Caixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246   Uma mirada no desenvolvimento regional desde o Movimento Zapatista (México)[i]

 

 

 

 

 

Diego Boehlke Vargas[ii]

Universidade Regional de Blumenau (FURB)

Blumenau – SC, Brasil   

lattes.cnpq.br/4764797536279312    

orcid.org/0000-0002-7430-9073  image   

vargasdb@gmail.com      

 

 

Ivo Marcos Theis[iii]

Universidade Regional de Blumenau (FURB)

Blumenau – SC, Brasil     

lattes.cnpq.br/2063932952182790        

imageorcid.org/0000-0003-0128-2188         

theis@furb.br       

 

 

Rosario Rogel-Salazar[iv]

Universidad Autónoma del Estado de México (UAEMéx)

Toluca de Lerdo – MEX, México 

imageorcid.org/0000-0002-6018-0635         

 rrogels@uaemex.mx       

 

 

ícone doi, logo

 

 

Uma mirada no desenvolvimento regional desde o Movimento Zapatista (México)

 

Resumo

O desenvolvimento regional enquanto um campo de estudo tem sido reconhecido como fato (dimensão positiva) e como estratégia (dimensão normativa), cujos caminhos propositivos divergem entre si, incorporando as funções de regulação do Mercado e/ou admitindo a atuação do Estado. O objetivo deste artigo é analisar a autonomia revelada pelo Movimento Zapatista (México) a partir de algumas de suas práticas de autodeterminação social. Na análise das informações destaca-se o uso da documentação indireta como o método bibliográfico-documental privilegiado na revisão da literatura e de documentos. Os resultados revelam que uma possibilidade quanto à permanente criação de disparidades regionais estaria organizada a partir do reconhecimento da autonomia por parte dos próprios movimentos sociais. Passados 30 anos da sua constituição, a autonomia incitada no Estado de Chiapas desde o Movimento Zapatista reconstrói-se permanentemente por meio de uma estrutura de hierárquica integrada e participativa, abrindo espaço para novas autonomias, após anos de amadurecimento, acertos, erros, construção e consolidação.

 

Palavras-chave: movimentos sociais; desenvolvimento regional; México; Movimento Zapatista.

 

 

 

A look at regional development since the Zapatista Movement (Mexico)

 

 

Abstract

Regional development as a field of study has been recognized as a fact (positive dimension) and as a strategy (normative dimension), whose propositional paths diverge from one another, incorporating the regulatory functions of the Market and/or admitting the action of the State. The aim of this article is to analyze the autonomy revealed by the Zapatista Movement (Mexico) based on some of its social self-determination practices. In analyzing the information, the use of indirect documentation stands out, with the bibliographic-documentary method being privileged in the review of literature and documents. The results show that one possibility regarding the permanent creation of regional disparities would be organized based on the recognition of autonomy by the social movements themselves. After 30 years since its constitution, the autonomy instilled in the state of Chiapas by the Zapatista Movement is being permanently rebuilt through an integrated and participatory hierarchical structure, making room for new autonomies after years of maturation, successes, mistakes, construction and consolidation.

 

Keywords: social movements; regional development; Mexico; Zapatista Movement.

 

 

 

 

1 Introdução

O presente artigo procurar descortinar uma interrelação ainda pouco debatida teoricamente entre autodeterminação social e desenvolvimento regional. Mas, além disso, seus resultados científicos e proposições podem ser utilizados como pano de fundo para subsidiar demais estudos do desenvolvimento regional e territorial, muitos dos quais vêm sendo realizados por investigadores vinculados a Programas de Pós-Graduação no Brasil e no México.

O desenvolvimento regional enquanto um “campo” tem sido reconhecido como fato (dimensão positiva) e como estratégia (dimensão normativa), cujos caminhos propositivos divergem entre si, (i) incorporando as funções de regulação do Mercado, e/ou (ii) admitindo a atuação do Estado. O objetivo deste artigo é analisar a autonomia revelada pelo Movimento Zapatista (México) a partir de algumas de suas práticas de autodeterminação social.

As discussões realizadas a respeito das questões teóricas e metodológicas do desenvolvimento poderão se beneficiar dos resultados científicos desvelados pela presente investigação, uma vez que procura trazer uma compreensão específica sobre a diversidade histórico-cultural, tendo como escala o território mexicano zapatista, por meio de uma abordagem em perspectiva histórica.

Ademais, cabe destacar que os resultados divulgados neste artigo se vinculam a Programas de Pós-Graduação organizados em redes de cooperação internacional, no Brasil e no México, procurando proporcionar ampla visibilidade sobre a discussão entre desenvolvimento regional e a experiência do Movimento Zapatista, um caso de relevância teórica, histórica e prática no cenário internacional da ciência produzida sobre o tema.

Em termos metodológicos, este estudo toma como referência, sobretudo, Quivy; Campenhoudt (1995)[1] e Creswell (2010)[2]. Os pressupostos do método de abordagem são de que, tanto a noção de desenvolvimento quanto a de desenvolvimento regional na América Latina e no Brasil, vêm passando por grandes mudanças nos últimos anos (Theis, 2022a, 2022b). A compreensão do tema se apoia numa abordagem ampla – relativa ao contexto latino-americano e mexicano – permitindo analisar as interrelações entre os processos de autodeterminação social e a regionalidade do desenvolvimento.

Os recursos metodológicos foram definidos pela abordagem qualitativa que possibilita a reflexão sobre os impulsos por autodeterminação social no que diz respeito à experiência do Movimento Zapatista. A perspectiva dialética se apresenta como possibilidade para interpretação das dinâmicas entre espaço e tempo, local e global, particularidades e universalidades (Harvey, 2004), especialmente no sentido de identificar e analisar áreas internas do movimento que demandam autonomia para vislumbrar novas possibilidades de autodeterminação social (Dinerstein, 2015).

Entre os métodos de procedimentos, utilizou-se a documentação indireta, pelo método bibliográfico-documental. Na obtenção dos dados, as técnicas de pesquisa privilegiadas foram a pesquisa bibliográfico-documental na revisão de literatura e documentos (relatórios, informes oficiais, cartilhas, folhetos) sobre a temática do trabalho. Também se fez o uso de documentação direta na forma de pesquisa de campo, com a realização de entrevistas com atores envolvidos no universo das análises sobre os processos de autodeterminação social e autonomia no México.

Após o levantamento dos dados, realizou-se sua tabulação e cruzamento. As informações, coletadas e tabuladas, foram agrupadas por categorias, observando-se como critério principal a identificação de regularidades na caracterização da autonomia do Movimento Zapatista, e, então, analisadas e interpretadas à luz dos objetivos definidos pelo artigo.

Quanto à estrutura, este artigo está organizado da seguinte forma: após esta introdução, encontra-se a seção dois, destinada a uma breve discussão teórica entre desenvolvimento regional e autonomia. Na seção três apresenta-se um panorama sobre o Movimento Zapatista a partir de um ponto de vista histórico. A seção quatro aprofunda a compreensão sobre o zapatismo por meio da análise de algumas de suas práticas de autodeterminação social. A última seção é reservada às considerações finais do artigo.

 

2 Desenvolvimento regional e autonomia

Os conceitos e as teorias mais críticos a respeito de desenvolvimento regional propõem a compreensão de aspectos multidimensionais oriundos dos processos de desenvolvimento em determinadas regiões. Entretanto, o desenvolvimento regional não está restrito às análises dos campos do desenvolvimento e da região, pois trata-se de um objeto multidisciplinar e suas reflexões buscam compreender, sistematizar e analisar processos de desenvolvimento econômico, social, político e espacial.

Neste sentido, são mobilizadas diferentes disciplinas, como a Economia e a Geografia, embora não se restrinja a essas áreas do conhecimento. Deste modo, os estudos do desenvolvimento regional constituem um conjunto interdisciplinar de análises que se constroem a partir do conhecimento produzido também da Sociologia, Ciência Política, Antropologia, História, e até Arquitetura e Direito (Theis, 2019).

Além de caracterizar desenvolvimento regional por meio de sua evidente interdisciplinaridade, também o podemos realizar quanto a sua natureza de teoria de médio alcance. Desenvolvimento regional não representa uma mera hipótese, mas ainda não configura uma teoria consistente, pois é algo que se situa entre a hipótese e a teoria.

As teorias de médio alcance se encontram muito próximas da realidade a ser analisada, podendo ser testadas empiricamente. Por essa razão, os estudos a partir do desenvolvimento regional analisam elementos específicos em uma realidade social, ou seja, estão além de simples hipóteses, não conformam grandes teorias capazes de abarcar de forma geral os sistemas sociais, mas servem de uma espécie de guia para investigações empíricas (Theis, 2019).

Contudo, o que nos interessa aqui é aprofundar o caminho propositivo para desenvolvimento regional enfocado em entender a superação das condições materiais como prioridade para a evitar a (re)criação das disparidades regionais, pelo qual se privilegia a autonomia de cada comunidade regional para a definição de seu projeto societário.

A autonomia pode ser definida, portanto, como um coletivo governado por “por regras autoestabelecidas, por autodeterminação, por auto-organização e por práticas de autorregulação, particularmente em relação ao Estado e às relações sociais, econômicas e culturais capitalistas” (Böhm; Dinerstein; Spicer, 2010, p. 19, tradução nossa).

As raízes históricas da autonomia, sejam as lutas operárias e libertárias e os ideais marxistas autonomistas da década de 1960 na Europa, sejam os movimentos rurais, urbanos e indígenas da América Latina e Brasil, contribuíram para um processo emancipador de escala mundial no contexto da globalização neoliberal (Dinerstein, 2013).

Assim, as experiências autônomas buscam combinar novas formas de intervenção, produção e organização social com políticas emancipatórias questionadoras dos fundamentos do capitalismo (Thwaites Rey, 2004). No âmbito das experimentações práticas e das análises políticas – auto-organização ou autogoverno, autorrepresentação, autodeterminação, autogestão – a autonomia foi transformada na América Latina em uma estratégia revolucionária no século XXI. Uma das diferenças entre os movimentos autônomos e outras organizações sociais está no fato de os processos autônomos terem iniciado “uma construção complexa e promissora, mantendo uma relativa distância (discursiva e, também, prática) do Estado e de outras formas institucionalizadas de participação e resistência” (Dinerstein, 2013, p. 24, tradução nossa).

A autonomia ocorre por meio de transformações sociais desde abaixo, quando o controle exercido pelo capital e pelo Estado tende a tornar-se maleável e suscetível a adquirir uma nova forma. Durante os breves períodos emancipatórios, práticas e saberes dos dominados tornam-se visíveis e se expandem, possibilitando que suas vozes alcancem espaços de debate e de decisão pública (Gutiérrez Aguilar, 2011). Uma alternativa de resistência consciente dos indivíduos, que impulsione e reconheça a autonomia e a autodeterminação social presente em distintos movimentos da sociedade civil organizada, se fundamenta, assim, numa transformação social desde abaixo.

 

3 Um panorama sob o Movimento Zapatista (México)

Logo nas primeiras horas do dia 1º de janeiro de 1994, o Estado de Chiapas, no extremo sul do México, transformou-se em uma zona de Guerra a partir do levante armado organizado pelo Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN). A tomada e a ocupação de sete capitais municipais chiapanecas, San Cristóbal de Las Casas (Figuras 1 e 2), Altamirano, Las Margaritas, Ocosingo, Oxchuc, Huixtán e Chanal, originou, o então chamado, Movimento Revolucionário Zapatista (Dinerstein, 2015; Dinerstein; Ghiotto; Pascual, 2013). Naquele mesmo dia, o EZLN trouxe à tona seu primeiro comunicado oficial, a Primeira Declaração da Selva Lacandona, cujo conteúdo informava os propósitos políticos e sociais do movimento, bem como convocava todos e todas interessados e interessadas a unirem-se às forças revolucionárias (EZLN, 1994).

 

Figura 1 - Presença militar no Palácio Municipal, San Cristóbal de las Casas, 1994

Foto em preto e branco de homem ao lado de um prédio

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Fotografia de Arturo Fuentes (Romero Jacobo, 1994, p. 8).

Figura 2 - Museu de San Cristóbal de   las Casas, sediado no Palácio Municipal, 2024

Pessoas andando em frente a igreja

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Capturada pelo autor, 2024.

 

 

No mesmo dia em que o México ingressava no Tratado Norte-Americano de Livre Comércio em favor do progresso econômico, centenas de homens armados do EZLN (Figura 3), cooperados com indígenas e campesinos, tomaram por assalto os Palácios Municipais de cidades (Figura 4) consideradas estratégicas para os zapatistas. Não tardou para que o exército mexicano cercasse e bombardeasse San Cristóbal de las Casas, além de outros municípios de Chiapas – militarização, aliás, que intensificar-se-ia ao longo da década de 1990 – com a pretensão de retomar o controle político dos municípios (Romero Jacobo, 1994).

 

 

 

Figura 3 - Membros do EZLN uniformizados, 1994

Foto em preto e branco de grupo de pessoas posando para foto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Fotografia de Arturo Fuentes (Romero Jacobo, 1994, p. 31).

 

Figura 4 - Tanque do Exército mexicano, San Cristóbal de las Casas, 1994

Foto em preto e branco de tanque de guerra

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Fotografia de Lucio Blanco (Romero Jacobo, 1994, p. 15).

Embora os conflitos do primeiro semestre de 1994 tenham sido mais intensos, a luta armada do Movimento Zapatista estendeu-se ao longo de mais um ano. Pouco a pouco, seja pelas tentativas de negociação com o Estado mexicano, seja pelo referendo com os indígenas a favor do desarmamento, as armas deram lugar à autonomia. A inspiração estava fortemente amparada na possibilidade de mudar o mundo sem tomar o poder do Estado – perspectiva amplamente analisada por John Holloway anos mais tarde (2003) – por meio da construção de um contrapoder desde as bases sociais. O EZLN integrou-se às comunidades indígenas locais, culminando no conhecido Movimento Zapatista, o qual representou, e continua representando, um grito de dignidade do povo mexicano, reivindicando terra, justiça e liberdade (Dinerstein, 2014, 2015; Dinerstein; Ghiotto; Pascual, 2013).

Ao longo dos seus 30 anos de existência, o Movimento Zapatista deu força para que os pueblos concebessem sua “própria” autonomia por meio de diferentes práticas participativas e tomadas de decisão coletivas. Fruto do levante de 1994 – ainda que os antecedentes deste episódio sejam tão relevantes quanto o são de forma isolada – os pueblos indígenas puderam, finalmente, discutir prioridades com o poder público; construir escolas e hospitais para uso comum; criar espaços para a resolução de problemas que os afetavam diretamente; emancipar-se das relações de violência possibilitando a permanência de seu modo de vida.

Os processos autônomos presentes no Movimento Zapatista levaram à radicalização da democracia nos territórios, tanto no contexto das Municipalidades Autónomas Rebeldes Zapatistas (MAREZ), autodenominadas em 1998 no estado mexicano de Chiapas, quanto pela criação em 2003 dos Caracoles e das Juntas de Buen Gobierno (JBG). Por meio dessas estruturas sociais, o Movimento Zapatista pôde iniciar uma organização autônoma do território e da política local (Dinerstein; Ghiotto; Pascual, 2013; Marcos, 2004).

Em um panorama, a autonomia zapatista pode ser entendida a partir da convergência de, pelo menos, quatro processos: 1) A busca pela autonomia de povos originários, tais como Tzeltales, Tzotziles, Choles, Mams, Zoques, Tojolabals, que resultou em diversas rebeliões ao longo da história mexicana, e atravessou o processo de colonização pela Espanha, desde o século XVI, a Guerra pela Independência do México, no século XIX, e a Revolução Mexicana, ocorrida nas primeiras décadas do século XX. 2) A relevância da influência da religiosidade na percepção da autonomia em Chiapas, uma vez que que o Movimento Zapatista acabou tornando-se a própria realização prática da Teologia da Libertação, cujas origens estão no então bispo de San Cristóbal de las Casas, Samuel Ruiz. 3) A relação do processo de autonomia zapatista com as guerrilhas do EZLN. A partir do contato entre o EZLN e os povos de Chiapas, o Subcomandante Insurgente Marcos encontraria uma nova perspectiva para a organização guerrilheira na luta contra a hegemonia do Estado e das leis, bem como da própria autonomia para o estado de Chiapas. 4) A traição por parte dos governos nacionais mexicanos e de seus partidos políticos. “Essa falta de ‘honra’ ou respeito aos acordos [entre os zapatistas e o Estado mexicano] constituiu uma experiência em que, segundo as palavras de Marcos, se abriram as portas para que a luta pela autonomia se aprofundasse” (Dinerstein; Ghiotto; Pascual, 2013, p. 122, tradução nossa).

 

4 Práticas zapatistas de autodeterminação social

O zapatismo proporcionou diferentes ferramentas pelas quais comunidades regionais do estado de Chiapas puderam se organizar de forma autônoma a partir de práticas de autodeterminação social. Não se trata da centralização das decisões em torno de uma figura zapatista, como seria o caso de uma política desde o Estado, mas de um pensar coletivo sobre o projeto societário que se quer construir. Os caminhos da autodeterminação social zapatista abrangem estruturas para a promoção da participação integrada das pessoas, mas, também, espaços nos quais a vida acontece, seja nas escolas ou nos hospitais criados pelas comunidades zapatistas.

Quanto às formas de autodeterminação social desenvolvidas pelos zapatistas, cabe apresentar um certo histórico da organização político territorial do movimento ao longo de seus 30 anos de existência. O Movimento Zapatista surge organizado por meio de duas estruturas de comando mais definidas, uma com caráter civil, a partir do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena Clandestino – Comando Geral (CCRI-CG), e outra estrutura, de caráter militar, o Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN). A partir de 1998, sua autonomia política ocorreu por meio da criação dos Municípios Rebeldes Autônomos Zapatistas (MAREZ) (Rosset; Barbosa, 2024). No nível municipal e local, as Municipalidades Autónomas Rebeldes Zapatistas operam como instâncias de auto-organização da sociedade civil formadas por comunidades ou povoados de maior proximidade. O conjunto das 38 MAREZ então existentes ocupava cerca de 40% do território do estado de Chiapas, compreendendo mais de 1.100 comunidades rebeldes zapatistas, compostas, cada uma, por uma população entre 300 e 400 pessoas (Dinerstein; Ghiotto; Pascual, 2013).

Desde 2003, organizou-se no Movimento Zapatista um processo de fortalecimento civil, dando origem a comunidades autônomas rebeldes. As novas formas de autogoverno desenvolvidas pelos zapatistas se refletiram na criação dos Caracoles e das Juntas de Buen Gobierno (JBG). Os Caracoles são espaços de organização das comunidades autônomas zapatistas em nível regional. Foram estabelecidos em substituição às Aguascalientes, sendo que em cada uma delas opera um Comité Clandestino Revolucionario Indígena-Comandancia General (CCRI-CG) – considerados os centros de comando do EZLN – e, também, uma Junta de Buen Gobierno (JBG). Assim como eram as Aguascalientes, cinco foram os Caracoles. Em 2019, 11 espaços de autogoverno coletivos e rotativos foram adicionados aos Caracoles, e redenominados para Centros de Resistencia Autónoma y Rebeldía Zapatista (CRARZ) (Rosset; Barbosa, 2021, 2024) (Figura 5).

 

Figura 5 - Estado de Chiapas (México), localização das Aguascalientes

Fonte: Adaptado de Silveira (2016, p. 11).

 

A diferença entre os Caracoles e as Juntas de Buen Gobierno estava na complexidade da participação popular e decisão, embora ambas as instâncias estivessem conectadas entre si e o poder sempre estivesse diretamente no povo. Enquanto nos Caracoles ocorriam os encontros entre as comunidades autônomas indígenas zapatistas, nas Juntas de Buen Gobierno instauravam-se atores, processos e organizações governamentais autônomos para a gestão política no nível regional. As sedes das Juntas de Buen Gobierno ficavam nos Caracoles, mas as decisões tomadas implicavam todas as Municipalidades Autónomas Rebeldes Zapatistas (MAREZ) e demais comunidades compreendidas (Dinerstein; Ghiotto; Pascual, 2013; Espinoza, 2006).

Os Caracoles sempre foram a parte mais visível do Movimento Zapatista, nos quais se manifestavam a organização interna dos povos autônomos de Chiapas, funcionando como caminho de entrada e saída das comunidades autônomas. É o espaço onde se encontravam escolas, salas destinadas para assembleias, áreas de descanso e esportes, centros de saúde, representações das cooperativas zapatistas (Dinerstein, 2015; Dinerstein; Ghiotto; Pascual, 2013).

As MAREZ, junto das JBG e dos Caracoles formavam um processo autônomo de tomada de decisões no interior do Movimento Zapatista. Cada comunidade, cada povoado, nomeava suas próprias autoridades, agentes municipais e membros dos Conselhos Autônomos – as instâncias máximas de decisão no nível local. Por sua vez, era nos Conselhos Autônomos municipais que se realizava a escolha dos representantes para as Juntas de Buen Gobierno, resultando numa composição pluriétnica. As JBG agrupavam, assim, vários municípios, concentrando-se, por exemplo, na administração da justiça, na mediação de conflitos, na outorga de certificados e documentos de identidade. Mas, também, procuravam orientar planos e estratégias econômicas para a região de competência, bem como o esquema de ações com objetivos relacionados à saúde, educação e bem-estar (Dinerstein; Ghiotto; Pascual, 2013; Rosset; Barbosa, 2021).

Essa estrutura de autonomia política e territorial, criada em 1998 e fortalecida a partir de 2003, resistiu a duas décadas por meio de ampla participação na direção da construção de uma democracia de base. Ao final do ano de 2023, os informes oficiais do EZLN trouxeram à público a redefinição de sua estrutura para a autonomia zapatista por meio de Governos Autônomos Locais (GAL), Coletivos de Governos Autônomos Zapatistas (CGAZ) e Assembleias de Coletivos de Governos Autônomos Zapatistas (ACGAZ).

Os Governos Autônomos Locais (GAL), substituindo os Munícipios Autônomos Rebeldes Zapatistas (MAREZ), são a base principal para se estabelecer a autonomia coordenada por agentes e comissários definidos nas Assembleias. Em cada GAL se define o controle do uso dos recursos autônomos disponíveis, tais como escolas, clínicas de saúde, bem como intermedia a relação com pueblos hermanos vizinhos não-zapatistas.

 Os Coletivos de Governos Autônomos Zapatistas (CGAZ), que passam a atuar no lugar das Juntas de Buen Gobierno (JBG), são convocados conforme as necessidades e demandas de um conjunto de Governos Autônomos Locais (GAL). No nível dos CGAZ estão os coordenadores de áreas como saúde, educação, agroecologia, justiça, comércio, entre outras que se requeira atenção.

As Assembleias de Coletivos de Governos Autônomos Zapatistas (ACGAZ) estão vinculadas aos CGAZ, por sua vez, atreladas aos GAL. Os CGAZ podem, desta forma, solicitar a instalação de uma Assembleia com o fim de decidir e deliberar a respeito de um tema específico. As Assembleias possuem como sede os Caracoles, mas podem se movimentar entre as regiões conforme as demandas de cada pueblo (EZLN, 2023; Rosset; Barbosa, 2024).

Essa estrutura hierárquica integrada e participativa, abre espaço para novas autonomias em Chiapas, após anos de amadurecimento, acertos, erros, construção e consolidação. Não se apagou o passado, mas fortaleceram-se dinâmicas autônomas de participação nas decisões sobre e nas possibilidades para o território zapatista.

 

5 Considerações finais

Este artigo procurou vincular as perspectivas teóricas do desenvolvimento regional e da autonomia por meio da análise de algumas práticas de autodeterminação social reveladas pelo Movimento Zapatista, situado no estado mexicano de Chiapas. A análise dos dados e informações sugere que o movimento de redução das desigualdades socioespaciais deve ir além das proposições tradicionais que buscam soluções na dualidade entre Estado e Mercado, uma vez que ambos enfocam uma via única de progresso para as diferentes populações, capitaneada por crescimento econômico. Desse modo, entende-se que “as desigualdades poderão ser extintas se os membros das comunidades regionais recuperarem sua autonomia” (Theis, 2019, p. 355). Fruto desta análise, desenvolvimento regional passa a ser entendido como um campo de estudo que, em termos normativos, impulsiona e reconhece a autonomia e a autodeterminação social presente em distintos movimentos da sociedade civil organizada.

Uma dinâmica social que se estabelece a partir da autodeterminação possui a autonomia como sua manifestação interna, a qual pode ocorrer em variados níveis, a depender da amplitude do autogoverno e das diferentes estratégias. Os graus de autonomia tendem a variar, por sua vez, relativamente à presença quantitativa, social e política de uma comunidade – ou seja, “sua capacidade de pressão, de ameaça, de negociação com o Estado” (Aparicio Wilhelmi, 2009, p. 16, tradução própria).

Nesta direção, indica-se uma alternativa ao desenvolvimento enquanto um processo positivado, cuja estratégia normativa consiste, fundamentalmente, na resistência consciente dos indivíduos sob as condições às quais são submetidos no que diz respeito à relação-capital (Theis, 2022a), cuja dinâmica aparece reiterada continuamente pela assim chamada acumulação primitiva (Bonefeld, 2001; Marx, 1985).

Uma alternativa de resistência consciente dos indivíduos, que impulsione e reconheça a autonomia e a autodeterminação social presente em distintos movimentos da sociedade civil organizada, se fundamenta, assim, numa transformação social desde abaixo (Gutiérrez Aguilar, 2011).

Os resultados da discussão sobre a autonomia zapatista no México permitem revelar conhecimento e sutilezas sobre a constituição do Movimento Zapatista em Chiapas (México), bem como aspectos específicos de sua organização territorial em torno das Municipalidades Autónomas Rebeldes Zapatistas (MAREZ), dos Caracoles e das Juntas de Buen Gobierno (JBG), além dos Centros de Resistencia Autónoma y Rebeldía Zapatista (CRARZ).

Mais recentemente, demonstrando o processo de contínua (re)construção da autonomia, uma série de comunicados oficiais do EZLN trouxe um novo direcionamento para a organização zapatista, por meio do Gobierno Autónomo Local (GAL), dos Colectivos de Gobiernos Autónomos Zapatistas (CGAZ), e das Asambleas de Colectivos de Gobiernos Autónomos Zapatistas (ACGAZ) (EZLN, 2023; Rosset; Barbosa, 2024).

Uma mirada no desenvolvimento regional desde o Movimento Zapatista (México) permite vislumbrar autonomia(s) em construção, pueblos que lutam por autodeterminação social, pertencimento regional, mas, raramente, desenvolvimento – o qual vêm sendo alimentado por estratégias políticas do Estado em conluio com o Mercado.

 

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THEIS, Ivo Marcos. Hic et nunc: qual concepção de desenvolvimento quando se trata de desenvolvimento regional? Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, [Presidente Prudente], v. 24, n. 1, p. 1-23, jan./dez. 2022a. Disponível em: https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202224pt. Acesso em: 02 abr. 2025.

 

THEIS, Ivo Marcos. Uma nova agenda de desenvolvimento regional para a América Latina? In: HERNÁNDEZ, Jorge Luis; CIVITARESI, Héctor Martín; SILVEIRA, Rogerio Leandro Lima da. (org.). Dinámicas territoriales en América Latina: la necesidad de repensar y proponer una nueva agenda de desarrollo regional posneoliberal. 1. ed. Río Cuarto: UniRío Editora, 2022b. p. 248-267.

 

THWAITES REY, Mabel. La autonomía como búsqueda, el estado como contradicción. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2004.

 



[1] QUIVY, Raymond; CAMPENHOUDT, Luc Van. Manual de investigação em ciências sociais. 2. ed. Lisboa: Gradiva, 1998.

[2] CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Artmed, 2010.



[i] Artigo recebido em 22/02/2025

  Artigo aprovado em 10/07/2025

 

O artigo é uma versão ampliada e revisada de artigo que autores apresenaram no “"VII Seminário de Desenvolvimento Regional, Estado e Sociedade”, que ocorreu em Florianópolis, no período de 25 a 28 de setembro de 2024.

 

 

 

 

[ii] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; aquisição de financiamento; investigação; visualização; escrita – rascunho original; e escrita – análise e edição 

 

[iii] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; metodologia; administração do projeto; e Administração do Projeto 

 

[iv] Contribuições da autora: conceituação; curadoria de dados; metodologia; administração do projeto; e Administração