Em 2024, completam-se 60 anos desde o golpe de Estado que derrubou um regime liberal-democrático no Brasil, em 1964. Nesta ocasião, a seção ‘Debates’ deste primeiro número do ano de ‘Tempo e Argumento’ abre-se para uma discussão oportuna ao trazer um artigo de Jorge Ferreira, experimentado estudioso do tema, em que o autor discute os primeiros passos da imposição da ditadura militar ao país. A partir de uma investigação que faz uso da imprensa como documentação histórica, o autor procura demonstrar como os primeiros dias após o golpe foram decisivos para uma articulação de diversas instituições políticas que se comprometeram com a construção da ditadura. Deposto o presidente, passou-se a um conjunto de injunções que contaram muito particularmente com a grande imprensa e que legitimaram a decretação do primeiro Ato Institucional, dando forma ao regime autoritário.
Àquela altura, poucos apostariam que a ditadura duraria 21 anos, atravessando diferentes ciclos de medidas autoritárias e culminando na montagem de uma máquina repressiva de amplo alcance social, a qual atingiu não apenas os adversários de primeira hora, mas diferentes setores da sociedade brasileira. Essas duas décadas de autoritarismo ainda reverberaram em um processo de transição política tão longo quanto intensamente disputado, o que sugere a importância de compreender suas implicações para o recente processo de democratização do país e de seus evidentes limites. Neste caso, esta edição ainda proporciona a leitores e leitoras o contato com inovadores estudos historiográficos e de outros campos das Ciências Humanas que foram organizados no dossiê “História do tempo presente, transições e democratizações” pelos historiadores Hernán Ramiro Ramirez e Rafael Rossotto Ioris. Os organizadores do dossiê reuniram seis artigos que examinam em profundidade diferentes aspectos da transição política e das implicações da ditadura e de seus mecanismos institucionais e sociais sobre a democratização construída nas últimas décadas no país e no conjunto da América Latina. Desde meados da década de 1970, ainda sob a vigência das ditaduras em diferentes países de nosso subcontinente, negociações e lutas sociais foram empreendidas no sentido de alargar espaços de participação social ao mesmo tempo em que foi necessário lidar com memórias, injustiças, desigualdades, violações de Direitos Humanos e violências em diferentes âmbitos do tempo presente vivido em nossas sociedades.
Esta nova edição de ‘Tempo e Argumento’, que atinge a marca de 16 volumes, acentua nosso compromisso com a difusão de estudos qualificados que dialoguem com a História do Tempo Presente e suas diferentes possibilidades e abordagens. Como é frequente em nossa revista, apresentamos uma seção de artigos livres, recebidos em fluxo contínuo, que proporcionam um quadro variado de perspectivas. Dois artigos estão disponíveis, explorando experiências sociais dramáticas e com profundas implicações sociais. Um dos passados que não passam em sociedades como a brasileira são os diferentes processos que cruzam na tragédia social da insegurança alimentar e da fome propriamente dita. A história republicana brasileira é atravessada por tentativas de enfrentar essa questão, constantemente reposta pela persistência da desigualdade social extrema.
Outra questão correlata é a da ação social de mulheres que se engajaram em formas e entidades caritativas e filantrópicas, práticas que foram feminilizadas e, por vezes, esquecidas pela discussão acadêmica e historiográfica. Portanto, tais artigos exploram mecanismos de exclusão social e de reprodução de desigualdades entrecruzadas. Fenômenos que são faces visíveis, ao mesmo tempo que por vezes pouco percebidos, de uma sociedade que reproduz ao longo do tempo formas complexas de assimetrias sociais com implicações na subsistência de boa parte de seus integrantes. A História do Tempo Presente possibilita esse encontro da pesquisa histórica com vivências e intervenções políticas que repõem constantemente o papel social da produção do conhecimento.
Como em todas as edições, os artigos publicados nas diferentes seções foram submetidos a processos de avaliação por pares, às cegas, seguindo protocolos acadêmicos e as melhores práticas consagradas internacionalmente, visando assegurar nosso compromisso com a ética e com a qualidade de nossa revista. Pretendemos que a cada número ‘Tempo e Argumento’ alcance maior capacidade para possibilitar intercâmbios e interlocuções por meio da difusão científica e pela circulação mais ampla e franqueada pela defesa contumaz do acesso aberto à produção de conhecimento em nossa área. Mantemos nosso compromisso, renovado a cada edição, de democratizar a aproximação da sociedade com a produção acadêmica de ponta, o que pode contribuir para reflexões críticas sobre nossas possibilidades de aprofundar a participação social e superar práticas autoritárias que fazem parte da tessitura das experiências sociais, seja nas permanências, nas ressignificações e ou nas rupturas que permeiam o tempo presente.
Pensar a ditadura, o autoritarismo e a democracia em sociedades como a brasileira pressupõe o domínio do conhecimento histórico, sendo que este deve estar apto a corresponder a diferentes expectativas e demandas por reflexão crítica e qualificada. Pretendemos que nossa revista possa a cada edição contribuir para reflexões em torno da relação do passado com o presente, o que diz respeito a diversas camadas de sentido, seja aqueles que apontam para engajamentos e lutas pela ampliação dos direitos humanos ou os que dizem respeito a vivências que têm sido subsumidas nas narrativas hegemônicas.
Cabe ainda convidar para a leitura de nossa seção de resenhas, a qual nesta edição discute o livro de Samuel Moyin, “Direitos Humanos e Usos da História”. Trata-se de um autor com uma vasta obra, a qual tem influência significativa nos debates a respeito dos desafios históricos que envolvem a implementação de políticas de direitos humanos em escala internacional.
Agradecemos nossos diferentes colaboradores, principalmente autores e autoras, além de organizadores de dossiês, que com suas investigações colaboram no processo de construção de uma historiografia que aceita o desafio do tempo presente. A revista ‘Tempo e Argumento’ tem sido uma referência indiscutível nesse novo domínio historiográfico, o qual envolve aspectos e problemas complexos. Tal condição é especialmente necessária em uma época em que o conhecimento histórico é alvo de estruturas organizadas que industrializam distorções sobre o passado com vistas a interferir de modo desigual nos debates públicos contemporâneos.
Desejamos que os trabalhos publicados sejam apreciados por leitores e leitoras, conectando a produção acadêmica com as questões de nosso tempo.
Boa leitura!