1. Introdução
A Constituição é a forma jurídica por excelência dos Estados contemporâneos e tem sido central na política brasileira desde os anos setenta até a atualidade, mas como tema em grande parte controverso, configura um objeto de disputas políticas, normativas e teóricas. Entretanto, os acontecimentos políticos da última década impuseram novos problemas, em que, de modo simultâneo, emergem atores que expressam contramemórias sobre a ditadura e reativam projetos políticos autoritários que pareciam superados, associados a novos atores e formas de ação coletiva que colocam expectativas políticas, econômicas e culturais que se projetam para uma situação pós-constitucional.
A situação impactou o debate público, tanto nas formas de produção e circulação dos discursos pelas mídias sociais quanto no conteúdo, centrado nos impasses e incertezas da atualidade. Ela provocou também mudanças nas ciências humanas, com redefinições de suas agendas e práticas de pesquisa, o que não tem sido diferente em ciência política e direito constitucional. Destaca-se a reabertura das relações dessas disciplinas com o tempo, tanto com a produção de diagnósticos sobre os eventos em curso para intervir na cena pública, quanto em análises mais amplas sobre a formação e mudanças na democracia brasileira. Esta vem sendo considerada em períodos de tempo mais longos, comparada com outras democracias em crise, ou inserida em dinâmicas internacionais ou tendências globais.
Este artigo explora parte da produção acadêmica em ciência política e direito constitucional sobre a democracia brasileira de modo a evidenciar que essas análises políticas e constitucionais[1] assumiram determinados marcadores temporais: a Constituição de 1988 como marco normativo inaugural, a temporalidade política homogênea e a estabilidade futura da política democrática. Em seguida, ele mostra como, em função das tensões da última década, esses marcadores foram desestabilizados em trabalhos acadêmicos e de intervenção pública sobre a democracia constitucional brasileira. Por fim, explora as implicações dessa mudança para as relações das pesquisas sobre a democracia constitucional brasileira com a história do presente.
Também é realizada uma discussão bibliográfica de caráter analítico com a qual visa explorar questões teóricas e conceituais suscitadas pela produção acadêmica mobilizada. Sua base é constituída, por um lado, por alguns dos trabalhos relevantes em ciência política e direito constitucional que realizam análises abrangentes sobre o conceito de Constituição, as instituições políticas e a política governamental em âmbito nacional, ou, em outros termos, sobre a estrutura jurídico-constitucional e a dinâmica da política governamental da democracia brasileira. Por outro lado, por publicações de pesquisadores daquelas disciplinas e de outras ciências humanas sobre o processo político pós-2013, tanto de intervenção no debate público como de análises acadêmicas. A seleção dos trabalhos foi feita a partir do acompanhamento da produção acadêmica nessas áreas, realizado pelos autores em suas atividades de docência e pesquisa[2], completado pelo levantamento e seleção em bases bibliográficas digitais[3].
Não se pretende fazer uma reconstrução da história política brasileira desde a transição, pois aborda apenas tópicos de destaque para a sua análise. Não se fez uma revisão bibliográfica sistemática das duas disciplinas e por isso seus resultados não pretendem ter validade geral sobre o domínio ao qual se referem. Sua relevância verifica-se pela sua utilidade para pesquisa em andamento sobre a agenda, práticas e diagnósticos elaborados por cientistas sociais, em particular de direito constitucional e ciência política, a respeito da democracia constitucional brasileira na última década, uma vez que seus resultados informam o tratamento dos materiais produzidos[4]. De modo mais geral, o artigo propõe-se a contribuir para outras pesquisas sobre a democracia constitucional brasileira, em particular no campo de estudos políticos sobre o direito.
O artigo possui três seções: a primeira apresenta as análises políticas e constitucionais mobilizadas para mostrar que elas assumiram certos marcadores temporais. A segunda mostra como essas premissas foram desestabilizadas pela situação tensa da última década, por meio de ilustrações de mudanças de agendas, formas de abordagem ou temas de pesquisa daquelas análises de outras contribuições em ciências humanas. Por fim, a terceira seção explora as implicações dessa (re)abertura em relação ao tempo para a aproximação das análises políticas e constitucionais com a história do presente e a realização de uma pesquisa centrada no diálogo e reflexão coletiva com pesquisadores acadêmicos acerca da maneira pela qual têm enfrentado a situação crítica atual.
O propósito do artigo é, em suma, trazer três contribuições para o conhecimento da democracia constitucional brasileira na atualidade: evidenciar as relações com o tempo assumidas pelas análises políticas e constitucionais analisadas; identificar algumas modalidades de redefinição dessa relação em trabalhos mais recentes e explorar as possibilidades de aproximar essas pesquisas com a história do presente. De um ponto de vista mais geral, busca-se abrir caminhos para a pesquisa, reflexão e ação política na atualidade em vista de uma democracia constitucional mais substantiva. Não é o momento de fazer balanços nem, ainda, de expor resultados definitivos, mas de apresentar temas e hipóteses, traçar estratégias, discutir achados e conclusões provisórias e parciais que sejam relevantes para enfrentar os problemas atuais.
1. Os marcadores temporais das análises sobre a democracia constitucional brasileira
Análises das principais obras de ciência política e direito constitucional sobre as instituições políticas da democracia constitucional brasileira evidenciaram que elas são marcadas pelo contraponto entre teorias positivas e teorias críticas. Mostraram também que há afinidades substantivas de conceitos como os de constituição e democracia em obras com posições teóricas semelhantes, mas situadas em disciplinas distintas (Chaloub; Lynch, 2018; Engelmann; Penna, 2014; Koerner, 2020).
Teorias positivas enfocam em normas jurídicas postas e relacionam formas jurídicas com interesses de agentes racionais. Definem a Constituição como quadro ou garantia e adotam o conceito de democracia representativa cuja lógica institucional é o presidencialismo de coalizão. Teorias críticas enfocam as relações entre valores, objetivos coletivos, princípios e normas, relacionando formas jurídicas a processos interpretativos que conformam a construção social de identidades, interesses, objetivos. Adotam o conceito de constituição dirigente ou comunitária e tendem a associá-la à democracia participativa ou deliberativa. No campo do marxismo, a Constituição e a democracia, enquanto formas estabilizadas de dominação de classe, são enfocadas do ponto de vista da luta de classes e dos processos de construção de hegemonia (Koerner, 2020).
Apesar de suas diferenças, essas perspectivas têm em comum alguns marcadores temporais. Em geral, assumem a Constituição de 1988 como marco normativo inaugural da democracia para a sua pesquisa, que as relações entre os momentos do tempo seriam homogêneas e que a política democrática seria estável, dado que a incerteza do futuro seria controlada pelos resultados do jogo político institucionalizado, pelo consenso ideológico ou por alianças de classe. Mas a situação da última década desestabilizou esses pressupostos e conduziu a modificações na produção de direito constitucional e ciência política, tanto quanto em outras ciências humanas, como será exposto na próxima seção.
A Constituição de 1988 tornou-se o marco normativo inaugural da democracia nas análises políticas e constitucionais desde a transição. Esse marco resulta de fatores diferentes em ciência política e direito constitucional. Em ciência política, ele está associado a sua construção recente como disciplina no Brasil, enquanto no direito constitucional, como noutras disciplinas jurídicas, resulta da definição do seu domínio como o direito atualmente em vigor.
A consolidação da ciência política brasileira como disciplina acadêmica coincidiu com a transição para a democracia nos anos 1980, quando passou a tomar como seu objeto principal a política institucional (Werneck Vianna et al., 2008 apud LEITE, 2017, p. 753)[5]. Ela se distanciou tanto da história e da sociologia, quanto do direito e do jornalismo, para construir sua própria agenda. Suas abordagens estavam em linha com os padrões internacionais, em que a democracia era a problemática geral e a formulação de modelos conceituais gerais e abstratos era tida como procedimento para a pesquisa empírica sobre objetos teoricamente definidos e para a análise e apreciação dos resultados (Limongi; Tavares de Almeida; Freitas, 2016).
O neoinstitucionalismo da escolha racional aparece, desde então, como a principal abordagem da ciência política brasileira. Ele tem certas características: instituições tomadas como normas ou convenções efetivas, e atores racionais com suas preferências em situações de decisão definidas. O seu domínio de objetos é a política, definida como o campo das interações entre atores racionais em processos de tomada de decisão governamental e seu objetivo é explicar os padrões de comportamento desses indivíduos racionais. A análise coloca as estratégias e escolhas dos atores no interior de um quadro institucional dado. As instituições delimitam os incentivos e o conjunto das suas alternativas de ação no presente, reduzindo a incerteza do futuro ao conteúdo das decisões que resultam daquelas interações. Desse modo, as instituições permitem construir as relações entre passado, presente e futuro como uma temporalidade homogênea, enquanto a premissa da racionalidade individual exclui questões relativas a identidades coletivas, mudanças nas preferências e incapacidade de escolha.
O neoinstitucionalismo colocou-se de modo contundentemente crítico do que nomeou a teoria do desenvolvimento político, cujo foco seriam as macroestruturas sociais inseridas num esquema histórico-evolutivo a partir das quais se atribuía instabilidade política crônica nos países não desenvolvidos (Limongi, 1999)[6]. A nova abordagem sublinhava as descontinuidades e inovações políticas da transição para examinar os mecanismos institucionais que proporcionavam estabilidade ao regime. Para isso, propunha-se a examinar a lógica e o funcionamento das instituições da “nova ordem constitucional”, tal como enunciava o título de um importante livro (Figueiredo; Limongi, 1999).
Em relação a outras abordagens institucionais, o neoinstitucionalismo permitiu resolver a inadequação da democracia brasileira pós-1988 em relação aos grandes modelos de regimes políticos. A democracia brasileira parecia fadada a uma ruptura, pois as suas características (a combinação de federalismo, presidencialismo, bicameralismo e multipartidarismo) eram consideradas incompatíveis com a estabilidade institucional e a eficiência governamental. A tese do presidencialismo de coalizão permitiu entender a lógica, os mecanismos de funcionamento e a estabilidade da democracia brasileira (Figueiredo; Limongi, 1999; Limongi; Tavares de Almeida; Freitas, 2016). A abordagem e o argumento tornaram-se a agenda central de pesquisas na ciência política brasileira, e temas como eleições e as relações entre os poderes legislativo e executivo se tornaram assuntos nos periódicos mais relevantes da área (Nicolau; Oliveira, 2013). O enfoque nas instituições privilegia a Constituição como marco normativo inaugural, enquanto a interpretação recorta o objeto da pesquisa de um ponto de vista sincrônico[7], o que aprofunda o efeito de descontinuidade em relação aos períodos anteriores à transição[8].
O direito constitucional define como seu objeto próprio o direito vigente do Estado, isto é, o conjunto de leis positivas em vigor, somado à jurisprudência e outros materiais e técnicas jurídicas. A promulgação da Constituição significava por si só a inauguração de um novo marco normativo, o que provocou uma produção intelectual intensa. Esta pode ser caracterizada pela oposição entre, por um lado, uma posição liberal-conservadora que adotou um conceito positivista de Constituição e, por outro lado, os comunitaristas que tomam a Constituição como uma ordem concreta de valores (Cittadino, 1999; Engelmann; Penna, 2014; Koerner; Tomio, 2021). Os juristas liberais e conservadores consideravam o texto permeado de deficiências e fadado a ser inaplicado, alterado ou adaptado. Tendo como parâmetro o modelo liberal da Constituição, a norte-americana em particular, tomaram seus conceitos e doutrinas para fazer uma leitura que reduzia o alcance do texto constitucional. Esse era o modo pelo qual enquadraram as normas sobre a separação dos poderes, o papel das instituições judiciais, a declaração de direitos, o federalismo e as relações entre Estado e economia.
Outra leitura, mais conforme com os modelos de Constituição adotados durante o processo constituinte, foi a dos juristas comunitaristas (Cittadino, 1999). Estes tomam a Constituição como ideia-força, momento inaugural e ordem normativa com um projeto para o futuro. Adotam um conceito concreto e material de Constituição, que incorpora valores e objetivos comuns e os relaciona com a textura da sociedade. A Constituição seria a expressão de uma comunidade política democrática que se baseia em princípios como a dignidade humana, a solidariedade e a justiça e que traz fixado no texto constitucional um conjunto de normas e valores a serem promovidos pelo Estado. A orientação serviria para enquadrar o texto constitucional e integrar num plano global suas lacunas e inconsistências, bem como as demais normas que organizam o Estado e a sociedade brasileira. A perspectiva se consolidou e se diversificou, desde os anos noventa, com a incorporação de teorias hermenêuticas, do discurso, pós-positivista, do neoconstitucionalismo e do novo constitucionalismo latino-americano[9].
Essa leitura da Constituição tem paralelo na ciência política em análises sobre o Judiciário, a democracia deliberativa e a participação política. O processo constituinte teria sido o momento culminante da ampliação da participação política e o texto constitucional seria o resultado em grande parte desse processo. A Constituição de 1988 teria inaugurado novas relações entre Estado e sociedade civil, ao criar formas de representação funcionais, com a ampliação dos poderes do Judiciário e do Ministério Público, reconhecer explicitamente uma gama de direitos sociais, de instrumentos judiciais para a sua proteção e instituir múltiplas formas de participação (Avritzer, 2008; Werneck Vianna et al., 1999)[10].
As análises da participação e democracia deliberativa adotam teorias hermenêuticas, construtivistas ou a teoria habermasiana do discurso. Esta tem como referências conceituais estáveis a administração, o mercado, a sociedade civil, a opinião pública, assim como indivíduos e grupos com suas identidades, valores e interesses. A política é regida por imperativos distintos; por um lado, a estabilidade das suas relações internas e a eficiência de suas decisões e, por outro lado, a legitimidade ou sua adequação às expectativas da sociedade civil. Os indivíduos e grupos se orientam para a política segundo suas demandas e aspirações e, assim, interesses não são separados de ideias e normas.
Suas relações são permeadas por processos comunicativos em que a satisfação de interesses compreende a interpretação, a argumentação e o convencimento. O domínio de objetos da análise consiste nas relações dos indivíduos e grupos sociais com a política, tanto nos espaços institucionalizados com processos formais de tomada de decisão, quanto em espaços e situações mais difusas, como a opinião pública ou em processos extrainstitucionais, como os protestos. O seu objetivo é explicar os padrões de interação entre esses elementos, em função daqueles imperativos e constrangimentos. Esse esquema conceitual permite a organização de análises sincrônicas, cujo recorte tem como ponto de partida a ordem pós-1988 ou um momento posterior, enquanto a dimensão diacrônica tende a assumir a forma de um esquema evolutivo.
Até os anos 2000, as relações entre as análises da participação e o neoinstitucionalismo podem ser vistas como de complementaridade, em função da divisão de tarefas na análise de diferentes temas ou objetos. Mas, nos anos 2010, Avritzer criticou as implicações negativas da lógica das coalizões de grupos fragmentados para o controle de decisões e bens públicos. Elas seriam fechadas à participação e facilitariam a privatização do público e a corrupção que levaram à crise da democracia (Avritzer, 2016). Esboçava-se aqui um debate entre, por um lado, análises que viam o presidencialismo de coalizão como uma condição de estabilidade política na democracia brasileira e, por outro, aquelas que o apontavam como obstáculo para o aprofundamento da democracia, assumindo, portanto, uma prospectiva progressiva para a sua transformação.
No campo do marxismo, os trabalhos assumiram implicitamente a Constituição de 1988 como marco inaugural ao analisarem a política brasileira da democratização. Ocupados com as bases sociais da representação política, discutiram as alianças e conflitos entre classes e frações de classe na construção do bloco no poder, que seriam condição da estabilidade política. O processo constituinte teria sido determinado por um evento decisivo – o fracasso do Plano Cruzado – que implicou a recomposição das alianças políticas e o desenho final da Constituição (Cruz, 1997). A instabilidade política até 1993 seria marcada pelo embate entre projetos hegemônicos distintos (Cruz, 1997; Sallum Jr.; Kugelmas, 1994). O confronto foi superado por um pacto ou aliança entre as diferentes frações da burguesia em torno da candidatura presidencial de Fernando Henrique Cardoso para a implementação do programa neoliberal ou liberal-desenvolvimentista (Sallum Jr., 2003).
Sallum Jr. (2006 apud Singer, 2012, p. 29) considera que esse programa teria se tornado consensual entre lideranças e partidos, pois a moderação das políticas econômica e social do governo de Luís Inácio Lula da Silva confirmaria o fim da polarização e traria a estabilidade política. Outros trabalhos exploraram as relações de classe na base dos diferentes governos federais desde 1988 e interpretaram a estabilidade política como função das alianças e conflitos entre as diferentes frações da burguesia ou das classes populares (Boito Jr., 2002). André Singer pressupõe o marco normativo inaugural ao delimitar o momento inicial da sua pesquisa sobre a identificação ideológica do eleitorado na eleição de 1989 (Singer, 2000). A sua tese sobre o lulismo como o encontro de uma liderança, Lula, e uma fração de classe, o subproletariado, em torno do programa de redução da pobreza, que teria sido expresso no realinhamento eleitoral de 2006 e na polarização de ricos e pobres na cena política (Singer, 2012). A dinâmica política e governamental dos anos seguintes não seria desprovida de tensões e contradições, mas tenderia a ser ditada pelo novo alinhamento, projetando-se mudanças graduais no futuro.
Assim, as análises políticas e constitucionais tomaram certos marcos temporais em comum: a Constituição de 1988 como marco normativo inaugural da democracia, a temporalidade homogênea e a estabilidade política. A débil força simbólica e normativa da Constituição de 1988, os impactos da ordem neoliberal internacional sob a hegemonia norte-americana, os arranjos institucionais incompletos e imperfeitos, estabelecidos durante a transição e a acomodação das forças contrárias ao sistema político eram temas pouco problematizados em suas análises.
2. A desestabilização dos marcadores temporais: continuidades, rupturas e combinações
Até o início dos anos 2010, a estabilidade institucional e política do país desde os anos noventa era geralmente interpretada como sinal de uma tendência geral de progressiva consolidação e expansão da democracia ou, no mínimo, de controle das forças divergentes[11]. Essa tendência suposta foi posta à prova por eventos críticos a partir de 2013. A situação aberta desde então, provocou mudanças na agenda de pesquisa, questões e formas de trabalho em ciência política e direito constitucional[12]. Pesquisadores de outras ciências humanas também têm avançado em investigações sobre a atualidade política brasileira, muitas vezes em projetos pluridisciplinares. Evidencia-se nesses trabalhos a desestabilização dos marcos temporais da democracia constitucional e vê-se que eles adotam formas diversificadas de lidar com o tempo na política.
Desde os anos noventa, havia uma minoria de trabalhos que mostravam continuidades e incompletudes da transição, de modo a problematizar a plenitude da experiência democrática que teria sido inaugurada pela Constituição de 1988. A título de exemplo, pesquisas sobre os militares evidenciaram seus instrumentos virtuais de tutela sobre o poder civil, suas concepções elitistas sobre seu papel e relação com os civis, suas noções autoritárias de regime político e projetos pouco ocultados de atuação política mais direta (Martins Filho, 2021; Zaverucha, 1994)[13].
As pesquisas e debates sobre a justiça de transição colocaram no centro da discussão os efeitos presentes da ditadura. A temática somou-se a um movimento mais antigo que lutava pela memória, justiça e verdade face às violações cometidas pela ditatura, a começar pela revogação da lei de anistia de 1979 (Mezarobba, 2006). A Comissão Nacional da Verdade (CNV), a lei de acesso à informação e outras medidas permitiram a abertura de ‘arquivos sensíveis’ (Fico, 2012) que deram nova dimensão à repressão. A memória da ditadura e da resistência implicava a interrogação do passado que retorna, do passado que não é legado passivo, mas presença ativa de agentes, organizações com seus interesses, discursos e práticas na política, na administração, nos tribunais e nas relações sociais (Teles; Safatle, 2010). A problematização dos vínculos da democracia pós-1988 com a ditadura tornou-se um imperativo ético, político e jurídico para ampliar a democracia constitucional e as políticas de direitos humanos no Brasil. As consequências do apagamento da memória da ditadura se estendiam, portanto, para a própria qualidade e efetividade da democracia constitucional.
Em comum, esses trabalhos interpelam a pesquisa política para que ela incorpore a espessura histórica das formas e práticas institucionais, investigue sua concretude e enraizamento histórico, nas suas construções arquitetônicas, símbolos, hierarquias, rituais, procedimentos. As instituições políticas e as práticas governamentais deveriam ser pensadas em sua inserção nas relações sociais de poder e na estrutura desigual de classes, de relações raciais e de gênero. Nessa perspectiva, as dimensões estruturais e a longa duração poderiam ser integradas com a análise de processos e de comportamento decisório, que compreenderiam não só as instituições policiais e judiciais, mas a política eleitoral e as instituições representativas.
Na ciência política internacional, a crise econômica de 2008 e seus reflexos políticos mundiais resultaram em mudanças na agenda e nos métodos de pesquisa. Ressurgem ideias como a de desdemocratização – seja enquanto um projeto neoliberal posto em prática, seja enquanto retrocesso e negação das ações políticas que visam justiça e proteção social à sociedade. Temas como sentimentos antidemocráticos e ódio à democracia passam a compor o que Mounk (2018) chamou de anxiety of library ao remeter ao conjunto de obras que visam interpretar a crise da democracia liberal. É o momento em que o modelo hegemônico do neoinstitucionalismo – enquanto método e teoria – em ciência política é posto à prova, pois ele é interpelado pela necessidade de entender a própria formação e consolidação das instituições políticas, a partir da desconfiança da democracia e de diferentes ideias de povo e indivíduos.
No Brasil, diante da situação aberta em 2013, as análises políticas e constitucionais ampliaram suas abordagens teóricas e objetos, pois tinham que tratar de fenômenos como os protestos, a Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff e a intervenção ostensiva dos militares na política. Diante de um conjunto de narrativas em disputa, a temporalidade na democracia brasileira assume diversas facetas e passa a ser analisada de múltiplas maneiras.
Pesquisadores do presidencialismo de coalizão sustentaram suas teses ao defender, por exemplo, que o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 foi uma crise política provocada por choques externos que afetaram as preferências e estratégias dos atores. Foi um golpe parlamentar, mas não uma crise institucional, uma vez que não houve ruptura das regras nem da lógica dos atores (Santos; Szwacko, 2016; Limongi; Figueiredo, 2017; Limongi, 2023). Essa lógica teria permanecido nos anos seguintes, com alterações no seu modo de operação. Mas, mesmo que mantenham sua abordagem e métodos, eles modificam seus temas e fontes de pesquisa, poisredirecionam os olhares para as relações entre sistema político e condições externas, apreciam crises e outras descontinuidades políticas e devem explicar estratégias aparentemente irracionais dos atores. A temporalidade homogênea e previsibilidade assegurada pelas instituições já não é garantida.
Outros pesquisadores que se debruçaram sobre o funcionamento das instituições propuseram-se a sincronizar o tempo da política brasileira com o de outros países, colocando-os numa tendência global da crise das democracias e a ascensão dos populismos autoritários. Delimitam o caso brasileiro e o analisam de uma perspectiva de política comparada, que faz a construção conceitual em termos de regime político ou tipo de liderança e verifica a tendência por meio de indicadores para a caracterização de cada caso e sua comparação com os demais (Brito et al., 2023; Ginzburg; Huq, 2020). A instabilidade local seria enquadrada em uma tendência global.
A relação entre processo político e Constituição é caracterizada de maneiras distintas. Uma literatura de combate denuncia eventos específicos, como o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o interpreta como a ruptura da Constituição, ou o seu colapso (Bercovici, 2016; Miguel, 2019; Proner et al., 2016; Valim, 2018). Outro diagnóstico é o de que a Constituição de 1988 passa por processos de degradação, provocados pela polarização política e pela ação de líderes populistas, resultando num processo de decadência ou erosão, de desconstitucionalização ou mutação constitucional (Meyer, 2021; Souza Neto, 2020). Ou, ainda, ocorreria um processo desconstituinte, com a destruição deliberada da ‘espinha dorsal’ da Constituição (Artur; Freitas, 2020; Paixão, 2018). Atribuem-se responsabilidades, como aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e outros juízes, pela sua omissão no processo de impeachment ou por assumirem uma atuação populista na Lava Jato e uma interpretação pós-moderna – flexível, subjetivista e instável – da Constituição (Bahia et al., 2016; Salgado; Gabardo, 2021).
Na perspectiva hermenêutica e habermasiana vê-se a nova situação como reversão do processo de democratização. Avritzer considerava, no final de 2015, a democracia brasileira forte e consolidada, avaliando os protestos e a deslegitimação do governo Dilma como impasses num processo de crescimento. Seriam incômodos provocados pelo aumento das expectativas da população em contraste com a baixa performance institucional. Em 2016, o impasse tornou-se crise política e no governo Bolsonaro haveria, sob todos os aspectos, a regressão e destruição da democracia (Avritzer, 2016; 2020).
Em pesquisas sobre as bases da representação política, a instabilidade e a descontinuidade política passam ao centro da cena e são explicadas como resultado da recomposição das alianças de classes e frações de classe que sustentavam os governos federais desde o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (Boito Jr., 2018). André Singer considera que nos períodos democráticos há a concertação de interesses de três grandes blocos partidários que orientam os interesses das classes em conflito – o partido dos ricos (representante das elites e classes médias), o dos pobres (representante das camadas populares) e o do interior (expressão da política clientelista). A aceleração de políticas de reforma, promovidas pelo partido dos pobres no governo Dilma, modificou a condição do subproletariado e provocou a reação dos partidos de classe e do interior que resultou no impeachment (Singer, 2018).
Outros trabalhos interpretam a singularidade da política brasileira atual como efeito de novos atores, formas de ação e propósitos. O processo da última década foi marcado pela emergência de novos atores, que adotaram formas próprias de ação coletiva, como os protestos, em que utilizam tecnologias digitais e reivindicações específicas. A esquerda perdeu o monopólio dos protestos e demandas sociais, pois surgiram grupos que reivindicam outras mudanças, baseados no anarcocapitalismo e no neoconservadorismo. Uma atenção cuidadosa foi dada a esses atores e suas estratégias, combinando estudo de movimentos, de ideias ou programas políticos e relacionando os espaços nacional e internacional (Rocha, 2019; Solano et al., 2018).
Outros autores inserem nossa experiência política, com suas especificidades, numa crise de larga escala que seria expressão ou sintoma da crise do neoliberalismo de caráter multidimensional, que combina transformações políticas, tecnológicas, econômicas e ambientais (Nobre, 2022; Pochmann, 2021). Estaria em questão não só a continuidade da democracia no Brasil e noutros países, mas do capitalismo e da própria civilização ocidental ou pós-industrial.
A democracia constitucional atual é dissolvida em análises que situam a dinâmica atual numa perspectiva de longa duração, seja num plano estrutural seja cultural. Em análises marxistas, sobretudo, o regime e o processo político são rebatidos acerca das condições permanentes de uma formação social colonial ou de capitalismo dependente. A crise no Brasil seria o momento de desfecho de impasses permanentes, o desdobramento na periferia da crise financeira internacional (Mascaro, 2019). Sua percepção atual seria apenas a revelação da verdade, ou da necessidade, de que a democracia constitucional é ilusória diante de suas possibilidades estruturalmente nulas. Outro argumento é o cultural, em que são retomados os temas dos males de origem, da colonização e do escravismo. Adota-se, em geral, uma narrativa histórico-sociológica que se refere a dimensões econômicas, políticas e, sobretudo, culturais, segundo as quais relações igualitárias não teriam se instituído na sociedade brasileira (Pinheiro-Machado; Freixo, 2019; Schwarcz, 2019).
Outras possíveis ilustrações seriam as inumeráveis análises da política cotidiana, visando reconstituir no detalhe as situações, alternativas e escolhas dos atores. Pesquisa acadêmica e jornalismo investigativo se aproximam ao tratarem séries de eventos de duração curta, cuja homogeneidade é dada pelo tema ou situação posta, concentrando-se nas questões e atores que estão em jogo naquela conjuntura.
A eleição e o mandato de Bolsonaro colocaram em questão a democracia constitucional de 1988 de várias formas. Análises políticas debateram o caráter neofascista, populista ou protofascista do seu projeto e seus efeitos para a democracia brasileira (Boito Jr., 2020a; 2020b; Lynch; Cassimiro, 2022; Ricupero, 2022). O marco inaugural da Constituição de 1988 foi reavaliado, examinando-se os projetos e a atuação dos militares na política (Martins Filho, 2021). A descontinuidade do seu mandato foi sublinhada em virtude dos ataques cotidianos à democracia constitucional pelo ex-presidente e seus seguidores (Rodrigues, 2022), pensada como estratégia de guerra híbrida (Leirner, 2019), uso sistemático de fake news pela atuação de um partido digital (Nobre, 2022) e o conservadorismo moral, apoiado pelos evangélicos, tornados atores centrais na cena política (Almeida, 2021).
Cabe, por fim, assinalar que a direita e a extrema-direita ampliaram a difusão de contramemórias sobre a ditadura e a transição, reinterpretam a Constituição e produzem diagnósticos concorrentes sobre os eventos e tendências da atualidade. Esse é o caso de publicações de militares a respeito da repressão e da ditadura, de análises jurídicas justificadoras do impeachment e da intervenção militar na política e elucubrações sobre o marxismo cultural como estratégia hegemônica do comunismo internacional (Martins Filho, 2021).
3. Implicações: pensar a democracia constitucional brasileira no presente
Os exemplos acima ilustram a desestabilização dos marcos temporais assumidos pelas análises política e constitucional, bem como em outras ciências humanas na última década. Essa produção passou a tratar temas da atualidade para formular diagnósticos sobre o processo político e a crise da democracia. Elas tomam como objeto os eventos políticos na sua singularidade ou abrem o foco para perspectivas mais amplas, no sentido histórico ou geográfico, e recorrem a outras referências e enfoques teóricos. Desse modo, relativizam a Constituição de 1988 como marco inaugural da democracia, assumem a heterogeneidade entre distintos momentos temporais e procuram estimar a medida das incertezas da atualidade. A desestabilização implica a reabertura das relações dessas análises com o tempo e permite uma nova aproximação das pesquisas sobre a democracia constitucional brasileira com a história do tempo presente e a ontologia do presente ou de nós mesmos, proposta por Michel Foucault. Abre-se espaço para uma pesquisa centrada no diálogo e reflexão coletiva com pesquisadores acadêmicos acerca da maneira pela qual têm enfrentado a situação crítica atual.
A pesquisa acadêmica concentra a sua atenção nas questões urgentes, reconsidera as continuidades e a presença do passado na atualidade. Esse tipo de análise não é novo, mas ele ganha espaço e aparece como alternativa às pesquisas orientadas por modelos teóricos que se estabeleceram nas últimas duas décadas. Procura-se não só explicar a dinâmica política segundo modelos teóricos dados, objetos definidos e métodos que asseguram a objetividade dos resultados, mas também buscar a compreensão ampliada dos eventos políticos atuais em sua singularidade e seus desdobramentos incertos.
Boa parte dos pesquisadores de ciências humanas assumiu abertamente a defesa da democracia e da Constituição, tal como ocorreu em momentos anteriores, durante a transição democrática, por exemplo. Essa atitude redefine sua postura de distanciamento profissional, pois eles passam a atuar na condição de intelectuais que tomam partido em debates públicos. O seu trabalho de pesquisa torna-se indissociável desse posicionamento e sua produção torna-se um recurso para a intervenção. Pesquisadores aparecem, então, como agentes e testemunhas dos processos políticos da atualidade. Questões referentes ao seu distanciamento e à objetividade colocam-se em novos termos, dado o risco de instrumentalizarem suas pesquisas para suas ações políticas e a não separarem sua experiência pessoal da análise dos eventos que viveram.
Esses deslocamentos se aproximam das preocupações trabalhadas pela história do presente, tanto a história do tempo presente (HTP) como a ontologia de nós mesmos de Foucault. Trata-se de propostas intelectuais distintas e com diferenças fundamentais, que serão tratadas em outro trabalho. Para contraste, destacamos apenas que a HTP é um programa institucional que procura situar-se em sua especificidade no campo da história, enquanto Foucault realiza uma crítica que visa romper as formas de conhecimento e as fronteiras construídas entre disciplinas. Ambos são o contrário do presentismo, pois se colocam numa espécie de extemporaneidade, de afastamento e anacronismo para serem capazes de compreender seu tempo. A HTP procura o distanciamento para evitar a ilusão de tomar o mesmo pelo mesmo e se vale da construção teórica e dos métodos de pesquisa para alcançar a objetividade do conhecimento (Rousso, 2016, p. 239-40). Foucault orienta-se pela crítica às formas pelas quais somos governados atualmente (Foucault, 1978; 1984a), coloca-se como ser desejante e resistente que integra uma coletividade governada e imerge no presente em busca das linhas de fratura dos esquemas existentes de produção de verdade e governo da multiplicidade.
Mas há aproximações importantes: o pesquisador posiciona-se criticamente no debate da atualidade, com uma ética de responsabilidade moral (Bédarida, 2003, p. 55), recusa a condição de juiz ou perito e afirma sua independência à demanda social pela história. Rousso destaca que o historiador não se coloca a serviço de uma causa ou das vítimas, mas para afirmar o que foi a história, de buscar a verdade histórica. Essa é a especificidade de sua condição que o coloca em tensão com os protagonistas, mas pode conferir instrumentos para auxiliar na compreensão de sua experiência (Arend; Macedo, 2009, p. 210). Para ele, a distância entre passado e presente não é só temporal, passiva, mas consiste numa operação intelectual, é uma construção que busca livrar-se de sua própria época por certo tipo de obra, método ou postura (Rousso, 2016, p. 178).
O pesquisador se coloca na incerteza do presente à procura da permeabilidade deste com o passado, na sua espessura histórica, para situar os eventos atuais numa duração mais longa (Rousso, 2016, p. 237). Segundo Bédarida (apud Rousso, 2016, p. 54), o pesquisador busca centrar-se em problemáticas mais globais, geradoras de esquemas explicativos capazes de responder à questão de sentido posta pelos contemporâneos. Por sua vez Foucault (1979, p. 239) afasta-se das posições tomadas no sistema de oposições do presente para buscar na sua história efetiva o modo de sua constituição. Ele visa com isso deslindar as condições históricas dos esquemas que constituem a nossa subjetividade (Foucault, 1984b).
Esses apontamentos bastam para mostrar que as análises políticas e constitucionais, marcadas pela experiência da situação tensa da última década, terão ganhos relevantes ao se aproximarem da história do presente.
Uma possibilidade de pesquisa é explorar as relações e tensões entre pensamento crítico, pesquisa acadêmica e posicionamento político, ou entre produção intelectual, testemunho e ação[14]. Adota-se uma estratégia centrada no diálogo e na reflexão coletiva com pesquisadores (cientistas políticos, juristas e de áreas afins) sobre a sua experiência da atualidade. A metodologia da história oral permite registrar um tipo particular de testemunho que é o de pesquisadores sobre sua trajetória intelectual e suas práticas. Indaga-se a maneira pela qual têm enfrentado a situação atual e como isso se traduz em sua agenda de pesquisas, como eles refletem seu próprio trabalho à luz dos eventos imediatos, dos constrangimentos políticos e acadêmicos, assim como as tensas questões que na atualidade se suscitam. É um empreendimento dialógico e colaborativo de análise, reflexão e registro para a problematização da nossa experiência coletiva enquanto pesquisadores, uma espécie de história política e intelectual de nós mesmos no presente.
Conclusão
Em meio à instabilidade política da última década, tivemos a experiência recente de uma quase-catástrofe política de ruptura da democracia constitucional. Vivemos uma relação tensa de contingências, de ações, eventos e processos com desdobramentos imprevisíveis, de desfecho incerto. É uma situação que perdura e se desenrola numa temporalidade em que as forças se desgastam e se recompõem, as relações e práticas se redefinem, incertas entre a relativa civilidade de uma ordem constitucional democrática e a luta política aberta. É como se estivéssemos na linha de fronteira entre o agonístico que define a democracia e o antagonismo que é a sua negação (Mouffe, 2015). A nossa experiência atual é a da plena construção do político de uma democracia ou da sua degradação?
A democracia e a Constituição de 1988 foram preservadas nas eleições de 2022 e a tentativa de golpe de janeiro de 2023 fracassou. Mas elas carregam as marcas dos últimos tempos. As respostas de autoridades judiciais e atores políticos aos ataques de Bolsonaro e seus seguidores produziram novos esquemas de controle securitário ou epidemiológicos dos direitos de expressão e novos instrumentos para o protagonismo de autoridades policiais e judiciais no processo político. Os governantes eleitos em 2022 enfrentam o desafio de reconstruir a democracia, a capacidade de governo da economia e as políticas de direitos e desenvolvimento humano em condições bem mais desafiadoras do que no início dos anos 2000.
Nessa combinação de continuidades e mudanças poder-se-ia perguntar se ainda vivemos numa democracia constitucional tal como teria sido inaugurada pela Constituição de 1988. A resposta não teria como ser categórica, pois deveria ponderar inúmeros fatores e levar em consideração o desfecho incerto da atualidade. Adotamos nesse artigo outra via, ao discutir as implicações dessas tendências para a agenda de pesquisas do campo de estudos políticos sobre o direito acerca do presente. Destacamos que a situação atual provocou redefinições na relação das análises políticas e constitucionais com o tempo, implicando a (re)abertura das relações entre disciplinas e a história.
Colocam-se para nós, enquanto pesquisadores e cidadãos, os desafios complementares de entender o que ocorre hoje, quais as suas linhas de força, novos atores e tendências e de dar conta da presença de um passado que não foi superado, que permanece encarnado em atores, discursos e situações que se supunha serem de outra época, mas que se impõem como espectros desafiadores para o projeto de instaurar, ou restaurar, uma dinâmica transformadora da democracia constitucional no Brasil. Enfrentamos desafios práticos para o jogo político, bem como novas questões e temas de análise política, tornando-se central refletir sobre a democracia e a Constituição, nas relações entre ciência política, direito e história do presente, mobilizando notadamente a ontologia de nós mesmos e a história do tempo presente.
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[1] Utiliza-se essa expressão para nomear a produção acadêmica analisada, que é especificada a seguir.
[2] Esse trabalho resultou em discussões bibliográficas publicadas pelos autores em coletâneas e periódicos nacionais e estrangeiros nos últimos anos.
[3] Foram consultados a base de dados da Unicamp e o Scielo, com o uso das palavras-chave democracia, crise política, constituição de 1988 e suas variantes e combinações.
[4] A pesquisa do Acervo Digital Cedec-Ceipoc (www.acervodigital.cedec.org.br) foi iniciada em 2019 em torno do tema geral das relações entre trabalho intelectual e processo político na atualidade. Ela é financiada pela Fapesp (Proc.: 2021/14709-8), CNPq (Proc. 420749/2022-5), Capes (AUXPE n° 444/2021, Proex do PPGCP-IFCH/Unicamp) e Unicamp (recursos do programa SAE e do FAEPEX). A equipe é formada por pesquisadores doutores em ciência política, direito, sociologia e história, dedicados a produzir entrevistas que versam, precisamente, sobre as mudanças nas agendas e práticas de pesquisa adotadas por cientistas sociais, juristas e economistas nos últimos anos, face à situação crítica e a política tensa atual.
[5] Para análises sobre a formação da ciência política no Brasil, ver: AVRITZER, Leonardo; MILANI, Carlos; BRAGA, Maria S. (org.). A ciência política no Brasil: 1960-2015. Rio de Janeiro: FGV, 2016. p. 61-91 e; BRAGA, Maria S. A ciência política no Brasil: passado, presente e futuro. Revista Agenda Política, [s. l.], v. 10, n. 3, p. 147-164, 2023. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/986. Acesso em: 14 fev. 2024. Para a discussão de desigualdades no interior do campo, no Brasil e na América Latina, ver MADEIRA, Rafael M.; CODATO, Adriano; BULCOURF, Pablo A. História, desenvolvimento e ensino da Ciência Política no Brasil e na América Latina. Civitas - Revista de Ciências Sociais, [s. l.], v. 19, p. 489-503, 2020. DOI: 10.15448/1984-7289.2019.3.35150.
[6] Em defesa das pesquisas sobre instituições e representação política na transição democrática, Fábio Wanderley Reis apresentou, uma resposta igualmente contundente aos argumentos de Limongi v. REIS, 1999).
[7] Cabe uma referência ao institucionalismo histórico, que não será discutido neste artigo, notando-se apenas que ele também adota os marcos temporais referidos. Esse tipo de pesquisa procura explicar a mudança institucional a partir da hipótese da dependência da trajetória (path dependence). Ela enfoca os arranjos institucionais e constrói séries temporais para analisar as mudanças em termos de dinâmicas políticas incrementais ou conjunturas críticas. Assim, a estratégia toma a sucessão temporal como homogênea e explica a mudança em função das variáveis que foram isoladas.
[8] Rocha (2013) critica a supressão da dimensão histórica no neoinstitucionalismo do ponto de vista de sua preocupação exclusiva com temas relacionados ao presente imediato, das suas lacunas para a explicação da formação e mudanças das instituições e do isolamento do seu objeto em relação às outras dimensões da sociedade.
[9] Para um panorama recente, ver: WOLKMER, Antônio C.; CADEMARTORI, Daniela M.L.; GROSS, J. (org.). Constitucionalismo no século XXI: em busca de novas gramáticas dos direitos humanos. Canoas, RS: Ed.Unilasalle, 2022. Disponível em: https://sites.google.com/unilasalle.edu.br/editora-unilasalle/e-books-gratuitos/constitucionalismo-no-século-XXI. Acesso em: 14 fev. 2024.
[10] Para revisões bibliográficas sobre a participação e sobre a Constituição de 1988 nas pesquisas da área, ver: FARIA, Cláudia F.; TATAGIBA, Luciana. Participação Social no Brasil: trajetória, crise e perspectivas. In: HOLLANDA, Cristina B.; VEIGA, Luciana F.; AMARAL, Oswaldo E. do (ed.). A Constituição de 1988 trinta anos depois. Curitiba: EdUFPR: ABCP: Fundação Konrad Adenauer, 2018. p. 281-304 e; ALMEIDA, Débora R. e DOWBOR, Monika. Para além das fronteiras da especialização: pontes analítico-teóricas entre movimentos sociais e instituições participativas no Brasil em contexto de mudanças. In: BATISTA, Mariana, RIBEIRO, Ednaldo; ARANTES, Rogério (eds.). As teorias e o caso [online]. Santo André: Editora UFABC, 2021, p. 15-58. DOI: 10.7476/9786589992295. Sobre democracia deliberativa, ver HOROCHOVSKI, Rodrigo R. et al. Democracia deliberativa no Brasil: a expansão de um campo concentrado. Civitas - Revista de Ciências Sociais, [s. l.], v. 19, p. 583-604, 2020. DOI: 10.15448/1984-7289.2019.3.33518.
[11] Eram comuns diagnósticos que associavam estabilidade política e institucionalização da democracia constitucional. Ver, por exemplo, MELO, Carlos Ranulfo; SÁEZ, Manuel Alcántara (org.). A democracia brasileira: balanços e perspectivas para o século XXI. Belo Horizone: Ed. UFMG, 2007 e MELO, Marcus André; PEREIRA, Carlos. Making Brazil Work - Checking the President in a Multipary System. New York: Palgrave-MacMillan. 2013.
[12] Esta consequência é apontada por exemplo, pelos organizadores e autores de vários capítulos das coletâneas de balanço bibliográfico organizadas pela Associação Brasileira de Ciência Política nos últimos anos (Batista; Ribeiro; Arantes, 2021, p. 10).
[13] Outros exemplos são os trabalhos sobre segurança pública e justiça criminal, realizados pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes, e o Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo (NEV/USP) (ADORNO, Sérgio. A violência na sociedade brasileira: um painel inconcluso em uma democracia não consolidada. Sociedade e Estado, [s. l.], v. 10, n. 02, p. 299-342, 1995. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/sociedade/article/download/44055/33673. Acesso em: 14 fev. 2024; PINHEIRO, Paulo S. Autoritarismo e transição. Revista USP, [s. l.], n. 9, p. 45-56, 1991. Disponível em: em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/download/25547/27292. Acesso em: 14 fev. 2024; SOARES, Luiz Eduardo; SENTO-SÉ, João T. Estado e segurança pública no Rio de Janeiro: dilemas de um aprendizado difícil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000) e sobre instituições judiciais e políticas de direitos (ALMEIDA, Frederico N. R. Os Juristas e a Política no Brasil: Permanências e Reposicionamentos. Lua Nova, [s. l.], n. 97, p. 213–250, 2016. https://doi.org/10.1590/0102-6445213-250/97; ENGELMANN, Fabiano (ed.). Sociologia política das instituições judiciais. Porto Alegre: CEGOV/UFRGS, 2017; FREITAS, Lígia B. A consolidação institucional do Tribunal Superior do Trabalho (TST) na longa Constituinte (1987-2004). 2012. Tese (Doutorado em Ciência Política) Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), 2012. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/952/4656.pdf?sequence=1. Acesso em: 14 fev. 2024, KOERNER, Andrei ; FREITAS, Lígia B. O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo. Lua Nova, [s. l.], n. 88, p. 141-85. 2013. https://doi.org/10.1590/S0102-64452013000100006; KOERNER, Andrei ; INATOMI, Celly C. Juristas entre oligarcas e plebeus: o poder independente das instituições judiciais como solução e como problema para a democracia brasileira. Scientia Iuridica, [s. l.], v. 67, n. 347, p. 21-54, 2018. Disponível em: https://www.jur.puc-rio.br/wp-content/uploads/2022/08/KOERNER-INATOMI-Juristas-entre-oligarcas-e-plebeus.pdf. Acesso em: 14 fev. 2024.
[14] Este é o enfoque da pesquisa do Acervo Digital Cedec-Ceipoc citada acima.
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC
Programa de Pós-Graduação em História - PPGH
Revista Tempo e Argumento
Volume 16 - Número 41 - Ano 2024
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