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Da catarse ao catártico: sobre uma teoria da
representação pós-dramática
Jean-Michel Vives
Renata Mattos-Avril
Tradução: Rafael Percino
Para citar este artigo:
VIVES, Jean-Michel; MATTOS-Avril, Renata. Da catarse ao
catártico: sobre uma teoria da representação pós-
dramática. Tradução de Rafael Percino.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1,
n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0701
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Da catarse ao catártico: sobre uma teoria da representação pós-dramática
Jean-Michel Vives, Renata Mattos-Avril |Tradução: Rafael Percino
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-15, abr. 2024
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Da catarse ao catártico: sobre uma teoria da representação pós-
dramática1
Jean-Michel Vives2
Renata Mattos-Avril3
Tradução: Rafael Percino4
Resumo
O entendimento da noção de catarse passou por constante debates teóricos
e controvérsias ao longo da história do teatro, e dela foram difundidas
diferentes perspectivas atreladas a interesses e contextos sociais, culturais e
políticos. A noção de catarse relativa à tragédia, conforme definição de
Aristóteles, tem sido então explorada pelos movimentos teatrais até a sua
aparente recusa no teatro contemporâneo, em especial o chamado pós-
dramático. Esse artigo visa explorar não mais um possível entendimento de
catarse no contemporâneo, mas como as experimentações do teatro pós-
dramático se distanciam da noção aristotélica e estabelecem uma nova
perspectiva ao se focarem no efeito catártico, em uma análise que perpassa
a psicanálise lacaniana.
Palavras-chave
: Catarse. Catártico. Voz. Olhar. Desejo.
1 Este texto, em inglês no original, foi publicado em: R. Mattos, J.-M. Vives “From catharsis to the cathartic:
toward a post-dramatic theory of representation”. Edição: Sukhanova Ekaterina; Hans-Otto Thomashoff.
Body Image and Identity in Contemporary Societies
: Psychoanalytic, Social, Cultural and Aesthetic
Perspectives. Nova York, Routledge: 2015, p. 86-94. A presente tradução foi realizada a partir do texto
disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/286224196_From_catharsis_to_the_cathartic_Toward_a_post-
dramatic_theory_of_representation Acesso em: 12 fev. 2024.
2 Professor Adjunto no Departamento Psicologia Clínica e Patológica, na Universidade de Nice Sophia-Antipolis
Nice France. Psicanalista, professor e escritor. jeanmichelvives@gmail.com
3 Doutora em Psicanálise. Pesquisadora com Pós-Doutorado pela Universidade Nice Sophia-Antipolis.
Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Psicanalista, professora, escritora.
renatamattosavril@yahoo.fr
4 Mestre em Artes nicas pelo Instituto de Artes de São Paulo da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Bacharel em Artes Cênicas - Habilitação em Interpretação Teatral pela UNESP. Bacharel em Engenharia da
Computação pelo Centro Universitário Fundação Instituto de Ensino para Osasco (UNIFIEO).
rafael.percino@unesp.br
http://lattes.cnpq.br/4111197557853203 https://orcid.org/0000-0003-1445-2000
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From catharsis to the cathartic: toward a post-dramatic theory of
representation
Abstract
The understanding of the notion of catharsis has been through constant
theoretical debates and controversies throughout history of theater. Different
perspectives were born entangled to varied social, cultural, and political
contexts. The notion of catharsis related to classical tragedy, as defined by
Aristotle, has since been explored by theater movements until its apparent
refusal in contemporary theater, especially in the so-called post dramatic
theater. This article does not aim to explore yet a new understanding of
catharsis in the contemporary. Instead, it examines how experiments in post
dramatic theater distance themselves from the Aristotelian notion and
establish a new perspective focused on the cathartic effect, an analysis that
traverses the Lacanian psychoanalysis.
Keywords
: Catharsis. Cathartic. Voice. Gaze. Desire.
De la catarsis a lo catártico: hacia una teoría posdramática de la
representación
Resumen
La comprensión de la noción de catarsis ha pasado por constantes debates
teóricos y controversias a lo largo de la historia del teatro. Nacieron diferentes
perspectivas entrelazadas con diversos contextos sociales, culturales y
políticos. La noción de catarsis relacionada con la tragedia clásica, tal como
la definió Aristóteles, ha sido explorada desde entonces por los movimientos
teatrales hasta su aparente rechazo en el teatro contemporáneo,
especialmente en el llamado teatro posdramático. Este artículo no pretende
explorar una nueva comprensión de la catarsis en lo contemporáneo, sino
más bien cómo las nuevas experimentaciones en el teatro posdramático se
distancian de la noción aristotélica y establecen nuevas perspectivas
centrándose en el efecto catártico, en un análisis que permea la psicoanálisis
lacaniana.
Palabras clave
: Catarsis. Catártico. Voz. Mirada. Deseo.
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As formas teatrais emergentes durante o século XX, nomeadas como pós-
dramáticas (Lehmann, 2002), pretendiam ser essencialmente e formalmente anti-
aristotélicas: a busca pela catarse assim como definida por Aristóteles não era
mais um objetivo. Em resumo, podemos observar como Aristóteles apresenta a
catarse teatral em sua
Poética
: “e, ao representar a piedade e o temor, isso (a
representação) provoca a purificação (catarse) desse tipo de emoções”
(Aristóteles, 1980, p. 535).
A afirmação “explicativa” consagrada por Aristóteles à noção de catarse em
sua
Poética
(1980) apresenta um enigma que intrigou sem cessar aqueles que
tentaram compreender os efeitos da tragédia. O termo, apropriado do vocabulário
médico “purificação, purgação” –, aparenta ser empregado de maneira
metafórica sem, no entanto, que essa correspondência seja delineada. O texto da
Poética
(1980) é explícito apenas sobre os objetos nos quais a catarse opera: a
piedade e o temor como afetos, problemas emocionais (
pathèmata
), sempre
apresentados como dolorosos nos diferentes capítulos nos quais são citados. A
catarse reside nesta faculdade paradoxal e misteriosa, que seria específica ao
espetáculo trágico, de transformar sentimentos desagradáveis em prazerosos...
Poderíamos repetir aqui as palavras de Lacan, emprestadas de Molière, que queria
ironizar a solução freudiana de sublimação.
Estaríamos satisfeitos em dizer... que, de fato, o objetivo mudou, que era
sexual e que não é mais? [...] E ainda poderia ser concluído que a libido
sexual se tornou dessexualizada. E este é o motivo pelo qual sua filha é
tola! (Lacan, 1959/1986, p. 1336).
Essa enigmática alquimia catártica constitui um constante campo de
confrontos entre comentadores desde a Renascença, onde ressurgiu o interesse
pelo texto aristotélico, até os dias atuais.
5 NT: Optou-se nesta tradução incluir em nota de rodapé as citações conforme foram apresentadas pelos
autores, em inglês. “And, by representing the pity and the fright, it (the representation) attains a purification
(catharsis) of this kind of emotions” (Aristóteles, 1980, p.53). (Tradução nossa)
6 NT: Will we be satisfied to say… that, indeed, the aim has changed, that it was sexual and that it is no longer?
[…] From what it should be concluded that the sexual libido has become desexualized. And that is the reason
why your daughter is dumb!
(Lacan, 1959/1986, p.133). (Tradução nossa)
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A interpretação clássica, aquela dos Humanistas assim como uma boa parte
dos teóricos do Classicismo, tornam a catarse um recurso plenamente moral:
através da observação dos dolorosos resultados de “más” paixões, o espetáculo
trágico purgaria ou curaria o espectador das mesmas paixões (sejam elas quais
forem, e não simplesmente o terror e a piedade). Questionador, Corneille (1987,
p.145) se pergunta, não sem humor, de quais paixões o Rei Édipo realmente poderia
nos purgar: do incesto e do parricídio7? A despeito de tais críticas e
questionamentos, o modelo aristotélico e suas várias interpretações continuaram
a nortear o pensamento teatral até meados do começo do século XX.
Considerando que toda estética teatral até a metade do século XX, mais de
2500 anos de produções dramáticas, foram medidas a partir das proposições
aristotélicas (Florence, 2006, p. 39-46) toda representação deveria convocar a
dimensão ilusória permitindo a identificação do espectador com o herói e
produzindo a catarse pela experiência do temor e da piedade –, o teatro pós-
dramático declara não ter mais conexão com essa dimensão, nem com o texto
dramático construído a partir da fábula e baseado em personagens reconhecíveis.
O texto, que foi durante muito tempo a morada da catarse, é posto de lado em
favor do palco e da teatralidade. Teatralidade esta que, devemos nos lembrar,
foram desvalorizadas, até mesmo refutadas por Aristóteles na produção do efeito
catártico. Portanto, ele afirma no capítulo 14 da
Poética
que:
O temor e a piedade podem certamente nascer do espetáculo, mas eles
podem também nascer pelo próprio sistema de fatos: esse é o processo
superior e que revela o melhor poeta. É deveras necessário que,
independentemente do espetáculo, o enredo possa ser então construído
através dos fatos produzidos pelo temor e que possamos ser tomados
de piedade pela presença do que ocorre: é isso que sentiríamos ao ouvir
a história de Édipo. Produzir esse efeito através do espetáculo
dificilmente revela a arte: diz respeito à encenação, à
mise en scène
.
Aqueles que produzem através do espetáculo não criam temor, apenas
o monstruoso, e não tem nada em comum com a tragédia; pois não é
qualquer prazer que é necessário à tragédia, apenas o prazer ele mesmo.
Entretanto, como o prazer que o poeta deve produzir vem da piedade e
do temor despertos pela atividade da representação, torna-se óbvio que
ele deve registrar os acontecimentos enquanto compõe. (Aristóteles,
7 Apesar de eu não conseguir ver qual paixão nos é dada a purgar nem o que poderíamos corrigir em nós com
este exemplo (Corneille, 1987, p. 145, tradução nossa).
NT: Although I cannot see which passion it gives us to purge neither of what we could correct ourselves on
its example
.
(Tradução nossa)
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1980, p. 818).
O texto de Aristóteles revela aqui uma oposição que guiará nosso
pensamento: a oposição estabelecida pela visão e pela audição. De acordo com
Aristóteles, a dinâmica catártica deve ser causada pela audição, e não pela visão;
ela poderia fazer parte do espetáculo, mas sem se tornar, com isso, a parte mais
importante. Tal oposição entre a visão e audição, e mais especificamente a
precedência da segunda pela primeira, interessa especialmente à psicanálise
naquilo que o processo freudiano configura: destituição do olhar em benefício da
escuta.
A passagem da hipnose, previamente utilizada por Freud, destaca a passagem
da importância do olhar podemos evocar os espetáculos que eram as
(re)presentações de pacientes histéricos organizados por
Charcot
no hospital
Salpêtrière
(Didi-Huberman, 1982) nos quais a dimensão de “se fazer ver” era
essencial – de sua destituição em curso até a ascensão da voz como articuladora
de uma narrativa. Para Freud, interessado na construção da prática psicanalítica,
assim como para Aristóteles em seu comprometimento para determinar as
condições apropriadas para o afloramento da emoção trágica, as questões da
catarse serão identificadas em uma narrativa articulada apropriadamente e não
em uma explosão de afetos que se entrega através de imagens ao olhar ávido do
espectador.
A menção do espetáculo como possível fonte para a emoção trágica, que
Aristóteles relata no capítulo 14 da
Poética
(1980), somente pode servir de
contraponto, nos permitindo entender o que, sob a formação da emoção trágica,
pode ser revelado como o resultado de fatos de acordo com uma ordem
8 NT: The fright and the pity can certainly be born from the spectacle, but they can also be born from the
system of the facts itself: this is the process that holds the first rank and that reveals the best poet. It is
indeed necessary that, independently of the spectacle, the story could be therefore constructed by
acquiring
the facts produced by shiver and that we could be taken of pity in the presence of what is happening: that
is what we would feel by listening to the story of Oedipus. (Tradução nossa) Produce this effect by the
means of the spectacle scarcely reveals of the art: it is a matter of the staging, of the “mise en scène”. Those
who product by the means of the spectacle not the frightener but only the monstrous do not have anything
to do with the tragedy; for it is not any pleasure which is required by the tragedy but the pleasure itself.
However, as the pleasure that the poet must produce comes from the pity and from the fright awaken by
the representative activity, it is obvious that he must register it in the facts while composing
(Aristóteles,
1980, p.81).
(Tradução nossa)
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específica.
Neste caso, aqueles que são, de acordo com Aristóteles, os únicos fatos
inteiramente pertinentes à arte, o temor e a piedade, são provocados não pela
visão, mas pela audição. A pessoa que assisti a uma tragédia é solicitada mais
como um ouvinte do que um espectador. Seria pela mediação do discurso “ao
apreender os fatos que estão sendo produzidos”, “ao ouvir a história de Édipo”
(Aristóteles, 1980) – que a catarse se manifestaria corretamente.
A dimensão visual e espetacular da tragédia é secundária, ainda que
participante da produção do efeito trágico; seu princípio permanece exterior à arte
uma fraqueza redibitória que Aristóteles não poderia suportar. Ademais, o
espetáculo tende a evocar formas completamente externas ao trágico, como o
elemento da monstruosidade. Tal monstruosidade provoca o temor em um estado
bruto, um medo imediato, uma perturbação física que estaria situada mais no
território no terror do que no temor, e que, portanto, não seria propício para a
reflexão.
Aristóteles diz que é simples provocar esta perturbação no espectador ao
apresentá-lo a imagens horríveis, também afirmando que, ao privilegiar o
espetáculo, o poeta é envolvido nessa fácil inclinação. O teatro
Big Puppet
(
Grand-
Guignol
), na virada do século XIX para o século XX, que construiu sua arte
essencialmente pela apresentação de imagens horríveis, demonstra que a
monstruosidade no palco teatral habita uma outra dimensão que a arte da
tragédia: o monstruoso e o fascínio pela imagem estariam no coração deste
processo.
Sobre este tema, uma das obras consagradas à história do
Grand-Guignol
começa pela seguinte frase: “O
Grand-Guignol
[...] que, de 1896 até 1962, foi
instalado na
Cité Chaptal
em Paris e propôs mais de trezentas peças, nasceu nas
imagens” (Pierron, 2002, p. 89).
A tese aristotélica é que uma vez que privilegiamos a dimensão do exibir em
detrimento do trabalho poético de construção da forma e a “purgação” de
9 NT: The Grand-Guignol […], which, from 1896 until 1962, was installed in the Cité Chaptal in Paris and proposed
more than three hundred plays, was born in the images
.
(Pierron, 2002, p.8). (Tradução nossa)
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emoções, a tragédia não mais existe; o que resta é o monstruoso. Ao esquecermos
a escuta em benefício do preenchimento do olhar, estaríamos deixando o campo
da arte e do deleite estético (
jouissance
) para entrar em outra dimensão, que nos
esforçaremos pouco a pouco para circunscrever aqui. Ainda assim, o teatro pós-
dramático propõe uma mudança, uma descentralização, que parece realocar a
dimensão do espe(ta)cular10 para o centro deste processo. Essa descentralização
pode ser observada na passagem do textocentrismo para o palcocentrismo
(Naugrette, 2011, p. 173). O diretor, poeta do palco, torna-se mais importante que o
autor-dramaturgo, poeta das palavras. No teatro pós-dramático, a fábula é por
vezes secundária se comparada à escrita cênica, essencialmente feita pelo diretor,
para quem os efeitos visuais, muitas vezes chocante, questiona o que seria o ato
de “olhar”.
Se etimologicamente o teatro seria o lugar aonde vamos para ver, essa
questão tornou-se ainda mais premente no decorrer dos últimos vinte anos. Tais
efeitos foram violentamente sentidos durante o Festival de Avignon de 2005,
edição precisamente dedicada aos “poetas do palco”, como anunciado no
programa. Como testemunhas, nós podemos mencionar as reações intensas à
apresentação do grupo de Jan Fabre sobre “A história das lágrimas” (
L’histoire des
larmes
) na abertura do 59º Festival, que desencadeou paixões e despertou
ocasionais incompreensões, até mesmo a rejeição de espectadores, críticos e de
artistas (Banu; Bruno, 2005). As dimensões do corpo e da sensorialidade, nestes
casos, propõem menos uma estética da re-presentação do que uma da re-
presença.
As proposições aristotélicas que norteavam a bússola teatral já não são mais
o cerne da fábrica teatral.
Assim, o texto estabelece cada vez mais uma escrita fragmentária, pedaços
de textos livremente dispostos. O teatro é feito a partir da peça, privilegiando o
palco onde os criadores teatrais exibem partes da “prosa do mundo”. Uma prosa
que mais a ver do que a ouvir. O teatro pós-dramático propõe mais uma escrita
cênica do que uma escrita dramática.
10 NT: spe(cta)cular. (Tradução nossa)
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Devemos concluir então que a catarse deveria ser colocada na estante de
acessórios fora de uso? Essa seria uma conclusão precipitada, uma vez que a
catarse – ao procurar o temor e a piedade através da representação (
mimesis
) no
sentido aristotélico é colocada à distância, enquanto o catártico como excesso
do trabalho da representação torna-se onipresente. Se a catarse enquanto
testemunha da identificação com a personagem e da construção da fábula
parece se distanciar, o catártico que podemos circunscrever conforme Naugrette
(2011) estabelece como aquilo que excede, em todos os sentidos do termo, a
representação e a consequente identificação àquilo que a apoia, o corpo – invade
o texto dramático, a representação teatral e o discurso crítico.
Podemos identificar nas produções pós-dramáticas a procura de um efeito
o catártico e não de uma identificação que magicamente levaria o público para
uma vasta fusão de afetos. Ao procurar o contrário de tal fusão de consciências
(no sentido dos objetivos clássicos do teatro dramático, originado das liturgias, dos
ritos e dos sacrifícios), ao buscar a desilusão pelo exercício da ironia cínica, o que
é refutado seria a indução (catártica, mimética) da piedade, da compaixão. Isso
exige que os atores sejam postos em perigo, expostos em carne e osso, para além
dos exercícios convencionais e exigências da profissão, numa proximidade
corporal direta, sem a conexão protetora da peça, ou do “como se fosse”... Por
outro lado, o público pode ser perturbado, deslocado, desestabilizado... Algumas
vezes até o limite do suportável.
Finalmente, o texto pode vir de qualquer origem: sujeito à edição, colagem...
à descontinuidade. O tempo pode ser expandido ao infinito ou acelerado. A
tradicional lei das três unidades (espaço, tempo e ação), que era o princípio diretivo
do teatro psicológico, do teatro da identificação e do drama, não está mais em
uso.
Atualmente, as práticas de ruptura, de redução de imagens, de explorações
sensoriais, de explosão narrativa, de desintegração de personagem até seu
desaparecimento mesmo enquanto
self
”, propõem um novo desafio a respeito
não apenas da conexão entre palco e teatro, espectador e ator, dramaturgo e
diretor, texto e teatralidade, mas também afeto e representação. Este
questionamento se volta inicialmente para o registro da identificação: a identidade
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não é apenas móvel, mas muitas vezes impossível.
A teatralidade contemporânea não busca a produção de identificações
particulares; ela é um teatro do presente e da performance. O teatro
contemporâneo quer revelar a engrenagem, na fronteira entre dois espaços: um
da mais absoluta concretude (o corpo às vezes reduzido à carne, aos seus restos...)
e outro da abstração mais construída, encenação,
mise en scène
. O palco
contemporâneo propõe uma nova gramática do corpo e das identidades que nos
obrigam a repensar, sob a luz de suas experiências, o que é um corpo e uma
identidade na era pós-dramática. Nomeamos então catártico como sendo as
novas modalidades de ser e/ou ter um corpo, de construção ou não da identidade,
que estariam sendo produzidas pela representação contemporânea.
Enquanto a catarse era essencialmente relacionada à escuta Freud, aliás,
em seu texto
Personagens Psicopáticos no Palco
, a aproxima aos efeitos
produzidos pelo chiste (Freud, 1905/2006, p. 319) –, o catártico do teatro
contemporâneo favoreceria uma dimensão sensorial plural associando voz e olhar
em um processo que pode ir até a fratura.
Entretanto, é mesmo nas dimensões do excesso e de fluxo que podemos
encontrar um caminho que nos leva à uma definição mais atual de catarse e que
nos permite circunscrever mais precisamente o achado catártico no teatro
contemporâneo. De fato, a concepção banal dos efeitos benéficos da ação
terapêutica é a de que a expressão autorizada e experimentada, livre de
pensamentos (memórias...) associada à liberação de afetos (inibidos, restritos,
coibidos...) somente pode trazer um alívio, um relaxamento das tensões até então
contidas e, como não eram expressas, deletérias.
Freud e Breuer elaboraram a partir desta concepção o método que eles
escolheram chamar precisamente como catártico. Naquele momento, os dois
autores referiam-se menos ao Aristóteles da
Poética
(1980) e mais ao da
Política
.
Aristóteles, de fato, esclarece em
Política
como há indivíduos possuídos: “Que vão
se acalmar sob efeito das melodias sagradas, toda vez que recorrem a melodias
que arrebatam a alma de si mesma como se houvesse achado remédio e
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purgação”. (Aristóteles, Política, 1342a 7-1111).
A catarse descrita por Aristóteles em sua
Política
é muito mais direta do que
a provocada pela tragédia. Aqui ela não passaria pela representação, pela fábula e
pela identificação com a personagem, mas operaria pela ação da sensibilidade, a
nível sensorial.
Assim, onde a catarse teatral seria mediada pela linguagem, a catarse
musical seria imediata, em outras palavras, ela tentaria evitar a mediação da
linguagem.
Essa modalidade não mediada de catarse que o teatro pós-dramático exige
permitiria ao espectador viver uma experiência muitas vezes no limite do
suportável. Entretanto, essa mesma modalidade buscaria levar os espectadores a
momentos de de-signação, justamente onde o teatro aristotélico privilegiaria a
designação. A questão da dimensão discursiva estaria presente aqui no âmbito da
encenação, da
mise en scène
. Além disso, a musicalidade ou esquema poético,
mais do que o dramático, estaria presente no teatro contemporâneo, por exemplo,
na forma da repetição, como podemos observar em Beckett.
Esse regime do catártico seria aquele pelo qual, nos parece, Lacan se
aproxima em suas últimas sessões do seminário
A Ética da Psicanálise
nas
investigações que realiza em
Antígona
de Sófocles, onde o autor também
apresenta sua análise da catarse. Mesmo que esta análise seja baseada em um
texto que obedece as regras da
Poética
(1980) de Aristóteles, podemos apontar
como ela supera tal sistema, nos permitindo compreender os efeitos da
representação contemporânea. De acordo com Lacan, a catarse diria respeito, pelo
menos, tanto de afetos quanto de imagens. Encontramos aqui o lugar central dado
pelo pós-dramático à dimensão escópica. No entanto, é fundamental observar que
estamos tratando de imagens de qualidade muito específica, distantes daquelas
que encontramos e somos rodeados em nossas vidas diárias. Nesse sentido, Lacan
reflete.
Antígona nos faz, com efeito, ver o ponto de vista que define o desejo.
11 NT: which will calm themselves under the effect of sacred melodies each time that they have recourse to
the melodies which throw the soul out of itself as if they had found there remedy and purging (Aristóteles,
Política, 1342a 7-11). (Tradução nossa)
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Essa visada se dirige a uma imagem que detém não sei que mistério até
aqui não articulado, já que ele fazia os olhos pestanejar no momento em
que se a olhava. Essa imagem está, no entanto, no centro da tragédia,
visto que é a imagem fascinante da própria Antígona. Pois bem, sabemos
que para além dos diálogos, para além da família e da pátria, para além
dos desenvolvimentos moralizadores, é ela que nos fascina, em seu
brilho insuportável, naquilo que ela tem que nos retém e, ao mesmo
tempo, nos interdita, no sentido em que isso nos intimida, no que ela tem
de desnorteante essa vítima tão terrivelmente voluntária. É do lado
dessa atração que devemos procurar o verdadeiro sentido, o verdadeiro
mistério, o verdadeiro alcance da tragédia do lado dessa comoção que
ela comporta, do lado das paixões certamente, mas das paixões
singulares que são o temor e a piedade, que por seu intermédio
di
'eleoukaiphobo.u
, pelo intermédio da piedade e do temor somos
purgados, purificados de tudo o que é dessa ordem. Essa ordem,
podemos desde então reconhecê-la é a série do imaginário
propriamente dita. E somos dela purgados pelo intermédio de uma
imagem entre outras (Lacan, 1959-1960/1988, p. 300-301)12.
A catarse seria considerada também uma purgação do imaginário (em outras
palavras, tudo aquilo que poderia oferecer um senso de completude à
humanidade: eu – eu mesmo -, identificações com sinais que tentam apreender e
compreender a si mesmo) através da imagem. Mas apenas através de uma
imagem muito específica. Uma imagem cegante, indica Lacan. Não uma imagem
completa ou tranquilizadora, mas sim uma que sinalizaria o além da
representação.
Como poderíamos entender isso? A imagem seria aquela que bloqueia e ao
mesmo tempo aponta para essa outra Coisa que estaria além de qualquer sentido,
qualquer discurso (Regnault, 1992, p. 81-94; Regnault, 2011, p. 239-254). Seria uma
imagem que, ao mesmo tempo, aponta para um além da representação e a oculta.
Ao demolir a materialidade da identificação, as narrativas articuladas, a unidade
do tempo, de lugar e de ação, o teatro pós-dramático permite emergir essa Outra
dimensão que o trabalho da representação pretende dissimular. Seria que
encontramos o catártico do teatro pós-dramático, que pode ser reconhecido no
pensamento de Lacan.
[...] o sentido de purificação do desejo. Essa purificação não pode se
efetivar, como está claro ao se ler simplesmente a frase de Aristóteles,
senão na medida em que se situou, no mínimo, o ultrapassamento de
12 NT: Para essa referência, os autores optaram por utilizar uma obra já publicada em português, para não
haver perda de sentido para o texto.
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seus limites, que se chamam temor e piedade. É na medida em que o
epos
trágico não deixa o espectador ignorar onde está o polo do desejo,
mostra que o acesso ao desejo necessita ultrapassar não apenas todo
temor, mas toda piedade, que a voz do herói não treme diante de nada,
e muito especialmente diante do bem do outro, é na medida em que tudo
isso é experimentado no desenrolar temporal da história, que o sujeito
fica conhecendo um pouco mais do que antes o mais profundo dele
mesmo. Isso dura o quanto dura, para aquele que vai ao Teatro Francês
ou do Teatro de Atenas. Mas enfim, se as fórmulas de Aristóteles
significam alguma coisa, é isso. Sabe-se o que custa avançar numa certa
direção, e meu Deus, se não se vai, sabe-se por quê. Pode-se até mesmo
pressentir que se não se está totalmente esclarecido sobre suas contas
com o desejo, é porque não se pôde fazer melhor, pois, não é uma via
em que se possa avançar sem nada pagar. O espectador é desenganado
nesse ponto, que mesmo para aquele que avança ao extremo de seu
desejo, nem tudo são flores. Mas ele é igualmente desenganado e é o
essencial quanto ao valor da prudência que se opõe a isso, quanto ao
valor inteiramente relativo das razões benéficas, dos vínculos, dos
interesses patológicos [...] que podem retê-lo nessa via arriscada (Lacan,
1959-1960/1988, p.387).
A catarse na forma contemporânea do catártico ainda interessa, portanto,
à representação contemporânea teatral: ao expulsarmos a catarse aristotélica pela
porta da frente, ela retorna pela janela na forma do catártico. Catártico que
podemos, daqui em diante, interpretar como oriundo da purgação de temor e
piedade, que seriam as paixões que retêm o sujeito em seu caminho em direção
ao desejo. A ilusão de encontrar consistência por meio do objeto ou até mesmo
pela narrativa fortemente posta em causa pela criação pós-dramática
encontraria sua contrapartida no excesso conectado à representação, que não
seria interpretado como excessivo, mas um profundo desafio do trabalho da
representação.
O teatro pós-dramático teria, portanto, a função de nos lembrar a dimensão
de ultrapassagem de limites que supõe a experiência de nosso desejo. Ele nos
permitiria nos aproximar, sentir, brincar com esses limites.
Finalmente, o catártico contemporâneo permitiria ao sujeito pressentir a
Coisa por trás do objeto, de revelar e ocultar ao mesmo tempo esse absoluto e
eterno objeto de desejo, assim como tomar o risco de a ele se expor. O catártico
contemporâneo também encontraria a função ancestral que Aristóteles apontou
na catarse teatral: “despertar o sentido humano” (Aristóteles, 1980, p. 99), pois ele
interroga esse instante mítico em que o Eu sujeito nasce, explode enquanto sujeito
Da catarse ao catártico: sobre uma teoria da representação pós-dramática
Jean-Michel Vives, Renata Mattos-Avril |Tradução: Rafael Percino
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-15, abr. 2024
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no momento em que o Eu é separado do primeiro objeto.
O teatro pós-dramático se tornaria, portanto, esse lugar no qual as forças
intrapsíquicas que habitam cada ser humano seriam encarnadas e encenadas de
maneira imediata. O pós-dramático nos permitiria experienciar, no momento
paradoxal da representação que visa tantas vezes se denunciar como espaço de
ilusão, nossa condição humana inconsciente: condenados ao trabalho da
representação (Aulagnier, 1975), que nós odiamos por ser testemunha da nossa
impossível completude.
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Recebido em: 09/02/2024
Aprovado em: 16/02/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
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