http://dx.doi.org/10.5965/2175180315382023e0201
Recebido: 05/04/2021
Aprovado: 17/02/2022

Livros didáticos e o Ensino de História: Percursos

Entrevista com:

Circe Maria Fernandes Bittencourt
Universidade Federal de São Paulo
lattes.cnpq.br/3448016715234781
circe@usp.br

Entrevista concedida à:

Reginaldo Paulo Giassi
Universidade do Estado de Santa Catarina
lattes.cnpq.br/0005520092395518
reginaldo.giassi@gmail.com
orcid.org/0000-0002-9873-4621

Biografia

Circe Maria Fernandes Bittencourt é doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e atualmente professora sênior da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) e professora convidada do Programa de Pós-Graduação do ProfHistória da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Coordena pesquisas sobre a história dos livros didáticos no Brasil e mantém a organização do banco de dados digital LIVRES, referente aos livros didáticos brasileiros de 1810 até os dias atuais na FEUSP. Publicou diversas obras, como: Pátria, Civilização e Trabalho: o Ensino de História nas Escolas Paulistas (1917-1939) - São Paulo: Loyola, 1990, Livro Didático e Saber Escolar (1810-1910) - Belo Horizonte: Autêntica, 2008, - O Saber Histórico na Sala de Aula - São Paulo: Contexto, 1997, e Ensino de História Fundamentos e Métodos - São Paulo: Cortez, 5ª edição, 2018; também escreveu artigos e capítulos de livros sobre história da educação, e realizou pesquisas e publicações na área da educação indígena.

Como parte do plano de ensino da grade curricular da disciplina Teoria da História do Tempo Presente, Teoria e Historiografia, ministrada pelo professor Rogério Rosa Rodrigues, no curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), nós, alunos, tínhamos o propósito de entrevistar um/a pesquisador/a cujos estudos sejam referência para nossa tese. Nesse contexto, deparei-me com alguns trabalhos da professora dra. Circe Maria Fernandes Bittencourt que julgo serem pertinentes e com grande proximidade às ideias do meu projeto, uma vez que nele tentarei analisar a história da cartilha Jeito Catarinense. O jeito certo de fazer as coisas, produzida pela Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão (Acaert) e que busco acompanhar os movimentos que vão da sua concepção à sua distribuição para as escolas. Em um primeiro contato com a professora Circe – a quem agradeço imensamente –, tive a felicidade de receber, em poucas horas, sua resposta e ela se disponibilizou a participar desta atividade.

Entrevista

Tempo & Argumento: A professora coordena um projeto que disponibiliza de modo virtual o acesso a livros didáticos de diversas disciplinas escolares brasileiras do século 19 aos dias atuais. Você poderia falar como surgiu a preocupação em preservar e disponibilizar um acervo digital sobre esses livros? Quantas obras estão disponíveis e quais são os desafios de manter o site LIVRES no ar?

Circe Bittencourt: Fui levada a pesquisar o livro didático, porque na minha carreira - por muitos anos, fui professora de escola pública e particular do Ensino Fundamental - sempre tive muita dificuldade de usar o livro didático nas minhas aulas. Comecei minhas pesquisas acadêmicas em curso de pós-graduação em Teoria da História com a professora Emília Viotti da Costa[1] (1928-2017) e este curso foi interrompido por ter sido ela uma das professoras aposentada compulsoriamente pelo governo militar em 1969/1970 e, obrigada a sair da universidade. Devido a esses mesmos problemas políticos, acabei me afastando logo depois da USP e me dediquei ao ensino nas escolas em São Paulo. Mais tarde, quando retornei para fazer pesquisa na universidade, voltei para o departamento de História. Naquele momento, início dos anos de 1980, queria pesquisar sobre os problemas sobre o retorno da História e Geografia nos currículos das escolas secundárias, pois estávamos juntos com a Associação Nacional de História (ANPUH) para que a História voltasse a fazer parte do currículo do Ensino Fundamental e Médio. E, nessa luta começamos a discutir sobre qual história queríamos que voltasse para as salas de aula.
Havia tido uma formação de excelência no campo teórico, incluindo com importantes estudos sobre o marxismo, no convívio com outros autores, como Florestan Fernandes[2] (1920-1995) e Octavio Ianni[3] (1926-2004) assim como no departamento de História e, nesse período, a professora Emília Viotti já falava nas questões sobre o neomarxismo. Porém, para além das discussões teóricas sobre a produção historiográfica, as discussões prementes giravam em torno de qual currículo nós íamos querer para o retorno da História nas escolas brasileiras. E, foi por esta razão que ao retornar à vida acadêmica me dediquei à pesquisa sobre a História do Ensino da História. Indagava e desejava entender como haviam sido construídos os conteúdos históricos escolares? Como eles se constituíram enquanto conhecimento escolar? Então, passei a usar muito, como fonte de pesquisa, o livro didático.
Esta primeira pesquisa sobre ensino de História limitava-se ao período republicano até 1939. Evidentemente que pretendia avançar na periodização e desenvolver mais a pesquisa, mas o prazo é muito curto. Nesse período já estava trabalhando como professora de Prática de Ensino de História na Faculdade de Educação da USP e já percebia o livro didático como um material muito importante na vida dos professores, porque ele era, na realidade, aquele que com o professor preparava suas aulas, organizava as atividades dos alunos...Os relatórios dos estagiários explicitavam esta prática. Ao pensar historicamente sobre a formação dos professores na Primeira República, evidenciava-se que não tinha curso de para formação de professores e, então, como que o professor dava aula de História? As pesquisas indicavam que a formação dos professores era pelo livro didático.
Quando fiz minha pesquisa de doutorado, tive a oportunidade de ficar dois anos em Paris e tive contato com pesquisadores do Institut National de Recherche Pédagogique (INRP). Na época, conheci o professor André Chervel[4] (1931-), que trabalhava com a história das disciplinas escolares e o professor Alain Choppin[5] (1948-2009), que fazia pesquisa sobre a história do livro didático, além de ter criado o Banco de Dados Emanuelle. Percebi que as análises sobre livro didático recaiam apenas sobre seu significado ideológico e, esta era, como acreditava Choppin, uma discussão muito simplificada e excludente deste material, o que me levou a entender e conceber o livro didático sobre outra perspectiva.
Coincidentemente, na Biblioteca Nacional de Paris onde fazia levantamentos de livros didáticos de História, utilizando este material como fonte para o ensino de História, deparei-me com muitos livros didáticos brasileiros do século 19, como cartilhas, livros de Matemática, livros de História, na maioria das vezes com várias edições, e muitos estavam lá intocáveis! E, diante dessa descoberta resolvi mudar minha pesquisa.
Apesar de desconhecer até então a história da educação brasileira- a ideia que todos tinham na época era de que no século 19 não havia escolas (só o colégio Pedro II), e a escola era uma coisa republicana - aquela quantidade de livros didáticos com várias edições me pareciam algo singular. Se existem tantos livros e várias edições, logo, deveria haver escola no século 19. Interrompi a pesquisa exclusivamente ligada ao ensino da História e passei a pensar sobre a história do livro didático no Brasil.
A periodização da pesquisa passou a ser o século XIX e primeiras décadas do século XX. As datas dos livros que folheava na Bibliotheque National. Os marcos foram do início do século 19 até o início do século 20 - de 1810 a 1910. Mas por que 1810? Porque somos um dos poucos países que sabe quando foram impressos nossos primeiros livros didáticos impresso, posto que, como Colônia não podíamos imprimir nada, mas a chegada da Impressão Régia possibilitou a impressão de livros, inclusive didáticos, a partir de 1809. Livros de Física, Química começaram a ser traduzidos e circulavam, no geral, em escolas militares no Rio de Janeiro criadas após a chegada da família real portuguesa.
A pesquisa no Brasil sobre esta temática foi mais difícil. Onde estavam os livros didáticos? Por ser considerado um livro de segunda categoria, nem sempre tem sido preservado em Bibliotecas Públicas. Busquei esta documentação na Impressão Régia, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, frequentei sebos, bibliotecas de antigas escolas e explorei a biblioteca do Colégio Pedro II. Uma tarefa muito difícil, cansativa pelos diversos esparsos a investigar e muito lenta.
Ao percorrer antigas escolas e as possíveis bibliotecas que elas possuíam, deparei-me, dentro da Faculdade de Educação da USP, com o acervo da primeira biblioteca da Escola Normal de São Paulo que estava no Instituto de Educação Caetano de Campos, importante escola de Formação de Professores, criada ainda no tempo do Império.
Consequentemente, era certo que no Império teve escola, professores, livros, material didático... Esta descoberta contrariava a ideologia paulista de que toda a educação tinha começado com a República. O Império era o atraso e a República era a modernidade, por isso eles afirmavam que antes dos paulistas tomarem o poder republicano não havia escola, livro, não tinha educação. Essa era a historiografia sobre a história da educação.
Este acervo está preservado na Faculdade de Educação da USP. Foi a primeira biblioteca de uma escola de formação de professores e recebeu o nome do seu organizador, Paulo Bourroul[6]. Este foi um professor de Química - Física e Diretor da Escola Normal que, ainda em 1880, criou laboratório e uma pequena biblioteca para auxiliar na formação de professores da escola primária. Mais tarde a Biblioteca foi doada à FEUSP quando a antiga escola Normal Caetano de Campos se transformou no prédio da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
As dificuldades de levantamento de livros didáticos no Brasil permanecem. Podemos encontrar os livros didáticos na FEUSP em dois grandes acervos: o da Biblioteca Paulo Bourroul e o Macedo Soares[7]. No Brasil, não tínhamos currículos nacionais – podemos constatar tem muito livro didático espalhado por todo o país, ou seja, livros diferentes, currículos diferentes e condições econômicas diferentes de organização do sistema educacional e, portanto, de diferentes formas de aquisição e distribuição de materiais escolares.
Diante desta situação resolvi organizar os livros didáticos encontrados durante minha pesquisa e montar uma biblioteca na Faculdade de Educação com apoio do Centro de Memória da Educação Escolar que então estava sendo também criado. Neste período inicial da década de 1990 foram aparecendo alunos para pesquisar livros didáticos e esse interesse aumentava a cada ano. Isto me levou a fazer uma campanha dentro da USP, incentivando quem quisesse fazer doação de seus antigos livros escolares. Assim, professores, especialmente os mais velhos nos trouxeram caixas e mais caixas de livros didáticos. Recebemos acervos de bibliotecas particulares, então foi se constituindo a Biblioteca do Livro Didático na FEUSP.
Atualmente estamos contabilizando todo esse acervo que corresponde a aproximadamente 30 mil livros. Esse espaço foi pensado para preservar e conservar, além dos livros didáticos, outros documentos que dialogam entre si, como os catálogos das editoras. Por exemplo, se nós não temos um livro didático específico, pelo catálogo você consegue identificá-lo em outra edição, porque, em geral, o livro didático é muito reeditado, assim como tem curta duração. Outro detalhe importante, é a distinção entre “livro didático virgem” do “livro didático usado pelos alunos e professores, pois estes rabiscam, fazem anotações, bigode nas imagens, ou ainda, tem aqueles que possuem atividades, então, tinham as respostas preenchidas. Nesta condição são outros livros didáticos, com outras intervenções e que indicam formas de leitura e usos dos livros didáticos.
Na minha tese minha preocupação central era a de situar os sujeitos envolvidos nos livros didáticos em toda sua existência. Os produtores de currículos, os políticos encarregados da estrutura do sistema educacional, assim como também os editores, ou seja, os sujeitos que vão produzir o livro didático. Outra questão que sempre destaco é o significado político do livro didático. Isto explica sua característica de ser um objeto vigiado constantemente: o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) é uma forma atual, mas o livro sempre foi censurado, sempre foi controlado pelo Estado. Sempre indaguei: se existe um projeto de educação feito pelo poder político, por que o Estado brasileiro permite que o sistema empresarial seja o encarregado de produzi-lo? Por que não são produzidos pelo próprio Estado?
Diante desta questão passei a estudar a história dos editores e a entender o livro didático como uma mercadoria. Então, pode-se perceber o livro didático como um produto do mercado, um objeto que dá lucro e, dentro da lógica do liberalismo, o governo de Dom Pedro I acabou com o privilégio exclusivo da Impressão Régia e cedeu a produção de livros às empresas particulares.
Então, é possível entender esses editores franceses no Brasil e porque muitos dos nossos livros didáticos do século XIX e primeiras décadas do século XX estão depositados na Biblioteca Nacional de Paris. Por que optamos pelo modelo o modelo francês de livro didático? Porque tínhamos editores franceses que vieram para o Brasil. B.L Garnier[8] foi um deles, assim como Plancher[9], dentre outros. Às vezes um livro era editado no Brasil, mas o problema era o papel e a tinta. Tem livros didáticos eram feitos de trapo de algodão e estão muito mais bem preservados do que outros exemplares do século 20 feitos com papel normal. Um problema das técnicas de celulose. O livro didático não pode ser um objeto caro, tem que ser uma impressão acessível, com papel barato, com tinta barata, ele precisa ter ilustrações para auxiliarem dentro do processo de aprendizagem e para isso acontecer exige-se uma tecnologia avançada. Dificilmente você terá um livro didático sem imagem e essa tecnologia era importada da França.
Atribuo esse vínculo e a opção das nossas elites pelo currículo francês, pelo fato da França ser um país católico, assim como era o nosso. Porém, vale ressaltar que muito dos livros que eram editados no Brasil foram enviados para serem impressos na França, porque lá a tinta e o papel tinham um valor mais baixo e importá-los estava fora de cogitação. Por esse motivo, muitos livros didáticos brasileiros estão em na BNF, em Paris.
Toda essa longa história me fez, então, preservar o material que eu encontrei nas minhas viagens pelo Maranhão, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Brasil a fora, além de Paris. As editoras estavam espalhadas, e nós tínhamos que entrar em contato, pois foram elas que compraram os direitos autorais dos livros que nós procurávamos. Por isso, eu resolvi ter um lugar para, pelo menos, ir guardando os exemplares que íamos conseguindo - semelhante àquilo que o Alain Choppin estava fazendo -, ou seja, ter as obras em um lugar físico, mas também em um banco de dados para facilitar a vida dos pesquisadores no nosso País. Foi daí a criação do LIVRES, Banco de Dados de Livros Escolares Brasileiros- e para constituí-lo contei com as pesquisas de alunos dos cursos de pós-graduação, em que o livro didático era o objeto de estudo.
Neste processo ocorreu um boom de pesquisas sobre livros didáticos a partir de 1990 em, praticamente, todas as áreas escolares. Então, livros de Física, Matemática, Língua Portuguesa e cartilhas começaram a ser estudadas, assim como os processos de alfabetização. O livro didático era o objeto ou fonte de pesquisas. Pessoalmente, pesquisava mais a história do livro didático de História, mas muitos dos meus orientandos e outros lugares passaram a estudar os livros didáticos sob novas e variadas perspectivas, condição que possibilitou a partir desse momento, a constituir uma equipe bastante diversificada, envolvendo pesquisadores de outras universidades brasileiras em torno dos livros didáticos.
Coincidentemente, nesse período comecei a me dedicar às escolas indígenas, uma vez que a história da educação escolar indígena surgiu depois da Constituição de 1988, quando eles puderam ter seus próprios currículos. Eu, aliás, escrevi só um livro didático na minha vida, que foi a história do povo Terena, a pedido deles. Os Terenas são um grupo indígena do Mato Grosso do Sul, que estava elaborando o currículo para suas escolas. Juntamente com uma antropóloga, do CTI (Centro de Trabalho Indigenista), me procuraram e falaram que queriam saber o porquê eles não estavam citados em nenhum livro didático de História: “Nós, os Terenas, lutamos na guerra do Paraguai. Por que nós não estamos lá nesses livros?”. A partir desse contato comecei a me dedicar aos livros que não são de mercado, ou seja, não foram produzidos pelas editoras e também me envolvi com a história da educação de indígenas.
Nesse período, também tive orientandos que trabalharam com os livros de Educação de Jovens e Adultos e também para escolas Quilombolas. A partir dessas pesquisas e de outras desenvolvidas pelos meus colegas, fomos arquivando esses materiais juntamente com os livros na biblioteca de Educação da USP e inseridos LIVRES, pois, como não são obras do mercado, foram produzidas de uma forma diferenciada e com características próprias do sistema de educação do Brasil. Mantínhamos sempre contato com o banco de dados Emanuelle, além de entrar em contato com as pesquisas de outros países e o Alain foi importante para constituir uma verdadeira rede de pesquisas.
Assim destaco a criação do banco de dados Manuales Escolares (MANES), na Espanha, onde a Gabriela Ossenbach Sauter[10] permanece como coordenadora e foi responsável por diversos acordos com os países da América Latina. Foi possível fazer iniciar estudos comparados por intermédio desses bancos de dados, incluindo as obras italianas pelo Banco de Dados EDISCO. Com o falecimento de Alain Choppin, em 2009, houve uma interrupção de contatos, sendo que o Emanuelle, a partir de então foi praticamente extinto. Este fato me deixou muito preocupada e ao me aposentar da USP, tinha receio de que também o LIVRES seria interrompido. Por esta razão contínuo, agora como professora sênior, a desenvolver projetos de pesquisa assim como a manutenção do LIVRES e da BLD.
Em 2014/15 nos integramos a um projeto do Institut Georg Eckert[11] (1912-1974) situado em Braunschweig, na Alemanha, que mantem uma biblioteca com cerca de 180 mil obras didáticas da área de humanas. Georg Eckert foi um professor, como eu, de prática de ensino para formação de professores de História, e que, após a 2ª Guerra Mundial, preocupava-com os livros de História e o enaltecimento das guerras a Grande Guerra. Passou então, junto a órgãos internacionais, a fazer campanhas educacionais para que a História e seu ensino parassem de enaltecer as guerras e seus heróis. A biblioteca criada pelo Georg Eckert tem permanecido como referência para as pesquisas sobre livros das áreas de humanidades e atualmente mantem um acervo bastante diferenciado, além de um trabalho de digitalização e catalogação com vários dos grupos de pesquisa sobre livros didáticos, incluindo o LIVRES.
Importante destacar esta preocupação com os livros didáticos em escala internacional. Lembro de que tive a oportunidade de estudar várias questões com os livros didáticos de História coreanos. Os coreanos estiveram em Paris para solicitar junto à UNESCO e com apoio de Alain Choppin, pelo INRP, uma intervenção nas obras japonesas de História que, segundo eles, deturpavam a história da Coréia, em especial quanto às guerras.
Desse modo, eu queria destacar que esses projetos sobre organização e manutenção dos bancos de dados dessas áreas das humanidades, especialmente de História, constituíram-se sempre de forma internacional. Em um primeiro momento com a França e depois com outros países, nos quais nós sempre fizemos encontros, compartilhamos pesquisas ligadas a essa temática. Mais recentemente, com a possibilidade do livro didático desaparecer como referencial de ensino e com a crise toda das instituições temos ficado apreensivos, na continuidade da preservação desse material e na realidade não permanece o mesmo interesse na preservação desse tipo de material nos centros de pesquisa, especialmente no Brasil.
A nossa preocupação é que são livros de pesquisa e precisam ser preservados. Daí, então, meu projeto junto à FAPESP se relaciona à digitalização como uma forma de preservação desse material fundamental na história da educação.
Portanto, permaneço com pesquisa na FEUSP como professora sênior e agora estou com um grupo de pesquisadores juntamente com a profa. dra. Carlota Boto[12] e mantenho orientação de professores que fazem pós-doutorado: a profa. Carlota é preocupada com as cartilhas, com os livros de formação de professores das Escolas Primárias dentro do grupo da História da Educação. Nós estamos, por meio de um projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), além de manter convênio com com o Instituto Georg Eckert para pesquisas das obras das ciências humanas. Temos uma preocupação com a concepção de gênero didático. Uma concepção bastante abrangente do que é o livro didático? Cartilha é livro didático? Dicionário escolar é livro didático? Nós até temos uma ideia dos gêneros didáticos, mas na origem eles são produzidos para irem à sala de aula? Atlas, livro de leitura, os compêndios das disciplinas, livro do professor, etc. tem sido considerado um acervo importante para as pesquisas educacionais e buscamos desenvolver sempre estudos comparados assim como identificar obras de circulação transnacional tanto didáticas como de formação de professores e educadores, em geral. Enfim, são estas as tend6encias atuais desse grupo de pesquisa.

Tempo & Argumento: Com base em todo material inventariado, desde o início da sua jornada acadêmica, e futuramente será disponibilizado na plataforma LIVRES, já é possível traçar uma historiografia do livro didático no Brasil? Você percebeu alguma mudança na função/finalidade do livro didático no decorrer desse tempo?

Circe Bittencourt: Bom, eu acho que, apesar de tudo, o livro didático mantem suas características essenciais. Como que os professores eram formados? Mas, com algumas diferenças. No século 19, não tinha faculdade. Como o professor ia dar aula de História se não havia curso de História? Os primeiros cursos de História foram criados nas Faculdades no Rio de Janeiro e em São Paulo em 1934. Então, como eram formados docentes de Geografia, Matemática, Física, Química? Não tinha as instituições de formação e, neste sentido, o significava o currículo real. O professor ia dar aula e seguia o livro didático, pois era o material que ele tinha. O livro didático foi feito para o professor e posteriormente foi pensado para chegar nas mãos dos alunos. Vários motivos explicam esse processo. O aluno tinha que comprar o livro e existia sempre a discussão se o Estado deveria fornecer as cartilhas para as crianças mais pobres, uma vez que o secundário era um curso para pessoas de poder aquisitivo maior. Mas, de qualquer maneira, ele sempre foi usado pelos professores e até hoje serve como auxílio para preparar a aula.
Não sei se todos os alunos leem o livro didático, mas o professor, em princípio, é quem utiliza dele para suas aulas. Isso é uma prática constante. No entanto, o uso que se faz dele nas aulas é o que varia bastante. Veja, essa discussão do Estado de fornecer obras para os alunos é uma discussão do século 19 e ela só vai se concretizar no final do século 20, em 1996, quando o Estado assume que irá comprar e distribuir livros didáticos para todos os alunos.
Então o livro didático nas mãos das crianças nem sempre ocorreu. Imagina a dificuldade que se tinha para dar aula em escola pública em 1970/1980. Era impossível uma família pobre, com dois, três filhos, comprar todos os livros de Matemática, História, Geografia, Português etc. Nenhum professor tem condições de preparar todas as aulas, para diferentes níveis, sem esse material. Evidentemente, que o livro foi se transformando, os métodos de ensino mudam constantemente, as atividades, a forma de usar o livro didático, mas o livro didático continua sendo o material mais disseminado nas escolas para e pelos professores.
Temos, por exemplo, a grande discussão em introduzir a história da África no livro didático, se este conteúdo não estiver nos livros, como que se vai dar uma aula sobre isso? E história dos povos indígenas? Se conteúdos novos, que não fazem sequer parte dos cursos de formação de professores não estiverem no livro didático, estes dificilmente entrarão como temas de estudo. Então, neste aspecto o livro didático permanece igual, pois tem sido o grande referencial para o professor dar aula, mesmo que ele não o use integralmente no cotidiano da sala de aula.
Depois do PNLD, houve mudanças porque todos os alunos, hoje, têm acesso ao livro didático, embora atualmente esta situação tende a mudar assim como o próprio material de ensino, com as novas tecnologias. Na minha experiência profissional, trabalhei em escolas com alunos pobres, escolas públicas precárias, sem bibliotecas, e não havia tinham condições de comprar os materiais, inclusive cadernos. Então comecei a trazer livros quaisquer e começava a criar bibliotecas nas escolas. Criei uma prática de usar qualquer livro didático, desde que eles tivessem os assuntos que iríamos trabalhar na aula daquele dia, e não importava o autor. Porque realmente era dificílimo a aquisição do material que, sem dúvida, livro didático era um referencial, inclusive por ter uma linguagem que o aluno consegue entender.

 

Tempo & Argumento: Muitas vezes o livro didático é o único recurso que professores e professoras possuem para auxiliá-los no processo de ensino-aprendizagem. Então, como estes profissionais devem analisar a qualidade de um livro didático e/ou o que levar em conta ao fazer essa seleção?

Circe Bittencourt: Acredito que os livros didáticos ainda são necessários nas salas de aula. Não apenas pelo conteúdo, porque isso os alunos e os professores podem obter também pela internet, mas sobretudo pelas atividades que os livros propõem. Eles têm um método de ensino e aprendizagem, que vem junto, diferente das atividades que os alunos têm hoje em que , por exemplo os sistemas apostilados só ensinam o aluno a responder a testes de múltipla escolha, de acordo com os sistemas de avaliação da atualidade. Mas podemos usar os livros didáticos de variadas formas. Por exemplo, pode-se usar os recursos das imagens, mapas, tabelas, etc. com práticas e atividades pedagógicas diferenciadas. Às vezes o livro didático pode não ser muito bom quanto ao conteúdo, mas é possível pode fazer um bom trabalho de reflexão e, neste aspecto vai depender muito da capacidade do professor.
Então, como quero frisar, o livro didático tem que ser usado como um recurso, e não como carro-chefe da aula. Se você apresentar um texto muito complicado para o aluno, você vai ficar mais tempo decifrando o texto escrito. Você não pode usar em sala de aula um livro que é muito bom para o professor/historiador, mas que é muito teórico para o aluno. Isso é uma coisa, outra coisa é não usar exclusivamente o livro didático. Você sabe que vai ter um livro didático, mas ele não será o único recurso a ser utilizado. Na realidade, o livro didático não pode ter erro histórico ou conceitual e temos que estar preparados para apresentar as questões das interpretações dos acontecimentos históricos. Atualmente existem livro com diferentes tendências historiográficas, mas em geral os livros didáticos tem posturas ecléticas após o PNLD e sem uma linha muito determinada

 

Tempo & Argumento: Por ser um material de formação direta, o livro didático e seus autores/as têm sido alvos de ataques, constrangimentos e, às vezes, até de censuras. Em sua experiência de pesquisa sobre livros e manuais didáticos, foi possível encontrar casos de controle social sobre esse material?

Circe Bittencourt: Na história do livro didático, bastante. Agora, por exemplo, parte dos avaliadores do PNLD são os ruralistas e eles estão lá para dizer que não se pode denunciar os problemas históricos do latifúndio, da grande propriedade, do uso de agrotóxicos, etc. Essa é uma situação bastante complexa mas permanente na história dos livros didáticos de História, em particular. O livro didático sempre foi controlado, sempre foi censurado, ele é a obra mais censurada na história do livro. Contudo, na época da ditadura, por incrível que pareça, foi o único momento que ele não teve censura oficial. Sabes por quê? Porque teve um caso logo depois do Golpe de 64, em que o Nelson Werneck Sodré (1011-1999), um historiador militar filiado ao Partido Comunista do Brasil, tinha organizado, a convite do Ministério da Educação do governo de João Goulart, um projeto com outros historiadores do ISEB para renovação de livros didáticos de História do Brasil. E, este deveria ser para ser um manual padrão para renovação pedagógica do ensino de História do Brasil.
Os militares que tomaram o poder eram, como sabemos, evidentemente contra comunistas e há muito tempo estavam atrás do Nelson Werneck, mas não conseguiam persegui-lo oficialmente. Então, ao coordenar essa obra: História Nova do Brasil e que retratava o país por meio de um viés econômico bem diferente dos livros do período em que predominava uma história mais política repleta de nomes de governadores, de presidentes e heróis nacionais - os militares viram, então, uma oportunidade para “pegá-lo em flagrante delito”. Por isso, ele e toda a sua equipe foram acusados injustamente, ou seja sem provas, de superfaturamento e uso indevido da verba pública. Consequentemente seus autores foram presos, mesmo sem provas evidentes. Esse episódio ficou muito marcado inclusive pelo apoio da imprensa, especialmente o jornal, O Estado de São Paulo que denunciou em suas primeiras páginas que o livro divulgava abertamente a importância do comunismo e era veículo de divulgação de material subversivo. Se, tiverem acesso a estas obras, pode-se verificar que nada disto está colocado no livro. Apenas haviam introduzido uma história econômica do Brasil.
Esse fato soou como um sinal de alerta para as editoras, pois os livros que os militares não desejavam, não podiam circular e estes eram recolhidos, simplesmente. Nesse sentido, o livro ao ser proibido de ser utilizado nas escolas causava prejuízo. Para quem? Para o editor. Então quem fazia a censura no regime militar eram os próprios editores. Os únicos livros que os militares controlavam efetivamente eram os de Organização Social e Política do Brasil (OSPB) e os de Educação Moral e Cívica. O restante foram liberados para o controle das editoras Então, é essa história da censura dos livros didáticos no período militar.

Tempo & Argumento: Uma tendência recente da história da historiografia tem sido investigar a atuação das mulheres na historiografia. Até meados do século 20 elas não eram aceitas no Instituto Histórico e Geográfico, mas atuavam nos ginásios e compunham, muitas vezes, materiais didáticos, manuais de formação cívica. A senhora poderia falar sobre os livros e manuais de história escritos por mulheres?

Circe Bittencourt: As mulheres atuaram muito na produção dos livros de alfabetização, principalmente a partir do século 20 com a expansão da Escola Primária, onde elas trabalhavam majoritariamente. Quando fiz minha pesquisa, trabalhei muito com a produção didática Maranhão da época do Império porque lá havia sido produzido um livro que tentei encontra-lo atrás durante anos, mas só consegui acesso a ele que a pesquisa estava pronta. É o Livro do Povo[13]. Esta obra didática livro produzida no Maranhão, por maranhenses foi impressa por editora de São Luís. Tive notícias dessa obra pela documentação de quase todo o nordeste e por anúncios um jornal sobre suas novas reedições. Professores faziam pedido para seus superiores em um largo período e posteriormente surgiram várias pesquisas sobre esta obra que denomino como um “best-seller” didático do século XIX. Mas, também desta região existe outra obra inédita para o período; um livro de História escrito por uma mulher/autora. É a obra de Herculana Firmina Vieira de Sousa, Resumo da história do Brasil: uso das escolas primárias produzida pelo editor Bellarmino de Mattos, em 1868. Outras poucas autoras, como Maria Guilhermina Loureiro de Andrade[14] (1839-1929) que escreveu o Resumo da História do Brasil para Uso das Escolas Primárias, em 1894, também se insere nesta trajetória de mulheres como autoras de obras didáticas.
Nos livros da produção de livros de História elas efetivamente despontam a partir dos anos de 1960/1970. Muitas tornaram-se conhecidas como o caso da professora Elza Nadai[15] que com Joana Neves[16], que escreveram livros didáticos de grande circulação, tanto para o Ensino Médio e Fundamental quanto para a produção de Estudos Sociais nas séries iniciais. A partir deste período houve a ampliação de escritoras de livros didáticos de História, sobretudo, em co-autorias a partir dos anos de 1970/80/90. Uma coleção, por exemplo, com muita vendagem -a coleção do Sérgio Buarque de Holanda- que começou a ser produzida no final dos anos de 1970 e com reedições até 1988, contou com autoras em sua equipe e, em particular destacou- se a historiadora Laima Mesgravis[17] (1946-). Sérgio Buarque precisava de uma professora com experiência de sala de aula para apresentar as atividades pedagógicas, porque na realidade esses foram livros categorizados como Estudos Sociais para serem comercializados em pleno regime militar. Os professores, que os utilizavam, na verdade, estavam dando uma aula de História. Foi uma obra muita aceita, com ótima diagramação e renovação nas imagens e nos métodos de leitura conribuindo para a introdução de uma história sócio-cultural na produção didática. Tudo isso, porque a Laima teve uma grande experiência com sala de aula, no tempo em que lecionava em colégios experimentais. Outro livro muito interessante foi organizado por Ilmar Rohloff de Mattos[18], no final dos anos de 1970 - Brasil Uma História Dinâmica- que também foi produzido por uma equipe de professores. A equipe de professores e professoras atuando escolhidos eram especializados nas práticas pedagógicas.
Temos, assim, muitas mulheres autoras mas, majoritariamente nos livros de História foram os homens que fizeram. Aliás, eu acho que em todas as disciplinas os homens predominam e apenas as cartilhas e livros para as Escolas Primárias, que apresentam um número maior de autorias femininas.

 

Tempo & Argumento: Vivemos a pandemia e aulas remotas são uma realidade. Diante desse cenário, algumas escolas particulares de Santa Catarina pediram, no início de 2021, como material escolar, tablet para baixar conteúdos. Como a senhora avalia o futuro dos livros didáticos impressos no século 21?

Circe Bittencourt: A tendência dos livros didáticos é sua diluição enquanto material escolar mais importante, mas, de um modo geral ele ainda deve permanecer, dada a realidade brasileira, principalmente para as séries iniciais. No entanto, acho que vai se tornar cada vai ficar cada vez mais sintético e isso influencia muito nas questões relacionadas ao desenvolvimento intelectual dos alunos, porque você não tem o controle da qualidade daquilo que está sendo apresentado nas salas de aula. Então, como o professor poderá controlar e avaliar esta questão do desenvolvimento intelectual do aluno? Como que ele vai conseguir fazer uma análise produção da escrita e da leitura considerando a essa disseminação de novos suportes de escrita e apreensão de informações como as difundidas pelas fake news?
As informações das mídias, pelo Google, etc. necessitam de determinada forma de desenvolvimento crítico para as novas gerações. Quem vai poderá avaliar isso? O predomínio das informações orais também é uma evidência para a disseminação de informações. Se permanecer este predomínio das informações audiovisuais, o aprendizado da escrita vai perder muito, porque escrever desenvolve algumas capacidades intelectuais que inevitavelmente vão desaparecer. E qual vai ser a consequência disso? Os alunos serão mais leitores e não vão ser escritores. Esse é um detalhe que nós sabemos faz tempo, pois isso já está acontecendo há, mais ou menos, 20 anos. A escola, por outro lado não está conseguindo sequer fazer bons leitores, porque o sistema de avaliação é rudimentar: marcar “x” nos testes.
O livro didático que, antes contribuía para o aprender ler e escrever, acho que vai perder essa função. Os alunos não vão aprender com textos mais elaborados sobre os conteúdos, não vão estar preparados para questionar, indagar e aprender a dialogar com textos e nem mesmo com seus colegas e o professor não vai ter tempo nem condições de desenvolver estes métodos de aprendizagem com os alunos. Então, teremos uma perda muito grande de ensino e aprendizagem no sentido da materialidade pedagógica que constitui o livro didático.
Ao substituir esse suporte, há uma perde no processo de uma formação intelectual dos alunos. A materialidade da informação áudio visual para o ensino vem em larga escala e você não tem o tempo da reflexão. É aquilo que eu sempre defendo, torna difícil introduzir a aprendizagem pelo método dialético. Por intermédio dele, o aluno pode problematizar uma situação, levantar hipóteses, pensar e refletir sobre os temas de estudo. A criança vai perder esse processo reflexivo que o livro proporciona, pois, uma coisa é você ler na tela, diante de uma informação que some rapidamente e para retornar a ideia principal do texto, fica muito difícil. O livro de forma diferente permite que haja o retorno com mais calma e paciência do texto escrito; ele possui um ritmo diferente de leitura. Na mídia isso é distinto, pois a palavra escrita está disposta em uma quantidade muito maior e é muito difícil você criar obstáculos que permitam reflexão. Muitos pesquisadores, sobre metodologias do ensino tem discutido muito sobre esses métodos de utilização da mídia no sentido de possibilitar uma forma crítica de leitura pelos alunos, mas as conclusões tem sido de que serão poucas as escolas que irão conseguir fazer isso no total.

Tempo & Argumento: Para finalizar, poderia nos falar sobre as possibilidades de interação entre os livros didáticos e as novas tecnologias, em especial, no caso da produção de materiais complementares à educação de comunidades indígenas e quilombolas?

Circe Bittencourt: Eu acho que a comunicação escrita para os indígenas tem sido realizada mas com dificuldade porque não são povos de tradição de cultura letrada e com a mídia atual estão perdendo bastante a capacidade de memorização oral. As narrativas orais são repetidas incessantemente e é assim que os velhos das aldeias fazem dentro de uma tradição milenar. As narrativas são acompanhadas de gestos, de encenações que complementam a fala.
Tive uma orientanda indígena, a Naine Terena de Jesus, que trabalhou muito com a aprendizagem pelo audiovisual em escolas indígenas, porque, segundo suas vivências nas aldeias, professores e alunos precisavam muito dos objetos e dos sons para aprender. Acredito que atualmente isto nos conduz para estudos sobre a educação dos sentidos. Acredito que esta é uma possível saída: as aprendizagens pelos sons, o tato, os olhos... Para essa comunicação do audiovisual, das mídias eletrônicas, o ouvido e os olhos, são significativos, mas você não vai ter a percepção do tato, por exemplo. Nesses estudos com os indígenas, Naíne proporcionou experiências exitosas como uso de filmadoras para os professores da aldeia. O resultado foi uma aprendizagem muito rápida na apreensão das técnicas de captar imagens e de como seria o jeito ideal de entenderem os objetos e os espaços. Mas importante salientar que foram experiências nas aldeias, no contato com o real da vida, com objetos concretos e vivenciados pela comunidade.
Acredito acho que esta é uma discussão que temos que fazer dentro dos cursos de formação de professores. As questões de sobre esses métodos. Esta é uma discussão que vem do final do século 19. Por exemplo, desse período surgiram os laboratórios escolares de Química, Física. Mas e a área de ciências humanas, como História, Geografia, Sociologia? Como trabalhar com estudos do meio? Trabalha-se nas formas de observação e análises de “ver” um prédio antigo, um prédio novo, uma arquitetura monumental ou das favelas, com os objetos de museus. Nesta perspectiva temos que pensar na criação materiais para serem incorporados dentro da mídia eletrônica e, também, aprender a fazer a leitura do meio real.
Os estudos vão ter que ser ampliados, se quisermos desenvolver uma metodologia de aprendizagem crítica, de desenvolvimento e de capacidade de observação analítica. Os alunos aprendem não apenas pelo texto escrito, mas associado à observação da realidade do meio em diferentes tempos, da rua, da arquitetura, dos animais, da mata, da floresta, isso tanto fisicamente quanto por intermédio do audiovisual que está na internet.
Temos que começar a nos dedicar um pouco a essa questão da educação pelos sentidos e pela observação para fazer com que o aluno desenvolva sua capacidade de reflexão. O problema é que não é possível deter o jeito de comunicação da mídia está por aí. Fico observando meu neto jogando aqueles jogos de ação. A escola em que ele está matriculado é muito interessante, porque eles estão trabalhando muito com esta realidade, mas não excluem o ensino da aprendizagem pelas mãos dos alunos: o curso de marcenaria e de educação alimentar foi introduzido para desenvolver as outras capacidades dos sentidos.
Devemos criar metodologias, porque a tecnologia veio para ficar. Por outro lado, fico imaginando um crack mundial energético e, de repente não tem mais energia? É só faltar energia que para tudo, tem esse pequeno detalhe. Lembro que uma vez mostraram, para uns alunos, uma máquina de escrever, lá no museu da escola da Faculdade de Educação. Só que essas crianças nunca tinham visto uma dessas “velharias”. Um aluno olhou e falou assim: "Nossa, já vai escrevendo e já sai impresso. Olha lá, já imprimiu.”. Eles gostaram, acharam que era uma modernidade, que era uma evolução. Bom, é isso.

 

Referências
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Alain Choppin e seu legado como historiador e educador. In: História do ensino de leitura e escrita: métodos e material didático, 2014.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar. 1993. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. O saber histórico na sala de aula. 9ª ed. São Paulo: Contexto, 2004.

DIAS, Marcia Hilsdorf. Professores da Escola Normal de São Paulo (1846- 1890): a história não escrita. Campinas, SP: Editora Alínea, 2013.

TEIVE, Gladys Mary Ghizoni. Caminhos teórico-metodológicos para a investigação de livros escolares: contribuição do Centro de Investigación MANES. Revista Brasileira de Educação v. 20 n. 63 out.-dez. 2015

[1] Historiadora, autora de vários livros, entre eles: Da Senzala à Colônia, que aborda a transição do trabalho escravo ao livre na zona cafeeira de São Paulo e é considerado referência obrigatória para estudiosos do período.

[2] Foi um sociólogo brasileiro, considerado o fundador da Sociologia Crítica no Brasil. Defendia que a educação deveria ser laica, gratuita e libertadora.

[3] Foi um sociólogo brasileiro devotado à compreensão das diferenças sociais, das injustiças a elas associadas e dos meios de superá-las. Especializou-se na análise do populismo e do imperialismo.

[4] Pesquisador pioneiro no campo da História das Disciplinas Escolares e na História do Ensino da língua francesa

[5] Um dos grandes pesquisadores de livro didático no mundo, dedicou sua carreira a analisar conteúdos e pensar sobre o lugar que esta literatura ocupa na História da Educação mundial.

[6] Paulo Bourroul (1855-1941), franco-brasileiro, foi professor e diretor da Escola Normal na década de 1880.

[7] José Carlos de Macedo Soares (1883-1968) foi um jurista, historiador e político brasileiro.

[8] Baptiste-Louis Garnier (1823-1893) foi um dos principais editores do Brasil no século 19. Vindo da França fundou a Livraria Garnier, que editava os livros no Brasil e os imprimia em Paris.

[9] Pierre René François Plancher de la Noé (1779 – 1844) foi um editor e jornalista francês que atuou no mercado brasileiro à época do Primeiro Reinado.

[10] Professora de História da Educação da Universidade Nacional de Educação a Distância e diretora do Centro de Pesquisa de Manuais Escolares (MANES), cujo trabalho desde 1992 tem se concentrado na recuperação e pesquisa de livros didáticos publicados na Espanha, Portugal e América Latina durante o período de 1808-1990.

[11] Etnólogo e historiador ligado a social-democracia alemã.

[12] Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto é professora titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde leciona Filosofia da Educação

[13] Livro de leitura que contêm lições da Bíblia e lições de moral. Foi o ícone da imprensa tipográfica maranhense na segunda metade do século 19, com a maior tiragem, a maior distribuição entre as escolas e o menor preço.

[14] Professora, escritora e tradutora que atuou no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais na segunda metade do século 19 e início do século 20.

[15] Professora de Prática de Ensino de História da USP. Autora de importantes livros didáticos de História e de obras na área de Ensino de História.

[16] Atuou como docente no Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de História, com ênfase em Teoria e Filosofia da História.

[17] Profunda estudiosa da cultura histórica em particularmente no que se refere ao período colonial.

[18] Atualmente é Professor Associado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Consultor da Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro.

 




Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC
Programa de Pós-Graduação em História - PPGH
Revista Tempo e Argumento
Volume 15 - Número 38 - Ano 2023
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