DOI: 10.5965/2175180306122014111
http://dx.doi.org/10.5965/2175180306122014111
Resumo
Em princípios dos anos 1980, um projeto do governo federal prometeu o desenvolvimento socioeconômico do semiárido do Rio Grande do Norte por meio da construção de uma grande barragem. Esse empreendimento causou a submersão do município de São Rafael. Três décadas depois, a população dessa cidade passou a usar o orkut para reconstruir a sua memória. Essa rede social se tornou um repositório de fotografias da antiga São Rafael, geralmente acompanhadas de depoimentos cheios de saudosismos. Este artigo analisa o papel assumido pelo orkut como um museu aberto, no qual se disponibilizam imagens, devidamente comentadas. Defendemos que essa rede social, que vivia seu auge há três anos, converteu-se num lugar de memória durante o tempo em que foi usada pela população de São Rafael como suporte para “salvar” restos do passado e, assim, construir uma memória e uma identidade de grupo.
Palavras-chave: São Rafael (RN ) - História; Redes de relações sociais; Orkut; Memória.
Abstract
In the early 1980s, a project of the Federal Government promised the socioeconomic development of the semiarid region of Rio Grande do Norte through the construction of a large dam. This enterprise led to the submersion of São Rafael municipality. Three decades later, the population of this city started using Orkut to rebuild its memory. This social network has become a repository of photographs of old São Rafael, usually accompanied by nostalgic testimony. This article analyzes the role played by Orkut, at the time, as an open museum where pictures were available and there was refletion on them. We argue that this social network, which lived its peak three years ago, has become a place of memory during the time it was used by the population of São Rafael. It has become a tool used by the population to “save” remains of the past and to build a memory and a group identity.
Keywords: São Rafael (RN ) – History; Social Networks; Orkut; Memory.
Introdução
Na atualidade, as redes sociais tornaram-se presenças constantes em nossas vidas. Elas criam sociabilidades e hábitos, ditam regras, divertem, informam, produzem e reproduzem ideias, alterando, assim, nosso cotidiano, nossa visão de mundo e, evidentemente, os processos educativos no sentido lato do termo.
Incensadas por muitos e demonizadas por outros, as redes sociais não podem mais ser ignoradas. Por isso, vêm ocupando espaço nos eventos e nos periódicos acadêmicos das mais diversas áreas. Pesquisadores da educação e historiadores, por exemplo, percebem essas redes como construtoras e reprodutoras de representações e identidades.
Neste artigo, analisamos o papel exercido pelo orkut – uma rede social que estava em auge na mídia até recentemente –, como o tear de uma memória coletiva e de uma identidade para a nova São Rafael, uma cidade do sertão do Rio Grande do Norte, edificada em princípios da década de 1980, quando uma cidade homônima, próxima dali, foi inundada pelas águas de uma barragem edificada pelo governo federal.
Três décadas depois desse fato, foi criado um perfil de São Rafael no orkut, conhecido por todos como o “Orkut de São Rafael” (usaremos aspas quando estivermos nos referindo ao perfil dessa cidade). Ele se tornou um repositório de imagens da velha e da nova São Rafael e um meio pelo qual, coletivamente, a antiga e a nova geração de rafaelenses socializavam suas experiências, lembravam o passado e reelaboravam suas memórias. Dessa forma, aos poucos, essa rede social se transformou num grande arquivo, um lugar de memória (NORA, 1993), onde se arquivava o que havia restado das lembranças da velha cidade, sob o pretexto de salvá-las do total esquecimento.
O artigo está dividido em três partes: na primeira, relatamos a inundação da velha São Rafael, em função do Projeto Baixo-Açu; na segunda, apresentamos o “Orkut de São Rafael” como um grande arquivo, uma espécie de museu virtual da cidade; por fim, após uma rápida digressão sobre memória, apresentamos o “Orkut de São Rafael” como um lugar de memória.
1 Uma “Atlântida” no sertão do Rio Grande do Norte
Embora desde os anos 30 do século XX já se planejasse a construção de uma barragem no Vale do Açu, uma das microrregiões localizadas no semiárido potiguar, somente em 13 de julho de 1975 essa proposta saiu do papel. Nessa data, o presidente Ernesto Geisel assinou o Decreto nº 76.046, criando o Projeto Baixo-Açu. Esse ato do governo federal representava não apenas o esforço de veicular a imagem de um Brasil que caminhava em direção ao desenvolvimento, mas também, mais uma vez, a prática da antiga política das águas, iniciada em fins do século XIX, que tinha como pressuposto a concepção de que, apenas por meio do acúmulo de água seria possível colocar fim no “atraso” do Nordeste e nos entraves ao progresso dessa região.
As ambições do Projeto Baixo-Açu eram grandes. A maior delas era a construção de uma barragem com uma capacidade de 2,4 bilhões de metros cúbicos de água, a maior do Nordeste. Para isso, atingiria áreas de vários municípios do semiárido norte-rio-grandense. Um deles seria completamente inundado: São Rafael, com uma área de 443 km2 e uma população de 7,4 mil habitantes, a maioria residente na zona rural, e que sobrevivia às custas do extrativismo vegetal e da produção de lavouras às margens do rio Piranhas.
A notícia da execução do Projeto Baixo-Açu gerou descrenças, ansiedades, dúvidas e insatisfações. Muitos não acreditavam que o projeto fosse realmente efetivado, visto que há décadas se falava dele sem que nunca tivesse havido uma ação que demonstrasse que ele realmente existia. Para os que acreditaram, a dúvida se instalou: os mais pobres não sabiam o que fazer, a quem recorrer, nem para onde ir. Os donos de propriedades temiam ser prejudicados pela reforma agrária que o governo prometia e pelos valores das indenizações propalados.
A ausência de clareza quanto aos detalhes do Projeto Baixo-Açu exasperava a população, que protestava por meio dos sindicatos dos trabalhadores rurais, da Igreja e de intelectuais ligados às universidades (FERNANDES, 1992; VARGAS, 1991). Diante dessa mobilização, o “esclarecimento” das dúvidas e o convencimento da população não tardaram a chegar. A imprensa estadual e local, a propaganda governamental, os panfletos distribuídos pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e os versos de alguns poetas populares propalavam que os benefícios advindos da construção da barragem Engº Armando Ribeiro Gonçalves seriam incalculáveis. Admitiam, obviamente, as dificuldades que muitos enfrentariam para a concretização daquele sonho. Ressaltavam, porém, que, concluída a obra, com certeza o sertão potiguar iria se tornar um enorme celeiro e o povo teria terra, trabalho, renda e alimentos em abundância.
Não obstante a oposição de alguns políticos, sindicalistas, membros da Igreja e intelectuais, a barragem foi construída e, em 1983, inaugurada. Contudo, o progresso cobrava como preço a extinção da cidade de São Rafael e da maior parte dos meios de sobrevivência de sua população: as minas de xelita, o carnaubal e o solo fértil da vazante do rio Piranhas. São Rafael se transformava numa “Atlântida do Sertão”, o título de uma composição de Arleno Farias (1998) em que este homenageia sua terra natal[1].
Uma nova cidade foi edificada pelo Dnocs para alocar parte da população residente na zona urbana e rural da velha São Rafael, a qual, mesmo imersa nas águas, fascinou curiosos durante quase três décadas. Apesar da inundação, em princípios da década de 1980, a velha cidade ainda exibia, em meio à imensidão das águas, a torre da sua antiga igreja, dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Ao longo dos anos, a torre tornou-se um símbolo da cidade, um vestígio do passado que recebia visitas de turistas e de rafaelenses saudosos.
A transferência para a nova São Rafael é lembrada com revolta e lágrimas. Fala-se do fim das sociabilidades, da demolição das casas, dos deslocamentos feitos contra a vontade das famílias. Muitos se sentem ludibriados pelos governantes e pelos funcionários do Dnocs. A população mais jovem, nascida na nova cidade, com base nos discursos dos seus pais e avós, conta a história da antiga cidade, relata o seu cotidiano e acredita num passado melhor que o presente (SOUZA, 2010).
Entretanto, o quadro descrito pelos rafaelenses se choca com o discurso apaziguador e conformista divulgado pela mídia. A revista Veja (1983 apud CARVALHO, 1999, p. 22-23), informava que a população estava de “malas prontas” para outra cidade. Ressaltava que a nova sede do município fora edificada em terreno mais elevado, num “local ideal para os habitantes contemplarem, nos próximos dias, a lenta inundação de sua velha cidade, fundada há um século” (grifo nosso). Destacava que o Dnocs “premiara” os migrantes com “atrativos inéditos”: viveriam na única cidade brasileira com todas as ruas pavimentadas e saneadas e todas as casas com energia elétrica e água encanada. Como “brinde especial”, dado pelo Dnocs, a população teria uma réplica perfeita da antiga igreja e “até os quadros ficarão nos mesmos lugares”. Ainda de acordo com a publicação, também haviam sido tomados os devidos cuidados para que se mantivesse a disposição dos prédios mais importantes da cidade antiga, e, igualmente, que a população continuasse morando ao lado dos seus antigos vizinhos.
O jornal Diário de Natal (1983 apud VARGAS, 1991, p. 478) também tratou de ressaltar que São Rafael era o “novo marco na História do Estado”. A reportagem salientava o “carinho” e “a dedicação” dispensada aos moradores da nova São Rafael. “Projetada dentro de uma arquitetura moderna, mas essencialmente humanitária, ela seria a única totalmente saneada do país, com completo sistema de abastecimento d’água e energia elétrica” (grifo nosso).
Como podemos perceber, não foram poucas as intenções de criar uma nova versão para o fato, distorcendo-o ao apresentar uma imagem positiva de alguns problemas advindos do Projeto Baixo-Açu. Aliás, é digno de ressalte que esse projeto nunca foi realizado por completo e terminou por satisfazer os interesses das elites, como assinalam os estudos que trataram da sua execução (VARGAS, 1991; BONETI, 2003).
Trinta anos se passaram desde a instalação da população na nova São Rafael. Com base nas necessidades do presente e na projeção de um futuro, as experiências vividas pelos rafaelenses são cotidianamente renovadas e ressignificadas e, para não serem esquecidas pelo tempo, uma memória coletiva é cotidianamente construída por meio dos relatos orais, transmitidos entre as gerações e pelos novos suportes trazidos pela modernização tecnológica, como as redes sociais.
2 Uma memória urdida em rede
Em 2008, quando o orkutvivia seu auge e era a rede social mais usada no Brasil, foi criado um perfil para a cidade de São Rafael. O objetivo era reunir conterrâneos e pessoas simpáticas à cidade, apresentar seu potencial turístico e possibilitar um espaço de descontração e de diálogo entre amigos, muitos dos quais espacialmentedistantes. Havia, porém, um projeto maior: unir uma população, dispersa há décadas, por meio de um projeto de “resgate” do passado. Certamente, por esse motivo, desde o início da sua existência o “Orkut de São Rafael”, como popularmente era chamado, passou a ser constantemente visitado por pessoas que residiam na nova cidade ou por muitos que nem chegaram a se estabelecer ali em princípios dos anos 1980, uma vez que parte da população migrou para municípios vizinhos ou para a capital do estado, Natal.
O número de “amigos” de São Rafael, conforme a linguagem usada no orkut, era cada vez mais crescente e atingiu um número de 1.300 pessoas de faixas etárias variadas, proporcionando trocas constantes de mensagens e comentários. Obviamente, os assuntos eram os mais variados, mas destacavam-se as centenas de fotos organizadas em vários álbuns, além de uma grande quantidade de vídeos e comunidades afins que tratavam da memória da antiga São Rafael.
As imagens despertavam a memória dos espaços da velha cidade, desaparecidos para sempre com a execução do Projeto Baixo-Açu. Tudo voltava a povoar as lembranças dos visitantes do “Orkut de São Rafael”. As fotografias revelavam ruas, praças, prédios públicos, cenas do cotidiano, festas, diversões no rio, paisagens naturais.
Embora, naturalmente, procurassem guardar os momentos felizes, a exemplo das várias festas e comemorações na antiga cidade, no “Orkut de São Rafael” também se exibiam as situações de tristeza coletiva, como as sentidas nos meses que antecederam a mudança definitiva para a nova cidade. Talvez com o objetivo de denunciar a violência de que haviam sido vítimas há trinta anos, várias fotos mostravam um cenário de devastação: escombros deixados pelas demolições das casas, ruas sem os paralelepípedos, invasão da Igreja de Nossa Senhora da Conceição pelas águas da barragem, a última missa na antiga cidade e as mudanças para a nova. Mas é a torre da igreja, em meio às águas, uma das imagens mais registradas pelas câmeras fotográficas. Embora se tenha tornado símbolo da cidade, infelizmente desmoronou em dezembro de 2010,provocando uma grande comoção na cidade que desde então se vê totalmente órfã de patrimônio histórico construído.
Contudo, quaisquer que fossem as temáticas tratadas pelas fotografias, elas geralmente provocavam interações entre os que acessavam o orkut. Era sempre um momento para trocar ideias sobre aquele momento de suas vidas, comentar a política da cidade, idealizar um passado visto quase sempre de forma positiva, apesar das lágrimas que muitos diziam derramar ao rever os espaços em que haviam vivido.
As reminiscências dos rafaelenses fazem-nos lembrar as discussões de Bachelard sobre as imagens do espaço feliz, dos espaços amados ou louvados, definidos por ele como topofilia. Para esse autor, “o espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração de um geômetra. É um espaço vivido. E vivido, não em sua positividade, mas com todas as parcialidades do coração” (2008, p. 19).
Portanto, “todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova” (BACHELARD, 2008, p. 25). No contexto que estamos estudando, podemos inferir que a casa nova de que fala Bachelard (2008) não significaria apenas as moradias da nova São Rafael, para onde os seus moradores levaram, na memória, as experiências vividas na velha cidade. O orkuttambém aparece como essa casa nova, compartilhada por todos que não se inibem em falar do seu passado e de expor suas marcas através de uma fotografia.
Talvez alguns tenham preferido guardar em silêncio a saudade que sentiam, pois lembrar, muitas vezes, machuca, traz de volta o sofrimento, como afirma Cyrulnik (2005). Assim, conservadas num fundo de gaveta, num álbum ou numa caixa, velhas fotografias aguardavam a oportunidade em que se fariam presentes para pessoas fora do núcleo familiar. Finalmente, esse momento parecia ter chegado com a popularização das redes sociais na internet. Para muitos rafaelenses, moradores da nova cidade, ou de outras, essa ferramenta se converteu na posta-restante na qual deixavam imagens de uma época pretérita. Na impossibilidade de retroceder no tempo e voltar à velha São Rafael, o orkut oferece-lhes a oportunidade de rever suas casas, famílias, amigos, festas... Enfim, chegava a hora de voltar do exílio e da dispersão que o Projeto Baixo-Açu lhes impusera, de reabitar a velha cidade, mesmo que em sonho. Foi assim que, aos poucos, como num grande quebra-cabeça, as imagens iniciaram uma reconstrução do passado, atando-o ao presente. Óbvio que inúmeras peças desse jogo foram para sempre perdidas, mas isso não importava naquele momento.
As imagens ali disponibilizadas agem no sentido de “descongelar o tempo” (DANTAS, 2003). Contam a história da velha cidade e rememoram as vidas dos seus moradores e ex-moradores. Como se fossem portais para o passado, vários álbuns mostram fotografias em preto e branco ou coloridas e, como muitas delas não têm informações importantes (quem são as pessoas que estão posando para o fotógrafo, por exemplo), geralmente outras pessoas que visitam o perfil acrescentavam essas informações. Fotografias de ruas da cidade velha também eram muitas e, geralmente, acompanhadas de comentários sobre a casa em que moravam,sobre quem eram os vizinhos, etc. Não faltavam comentários, reencontros, manifestações de amor à terra natal, lembranças dos tempos vividos na antiga cidade, saudosismos, nostalgias.
É importante acrescentar que as imagens aqui tratadasforam feitas, em sua maioria, por amadores, numa época em que se popularizavam as câmeras fotográficas. Por causa disso, nem todos esses registros permitem um estudo mais pormenorizado do seu conteúdo, nem das intenções de quem as produzira ou das de quem as solicitara, aspectos de grande relevo para quem se aventura a estudar o passado a partir dessas fontes.
Também é preciso considerar que as imagens disponibilizadas no “Orkut de São Rafael”, como quaisquer outras, não são espelhos ou duplicações do real. Mesmo que a princípio percebamos um registro fotográfico ou fílmico como prova de um fato, uma expressão da realidade de forma objetiva, precisamos ter consciência de que, como qualquer outra forma de testemunho, as imagens são parciais, em parte ilusórias e ficcionais.
Para Borges, a imagem:
Também Burke (2009, p. 286) destaca os cuidados que devemos ter para não compreendermos a fotografia como registro exato do real: “a fim de não sermos iludidos pelas fotografias, quer sejam fixas ou móveis, precisamos – como no caso dos textos – estar atentos à mensagem e ao remetente, perguntando quem está tentando nos dizer o quê e por que motivos” .
As análises de Burke (2009) aproximam-se das considerações tecidas por outros estudiosos estrangeiros e brasileiros. É ponto pacífico, nesses estudos, a concepção de fotografia como uma “interrupção do tempo” e, portanto, “da vida” (KOSSOY, 2001; 2007). Ela é um “instante contínuo” (DYER, 2008), um fragmento congelado da cena passada que se descongela a partir de uma “educação pelo olhar” (DANTAS, 2003).
No “Orkut de São Rafael”, os acontecimentos pretéritos, mortos, paradoxalmente, aparecem vivos, descongelados pelo olhar e presentes por meio das narrativas visuais e orais, estas agora convertidas em textos escritos. Merece ressaltar que essas três formas de narrar imbricam-se nessa rede social.
Nossas memórias têm a capacidade de nos manter vivos. Ao que tudo indica, regenerar a memória a partir de novos suportes era a palavra de ordem para os rafaelenses. Através de uma rede social, os narradores lembravam a sua antiga cidade em seu grupo de pertença: daí a exposição de velhas fotografias, antes reservadas apenas ao grupo familiar. Agora, esses registros do cotidiano na antiga cidade ganham vida nova: são rejuvenescidas, graças a um tratamento digital, desamassadas, coladas, escaneadas e, finalmente, disponibilizadas a todos que se interessam em vê-las. Aos poucos, esses fragmentos de vida se transformam em fontes de recordação e emoção, mas também de informação e educação.
As fotografias da velha cidade mantêm a vida coletiva e individual. Dão um sentido a uma população dispersa; reelaboram a identidade, visto que esta é “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados pelos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2003, p. 13).
No “Orkut de São Rafael”, essas imagens não são mais meros registros de uma época, mas documentos/monumentos (LE GOFF, 2003) que suscitam representações sobre o passado e renovam identidades. Por meio dessa rede social, elas contam histórias de um tempo que deixou saudades e, mesmo que tenham limites, cumprem o papel de “salvar” a memória da velha São Rafael sob o risco de aniquilamento ao longo das décadas e das gerações.
A função que a internet exerce para replicar e rejuvenescer as ideias fica destacada num comentário de Edgar Morin (2001), quando agradece pela criação de um site em sua homenagem: “agora, diferentemente de Dorian Gray, de Oscar Wilde, posso envelhecer em paz, pois minha obra vai se rejuvenescer para sempre na Internet”. Lembra, em seguida, que “tudo o que não se regenera acaba se degenerando. Tudo o que se encontra em estado nascente é apaixonante: um amor, uma revolução, uma infância. Mas tudo tende também a degenerar, a enrijecer, a esclerosar-se, a degradar-se, a morrer”.
Se, para Morin (2005, p. 381), “o regresso do antigo não é senão o ressurgimento da renovação” podemos considerar que o “Orkut de São Rafael” não apenas potencializava uma inteligência coletiva (LÉVY, 1997) através da cooperação, da troca de ideias e de sua reconstituição por meio de narrativas visuais, mas também era elemento regenerador, reprodutor, restaurador e renovador da memória coletiva daquela cidade.
3 Um novo lugar de memória?
Fischer (2011, p. 23) utiliza uma belíssima metáfora para falar sobre a função da memória. Para ela, da mesma forma que as enguias, quando capturadas, sobrevivem por algum tempo devido a uma reserva de água que guardam em suas brânquias, somos também capazes de resistir porque armazenamos lembranças.
Fenômeno complexo e de difícil definição, a memória não só é individual, mas também coletiva. Ocorre por meio de funções psíquicas, fisiológicas, orgânicas, mas isso não anula o fato de ela ser construída socialmente. Não é de se estranhar o porquê de Le Goff (2003, p. 419) adjetivar de crucial o seu conceito e declarar o seu caráter nebuloso.
Izquierdo (2011, p. 11), ao refletir sobre o que é a memória, destaca sua relação com o aprendizado:
Dessa maneira, a memória, ao contrário do que se possa pensar, não se reduz apenas ao ato de recordar. Poderíamos dizer que memória é a aquisição e o armazenamento de informações por meio de nossas experiências cotidianas e as de outrem, repassadas por meio de um processo educativo, muitas vezes não-escolar, e que se dá no interior dos grupos sociais. Ou seja, a memória se caracteriza pela aquisição de um aprendizado; por ter uma dimensão individual e coletiva; por reafirmar as identidades, embora estas estejam em constante construção ou “flutuando no ar” (BAUMAN, 2005, p. 19), e por selecionar e planejar o que pode ser lembrado e/ou esquecido.
Mesmo que cada um de nós tenha lembranças que compõem a nossa história de vida e nos torne um ser único (IZQUIERDO, 2011, p. 12), é em grupo que construímos a nossa memória, como nos ensina Halbwachs (2006, p. 30):
A narração, o ato mnemônico fundamental (LE GOFF, 2003) caracteriza-se, antes de mais nada, por sua função social. Conforme Benjamin (1994), a narrativa tem uma dimensão utilitária e não está interessada em transmitir o “puro em si” como uma informação ou relatório. Ele assinala o quanto de subjetividade há nas lembranças que construímos por meio dos nossos relatos: “ela [a narração] mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, se exprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1994, p. 205).
Lembrar e esquecer são lados de uma mesma moeda. Somos aquilo que recordamos e esquecemos. Ao narrarmos um fato, selecionamos o que pode e deve ser dito e esquecemos o que não nos convém ou não interessa ao nosso grupo social. Uma rememoração não é isenta de projeções, de relatos de acontecimentos “vividos por tabela”, como se houvesse uma “memória herdada” (POLLAK, 1989; 1992).
Edgar Morin também destaca a subjetividade presente na memória e a necessidade de regeneração desta pela rememoração:
Para Le Goff (2003), a atual evolução das sociedades tem elucidado a importância da função que a memória coletiva exerce. Ela se tornou uma das grandes questões das sociedades, desenvolvidas ou não, das mais variadas classes, na sua luta contínua pelo poder, pela vida, pela sobrevivência e pela promoção. Isso se explica pelo fato de a memória coletiva ser um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade.
Todavia, se, por um lado, a memória coletiva é uma luta e conquista dos grupos sociais, por outro, ela também é um instrumento e um objeto de poder, como assinala Le Goff (2003). Michel Pollak (1989; 1992) compartilha dessa ideia e destaca o processo de “enquadramento” que a memória sofre em muitos grupos sociais e políticos.
Considerando-se o fato de que a memória coletiva é um objeto em disputa desde tempos remotos, como nos ensinam Le Goff (2003) e Pollak (1989; 1992), a questão que merece discussão na atualidade é: por meio de que ambientes, recursos, práticas e suportes materiais se produz e se difunde a memória hoje? Certamente, os exemplos seriam muitos, mas a maior parte deles reivindicaria a noção de “lugares de memória”.
A expressão “lugares de memória” foi criada pelo historiador francês Pierre Nora em função das transformações socioeconômicas e políticas na década de 1970 na França. Essas mudanças levaram a uma revalorização do passado francês e a um aumento progressivo do culto ao patrimônio. Dessa forma, em fins dos anos 1970, Nora organizou sete volumes de Lieux de mémoire (Lugares de memória) que constituíram uma reflexão sobre a memória nacional do seu país, privilegiando a dimensão simbólica da história. Nesse projeto, o que mais o fascinou foi como uma “quantidade de temas considerados locais, marginais, provincianos em relação à ‘grande História’ ganhava uma nova centralidade”. No seu entender, “um dos efeitos dos lugares de memória não foi somente de inventar temas, mas de dar um brilho, uma centralidade que nunca tiveram” (NORA, 1999, p. 25).
Embora criado para analisar o contexto histórico francês, como esclarece Nora (1999, p. 31), o conceito de lugar de memória se popularizou e cruzou fronteiras, tendo sido usado por historiadores de várias partes do mundo. Mas, o que seriam esses lugares de memória?
Nora (1993, p. 12) em seu texto clássico, utiliza a expressão “aceleração da história” ao enfocar o atual contexto de mundialização em que nos encontramos, cujas transformações incessantes nos levam a sentir cada vez mais a ameaça do esquecimento e, por conseguinte, ansiamos por aprisionar o que sobrou do passado. Por isso, afirma que “os lugares de memória são, antes de tudo, restos”. Daí a obsessão que temos hoje pelo registro, pelos traços e pelos arquivos:
Dessa maneira, no entender de Nora, os museus, os arquivos, os monumentos e tantos outros espaços em que “guardamos” o passado para mantê-lo vivo, ainda que apenas em suas sobras, são “lugares onde a memória se cristaliza e se refugia” (NORA, 1993, p. 7). Eles se originam do sentimento que não existe memória espontânea e o vivem; por isso, “é preciso criar arquivos, é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais” (NORA, 1993, p. 13). Para ele, caso vivêssemos as lembranças que esses lugares envolvem, eles seriam inúteis e, portanto, não seriam construídos.
Esses lugares são os espaços em que a memória se fixou. Locais materiais e imateriais nos quais se cristalizou a memória de uma sociedade, de uma nação. Espaços com os quais grupos ou povos se identificam ou se reconhecem, possibilitando existir um sentimento de formação da identidade e de pertencimento.
Baseados nesses pressupostos, consideramos que a moderna tecnologia da informação, usada atualmente em larga escala, tem possibilitado o arquivamento do que sobrou do passado por meio da digitalização de imagens e do armazenamento de dados. Esses documentos, que se constituem também como monumentos (LE GOFF, 2003), disponibilizados pela mídia com o intuito de ensinar, rememorar ou comemorar, não seriam os novos lugares de memória do tempo presente? É disso que trataremos a seguir, após esta digressão sobre a categoria lugares de memória.
Em nosso entender, o “Orkut de São Rafael” se converteu num suporte no qual se tecia cotidiana e coletivamente uma memória cuja matéria-prima eram imagens antigas e amareladas ali disponibilizadas. Não demorou muito e essa rede social deixou de ser mais uma ferramenta usada por jovens como passatempo e troca de gracejos, transformando-se num lugar de memória para uma população que perdeu parte de suas raízes e referências espaço-temporais. De modo semelhante ao que ocorre com um museu virtual, a memória incrustada naquele site de relacionamento dava aos rafaelenses a sensação de pertencimento, de existência, de possuidores de um passado e de uma história. As fotografias amassadas, amareladas ou embaçadas atestavam agora que nem tudo estava perdido.
As palavras de Pessotti (1996, p. 72) assinalam a importância disso: “conhecer o passado significa, agora, o alívio da angústia de existir por acidente, sem razões, sem explicação. [...] O conhecimento do passado, neste caso, atrai porque ordena o caos, ilumina a penumbra. Aclara o horizonte”.
Buscando respostas para o presente, reconstruindo o passado, regenerando a memória por novos meios, vivemos numa luta incessante para não nos apagarmos do mundo, para darmos coerência e sentido às nossas vidas. Contudo, se o passado está consumado e ordenado, o futuro significa indefinição e incerteza. Diante dele, somos impotentes, indefesos, inseguros, ameaçados. Por isso, para Pessotti (1996, p. 76), o futuro exige de nós a preparação para o risco; para isso, precisamos nos prover de saberes e de experiências que possam servir para uma gama ampla de situações.
Sem sombra de dúvida, no “Orkut de São Rafael” – como de resto em qualquer outro espaço onde se pretenda expressar a memória –, há seletividades, esquecimentos e silêncios. Ali, nem tudo fica gravado, nem tudo pode ser dito ou registrado. O que, como e quando relatar não depende apenas do narrador, do lugar que ele ocupa, dos momentos felizes ou infelizes vividos, mas ainda daquilo que convém ao seu grupo social, ao contexto histórico em que está inserido, à memória que se quer construir. Portanto, lembramos o que nos é possível e selecionamos resíduos do passado que precisam ser salvos do desgaste do tempo, da degeneração e da morte.
Enfim, parece-nos que, paradoxalmente, na época do descartável, do esquecimento e da substituição, dos “tempos líquidos” (BAUMAN, 2007), os rafaelenses se têm preocupado em “resgatar” a memória, em “preservar” o patrimônio, em “guardar” e “arquivar” a história. Nessa época líquido-moderna, em que “nossas existências individuais estão fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados” (BAUMAN, 2005, p. 18-19), a população de São Rafael corre em busca de salvar os tempos e garantir a sua imortalidade por meio das redes sociais. Possivelmente agora seja a vez de apostar no Facebook, a rede mais usada no Brasil em 2013.
Considerações finais
O perfil criado para a cidade de São Rafael na rede social orkut serviu de arquivo vivo e sempre aberto, para onde eram encaminhadas imagens da cidade submersa por uma população que se esforçava, voluntária ou involuntariamente, em disponibilizar às gerações novas e futuras imagens de si própria, do seu passado. Um passado vítima das adversidades, mas que, por isso mesmo, é capaz de elevar a autoestima daquele povo com histórias de superação.
Acreditamos que não há apenas uma pretensão de fazer dessas imagens um “túnel do tempo”, mas, a partir da construção de um passado de lutas, criar novas alternativas para o futuro. Assim, os filhos da antiga e da nova São Rafael, mesmo que agora não tenham mais fisicamente a sua velha cidade, encontram-se num espaço virtual e ali manifestam as suas emoções, reelaboram e/ou reafirmam as suas memórias, individuais e coletivas, sobre o que foi vivido.
Mesmo que não tenha como finalidade precípua a evocação de um tempo que se passou há décadas – uma vez que naquele espaço, como em qualquer outro do gênero, se discute de tudo, de festas de fim de semana a jogos de futebol –, o Orkut de São Rafael representava, para muitos, uma oportunidade de presentificar o passado, de “salvar” a sua história, contando-a pelas leituras das imagens, dos comentários, das fotografias e dos depoimentos grávidos de saudosismos. Guarda-se o que restou de uma cidade que não existe mais. Eis, portanto, o seu caráter de lugar de memória.
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[1] Arleno Farias é cantor e compositor da MPB e natural de São Rafael. Seu primeiro CD é intitulado Atlântida do Sertão, lançado em 1998.