1
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação
da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari
Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura
Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Para citar este artigo:
ASCARI, Bianca Mendes; FALKEMBACH, Maria Fonseca;
FONTOURA, Rayssa de Oliveira; LENGRUBER, Stephânia
Fitaroni Batista. Corpos infinitos: Processo coletivo de criação
da videodança Endless. Urdimento Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0301
Este artigo passou pelo Plagiarism Detection Software | iThenticat
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
2
Corpos infinitos:
1
Processo coletivo de criação da videodança Endless
2
Bianca Mendes Ascari
3
Maria Fonseca Falkembach
4
Rayssa de Oliveira Fontoura
5
Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
6
Resumo
O texto é um relato de experiência que trata de elementos de composição no
processo de criação coletiva da videodança Endless - ou esqueci de lembrar, do
grupo Tatá, produzido a distância, devido ao isolamento social, em 2020. A análise
do texto tem como foco três elementos: um deles é a preparação corporal, que tem
como base as práticas de produção da conexão corpo-mundo, como um espaço
contínuo. O outro é a relação dos intérpretes-criadores com a câmera e suas
dificuldades de adaptação. O terceiro elemento abordado é a edição do vídeo, com
foco nas transições. A pesquisa identifica a composição de Endless como uma
transcriação. Evidencia a emergência da dimensão da presença na operação de
transcriação, reconhecida como produção de afetos. Apresenta as noções afeto,
corpo infinito e conexão, que emergem da experiência de criação.
Palavras chave: Transcriação. Presença. Videodança. Preparação corporal. Edição.
1
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico Brasil; do Programa de Bolsas Acadêmicas Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica - PROBIC/FAPERGS; e do Programa de Bolsas Acadêmicas - Programa de Bolsas de Iniciação à
Extensão e Cultura.
2
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Sylvia Furtado Félix. Doutora em Letras Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Linguística pela Universidade Católica de Pelotas (RS).
Especialista em Linguística e ensino de Língua Portuguesa (UFRGS). Graduação em Letras Português/Espanhol
pela (UFRGS).
3
Graduanda em Dança - Licenciatura na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) - Bolsista de extensão pelo
Projeto de Extensão e Pesquisa Tatá Núcleo de Dança-Teatro. bascari@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2796795749275980 https://orcid.org/0000-0001-6521-2643
4
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com doutorado sanduíche na
Exeter University. Mestrado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Graduação em
Artes Cênicas (UFRGS). Professora do Curso de Dança - Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas.
Professora do Curso de Dança Licenciatura e da Pós-Graduação em Artes - Latu Sensu, da Universidade Federal
de Pelotas (UFPel). maria.falkembach@ufpel.edu.br
http://lattes.cnpq.br/3998116807262286 http://orcid.org/0000-0002-5647-4825
5
Graduanda - bacharelado em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Bolsista de
iniciação científica PROBIC/FAPERGS no Projeto de Extensão e Pesquisa Tatá Núcleo de Dança-Teatro.
Técnica em agropecuária pelo IFSUL campus CAVG. rayssafontoura@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9252414657763487 https://orcid.org/0000-0003-3919-2268
6
Graduanda no curso de Dança - Licenciatura pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista de Iniciação
Científica CNPq no Projeto de Pesquisa Produção do Corpo-Sujeito nas Práticas de Dança e integrante do Grupo
Tatá - Núcleo de Dança-Teatro. ste.lengruber@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3908037737948491 https://orcid.org/0000-0001-7328-388X
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
3
Infinite bodies: Collective creative process of Endless videodance
Abstract
The text is an experience report that deals with compositional elements in the
collective creation process of the videodance Endless - or I forgot to remember, by
the group Tatá, produced at a distance due to social isolation, in 2020. One element
is corporal preparation: practices of production of body-world connection as a
continuous space. Another element is the relationship of the performers-creators
with the camera and its adaptation difficulties. The third element covered is video
editing, focusing on transitions. The research identifies Endless's composition as a
transcreation. It shows the emergence of the presence dimension in the
transcreation operation, recognized as the production of affections. It presents the
notions of affection, infinite body and connection, which emerge from the experience
of creation.
Keywords: Transcreation. Presence. Videodance. Corporal preparation. Editing.
Cuerpos infinitos: proceso colectivo de creación de
videodanza Endless
Resumen
El texto es un relato de experiencia que trata sobre elementos compositivos en el
proceso de creación colectiva de la videodanza Endless - o se me olvidó recordar,
por el grupo Tatá, producido a distancia por aislamiento social, en 2020. Un elemento
es la preparación corporal: prácticas de producción de la conexión cuerpo-mundo
como un espacio continuo. Otro elemento es la relación de los intérpretes-creadores
con la cámara y sus dificultades de adaptación. El tercer elemento cubierto es la
edición de video, enfocándose en las transiciones. La investigación identifica la
composición de Endless como una transcreación. Muestra el surgimiento de la
dimensión de presencia en la operación de transcreación, reconocida como
producción de afectos. Presenta las nociones de afecto, cuerpo infinito y conexión,
que emergen de la experiencia de la creación.
Palabras clave: Transcreación. Presencia. Videodanza.. Edición.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
4
Hoje eu esqueci de lembrar que o universo é
imenso, que as estrelas estão muito longe e que
eu não sei quantas existem.
Ontem eu esqueci de lembrar que a Terra, se
comparada com o Sol, é muito pequena, e que o
Sol, se comparado com outras estrelas, é nada.
Nesses dias não lembrei de pensar sobre como
chegamos aqui. Esqueci de me perguntar se existe
alguma relação entre o movimento da Terra e
meu pensamento. Esqueci de entender o infinito.
[...] Não lembrei de pensar na imensidão.
Endless - ou esqueci de lembrar (Grupotata, 2020)
7
é a primeira videodança
8
do grupo Tatá Núcleo de Dança-Teatro produzida a distância. O trabalho nasce da
necessidade e do desafio do grupo em manter espaços de afetividade e de criação
coletiva durante a pandemia da COVID-19
9
. A obra, que tem cerca de 6 minutos, é
a síntese do trabalho do grupo ao longo do ano, de ensaios através de
videoconferências e das explorações de movimentos individuais. Ela foi criada de
modo colaborativo, com a atuação de 15 pessoas, em 10 cidades, de 7 estados
diferentes, como efeito do momento de pandemia em que distância e proximidade
ganham novos significados uma dessas pessoas usou seu próprio aparelho
7
Ficha técnica: Texto e Direção: Maria Falkembach; Canção (Endless): Leandro Maia/Chloe Tyghe/Maria
Falkembach (Interpretação: Chloe Tyghe; Arranjo: Leandro Maia); Montagem e Finalização: Jão Cruz (em São
José dos Campos, SP), Rayssa Fontoura (em Rio Grande, RS), Stephania Lengruber (em Paraty, RJ); Elenco,
câmera, fotografia, figurino, luz: Bianca Ascari (em Tubarão, SC), Carolina Pinto (em Pelotas, RS), Higor
Alencaragão (em Brasília, DF), Inda Rulio Bajar (em Pelotas, RS), Maria Falkembach (em Garopaba, SC),
Nadyne Uakti (em Brasília, DF), Raissa Bandeira da Luz (em Garopaba, SC), Sarasvatii Leão (em Goiânia, GO
e Pelotas, RS), Stephania Lengruber (em Paraty, RJ); Vozes: Carolina Pinto, Elza Falkembach (em Garopaba,
SC), Gonçalo Maia (Pelotas, RS), Higor Alencaragão, Inda Rulio Bajar, Tom Carvalho Falkenbach (em Curitiba,
PR), Nadyne Uakti; Realização: Tatá - Núcleo de Dança-Teatro, Centro de Artes (UFPEL).
8
“Trata-se de uma forma híbrida, intermidiática que pode ser concebida num múltiplo espectro de
ferramentas e formas dentro do espaço de uma (ou mais) tela(s)” (Ferreira, 2020, p.33).
9
A COVID-19 é a doença causada por um novo coronavírus denominado SARS-CoV-2. A Organização Mundial
da Saúde (OMS) tomou conhecimento deste novo vírus em 31 de dezembro de 2019, após receber a
notificação de um grupo de casos de “pneumonia viral” em Wuhan, na República Popular da China. Em 30
de Janeiro de 2020, a OMS declarou o surto dessa doença, como emergência de saúde pública (OPAS, 2022).
Em 13 de março de 2020 o Ministério da saúde do Brasil regulamenta critérios para quarentena que foram
adotadas por instituições públicas e privadas a partir desta data (SanarMed, 2020). Em todo o Mundo foram
mais de 419 milhões de casos e mais de 5 milhões de mortes. No Brasil, em 18 de fevereiro de 2022, o
número total de pessoas que morreram devido a COVID-19 desde o início da pandemia é de 643.029 (Google
Notícias, 2022).
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
5
smartphone para gravar os vídeos e disponibilizou seus arquivos de vídeo na
nuvem de dados do grupo, para os editores terem acesso. A equipe de três
editores, autointitulada “galerinha da edição”, partiu desse material para elaborar
o roteiro, realizar a seleção de imagens e definir as transições.
A complexidade do método de criação, inédito para esse grupo, em
decorrência do contexto da pandemia, produziu o interesse em um olhar apurado
sobre esse processo específico. O grupo de pesquisadoras-autoras deste texto
percebeu que o processo de Endless poderia contribuir com o projeto de pesquisa
denominado "Produção do corpo-sujeito em práticas cênicas"
10
, visto que a
dimensão virtual do corpo-sujeito do modo como a pandemia impôs, não havia,
ainda, sido estudada por essa perspectiva.
O referido projeto inscreve-se na perspectiva dos estudos foucaultianos e
agrega novos referenciais, a partir de noções que emergem do processo de criação
(Foucault, 1990; 2010; Veiga-Neto; Saraiva, 2011). No caso de Endless, buscamos
compreender o corpo produzido na relação com os elementos de composição
presentes na criação da obra. Para isso, nos aproximamos da teoria literária de
Campos (2006) e Plaza (2003) e dos estudos da presença de Gumbrecht (2010) e
estudos sobre videodança de Caldas (2012) e Veras (2007). Neste texto, relatamos
o processo de criação a partir de algumas noções que nos indicaram caminhos de
pesquisa.
Devido à pandemia da COVID-19, o grupo Tatá
11
foi desafiado a explorar
formas de fazer dança que nunca havia experimentado. Ao longo dos primeiros
encontros remotos do grupo, surgiu a ideia de trabalhar com uma canção
12
criada
a partir do texto Esqueci de Lembrar (epígrafe desse artigo), escrito por Maria
10
"Que seres humanos, que corpos, que modos de existência estão sendo produzidos pelos saberes que
constituem as práticas de dança? Nessa pergunta está implícita a ideia de que as práticas são, elas mesmas,
concepções e projetos de seres humanos. A questão de pesquisa percorre diferentes espaços de práticas
de dança, a saber: a dança como componente curricular obrigatório na educação básica; processos de
criação de artistas da dança". (Falkembach, 2018)
11
O Tatá é um grupo que tem como foco a criação de obras cênicas para apresentação em escolas da rede
básica de ensino e espaços da comunidade da cidade de Pelotas e região, principalmente escolas públicas,
com o intuito de difundir a dança-teatro e promover a arte-educação, contribuindo com a formação de
público. O coletivo de criação está vinculado ao projeto unificado de mesmo nome, que desenvolve ações
de extensão e de pesquisa articuladas, do Curso de Dança - Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas.
12
Canção Endless, de Leandro Maia, Chloe Tyghe.e Maria Falkembach, composta e gravada na Inglaterra em
2016, para a montagem de Land of many arrivals, coreografia de Maria Falkembach.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
6
Falkembach, o qual é original da obra Terra de Muitos Chegares, também criação
do grupo, estreada em 2013. Esse trabalho traz para uma linguagem cênica os
sentimentos, reflexões e experimentações, a partir da identidade multicultural do
grupo, que, desde seu início, é um coletivo que acolhe e abraça estudantes e
artistas de diversos lugares do Brasil, uma terra de muitos chegares.
Em 2020, esse sentimento de acolhimento foi um dos estímulos para nossa
criação, junto à necessidade de estarmos juntos e imersos na dança. Foi o que nos
moveu para a criação de Endless ou esqueci de lembrar. Com os encontros
remotos, devido à suspensão de ações presenciais, percebemos que seria possível
que artistas que não faziam mais parte do Tatá, por não residirem mais em
Pelotas, retornassem às atividades do grupo. Assim, convidamos alguns bailarinos
que haviam feito parte da criação da obra Terra de Muitos Chegares a se juntarem
às práticas remotas. Essa troca de vivências e perspectivas diferentes, entre quem
havia entrado recentemente no coletivo e quem havia participado da criação de
Terra de Muitos Chegares, contribuiu positivamente na criação da videodança.
Em 2013, a cena, que continha o texto Esqueci de Lembrar, foi criada a partir
de um jogo de reação cinestésica em câmera lenta. Nela, cada um dos nove
bailarinos deveria estar em conexão com todos os outros e mover-se em reação
ao movimento do outro. Dessa forma, práticas fundadas na conexão cinestésica
eram constantes e fundamentais no trabalho do grupo (Falkembach, Könzgen,
2014). Em 2020, quando cada um estava em sua casa, em cidades diferentes, isso
se tornou impossível. Foi necessário, então, recriar os movimentos, para construir,
de outro modo, a conexão entre nossos corpos e retomar a ideia original.
Entendemos que o processo de Endless se constituiu em realizar uma
operação de transcriação: tradução da forma original (configurada na
materialidade do corpo em presença) para a nova forma (configurada na
materialidade do vídeo). Transcriação é um conceito de Haroldo de Campos, para
tradução de poesia, que aqui utilizamos para a dança
13
. Pensamos a transcriação
que realizamos, assim como Campos (2006, p.35) descreve a tradução de textos
13
Julio Plaza (2003, p. I), a partir de Roman Jakobson, vai denominar essa operação de tradução intersemiótica:
"aquele tipo de tradução que 'consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistema de signos
não verbais', ou 'de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o
cinema ou a pintura', ou vice-versa".
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
7
criativos: "Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado,
traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma”.
A transcriação é a tradução de uma obra de arte de uma linguagem para
outra. Ao pensar a arte como forma (Pareyson, 1993), traduzi-la significa reformá-
la, refazer a forma, e ao refazê-la, mesmo a partir do significado original, um
processo de ressignificação. Esse processo ocorreu com o texto Esqueci de
Lembrar - que havia, originalmente, composto uma das cenas de Terra de Muitos
Chegares. Outros significados foram gerados devido ao contexto das medidas de
distanciamento para contenção da propagação do coronavírus. No momento da
criação da videodança não estávamos longe apenas das estrelas, como se refere
o texto, mas também longe das pessoas. Em 2013, na cena, os corpos se
entrelaçaram, os bailarinos estavam próximos. Então, em 2020, se construíram
novas possibilidades de interpretação, resultantes da intenção de buscar uma
proximidade entre os corpos, mesmo estando tão distantes uns dos outros.
Nos ensaios, reinventamos a maneira de estar juntos e partimos para
experimentações corporais coletivas, com o intuito de retomar nossos corpos
artistas. A mesma intenção foi trabalhada na edição da videodança. Por exemplo,
na Imagem 1, frame do videodança, a partir da edição do vídeo, produzimos um
efeito no qual nossos corpos e os espaços que eles habitam se fundem, nos
aproximando e produzindo esse estar juntos.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
8
Figura 1 - Frame 01’56” - Endless - ou esqueci de lembrar
Fonte: Grupotata, 2020
Na análise do processo de criação, trabalhamos com uma metodologia em
prática artística que, segundo Mônica Dantas (2016, p. 170), possibilita uma
investigação que "se realiza em terrenos de prática artística [...], buscando explicitar
os saberes operacionais implícitos à produção de uma obra ou situação artística".
Nossa metodologia se utiliza da autoetnografia. Sylvie Fortin (2009) diz que a
etnografia e a autoetnografia se desenvolvem através de anotações descritivas e
de analíticas, podendo ser realizada não pelo próprio criador da obra, mas por
um outro artista que se coloca como pesquisador. A seleção de documentos,
entrevistas e observação participante constituem os tipos de dados etnográficos
dentro desse método. Evidencia-se que a autora considera também as reações
somáticas do pesquisador como um tipo de dado.
Como dados de pesquisa utilizamos as anotações feitas por nós durante o
processo de criação, os cadernos de anotação das vivências dos intérpretes-
criadores, os registros audiovisuais de ensaio e as conversas do grupo no aplicativo
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
9
de mensagens WhatsApp. Na etapa da edição, o diálogo em WhatsApp contém
rastros das escolhas e justificativas de composição, a partir das quais
identificamos nossos procedimentos.
Como dado etnográfico, também utilizamos a entrevista sobre o processo de
criação de Endless, realizada pelo Laboratório de Estudos Coreográficos -
CoreoLAB
14
, em sua programação de conversas com artistas, online e, ao vivo, em
seu canal da plataforma Youtube (CoreoLAB, 2020). Nessa entrevista, as perguntas
foram elaboradas pela professora Dra. Alexandra Dias e dirigidas ao coletivo de
artistas do Tatá. De acordo com ela, em 2020, a principal questão de pesquisa do
grupo de estudo do CoreoLAB era: 1) Quais conceitos de dança contemporânea
guiam as práticas de dança contemporânea? 2) As entrevistas tinham como
principal objetivo saber como cada artista entrevistado trabalhava, quais conceitos
são operantes em suas práticas e como estavam se adaptando durante a
pandemia. Como etapa de análise de nosso estudo, realizamos a transcrição da
entrevista com o Tatá e identificamos pontos de contato entre as falas dos
entrevistados e noções que emergiram ao longo do processo.
Usamos o conceito de noção teatral de Icle (2011) para explicitar o
entendimento de que as palavras escolhidas como categorias de análise neste
texto levaram em conta as palavras que se originaram nas enunciações dos
artistas envolvidos no processo de criação. Tais palavras, para esse grupo em
particular, comunicavam elementos fundamentais dessa criação específica.
Conforme Gilberto Icle (2011, p.76), as noções teatrais "não são conceitos
científicos, elas não possuem uma previsibilidade, elas são dependentes do
contexto de emergência no qual elas se constituem". Numa etnografia, essas
palavras são importantes, pois condensam o fazer de um grupo, visto que, “uma
noção não se localiza nem na prática, tampouco na teoria teatral. Ela está mais ou
menos aparente num entre-lugar da prática e da teoria” (2011, p. 75).
Observamos que, no processo de transcriação, além das novas
interpretações do texto Esqueci de Lembrar, as quais nos ajudaram a desenvolver
14
Projeto de Extensão e Pesquisa da Universidade Federal de Pelotas que se insere no campo da arte-
educação, vinculando a criação em dança a processos de ensino-aprendizagem, coordenado pela professora
Dra. Alexandra Dias.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
10
caminhos para a composição, um fator foi muito importante no processo: uma
noção que os artistas criadores dessa obra denominaram de afeto. Porém, ficamos
em dúvida se o afeto poderia ser considerado uma noção, pois “vocabulários
demasiadamente abertos, como criatividade, imaginação, emoção, não são
desejáveis para operarem como noções teatrais” (2011, p.76). Entretanto, afeto foi
uma palavra repetidamente utilizada para relatar o estado corporal vivido por
todos dentro do grupo
15
, um estado que permite a construção de movimentos
impregnados de sensações, emoções e sentimentos. Assim, passamos a entender
esse afeto como uma noção no processo de criação de Endless, pois foi sentido
no corpo de cada um que participou da videodança e mostrou-se importante na
configuração dos corpos e movimentos
16
. Esse elemento foi percebido pelo
coletivo - como Icle (2011, p. 75) escreve, “as noções vivem na relação com o outro”.
Nos ensaios do grupo Tatá também surgiram noções como: corpo infinito e
conexão.
A partir da insistência do aparecimento da palavra afeto nos dados
etnográficos, identificamos, como efeito do processo de criação, simultânea à
operação de transcriação, a produção de algo de uma dimensão diferente da
dimensão do significado. Mas, o que nós (artistas criadores de Endless) estávamos
falando quando falamos do afeto envolvido no processo de criação? Podemos
aproximar essa noção àquilo que Gumbrecht (2010) denomina produção de
presença? Ainda nos perguntamos: essa dimensão, diferente da dimensão do
significado, é simultânea à operação de transcriação ou podemos entendê-la
como parte da operação de transcriação?
Ao compreender afeto, corpo infinito e conexão como noções, essa escrita
desenvolve reflexão sobre três aspectos que foram fundamentais no processo de
transcriação que resultou na videodança: 1) a preparação corporal do grupo; 2) a
relação do bailarino com a câmera; 3) e as transições usadas na edição.
15
"As noções, ainda, criam vocabulário próprio para o grupo que trabalha junto, pois a mesma noção, por
exemplo, estar em cena e estar fora de cena, pode ser nomeada com outro vocabulário" (Icle, 2011, p.75).
16
preciso viver uma noção no corpo, embora possamos explicá-la, traduzi-la em palavras, discuti-la, re-
significá-la" (Icle, 2011, p.75).
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
11
Preparação corporal
O Tatá é formado por intérpretes-criadores, termo usado ao referir-se a
bailarinos(as)-atores(as) que não somente executam algo que é transmitido a eles,
mas dialogam e interferem diretamente na criação da obra cênica (Ferreira, 2012).
Além disso, para nós, o processo pelo qual as pessoas passam durante a criação
da obra é tão importante quanto o produto final, pois são suas vivências que
compõem a cena. Esse modo de criação do grupo tem ressonância com a prática
de outros coletivos de dança, tal como descrevem Lígia Tourinho e Eusébio Silva
(2006, p.126):
Preparar-se para a cena não se resume apenas a ampliar o
condicionamento sico - as valências físicas -, a fazer crescer a
capacidade respiratória, a massa muscular e o alongamento. A
preparação corporal implica em estimular toda a corporeidade para um
trabalho artístico e, consequentemente, abordar os aspectos fisiológicos,
emocionais e energéticos do ser humano.
Para o Tatá, o preparar-se para a cena é estar em cena. A diretora do grupo,
Maria Falkembach, reforça a importância de se estar presente em qualquer
experimentação ou preparação corporal, emanando energia e se entregando
totalmente àquela proposta, como se fosse a primeira e a última chance de
executá-la.
A trajetória do grupo demonstra que cada produção cênica do coletivo requer
um tipo de trabalho corporal diferente. Assim, a preparação que relataremos a
seguir produziu o corpo que alcançamos, especificamente, para esta obra. Além
disso, no ano de 2020, em que fomos obrigados a deslocar nossos encontros
presenciais para encontros remotos, tivemos que construir uma maneira atípica
de trabalhar o corpo.
A preparação corporal do grupo acontecia uma vez por semana em um
encontro remoto síncrono, que durava em torno de 1 hora e 30 min. Quando
iniciamos o processo, estávamos sem realizar práticas corporais em grupo
cerca de três meses e sentíamos necessidade de nos reencontrarmos como
corpos que dançam e produzem arte coletivamente (Falkembach, 2021).
A temática do infinito, expressada pela obra anterior, foi um ponto de partida
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
12
para repensarmos formas de fazer dança no momento de isolamento em que
estávamos inseridos. A exploração de movimentos e de atitudes do corpo
perseguiram a materialização da ideia de infinito, dirigiram-se à transcriação da
cena presencial de 2013. Para dar suporte à corporificação desses significados,
fomos encontrando práticas que contribuíam na construção do corpo necessário.
Para descrever nosso trabalho de preparação corporal, agrupamos nossos fazeres
em três práticas: 1) Conexão Terra-estrelas; 2) Corpo extenso que atravessa
paredes e ultrapassa limites; 3) A ginga.
Figura 2 - Frame 02’15” - Endless - ou esqueci de lembrar
Fonte: Grupotata, 2020
1) Conexão Terra-estrelas
A corporificação da ideia de conexão Terra-estrelas vem de uma experiência
com processos da dança-teatro japonesa butô, realizado com a artista Minako
Seki, que trabalha o corpo como um canal de energia e de comunicação entre dois
polos, a Terra e o universo. Durante a prática, o corpo se coloca como um canal
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
13
de transmissão e recepção, internalizando através da criação de imagens a
sensação de enviar e de deixar chegarem as energias para/do universo. Larissa
Tibúrcio se refere à dança-teatro butô como expoente da dança contemporânea.
Para a autora, a dança contemporânea,
Enquanto uma expressão artística que integra o sujeito e o mundo [...],
capaz de trazer para si outros sentidos para o viver humano, pode
contribuir para pensarmos o tempo e o espaço a partir de uma lógica
sensível que rompe com uma concepção linear e mensurável do espaço-
tempo para reintroduzi-lo no mundo (Tibúrcio, 2008, p.3).
Identificamos, no processo de Endless, o desenvolvimento do sentido
sobre o qual escreve Tibúrcio, como também uma experiência de compreensão
da transformação das sensações de tempo e espaço em cada uma das pessoas
criadoras.
O trabalho de corporificação do espaço também foi desenvolvido a partir
da imagem de "guardar o espaço e a energia", desenvolvida a partir de experiência
com a Técnica Silvestre. Criada por Rosangela Silvestre, a Técnica Silvestre é uma
prática que propõe a conexão do corpo com o universo, intitulado “o Corpo
Universo, composto pelos triângulos da intuição, expressão e equilíbrio, que
sintetizam elementos sagrados e físicos. (Silvestre, 2016; Witencamps, 2020).
Nesse gesto de “guardar”, que se configura na postura captada na Figura 2, é
trabalhada a corporificação do espaço, da memória e da ancestralidade.
2) Corpo extenso que atravessa paredes e ultrapassa limites
A segunda forma de prepararmos o corpo também utilizou a criação de
imagens. O intuito de construir uma organização corporal, a partir do imaginário
atrelado à ideia de corpo extenso que atravessa paredes e ultrapassa limites, nos
permitiu construir momentos como os das imagens expressas ao longo do texto
Esqueci de lembrar. Na Figura 3, que segue, conseguimos observar as duas atrizes-
bailarinas com seus corpos engajados em alcançar, em se projetar no imenso, um
exemplo do estado que essa prática construiu.
Trabalhamos, tanto a extensão de linhas retas, como de linhas curvas,
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
14
buscando, respectivamente, a projeção ao infinito e o corpo como continuidade
da imensa curvatura da Terra.
Figura 3 - Frame: 03’42” - Endless - ou esqueci de lembrar
Fonte: Grupotata, 2020
Os estudos de Valerie Preston-Dunlop sobre os modos de materialização dos
dois elementos fundamentais do espaço, ou unidades corêuticas: a linha e a curva
são referência para essa prática. Conforme a autora, existem quatro maneiras de
materialização, sendo uma delas, a projeção espacial. Ela explica o que é a
projeção espacial: “Trace uma linha reta com o braço do centro do corpo até o
espaço. Não pare a energia nas pontas dos dedos. Envie a energia em uma linha
além deles. Torne vivo o espaço além dos dedos. Projete a energia no espaço”
(Preston-Dunlop, 1998, p.134)
17
.
17
Trace a straight line with your arm from the body center out into space. Don't stop the energy at the finger
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
15
Usamos a projeção da energia como o modo de projeção espacial, para
construir a materialização da linha do infinito e da curvatura da Terra pelo corpo.
3) A ginga
A ginga é o elemento básico e fundamental da capoeira, que consiste em
investir o corpo todo em um balanço que engendra no corpo o estado simultâneo
de ataque e defesa. A ginga combina passos com oscilações e transferência de
peso de um lado para o outro, para frente e para trás, que criam deslocamentos
triangulares. Conforme argumenta Cristina Rosa (2015), a ginga materializa,
fisicamente, o balanço dinâmico de forças opostas, no corpo fragmentado, que,
relacionado a uma tensão livre, produz uma atitude alerta-sossegada, que é
associada à ideia de “frieza” (coolness), produzindo um andar livre e um olhar
atento aos eventos do entorno. “A ação sinuosa da parte superior do corpo
contrabalança - e muitas vezes esconde ou ofusca em vez de expor - a direção, o
tempo ou propósito do jogo de quadril” (Rosa, 2015, p.106)
18
. Na capoeira, a
dinâmica do movimento é contínua e circular, fazendo com que o jogo também
seja. Essa movimentação, originalmente é utilizada na capoeira como meio de
iludir e desnortear os adversários, mas, no nosso caso, esta foi trabalhada e
ressignificada numa composição coreográfica.
Na preparação corporal do grupo, utilizamos a ginga como aquecimento,
relaxamento muscular e como maneira de despertar e produzir um corpo atento.
Além disso, a usamos como consciência espacial, atitude alerta-sossegada e
também como material de composição, combinando com outras movimentações.
Nesse momento de pandemia, nos tornamos dependentes da Internet. Por
este motivo, durante nossos encontros, eventualmente alguns integrantes tinham
problemas de conexão de rede, acabando por não poder utilizar a câmera ou
assistir com fluidez as imagens de orientação. A não utilização das câmeras,
tips. Send the energy out in a line beyond them. Enliven the space beyond the fingers. Project the energy
into space. (Tradução nossa)
18
[...] the upper body’s sinuous actions counterbalance and often hide or overshadow rather than expose
the direction, timing, or purpose of the hip-play. (Tradução nossa)
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
16
mesmo que não intencional, condição acidental desse momento atípico, também
nos colocou para repensar nossas formas de fazer. Isso porque, aqueles que
tiveram problemas para receber os estímulos visuais das propostas práticas
puderam participar através de uma outra perspectiva sensorial, guiados somente
pela voz e pela escuta.
Essa quebra da supremacia da visão no âmbito da dança, que já vinha sendo
trabalhada pelo grupo com um projeto de áudio-aulas
19
, foi reforçada por essa
experimentação diferenciada, contribuindo para a percepção corporal por via de
outros canais perceptivos e da conexão consigo mesmo. Quando não estamos
sendo observados e nem observando alguém, ficamos mais relaxados
20
,
confortáveis e concentrados para nos permitir explorar novas propostas de
movimento. Além disso, diminuindo a percepção visual, nos focamos nas conexões
entre as partes do corpo e ampliamos a percepção cinestésica e, assim,
exploramos o espaço, interno e externo à pele, por outra perspectiva.
Também fizeram parte dos processos de preparação, a atenção e o cuidado
com o corpo. Então, como forma de aquecimento, praticamos yoga conduzidos
por duas das integrantes do Tatá. Essa prática contribuiu para nos sentirmos
menos tensionados e abertos para as experimentações e criações de sequências
de movimentos para a videodança. Mesmo que esses momentos não tenham
acontecido em todos os encontros, foram fundamentais para o estado corporal
que queríamos de encontrar, importantes para trabalhar a respiração, o
alinhamento e a integridade do corpo, ainda mais por estarmos enrijecidos, devido
ao atual contexto, em que passamos horas em frente a computadores e celulares.
As práticas relatadas anteriormente foram essenciais para a concepção do
que foi pretendido para a obra Endless - ou esqueci de lembrar, corpos conectados
com o universo, com a ancestralidade, com os outros e consigo mesmo. É notável
que as três práticas têm como foco, por vias diferentes, a ampliação da
sensibilidade em relação ao espaço e da conexão corpo-mundo, como um espaço
19
Projeto de criação de aulas de dança em formato de áudio do Tatá Núcleo de Dança-Teatro, com o objetivo
de contribuir com o ensino de dança nas escolas públicas da cidade de Pelotas/RS.
20
"Entendemos relaxamento como alívio de tensões desnecessárias na musculatura para desbloquear o
movimento, que é diferente do movimento abandonado, sem tônus e sem presença corporal"(Miller, 2007,
p.66-67).
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
17
contínuo.
As práticas aconteceram de forma coletiva. Nos preparávamos para estar
juntos e empregar nossa energia criativa e nossos desejos, no tempo
compartilhado em grupo. Mesmo que cada um, no seu espaço, com problemas de
conexão de Internet, era nesse momento do encontro síncrono que a instalação
do estado de dança, deveras necessário para a prática, acontecia.
Ao preparar os corpos dessa forma, ampliamos nossa percepção tátil e,
portanto, estendemos nossa capacidade de afetar e ser afetados tátil e
cinestesicamente, pela projeção da energia e pela criação de imagens. Nossa
sensação era de que, mesmo no contexto virtual, ao realizar práticas que buscam
o corpo-mundo como espaço contínuo, criamos as condições para que o
movimento de uma pessoa produzisse reação ao movimento da outra. Ao buscar
reações não visuais, tínhamos a sensação de corpos em contato que, mesmo à
longa distância, não era a sensação de conexão com corpos virtuais. Começamos
a delinear aqui, a noção de corpo infinito: que reage e produz reação a longas
distâncias.
A reciprocidade de ação e reação, percebida na experiência atuando na
produção dos corpos, nos levou a convocar os estudos de Gumbrecht sobre a
dimensão da presença.
Ao propor entender o processo como uma operação de transcriação, num
primeiro momento estamos lidando no campo dos significados, com a tradução
do significado de uma obra de arte de uma linguagem para outra. Entretanto essa
operação é impossível. Para falar da transcriação, Haroldo de Campos (2006, p.34-
35) cita Paulo Rónai: "O objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta
exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o
estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe
em traduzir o intraduzível".
Propomos uma ideia: no nosso trabalho, o inexprimível é da dimensão da
presença, que se funda na ação recíproca de afetar e ser afetado.
Ao explicar o que entende por produção de presença, Gumbrecht escreve
que:
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
18
Uma coisa “presente” deve ser tangível por mãos humanas - o que
implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos
humanos. Assim, uso produção” no sentido da sua raiz etimológica (do
latim producere), que se refere ao ato de “trazer para diante” um objeto
no espaço. [...] Por isso “produção de presença” aponta para todos os
tipos de eventos e processos nos quais se intensifica o impacto dos
objetos “presentes” sobre corpos humanos (Gumbrecht, 2010, p.13).
O que nos assombra, e que durante o processo denominamos produção de
afeto, foi a sensação de impacto imediato e intenso entre os corpos, quando não
estávamos num mesmo espaço. Devido a isso, consideramos a preparação
corporal realizada, como práticas que trouxeram para diante de nossos corpos as
coisas do mundo, inclusive os corpos do coletivo de criação: esses corpos-espaço-
continuidade-do-espaço-universo.
Enquanto processava a operação de transcriação, a tradução na dimensão
do significado, operava, também, na dimensão da presença, o impacto intenso dos
corpos-espaço, uns sobre os outros.
Propomos que na ação de transcriaçãoque se considerar a dimensão da
presença, uma relação tátil com o mundo, que não é da dimensão do significado,
ou interpretação. E assim como Gumbrecht fala em produção de presença,
ousamos falar em produção de afeto.
Afeto experienciado e que encontra ressonância com o modo descrito por
outro grupo de artistas:
A-feto é um choque ou extrusão de um estado momentâneo ou, às vezes,
mais sustentado de relação, bem como a passagem (e a duração da
passagem) de forças ou intensidades. Ou seja, o a-feto é encontrado nas
intensidades que passam corpo a corpo (humano, não-humano, parte do
corpo e outros corpos), nas ressonâncias que circulam sobre, entre, e às
vezes se prendem a corpos e mundos, e nas próprias passagens ou
variações entre essas intensidades e suas próprias ressonâncias
(Fernandes et al., 2021, p.10).
Relação com a câmera
Com a adaptação do espetáculo de dança para o ambiente virtual, os
intérpretes-criadores, acostumados com a cena em outros espaços que não a tela,
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
19
tiveram que se adaptar e contar com um novo equipamento, a câmera. No início
observamos muitos bloqueios em relação ao seu uso: não saber como gravar, não
conseguir elaborar onde e como posicionar a câmera, dúvidas sobre iluminação,
etc. Com o tempo, a presença deste equipamento instigou os criadores a buscar
novas possibilidades, tais como: mover a câmera, seguindo o olhar do intérprete;
colocar a câmera no chão, explorando outra visão da cena; e até mesmo colocar
a câmera de cabeça para baixo. Ao escrever sobre videodança, Janelle Porter
(2009, p.11) associa essa relação, bailarino e câmera, a um pas de deux
21
, em que a
câmera, mais do que um dispositivo de gravação, que suporte ao corpo e é,
simultaneamente, palco e audiência.
Raissa Bandeira, durante a entrevista com os integrantes do Grupo Tatá sobre
a criação de Endless, realizada pelo CoreoLAB, relata como foi o processo de ter
seus movimentos filmados e de filmar os movimentos de outra pessoa:
Tem aquele primeiro momento de estranhamento, assim com a câmera,
que começa a surgir algumas vontades diferentes, né? A pessoa faz
um movimento apontando para o céu e tu sente um impulso, assim uma
vontade, de jogar a câmera para o céu também. E nisso vai surgindo essas
brincadeiras. Então é uma experiência totalmente diferente (Coreolab,
2020).
A filmagem de trabalhos presenciais nem sempre é feita e, quando é, se
configura apenas como um registro. Nesses casos, não costuma haver grande
reflexão sobre como fazer e nem sobre como potencializar o material audiovisual
produzido; as pessoas envolvidas na dança possuem tarefas que não incluem se
relacionar com câmeras. Na videodança, todas as pessoas envolvidas na criação
da obra constroem um vínculo com a aparelhagem de vídeo, pois as performances
são pensadas para, através e a partir das lentes e de suas possibilidades.
Por mais que os integrantes do Tatá sejam parte de uma geração "digitalizada"
(Andrade et al., 2021, p.23), que o atual contexto pandêmico intensificou a
digitalização e a vivência no mundo virtual, que os smartphones com câmeras
sejam habituais em nosso dia a dia, fazer arte com esse dispositivo propõe uma
21
Pas de deux é um termo em francês que significa “passo de dois”, criado para se referir a coreografia
dançada, conjuntamente, por duas pessoas.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
20
situação diferente. Ao pegarmos a câmera para criar, vemos que ela possibilita
outras formas de fazer arte, conforme a manipulamos.
Algumas das imagens interessantes para falar sobre a manipulação da
câmera em Endless são aquelas em que os bailarinos filmaram seus próprios
corpos. Por exemplo, no trecho localizado entre os 43 e 48 segundos da obra,
vemos a imagem de um caminhar incomum na areia
! incomum porque ele
acontece sobre ela
! captada pela perspectiva da intérprete (criadora, ao se
autofilmar). A forma como foi manipulado o vídeo desse caminhar nos coloca a
olhar para a areia como se ela fosse o céu. Desse modo, a câmera ao mesmo
tempo que instituiu o ponto de vista do espectador, tornou-se parte e deu suporte
a uma continuação do corpo da artista. Através disso, puderam ser exploradas
formas diferentes de ver uma ação como o caminhar.
O que não podemos deixar de perceber é que todo registro pressupõe
um suporte e que esse suporte, no caso do dispositivo audiovisual, opera
uma série de transformações na relação corpo/espaço/movimento. Não
considerar e nem aproveitar essas variações condena a câmera a operar
uma redução da presença cênica sem recolocar novas possibilidades
abertas pela presença audiovisual (Veras, 2007, p.10).
Como em Endless estávamos trabalhando a relação dos corpos com o
espaço infinito, os intérpretes-criadores começaram a explorar as possibilidades
da câmera para materializar essa ideia também a partir da sua manipulação.
Não lugar de perspectiva do público que assiste ao acontecimento cênico,
o equipamento câmera é ferramenta para a construção do trabalho audiovisual
em todas as suas convenções e possibilidades. As filmagens podem acrescentar
outras formas de movimento às imagens, quando a câmera se desloca, aproxima,
afasta, se posiciona em diferentes pontos espaciais em relação ao corpo, foca e
desfoca, conduzindo outras formas de “espectar” a arte. Logo no começo do vídeo,
diversas cenas mostram os corpos dos intérpretes em plano detalhe
22
. O foco nos
detalhes do corpo é um elemento de composição que foi potencializado pelo uso
desse dispositivo.
22
Quando a câmera enquadra apenas uma parte do rosto ou corpo (um pé, uma mão, um olho, etc.) ou
também um objeto como um lápis sobre uma mesa, um pincel, um copo, etc.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
21
Planos próximos podem isolar o corpo do espaço, fragmentá-lo, dar
proporções monumentais a suas menores porções (a “tragédia é
anatômica”, diria Jean Epstein) - pernas, pés, rostos, olhos, braços, mãos
-, dando ocasião de produzir coreografias improváveis: a frequência
com que as mãos, por exemplo, protagonizam planos, cenas ou peças
inteiras evidencia o quanto o cinema e o vídeo potencializam o fato de
que, na contemporaneidade, um movimento qualquer de um corpo
qualquer num espaço qualquer pode ser dança (Caldas, 2012, p. 248).
Figura 4 - Frame 03’21” à 03’24” - Endless - ou esqueci de lembrar
Fonte: Grupotata, 2020
A Figura 4 demonstra dois momentos do vídeo que estão conectados em
plano sequência e que destacam a relação do corpo de quem dança para/com o
mundo em sua volta. Podemos ver, então, essa conexão acontecer através do
movimento de redirecionamento da câmera. Desse modo, esse pequeno trecho é
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
22
um exemplo de transcriação da linguagem da dança para o vídeo. O movimento
da câmera traduz, por via da sua materialidade, os significados produzidos nos
movimentos de projeção da energia no espaço pelos intérpretes-criadores. Nesse
instante, o olhar da conexão entre sujeito e infinito, ampliado pelo audiovisual, é o
ponto de vista da pessoa que filma somado às relações estabelecidas entre o
corpo do ator e o seu entorno, mais as interpretações dos editores. Esse conjunto
de olhares e interpretações, ao final, se transformam no que será enviado ao olhar
do espectador. São infinitos dentro de outros infinitos, de olhares, sentires,
pensares, existires infinitos daqueles que participaram da criação da obra e
daqueles que vão assisti-la.
Isso que se passa entre a dança e o cinema (ou o vídeo) promove uma
nova experiência. As ideias de impureza (menos frequente) ou de hibridez
se repetem aqui. É comum tomar a videodança como um híbrido, nascido
de um diálogo entre a dança e o vídeo, no qual essas linguagens se
tornam indissociáveis, como uma obra coreográfica que existe apenas no
vídeo e para o vídeo (Caldas, 2012, p.250).
Em Endless, vemos em cena uma das intérpretes-criadoras dançando no
quintal de casa. Nesse trecho, dois recortes da mesma cena se sobrepõem. Temos,
nesse exemplo, devido à presença da câmera e da edição audiovisual, a
possibilidade de uma coreografia em que uma pessoa dança consigo mesma,
criada pela composição, com imagens simultâneas.
Um dos maiores desafios surgidos da relação com a câmera para cada
intérprete criador foi pensar em termos de imagem
! operação necessária na
transcriação da dança-teatro para a videodança. Além disso, foi difícil protagonizar
as práticas dessa linguagem: filmar-se, filmar o outro, captar o ambiente,
performar diante das lentes e estar atento ao enquadramento da imagem, sem
perder as noções de corpo infinito e conexão, que estavam sendo gestadas
coletivamente, ainda não nominadas. Cada pessoa foi encontrando um modo de
fazer, criando imagens que afetassem toda a equipe, tanto para contribuir com a
obra, como para acrescentar mais desejo de criar e estar junto. Nesse sentido, a
relação com a câmera também foi guiada pelo impacto do afeto.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
23
Transições
Nos primórdios do cinema, não existia a operação de montagem, pois os
filmes eram realizados como um espetáculo teatral: tudo acontecia na frente da
câmera em um take. Foi com o surgimento da montagem
23
que os cineastas
conseguiram criar outras formas de contar histórias, passaram a poder criar
ilusões para público que assistia, por exemplo, fazer com que cenas gravadas em
lugares diferentes parecessem acontecer no mesmo lugar. Assim, pensando na
necessidade de aproximar os intérpretes (a quilômetros de distância uns dos
outros), encontramos nossa linguagem na montagem de Endless. A primeira
proposta de edição, que consistia em colar os vídeos que cada um havia filmado,
um ao lado, acima ou abaixo do outro, dividindo o espaço da tela, foi logo
descartada. A ideia de produzir um vídeo em que cada um estivesse em um
quadradinho de tela gerava a sensação de que os infinitos eram limitados e
distantes uns dos outros.
Com a grande quantidade de material, o ato de editar exigiu escolhas
determinantes no processo de transcriação. As decisões individuais daqueles que
compunham a "galerinha da edição" eram discutidas e foram reelaboradas
diversas vezes
24
, até que entrassem em sintonia com as expectativas do coletivo
de artistas.
Algumas escolhas de edição foram pautadas por sequências de imagens nas
quais os cenários eram semelhantes. Desta forma, modos de transição mais
suaves foram construídos, fazendo parecer que as pessoas estavam próximas. As
praias Vermelha e do Laranjal foram combinadas com as dunas do Siriú, quintais
em Tubarão com quintais em Brasília, recortes de pele com outros recortes de
pele.
Para fazer com que a mudança de cenas fosse sutil, a denominada fusão foi
23
Consiste em juntar dois planos diferentes. A montagem nasceu em 1896 em Démolition d’un mur, de Louis
Lumière, onde vemos um muro ser destruído, a tela fica preta e segundos depois vemos o filme ser rodado
ao contrário e o muro ser reconstruído.
24
Eduardo Andrade (2021, p. 24) ao relatar sobre uma experimentação prática com estudantes, nos fala que
aquele “que se responsabilizava pelo trabalho de edição acabava por exercer enorme influência
sobre o resultado final do experimento, chegando, inclusive, a determinar o sentido global do trabalho.”
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
24
o principal tipo de transição escolhida. Através da fusão, uma imagem vai se
dissolvendo por cima da próxima, fazendo com que, por um momento, as duas
coexistam.
A função da dissolvência é principalmente facilitar a transição. Em sua
forma mais simples, pode levar-nos de um lugar para outro ou de um
tempo para outro. Quando aglomeradas, [...] a fusão é a “máquina do
tempo” do cineasta, transportando o espectador instantaneamente para
o passado ou para o futuro e para onde quiser (Dmytryk, 1984, p.83).
No caso de Endless, soma-se à ideia de transportar o espectador para
diferentes espaços, à sensação de que esses espaços estão conectados, mesmo
que distantes.
Figura 5 - Frame 02’40” - Endless - ou esqueci de lembrar
Fonte: Grupotata, 2020
Na transição de cenas, localizada entre 2’36” e 2’41”, podemos perceber a
fusão da cena nas dunas com a cena do quintal, pois, por alguns instantes, as duas
estão ao mesmo tempo na tela. Nesse caso, “o filme materializa a dimensão de
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
25
uma impossibilidade tornada possível" (Caldas, 2012, p. 242). Nos valemos da
especificidade do universo fílmico, que constrói particularidades para as danças,
sendo que, de fato, “aquilo que acontece diante dos seus olhos poderia
acontecer por meio do audiovisual” (Ferreira, 2020, p. 27). Portanto, a fusão destas
duas imagens faz com que a viagem das dunas ao quintal seja feita em poucos
segundos com fluidez, como podemos ver na Figura 5.
Figura 6 - Frame 01’30” à 01’35” - Endless - ou esqueci de lembrar
Fonte: Grupotata, 2020
Em duas passagens da obra, o recurso zoom foi usado para criar a ilusão de
contato entre espaços. No trecho representado pela Imagem 6, trabalhamos para
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
26
que a areia se transformasse na parede atrás da intérprete. O efeito disso nos gera
a impressão de que ambas ocupavam o mesmo ambiente e, ao mesmo tempo,
produz a sensação de viajar pelo espaço-tempo das cenas. Esse mesmo tipo de
transição foi realizado no trecho que vai de 3’20” a 3’29” para fazer parecer que o
céu de Pelotas fosse sequência do céu de Brasília.
O contexto de isolamento social nos colocou fisicamente distantes uns dos
outros. Por este motivo, na videodança Endless as transições contribuíram para
mostrar a conexão do coletivo por meio do visual. Durante as gravações e
investigações de movimento, não foi possível o toque, o apoio de um corpo no
outro, ou mesmo os corpos próximos, se envolvendo como na cena presencial,
porém, podemos ver os corpos se encontrando através da edição. Percebemos
que a edição foi congruente com a busca da preparação corporal, de criar a
continuidade espacial do corpo-mundo.
É infinito
Os aspectos relatados no decorrer desta escrita são efeito das
transformações ocorridas num processo de criação de uma linguagem artística
que depende da presença, do encontro de corpos, da proximidade e da relação
entre pessoas. As artes cênicas precisaram se ressignificar de maneira intensa
para sobreviver ao apreensivo período que surgiu com a pandemia da COVID-19. A
falta de hábito do grupo Tatá com o trabalho audiovisual não é a única questão
colocada neste momento, mas é uma delas. Em 2020 os artistas da dança, em
sua maioria, não tiveram acesso a seus locais de trabalho, salas de ensaio, de
estudo e espaços cênicos, geralmente um espaço amplo e adequado, que garantia
a construção de um ambiente (físico e sonoro) propício para a criação, para a
concentração necessária, sem interferências. Além de se adaptar aos cômodos de
sua própria residência, compartilhado com outras pessoas, para desenvolver os
processos criativos, foi necessário transformar a própria casa e o seu redor em
espaço cênico e cenário.
O grupo Tatá, esse coletivo de artistas, se desafiou a continuar em cena
através do que foi possível no atual contexto, com a expectativa de reencontrar o
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
27
afeto produzido ao criar e estar junto. A professora artista Carolina Pinto, parte do
elenco de Endless, expressou em entrevista que:
A primeira vez que o pessoal compartilhou o vídeo, eu olhei e eu me
emocionei. Eu me emocionei porque a gente tem essa conexão que tava
rolando nas aulas, [...] e resumiu tanto o que a gente estava vivendo. E
essa coisa da distância e dessa proximidade que a gente ainda tem. Dessa
afetividade que é o Tatá. Eu acho que o vídeo mostra isso que a gente
tem um uma coisa, muito afeto (Coreolab, 2020).
Nesta pesquisa, ao buscar identificar os elementos de composição e
descrever o processo de transcriação, nos deparamos com a necessidade de
abordar a dimensão da presença, reconhecida ao longo do trabalho na produção
de afetividade. Precisamos entender que essa dimensão, que escapa à descrição
e objetificação, que é elemento de composição, também existe num processo a
distância. O corpo escapa à interpretação e à escrita, a arte escapa a enumerações
e contenções e a vida também é feita disso que escapa.
Para evidenciar o que escapa, entendemos a criação de Endless como uma
experiência de produção de corpo infinito, uma noção que emerge do processo
que agrega produção de significado e de presença, que evidencia que nossa
relação com o mundo oscila entre efeitos de presença e de significado
25
. Nós
somos esses corpos infinitos, que se afetam reciprocamente entre distâncias
imensas.
O fato de as cenas terem sido gravadas, em sua maioria ao ar livre, em
espaços de natureza
26
, permitiu um respiro da paisagem de dentro de casa. No
final de novembro de 2020, quando a videodança foi lançada, a sensação de
enclausuramento em nossas casas era muito forte. Os primeiros comentários de
espectadores sobre a videodança a descreveram como "cheia de ar", relatando sua
vontade de "morar dentro dela". Essa sensação converge com a concepção da
25
"Para nós, os fenômenos de presença surgem sempre como 'efeitos de presença' porque estão
necessariamente rodeados de, embrulhados em, e talvez até mediados por nuvens e almofadas de sentido
[sic]. É muito difícil - talvez impossível - não 'ler', não tentar atribuir sentido [sic]" (Gumbrecht, 2010, p. 135).
Nessa citação de Gumbrecht, onde -se 'sentido' (como foi traduzida a palavra em inglês, no original,
meaning), ler 'significado'.
26
As filmagens respeitaram os protocolos de distanciamento e utilização de equipamentos de proteção
individual e ocorreram somente em espaços amplos, sem aglomeração.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
28
obra: um vídeo aberto, livre, infinito. Podemos entender comentários como esses
como índices de que os corpos infinitos também alcançaram os espectadores?
Os efeitos de presença e de significado que emergem do vídeo e poderão
afetar espectadores foram produzidos por uma composição que tece diferentes
materialidades. A composição é sistematizada neste texto por meio de três
aspectos: 1) a preparação corporal do grupo; 2) a relação do bailarino com a
câmera e 3) as transições usadas na edição. Ressaltamos que as operações de
tecer são constituídas de escolhas e que as escolhas da “galerinha da edição”
(escolhas de imagens e de transições) se somaram às escolhas dos intérpretes-
criadores, corpos em movimento, preparados de um modo específico (escolhas
de cenário, de posicionamento e movimento da câmera).
Escolhas feitas com afeto.
E isso nos aponta uma pista importante em direção ao entendimento de
que os afetos modulam nosso conhecer. Por estarem nesse lugar do
entre, entre os processos de subjetivação e os de objetivação, os afetos
possibilitam-nos criar uma tessitura de presença somática que
extrapolou a experiência em formato remoto (Fernandes et al., 2021, p.
24).
Escolhas feitas de afeto.
Chegamos ao final e seguimos lidando com o inexprimível. Identificamos e
descrevemos, neste texto, várias escolhas. Porém, inúmeras microescolhas
inexprimíveis também configuraram a obra Endless. Assim, chegamos ao final,
compreendendo nosso processo de transcriação, como uma operação de
composição produzida na oscilação entre efeitos de presença e efeitos de
significado, em várias etapas do processo, na nossa conexão com o coletivo e com
a obra original.
Referências
ANDRADE, Eduardo dos Santos; RODRIGUES, Cristiano Cezario; CARVALHO, Tereza
Bruzzi de. Experimentos didático-pedagógicos sobre a estética da domesticidade
e a linguagem da câmera na web. Urdimento, Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 41, set. 2021 Disponível em:
https://periodicos.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/20409/13409.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
29
Acesso em: 18 fev. 2022.
CALDAS, Paulo. Poética do movimento: interfaces. In: Dança em foco - Ensaios
contemporâneos de videodança. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora e Consultoria
Ltda., 2012.
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva,
2006.
COREOLAB. Endless - ou esqueci de lembrar: Conversando com artistas. Entrevista
concedida a Alexandra Dias e Júlia Garcia do Projeto CoreoLAB. Pelotas, 2020.
Transcrição não publicada. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=oYdxfgbCC_A&t=414s. Acesso em: 07 jul. 2021.
DANTAS, M.F. Ancoradas no Corpo, Ancoradas na Experiência: Etnografia,
Autoetnografia e Estudos em Dança. Urdimento, Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 27, p. 169-183, 2016. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/8731
Acesso em: 15 fev. de 2021.
DMYTRYK, Edward. On film editing. Boston: Focal Press, 1984.
FALKEMBACH, Maria Fonseca; KÖNZGEN, Gessi de Almeida. Princípios pedagógicos
inerentes aos procedimentos dos Viewpoints: Possíveis contribuições para
desenvolvimento de práticas artístico-pedagógicas. Rascunhos-Caminhos da
Pesquisa em Artes Cênicas, Uberlândia, v. 1, n. 2, p.48-64, 2014.
FALKEMBACH, Maria Fonseca. Produção do corpo-sujeito nas práticas de dança.
In: LIMA, Paula; DÁVILA, Raul; JESUS, Thiago S. A; SENNA, Nádia C. (Orgs). Catálogo
da Pesquisa 2018: I Seminário de Pesquisa do Centro de Artes - UFPEL. Pelotas:
UFPel, 2018. Disponível em:
https://wp.ufpel.edu.br/spca/files/2018/10/CATALOGO_PESQUISA_CA_UFPEL_2018
.pdf. Acesso em: 12 fev., 2022.
FALKEMBACH, Maria Fonseca. Formação do corpo-sujeito cênico/performer
antifascista: currículo em tempos de governamentalidade algorítmica. In: ICLE,
Gilberto (Org.) Formação e processos de criação: pesquisa, pedagogia e práticas
performativas. São Paulo: Max Limonad, 2021.
FERNANDES, Ciane et al. Performar formar mar ar... Esqueceram de mim?
Urdimento, Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v.1, n.40, mar./abr.
2021, p.1-27. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/19411/12812
Acesso em: 15 fev. de 2022
FERREIRA, Alexandre. Intérprete-criador na dança contemporânea: um corpo
polissêmico e co-autor. In: Anais do II Congresso Nacional de Pesquisadores em
Dança–ANDA. São Paulo: 2012.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
30
FERREIRA, Sarah. Ativismo curatorial da videodança. 2020. Dissertação (Pós-
graduação em Teatro) - Centro de Artes - da Universidade do Estado de Santa
Catarina, Florianópolis, 2020. Disponível em:
https://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/000084/0000841a.pdf.
Acesso em: 17 fev. 2022
FORTIN, S. Trad. MELLO, H. Contribuições Possíveis da Etnografia e da Auto-
etnografia para a Pesquisa na Prática Artística. Cena, Porto Alegre, n. 7, p.77-88,
2009. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/cena/article/view/11961
Acesso em: 15 fev. de 2022.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, P. Michel
Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica.
São Paulo: Forense Universitária, 2010. p. 273-295.
GOOGLE NOTÍCIAS. Coronavírus (COVID-19). Google Notícias, 2022. Disponível em:
https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&gl=BR&ceid=BR%3Apt-419.
Acesso em: 18 fev. 2022.
GRUPOTATA. Endless - ou esqueci de lembrar. Brasil: Tatá - Núcleo de Dança-
Teatro, 27 nov. 2020. 1 vídeo (6 min). Disponível em:
https://youtu.be/SH7zwXOFSBo. Acesso em: 2 mar. 2021.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue
transmitir. Rio de Janeiro: Editora PUC Rio, 2010.
ICLE, G. Problemas teatrais na educação escolarizada: existem conteúdos em
teatro?. Urdimento, Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 17,
p. 70-77, 2018. DOI: 10.5965/1414573102172011070. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573102172011
070. Acesso em: 11 fev. 2022.
MILLER, Jussara. A escuta do corpo: sistematização da Técnica Klauss Vianna. São
Paulo: Summus, 2007.
OPAS. Histórico da pandemia de COVID-19. Organização Pan-Americana da Saúde,
2022. Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-
covid-19. Acesso em: 18 fev. 2022.
PAREYSON, Luigi. Estética: teoria da formatividade. Petrópolis: Vozes, 1993.
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PORTER, Janelle. Dance with camera. Philadelphia: Institute of contemporary art.
University of Pennsilvania, 2009
PRESTON-DUNLOP, Valerie. Looking at dance: a choreological perspective on
choreography. London: Verve, 1998.
Corpos infinitos: Processo coletivo de criação da videodança Endless
Bianca Mendes Ascari; Maria Fonseca Falkembach
Rayssa de Oliveira Fontoura; Stephânia Fitaroni Batista Lengruber
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-31, abr. 2022
31
SANARMED. Linha do tempo do Coronavírus no Brasil. SanarMed, 2020. Disponível
em: https://www.sanarmed.com/linha-do-tempo-do-coronavirus-no-brasi.
Acesso em: 18 fev. 2022.
SILVESTRE TECHNIQUE TRAINING, 2016. Disponível em:
https://www.silvestretraining.com/the-training.html. Acesso em: 05 jul. 2021.
ROSA, Cristina F. Brazilian bodies and their choreographies of identification: swing
nation. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015.
TIBÚRCIO, Larissa Kelly de Oliveira Marques. Visibilidades espaço-temporais do
corpo na Dança Butô. Anais ABRACE, v. 9, n. 1, 2008.
TOURINHO, Lígia Losada; DA SILVA, Eusébio Lôbo. Estudo do movimento e a
preparação técnica e artística do intérprete de dança contemporânea. Artefilosofia,
v. 1, n. 1, p. 25-133, 2006.
VEIGA-NETO, Alfredo; SARAIVA, Karla. Educar como arte de governar. Currículo sem
Fronteiras. vol. 11, n.1, p. 5-13, Jan/Jun 2011.
VERAS, Alexandre. Kino-coreografias: entre o vídeo e a dança. In: BONITO, Eduardo;
BRUM, Leonel; CALDAS, Paulo; LEVY, Regina (Orgs.). Videodança. Dança em foco, v.
2. Rio de Janeiro: Oi Futuro, 2007, p 09-17.
WITENCAMPS, Gabriela. Técnica Silvestre, entrenamiento, acogimiento y poesía.
Entrevista concedida a Rosangela Silvestre. Universidad Nacional de la
Plata.Buenos Aires: El Anzuelo, año 02, n. 03, 2020, p. 45- 49. Disponível em
http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/108032. Acesso em: 05 jul. 2021.
Recebido em: 15/07/2021
Aprovado em: 02/03/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br