mismo
Resumen
Cuando hablamos del trabajo de un actor, tendemos a centrarnos en lo que
hace el actor o en como lo hace. Este artículo lleva el foco de la discusión a
dónde el actor hace lo que hace. Lo que se pretende con esto es que la
mirada a donde estamos constituye lo que hacemos y como lo hacemos.
Esto dónde es tanto el espacio físico del escenario, la luz, la arquitectura,
como la Concepción de una puesta en escena, las convenciones teatrales, el
universo dramatúrgico y poético donde buceamos para encontrar la dirección
y el tono de la obra. Esta reflexión acaba por difuminar el límite entre el
trabajo del actor y del director, pues impulsa al actor a asumir un lugar de
elección para todo lo que le rodea, un lugar de elección que históricamente
está destinado exclusivamente al director.
Palabras clave
: Actuación. Puesta en escena. Mirada exterior. Convención de
teatro.
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Gostaria de analisar aqui as condições com as quais o ator se depara em seu
ofício, independente de valores que exigem que ele seja isso ou aquilo. Isso não
significa, contudo, que eu pretenda revelar aquilo que o ator é, em sua natureza, e
que minha análise seja isenta de juízos de valor. O que tentarei fazer é construir
uma outra imagem do ator. Não um outro lugar em relação ao que a sociedade
pensa do ator, mas um outro lugar em relação às exigências que os próprios atores
têm feito a si mesmos para poder se legitimar perante valores que não são
inerentes a nosso ofício. Mas antes é preciso mostrar como diferentes valores
acarretam em diferentes imagens e demandas daquilo que o ator deveria ser.
Para Meierhold (apud Thais, 2009, p.324), por exemplo, “se não
cabotin
,
não há teatro”, e por isso ele considera “absolutamente necessário restabelecer o
culto ao cabotinismo, no sentido amplo do termo” (apud Thais, 2009, p.325). O
cabotino é aquele que existe na medida em que usa a máscara que, segundo
Meierhold, é o símbolo por excelência do teatro. A máscara não é simplesmente
aquela que se coloca sobre o rosto, “mas é, com mais frequência, o próprio rosto
que se torna máscara, ou a personagem-máscara” (Picon-Vallin, 2013, p.71).
Se Meierhold defende a necessidade de “restabelecer o culto ao
cabotinismo”, é porque esta imagem do ator passou a ser rechaçada com muita
intensidade em sua época (início do século XX). Antes de tudo por seu principal
professor, Stanislavski (1996, p.314), que lamentava que “quando pisamos no palco,
perdemos nosso dom natural”, e que “a condição de ter de criar alguma coisa à
vista do público [...] impele o ator para o exibicionismo”. Na mesma época, na
França, Copeau (2013, p.9) defendia que era preciso “descabotinizar o ator”. E o
próprio Copeau (2013, p.94) se pergunta: “Mas que será o cabotinismo?” Para
responder a esta pergunta, Copeau lança mão de uma série de imagens e adjetivos
que aparecem para pintar um quadro de pobreza de experiências num mundo
onde os valores nobres desapareceram: “Todo mundo se lamenta do cabotinismo,
e todo mundo é um pouco cabotino. O cabotinismo é uma doença que devasta
não o teatro. É a doença da insinceridade, ou, antes, da falsidade”. E, assim
como Stanislavski diagnostica que, “quando pisamos no palco, perdemos nosso
dom natural”, Copeau expõe os sintomas desta doença do cabotinismo: “Quem foi
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atingido por ela deixa de ser um indivíduo autêntico, deixa de ser um ser humano”
(Copeau, 2013, p.94).
Esse quadro de valores desenhado por figuras como Stanislavski, Copeau,
entre outros, contribui para formar a cultura dominante do ator que se manifesta
em nosso dia-a-dia, “tanto pelos valores imperativos que devemos estar sempre
buscando em nosso trabalho, quanto pelos adjetivos que tentam nos definir como
‘os atores são muito preguiçosos’, ‘arrogantes’, ‘vaidosos’, ‘caprichosos’, ‘falsos’”
(Fortes, 2018, p. 175). Por isso me parece necessário propor outras imagens, outros
adjetivos, outras escolhas valorativas que não aquelas que a cultura dominante
atribui ao ator como sendo sua própria natureza, natureza da qual o ator estaria
sempre se afastando, e por isso caberia aos diretores e professores de atuação
trazê-lo de volta a ela. É neste sentido que Stanislavski (1996, 315), preocupado
com o fato de o ator perder seu dom natural ao subir no palco, afirma que seu
“sistema deve restabelecer as leis naturais” e “devolvê-lo ao estado criativo de um
ser humano normal”. Da mesma forma, Copeau (2013, p.94) afirma que, “para
reencontrar essa simplicidade”, não se deve simplesmente ensinar aos atores em
formação novas técnicas, mas ensinar-lhes “a viver e a sentir, mudando seu
caráter, tornando-os seres humanos. Que o ator volte a ser um ser humano, e
todas as grandes transformações no teatro decorrerão daí”.
Esses valores acabam por determinar também o lugar e a função que o ator
ocupa na prática teatral e no modo como se relaciona, em um processo criativo,
com as outras funções aí envolvidas.
Com o
método das ações físicas
, Stanislavski parece ter conseguido
determinar ontologicamente o teatro enquanto
lugar onde se age
4
. Se,
por um lado, isto implica numa valorização da figura do ator que é
colocado enquanto cerne da atividade teatral, por outro, uma
manutenção das fronteiras nas quais a ação aparece como função do
ator, o
olhar
(concepção e escolhas) como função do diretor e o dizer
4
Na conclusão de seu livro sobre a fase final de Stanislavski, Toporkov (1998, p. 215) pondera que, enquanto
a música pode ser definida pelo som e a pintura pela cor, cada artista de teatro definiria nossa arte de modo
distinto, e dificilmente alguém daria como resposta “aquela que já é sabida mil anos como a verdade
inquestionável: Ação é o elemento chave de nossa arte ‘ação genuína, orgânica, produtiva e expediente’,
como Stanislavski tão frequentemente insistia”. Ao definir a pintura pela cor, o artista plástico acaba sendo
definido pela sua habilidade de trabalhar fisicamente este material, ou qualquer outro. Ignora-se, assim, a
grande revolução que Duchamp realizou na arte: ao comprar um objeto pronto (readymade) no mercado e
colocá-lo no museu, ele realiza um deslocamento ontológico no qual o artista não mais é definido por sua
capacidade de fazer ou agir, mas por sua capacidade de escolher ou decidir.
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(discurso) como função do dramaturgo (Fortes, 2021, p.237).
A atriz Julia Varley, do Odin Teatret, por exemplo, considera que o ator ganha
“uma imensa liberdade” quando o diretor “assume a responsabilidade do resultado
diante dos espectadores”, pois assim “posso me recolher no trabalho sem me
preocupar com o resultado final [...] Não preciso me ver e me julgar com o olhar
de quem está do lado de fora” (Barba, 2014, p.122). Em seu discurso, não apenas o
olhar de fora é colocado como responsabilidade exclusiva do diretor, como ainda
a liberdade do ator é colocada como inversamente proporcional à
responsabilidade. Quanto menos responsabilidade o ator possui em relação “ao
resultado diante dos espectadores”, mais liberdade para “me recolher no trabalho
sem me preocupar com o resultado final”. Gostaria de tentar construir aqui um
outro modo de pensar o lugar e a função do ator, no que diz respeito ao modo
como trabalha em função da e em relação à função da encenação.
Cruzamento entre a função da encenação e da atuação
Como eu sei - diz o nosso ator - que entro no palco onde o cenário não
é ocasional; onde o chão do palco (tablado) compõe-se com o desenho
da plateia [...] então não posso ignorar como devo entrar nesse palco’. O
ator, sabendo por qual razão aquilo que o circunda foi concebido de um
determinado modo, sabendo que é produto da arte teatral, ao entrar no
palco transforma-se em uma obra de arte (Meierhold, apud Thais, 2009,
p.401).
Proponho analisarmos esta reflexão de Meierhold pela seguinte lógica: como
ator, ao entrar onde entro, “no palco”, “não posso ignorar como devo entrar”. Ou
seja, é a consciência de onde entro que constitui um
como
entro. Mas este ator
percebe que também o onde “foi concebido de um determinado modo”. Assim, ao
entrar de determinado modo num
onde
que também possui seu modo de estar
ali, ao relacionar seu modo ao modo do onde, o ator, um suposto
quem
, acaba por
se tornar o próprio
onde
, “transforma-se em uma obra de arte”. E se acompanho
Meierhold em sua transformação do ator numa obra de arte, devo dizer que esse,
não mais definido por ser quem é, mas por estar onde está, deixa de ser um
quem
para se tornar um
o que
, “um meio de expressão entre outros, igual a eles, ‘nem
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mais nem menos importante’” (Picon-Vallin, 2013, p.4). O que está em jogo aí, para
Meierhold, é a “submissão da individualidade do ator sob a ideia fundamental da
obra de arte” (Thais, 2009, p.106).
Poder-se-ia objetar que tudo isso somente produz uma objetificação, uma
desvalorização, uma dissolução da autonomia do ator enquanto sujeito, uma
submissão à mestria do encenador que poderá utilizá-lo como uma marionete.
Mas trata-se do exato oposto, trata-se de trabalhar “a mestria” do próprio ator,
uma mestria que “faz do ator o seu próprio encenador, que conhece a ‘cenometria’
ou a ciência do modo do ator colocar-se em cena” (Picon-Vallin, 2013, p.151). O que
estava em jogo, para Meierhold, era a formação de um “ator completo”, um “ator
responsável” (Picon-Vallin, 2013, p.81) pelo seu próprio modo de estar onde está,
seja especificamente a cena ou, de modo mais amplo, sua própria formação. Por
pensar na formação de um “ator completo”, os cursos de Meierhold “incluíam
lições sobre a história do teatro, projeto de cenário, técnicas cênicas ou de
desenho...” (Schino, 2012, p.118). E por pensar no ator como um encenador de si
mesmo, desde o início Meierhold fazia com que o Laboratório de Técnicas do Ator
fosse ligado à Oficina de Diretores até que, a partir de 1922, os dois seriam fundidos
em uma única oficina (Schino, 2012, p.120). Ou seja, “a proposta do ensino
meierholdiano não estava restrita às técnicas de atuação, e a atenção dedicada
aos procedimentos de composição da encenação tornava suas aulas uma classe
da arte do ator e do encenador” (Thais, 2009, p.147).
Dizer que o ator é um encenador de si mesmo não significa necessariamente
que se abdique da
figura
do encenador. Significa que a
função
da encenação deixa
de ser algo alheio ao ator. Toda a lógica do trabalho do ator sobre si mesmo é
colocada em questão. Se Grotowski (2007, p.238) diz que “não se pode trabalhar
sobre si mesmo [...] se não se está dentro de algo estruturado que seja possível
repetir”, devemos pensar, junto com Meierhold, que este “algo estruturado” não é
apenas a partitura do ator, o modo como ele executa suas ações, mas
onde
ele
está, um onde que foi concebido de um determinado modo. E a concepção deste
onde, o
modo
deste onde, deve impregnar completamente o trabalho do ator
sobre si mesmo” (Fortes, 2018, p.106).
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É o olhar sobre
onde
estou que constitui
o que faço
e como faço. Raul
Serrano fala de dois diferentes tipos de olhar do ator: um que ele chama de “la
mirada del submarino”, onde o ator “sólo tiene em cuenta los objetivos contra los
que lucha y contra los que dirige sus energías”, onde o ator não é capaz de “mirarse
a si mismo”. Outro tipo seria o “mirada exterior” que “abarca la totalidad de lo que
ocurre sobre la escena, es decir, la relación del actor que la efectúa con los
restantes componentes de la estructura” (Serrano, 2004, p.84). Não se trata de
dizer que a experiência do ator é constituída pelo olhar de fora do diretor ou do
espectador, mas que o ator incorpora este olhar de fora e assim “deja su
identificación con el personaje” e “tiene en cuenta lo realizado como si se ubicara
en una platea” (Serrano, 2004, p.238). Serrano afirma ainda que, “Mientras la mirada
desde el submarino se ubica casi exclusivamente en el terreno de lo técnico, la
mirada exterior que terminará constituyendo un único objeto con la anterior
adopta más bien un sesgo estético” (Serrano, 2004, p.238). O viés estético, que
apenas o olhar de fora é capaz de abarcar em sua totalidade, acabará por constituir
um único objeto com o fazer técnico do ator. “É neste sentido que o ator se torna
um encenador de si mesmo, pois não mais atribui à figura do encenador a
exclusividade da função da encenação, não mais depende exclusivamente do olhar
de fora para abarcar o viés estético de seu fazer
5
” (Fortes, 2018, p.107. Assume um
olhar de fora que “es casi una mirada de director” (Serrano, 2004, p.238) e, assim,
“el actor, otrora únicamente ubicado en el ‘submarino’ con respecto de su
personaje, se sitúa de otro modo y ‘valora’ desde fuera lo que hace” (Serrano, 2004,
p.357).
Essa questão da valoração acrescenta, à compreensão de que o ator é aquele
que realiza ações de um determinado modo, uma compreensão de que o ator
escolhe agir de um determinado modo e não de outro. Mesmo que se queira
pensar que não se trata de uma escolha – por esta noção implicar numa espécie
de livre-arbítrio, como se o ator sempre escolhesse consciente e voluntariamente
5
É curioso que também Stanislavski tenha dito: "Lembrem-se que eu lhes disse, mais de uma vez, que
todo ator tem de ser seu próprio diretor" (Stanislavski, 1995, p.147). E isso foi dito quando ainda não
trabalhava inteiramente com o método das ações físicas, ou seja, quando o trabalho do ator sobre si mesmo
ainda o deixava na esfera do olhar submarino. Ao entrar em sua última fase, Stanislavski vai abrindo cada
vez mais o trabalho do ator sobre si mesmo ao olhar de fora, embora nunca chegue a trabalhar este olhar
que torna o ator um encenador de si mesmo como Meierhold o trabalhou.
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seguir por tal caminho e não por outro –, mesmo que se diga que não é o ator que
escolhe, mas que algo que o atravessa escolhe por ele; ainda assim, o ator agiu
deste modo e não de outro, seguiu este caminho e deixou todos os outros
possíveis para trás. “O que costuma acontecer num processo criativo é que o ator
levanta muitos materiais, propõe uma série de caminhos, e o encenador
escolhe
o caminho a ser seguido” (Fortes, 2018, p.2018). O que costuma acontecer num
processo pedagógico é que o aluno tateia e habita certos territórios experienciais
onde consegue, enfim,
estar
, e o professor vai valorando os territórios que
funcionam ou não, que servem ou não para certa abordagem. Dependendo da
abordagem criativa ou pedagógica, as valorações e escolhas do próprio ator podem
ganhar maior ou menor protagonismo.
Convenção teatral: a atuação e os efeitos sobre o espectador
Em minha pesquisa de doutorado, observei diversas oficinas e aulas de
atuação, e entrevistei, ou melhor, conversei com diversos professores e diretores.
Parece-me pertinente trazer aqui uma aula que assisti na cidade de São Paulo,
pois ali percebi que a professora, ao invés de exercer seu juízo sobre o trabalho
do ator numa determinada cena, apenas pontuava os elementos cênicos que
foram trazidos pelo mesmo, o que denota as escolhas e estratégias do ator em
relação à cena. Aqui me parece estar em jogo uma diferença entre pensar o ator
como um
quem
, ou como um o
que
, um elemento nem mais nem menos
importante do que os outros elementos que estão em cena.
Esta diferença entre o
que
e o
quem
também apareceu numa conversa com
uma atriz e palhaça em Buenos Aires que afirmava que, como professora de
palhaçaria, seu foco metodológico não estava no ser do palhaço, mas em seu
fazer, “porque el ser ya está” e, portanto, “no necesita convertirse en un enfoque
metodológico”. O que lhe interessa nos palhaços em formação, enquanto
professora, é “como yo pienso em función de una escena [...] como lo otro piensa
dramatúrgicamente, qué ideas tienen... Ahí está: el otro piensa eso, le gusta esa
música. [...] Ahí está el yo del otro, el ser [...] sus elecciones”. Ou seja, para esta
professora e palhaça argentina, o palhaço não se define por
quem
ele é, mas por
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com o que escolhe trabalhar. E é claro que as coisas com as quais escolhe
trabalhar devem atravessá-lo inteiramente, devem instaurá-lo num
onde
estar
afetivamente ou experiencialmente. A professora de São Paulo colocara essa
relação entre o
com
o
que
e o
onde estar
em termos de um atravessamento da
função de direção e de atuação na figura do ator, ou seja, do ator como um
encenador de si mesmo: “como nossas descobertas de direção podem auxiliar
nosso trabalho de interpretação? É importante deixar os elementos da cena
permearem, passarem pela nossa interpretação” (Fortes, 2018, p. 109). Ela não está
simplesmente dizendo que a experiência do ator é definida pelos elementos
com
os quais
escolhe trabalhar, mas que é definida por
onde
o ator habita ao ser
atravessado pelos elementos
com os quais
escolhe trabalhar. O que está em jogo
aqui é uma aposta no modo do “olhar de fora” em vez do modo do “olhar
submarino” do ator. Uma aposta num modo onde a distinção entre o trabalho do
ator e do diretor se torna bastante tênue. Da mesma maneira, Brecht apostou no
modo do distanciamento (que pode ser visto como um “olhar de fora”) em vez do
modo da identificação entre ator e personagem (que pode ser visto como um
“olhar submarino”). Leiamos o que Roland Barthes (2007, p.288) diz sobre a técnica
do distanciamento de Brecht:
...distanciar não quer dizer de modo algum representar menos; muito pelo
contrário, distanciar é representar; simplesmente, aqui, a verossimilhança
da representação tira sua origem do sentido objetivo da peça, e não,
como na dramaturgia ‘natural’, de uma verdade interior ao ator. [...] purgá-
los de suas pequenas emoções pessoais antes de fazê-los representar.
Noutras palavras, distanciar é cortar o circuito entre o ator e seu próprio
páthos
, mas é também e essencialmente estabelecer um novo circuito
entre o papel e o argumento; é, para o ator, significar a peça, e não mais
ele próprio na peça.
O ator não é definido por ser quem é, por sua “verdade interior”, mas por
estar onde está. Aqui o
onde
– até então espacial ou estético – torna-se também
dramatúrgico. “O trabalho do ator, para Brecht, é encontrar-se dentro deste onde
dramatúrgico, e não usar este como uma ponte para encontrar-se a si mesmo”
(Fortes, 2018, p.109). E o
onde dramatúrgico
sentido ao fazer do ator na medida
em que o fazer do ator busca dar sentido a este onde dramatúrgico. É por isso
que a professora de São Paulo por estar trabalhando com Brecht em suas aulas
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– discutia muito mais as estratégias e escolhas do ator em relação à cena do que
seu desempenho ou a qualidade de suas ações. É porque, para Brecht, a qualidade
do desempenho do ator está em sua capacidade de mostrar e evidenciar uma
realidade que costuma aparecer aos espectadores como auto evidente. A
qualidade do desempenho do ator está em conseguir conduzir o olhar do
espectador para aquilo que ele escolhe mostrar, para aquilo que ele escolhe trazer
para a cena. Para Brecht, as escolhas do ator têm a ver com o que se quer
evidenciar na realidade do mundo. Portanto, a discussão das escolhas do ator é
também uma discussão dos efeitos sobre os espectadores. Em se tratando de um
ator que assume para si o “olhar de fora”, o efeito sobre os espectadores está na
raiz de seu trabalho, e não apenas do trabalho do diretor. É neste sentido que o
diretor argentino Alejandro Catalán considera que “ensinar atuação é ensinar a
assumir um poder de manipulação diante da percepção do público”. Já Grotowski
(2007, p.234), considera que “fazer a montagem na percepção do espectador não
é tarefa do ator, mas do diretor”.
Sobre essa consideração de Grotowski, gostaria de insistir na diferença entre
a figura do diretor e a função ou “tarefa” da direção. “O ator pode trabalhar em
cena como se estivesse olhando de fora, atento ao modo como os efeitos que
produz estão chegando aos espectadores. Mas é claro que o diretor que
efetivamente
está olhando de fora habita um lugar privilegiado” (Fortes, 2018,
p.110), muito mais propício para perceber como os efeitos produzidos em cena
chegam aos espectadores do que o lugar que o ator ocupa. Não é uma questão
de o ator tornar-se o diretor do espetáculo, prescindindo da figura do diretor. É
uma questão de o ator não estar alheio à função, ao olhar da direção, de perceber
que tudo aquilo que produz em cena se torna uma experiência cênica na
medida em que chega aos espectadores, na medida em que o ator não
simplesmente olha para os espectadores, mas olha e percebe o olhar dos
espectadores pousando sobre ele. Poderíamos dizer, junto com Óscar Cornago
(2016, p.28), que a ação do ator “no es solo la acción sino aquello a lo que da lugar,
la situación en la que se transforma por el hecho de realizarse frente a un público”,
o que implica em “conducir la atención de la escena a la platea, o del actor al
público, o de la acción a la situación” (Cornago, 2016, p.38). Ou seja, não se trata
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simplesmente de o ator agir sobre o espectador, manipular seu olhar, enredá-lo
numa situação. O próprio ator está completamente enredado por esta situação
que é produzida, antes de tudo, pelo fato de o espectador está ali olhando suas
ações. Afinal, o que define o teatro é o lugar de onde se vê, e não o lugar onde se
age.
É nesse sentido que François Kahn discípulo de Grotowski “recusa-se a
interpretar o material” produzido por seus atores e não lhes pergunta “o que era
aquela ação, de onde viera, etc.”. Kahn “trabalha, assim, sobre os efeitos, as
marcações dele em nosso corpo e não sobre sua possível origem” (Motta Lima,
2012, p.15). Poderia dizer que o efeito se origina quando ganha realidade, e apenas
ganha realidade quando chega aos espectadores. Ou seja, o efeito tem sua origem
no ponto de chegada, não num suposto ponto de partida. Do contrário, estaríamos
procurando por causas reais que preexistem à produção de efeitos, causas reais
que possuem sua origem fora da cena, na vida. E como afirma o diretor argentino
Jorge Eines, “la emoción de la escena es una emoción que nace de la conciencia
de ficción, no de la confusión de la escena con la realidad” (Eines, 2005, p.70). Não
necessidade, portanto, de procurar na vida causas que potencializem o efeito
produzido em cena, porque “en la vida hay causas y efectos; en la escena sólo hay
efectos. No hay un antes causal que se inicia en la vida y determina una conducta
en la escena” (Eines, 2005, p.79).
O que Eines está problematizando aqui é “una lectura parcial de Stanislavski
donde la sobrevalorización de lo vivido por el individuo se opone a la valorización
de lo que hay que vivir en el trabajo para construir un personaje” (Eines, 2005,
p.159). Sabe-se que um dos grandes responsáveis por esta “leitura parcial de
Stanislavski” é o americano Lee Strasberg que trabalhou exclusivamente a primeira
fase dele, deixando de lado a última fase do método das ações físicas. Como
Strasberg é um dos fundadores do Actor´s Studios principal escola de
interpretação dos atores de Hollywood – acabou por contribuir bastante para que
o trabalho de Stanislavski sobre a memória emotiva ficasse muito mais conhecido
mundo afora do que seu trabalho sobre as ações físicas. Raul Serrano (2004, p.126)
formador de atores e diretor argentino que trabalha com a fase final de
Stanislavski – fala sobre a abordagem de Strasberg que, segundo ele, se apoia no
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“rescate de las causas de la conducta. Esta etapa se estudia y se justifica en
detalle. Pareciera que una vez logrado ese estado, el resto se desenvolverá sin
tropezos. Se trabaja en lo que el actor debe hacer antes de comenzar su rol”.
as ações físicas, para Serrano, “apuntam desde el presente hacia delante”. Aqui,
portanto, “el campo operativo del actor se despliega así ante sus ojos y no en su
memoria como un todo coherente que lo sumerge cada vez más en la
consideración de la estructura y en su participación en ella” (Serrano, 2004, p.127).
O campo operativo do ator se num
onde
ele pode habitar sua experiência e
valorar por seu olhar de fora, e não na busca de um o
que
que se passou num
quando
que antecede o presente da cena.
No entanto, por trabalhar com o método de Stanislavski mesmo que se
trate de sua fase final Serrano tenta incorporar esse quando que antecede a
cena no campo operativo do ator. Ao discutir as
circunstâncias dadas
de uma peça
ou seja, “datos que mencionan acontecimientos anteriores, ocurridos fuera de la
acción misma que ocupa la escena”, mas que “inciden sobre la conducta de los
personajes” –, ele diz tratar-se de “atributos que difícilmente puedan ser realizadas
objetivamente en el teatro” (Serrano, 2004, p.222). Como fazer, então, com que as
circunstâncias dadas possam influenciar eficazmente a conduta do ator em cena?
Serrano propõe que as encaremos do mesmo modo que um jogador de futebol
encara os regulamentos do esporte: internalizando-os para que “actúen como
condicionantes de la actuación” (Serrano, 2004, p.222). Isso, no entanto, tira as
circunstâncias dadas de seu lugar de “passado irrecuperável” e as localiza no
futuro: “Las condiciones dadas no son puntos de partida que exigen ser creídos
para que funcionen. Son como las leyes. Comienzan a existir en la medida en que
los respecto, aunque no los crea” (Serrano, 2004, p.222). É neste sentido que
Serrano (2004, p.377) considera as convenções teatrais uma questão de chamar
“los espectadores a, justamente, ‘convenir’ algo”, algo que o encenador conveio
junto com os atores e todos os profissionais envolvidos ao longo do processo de
construção do espetáculo, antes de chamar os espectadores para participarem.
Quando insisto, portanto, que o ator deve incorporar em seu trabalho a
função da encenação, estou me referindo principalmente ao domínio que o ator
deve ter de todos os desdobramentos da convenção teatral concebida para o
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espetáculo no qual atua. Aqui entra a importância das escolhas e valorações do
próprio ator em seus processos criativos. Pois no teatro contemporâneo não
mais convenções teatrais fixas, convencionadas e aceitas por uma determinada
sociedade. É claro que convenções que o espectador comum aceita mais do
que outras. Mas o teatro contemporâneo não se propõe mais a respeitar estas
convenções convencionadas pela sociedade. A única convenção que o teatro
contemporâneo se propõe a aceitar e obedecer é aquela que se convêm no
processo de cada espetáculo. O próprio Stanislavski (1995, p.147) havia dito que
“vocês têm de aprender a manejar e controlar as convenções do palco. [...] É uma
condição que temos de aceitar de uma vez por todas”. Mas, ao dizer isso, estava
se referindo à convenção de que, “no ponto culminante do seu papel, o ator se
coloque, tanto quanto possível, num lugar em que o público possa ver seu rosto”.
Eis uma convenção que pode convir a determinados espetáculos e não a outros.
Como todas as convenções teatrais, aliás, podem convir a certos processos e não
a outros.
Se, por um lado, as convenções teatrais são condições às quais o ator deve
se submeter, ou seja, condicionamentos que tornam sua experiência cênica
possível, por outro lado, trata-se de algo que um grupo de atores envolvidos num
processo convieram juntos. “Mas não haveria convenções que ultrapassam um
grupo envolvido num determinado processo, convenções que aqueles que faziam
teatro muito antes deste grupo existir convieram?” (Fortes, 2018, p.114). As
convenções são todas conscientes, deliberadas? Não convenções que vão se
formando inconscientemente ao longo da história? Sim, claro, mas é preciso tomar
cuidado para não as colocar numa instância que transcende a existência concreta
dos homens. Aquilo que ultrapassa cada homem no singular provêm dos homens
no plural, os de hoje e de outros tempos, e não de uma entidade metafísica.
Confusão entre o território técnico e o poético
Eis uma confusão que me parece necessário desconstruir na formação do
ator, e que aparece de maneira exemplar no livro de Raul Serrano sobre
Stanislavski, onde propõe que pensemos separadamente o território técnico e o
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poético. O primeiro, para ele, está submetido aos “inescapáveis condicionamentos
da natureza” que “parecem permanecer inalteráveis”. o território poético, “se
rige por las leyes que pertenecen a la cultura, es decir a lo producido por los
hombres”. E, diferente das leis naturais, “las leyes humanas pueden ser violadas,
pueden infringirse” (Serrano, 2004, p.281). A partir dessa distinção, Serrano
compreende que o território técnico seria um “terreno limitado de posibilidades
debido a las leyes naturales que rigen los comportamientos humanos” (Serrano,
2004, p.304), e que não há “una conducta humana sobre la escena tan particular
que pueda evadirse, sustraerse de los condicionamientos naturales de todo
comportamiento humano” (Serrano, 2004, p.305). Ou seja, para Serrano não
importa o quão revolucionária seja uma transformação no território poético do
teatro, “a causa de la ‘materia’ ‘herramienta con que está construido este arte
resulta imposible sustraerse a la aplicación, voluntaria o no, de ciertas legalidades
exigidas por la naturaleza misma” (Serrano, 2004, p.305). E a matéria-ferramenta
com que está construída esta arte é o corpo do ator que, ainda segundo Serrano,
“conlleva consigo un cierto código realista y una cierta limitación en la
manipulación de sus posibilidades ya que utiliza su ser real, no su image” (Serrano,
2004, p.304).
Mas, como disse, trata-se de uma confusão que precisa ser desconstruída,
pois muitos elementos contraditórios. Ao dizer que a liberdade do artista
neste território de possibilidade criativa que é o teatro “únicamente tropieza con
los límites que les ponen las leyes naturales a sus fantasías”, Serrano deixa
escapar, como complemento, que esses limites “han sido frecuentemente
superadas por la capacidad de convencionalidad del arte” (Serrano, 2004, p.329-
330). Ou seja, “a convenção teatral é exatamente o que permite transformar o ser
real do ator numa imagem a ser manipulada de um modo com o qual o espectador
possa convir” (Fortes, 2018, p.115). A convenção teatral cria a ilusão de que aquele
homem de carne e osso que se encontra diante de mim pode ser qualquer coisa
para além do que ele realmente é. E o ator precisa que os olhos do espectador,
convindo com tal ilusão, espelhem para ele essa outra coisa para que ele possa
efetivamente transformar-se nela. E não estou me referindo simplesmente à
construção de um personagem que é diferente daquilo que sou. Estou
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problematizando a afirmação de Serrano (supracitado) de que não “uma
conduta humana em cena tão particular que possa escapar, subtrair-se dos
condicionamentos naturais de todo comportamento humano”. A conduta humana
não é uma realidade natural, mas uma imagem que fazemos de como este corpo
funciona e é construído. Uma imagem historicamente construída e reforçada
cotidianamente. Assim, quando o espectador se depara com um corpo entrando
em cena, é inevitável que ele projete sobre o mesmo a imagem que faz de como
um corpo humano se comporta na vida. Mas o ator é aquele que pode romper
esta imagem de como um corpo humano se comporta, mais ainda, do que seja
este corpo em sua constituição
6
.
O curioso é que o próprio Serrano inicia esse capítulo sobre a distinção entre
o território técnico e o poético com uma problematização do positivismo enquanto
uma visão de mundo que “resultó particularmente nociva en cuanto asimilaba las
leyes de la sociedad y de la cultura, a la ineluctabilidad y a la precisión de las leyes
naturales” (Serrano, 2004, p.290). Não é exatamente isso que ele está fazendo ao
considerar que o território técnico do ator esteja limitado pela “inevitabilidade” das
leis naturais? Quando afirma que o corpo do ator “leva consigo um certo código
realista” e que não revolução poética que possa alterar tal realidade técnica,
Serrano não está exatamente valorando a realidade técnica a partir de sua própria
visão poética do teatro? Sendo o teatro uma arte, um fenômeno cultural, o simples
fato de sua matéria principal ser o corpo humano é suficiente para nos fazer
enxergar aí leis da natureza que fundamentam e regem sua realidade?
Nietzsche (1987, p.74) havia problematizado esta confusão entre natureza
e cultura ao afirmar que “toda a legalidade que se nos impõe tanto no curso dos
astros quanto no processo químico coincide no fundo com estas propriedades
que nós mesmos atribuímos às coisas, ainda que, em virtude disto, nós lhes
imponhamos a nós mesmos”
7
. Isso nos leva de volta ao que o próprio Serrano
havia dito sobre as circunstâncias dadas enquanto condicionantes da atuação:
6
Talvez isso diga ainda mais respeito ao dançarino do que ao ator.
7
Em
Além do bem e do mal
, Nietzsche (2005, p.14-15) problematiza aos estoicos que, “enquanto pretendem
ler embevecidos o cânon de sua lei na natureza, vocês querem o oposto, estranhos comediantes e
enganadores de si mesmos! Seu orgulho quer prescrever e incorporar à natureza, até à natureza, a sua
moral, o seu ideal, vocês exigem que ela seja natureza ‘conforme a Stoa’”.
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“começam a existir na medida em que as respeito, ainda que não creia nelas”.
Respeitamos, obedecemos, nos submetemos às regras na medida em que elas
nos abrem para a possibilidade do jogo cênico, e não na medida em que creio
existirem independente de eu me submeter a elas ou não, enquanto limites e
restrições que determinam as possibilidades expressivas do corpo do ator.
Leiamos as palavras de Stanislavski que concluem seu livro
A preparação do ator
(1999, p.365): “a natureza orgânica é regida por leis [...] Vocês poderão se
extraviar se não compreenderem essa verdade [...] se tentarem inventar novos
princípios, novas bases, nova arte. As leis da natureza se impõem a todos. Ai de
quem as infringir!”. Seguindo Nietzsche, podemos compreender o que Stanislavski
está realmente dizendo: “Eu imponho as leis da natureza a todos. Ai de quem
infringir aquilo que creio ser a verdade inescapável!”.
Considerações finais
O jogo teatral não pode funcionar sem regras. Reunimo-nos com outros
atores para, demorando-nos sobre um processo, convirmos juntos sobre tais
regras e, findo o processo, chamamos espectadores para convir conosco sobre as
mesmas. Pedagogicamente se o mesmo: um professor de palhaço ou de
máscara enunciará aos alunos aquilo que funciona ou não funciona por convir a
um caminho poético, estético, existencial, experiencial determinado. “Para que
uma experiência funcione para um coletivo, é preciso que o mesmo convenha
sobre os parâmetros e critérios de funcionamento da mesma” (Fortes, 2018, p. 117).
Mas poderíamos dar como exemplo o humor para dizer que certas coisas, por
natureza, não funcionam, ou seja, não são engraçadas? Para que isso possa ser
considerado verdadeiro, seria preciso demonstrar que, em todas as épocas e
lugares, sempre se riu dos mesmos fenômenos. Não me parece ser esse o caso.
E por isso me parece tão problemático falarmos em fundamentos do humor ou
princípios do palhaço, ao invés de utilizarmos termos como “convenção”, “critérios”
ou “parâmetros” para tais casos.
Ao invés de se lançar numa busca pelo cálice sagrado, tentando descobrir
princípios ou fundamentos que fundam sua arte, seria mais interessante que o
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ator experimentasse a convencionalidade do fazer teatral, discernisse quais regras
são interessantes de convir em cada processo singular, convir junto com outros
atores envolvidos, e assim poder se tornar um encenador de si mesmo, assumindo
suas próprias escolhas e valorações poéticas. Pois o ator, como diz Meierhold
(apud Thais, 2009, p.401), “ao entrar no palco transforma-se em uma obra de arte”,
porque sabe que “aquilo que o circunda foi concebido de um determinado modo”.
Mas aquilo que o circunda, o onde se seu trabalho, não é apenas o palco e a
concepção de encenação do espetáculo, mas uma multiplicidade de convenções
e concepções do que seja teatro e do que seja atuar. Ser um encenador de si
mesmo não é, portanto, agir de acordo com essas concepções, mas mergulhar no
exercício de conceber para si mesmo o que seja atuar, ou seja, conceber a si
mesmo enquanto ator, escolhendo e valorando tudo aquilo que lhe circunda,
sabendo que isso condiciona seu fazer, não por serem leis inescapáveis da
natureza, mas por serem convenções teatrais, ou seja, construções culturais.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
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