Da catarse ao catártico: sobre uma teoria da representação pós-dramática
Jean-Michel Vives, Renata Mattos-Avril |Tradução: Rafael Percino
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-15, abr. 2024
Essa visada se dirige a uma imagem que detém não sei que mistério até
aqui não articulado, já que ele fazia os olhos pestanejar no momento em
que se a olhava. Essa imagem está, no entanto, no centro da tragédia,
visto que é a imagem fascinante da própria Antígona. Pois bem, sabemos
que para além dos diálogos, para além da família e da pátria, para além
dos desenvolvimentos moralizadores, é ela que nos fascina, em seu
brilho insuportável, naquilo que ela tem que nos retém e, ao mesmo
tempo, nos interdita, no sentido em que isso nos intimida, no que ela tem
de desnorteante – essa vítima tão terrivelmente voluntária. É do lado
dessa atração que devemos procurar o verdadeiro sentido, o verdadeiro
mistério, o verdadeiro alcance da tragédia – do lado dessa comoção que
ela comporta, do lado das paixões certamente, mas das paixões
singulares que são o temor e a piedade, já que por seu intermédio
di
'eleoukaiphobo.u
, pelo intermédio da piedade e do temor somos
purgados, purificados de tudo o que é dessa ordem. Essa ordem,
podemos desde então reconhecê-la – é a série do imaginário
propriamente dita. E somos dela purgados pelo intermédio de uma
imagem entre outras (Lacan, 1959-1960/1988, p. 300-301)12.
A catarse seria considerada também uma purgação do imaginário (em outras
palavras, tudo aquilo que poderia oferecer um senso de completude à
humanidade: eu – eu mesmo -, identificações com sinais que tentam apreender e
compreender a si mesmo) através da imagem. Mas apenas através de uma
imagem muito específica. Uma imagem cegante, indica Lacan. Não uma imagem
completa ou tranquilizadora, mas sim uma que sinalizaria o além da
representação.
Como poderíamos entender isso? A imagem seria aquela que bloqueia e ao
mesmo tempo aponta para essa outra Coisa que estaria além de qualquer sentido,
qualquer discurso (Regnault, 1992, p. 81-94; Regnault, 2011, p. 239-254). Seria uma
imagem que, ao mesmo tempo, aponta para um além da representação e a oculta.
Ao demolir a materialidade da identificação, as narrativas articuladas, a unidade
do tempo, de lugar e de ação, o teatro pós-dramático permite emergir essa Outra
dimensão que o trabalho da representação pretende dissimular. Seria aí que
encontramos o catártico do teatro pós-dramático, que pode ser reconhecido no
pensamento de Lacan.
[...] o sentido de purificação do desejo. Essa purificação não pode se
efetivar, como está claro ao se ler simplesmente a frase de Aristóteles,
senão na medida em que se situou, no mínimo, o ultrapassamento de
12 NT: Para essa referência, os autores optaram por utilizar uma obra já publicada em português, para não
haver perda de sentido para o texto.