e-ISSN 1984-7246
Canção popular, mercado musical e política no Brasil do século
XXI
Organizadores do Dossiê
Sheyla
Castro Diniz
Universidade de São
Paulo (USP)
São Paulo, SP – Brasil
Tulane
University (TU)
lattes.cnpq.br/2264998924057944
Lucas
Marcelo Tomaz de Souza
Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia
Afro-brasileira (Unilab)
lattes.cnpq.br/6161759843282082
A música popular, sobretudo
a canção, alcançou uma relevância inquestionável no panorama artístico-cultural
e político da sociedade brasileira ao longo do último século. Já foi dito,
aliás, que o século XX é o século da canção[1], o
que, todavia, só se efetivou pois foi também o século do disco[2].
Samba, Bossa Nova, MPB e Tropicalismo, cada qual
ancorado num determinado estágio de desenvolvimento da indústria
cultural/fonográfica durante os anos de 1920 a 1960 – arco temporal concebido
como a expressão de um ciclo vanguardista ou modernista[3] –,
estabeleceram uma espécie de “linha evolutiva”
paradigmática de nossa canção popular, elevando-a entre os pares, o público e a
crítica ao status de intérprete do
Brasil.
Tais gêneros, estilos e/ou movimentos fundacionais balizaram por muito
tempo as pesquisas sobre canção na grande área das Humanidades, o que
naturalmente se relaciona com a problemática do cânone junto à recente
constituição de um campo de estudos sobre a música popular no Brasil. Hoje,
entretanto, já circula um volume significativo de trabalhos sobre canção e
cancionistas situados para além dos anos de 1960 e para além do cânone, embora
este seja não raras vezes incontornável. A canção da década de 1970 tem ganhado
destaque, por exemplo, em pesquisas sobre rock e MPB, contracultura, “música cafona”,
censura, mercado e resistência artístico-cultural à ditadura militar. Análises
sobre a canção da década de 1980 geralmente abordam MPB e redemocratização,
rock nacional, black music, cena punk
e música independente ante a hegemonia das gravadoras multinacionais. E, da
canção que desponta nos anos de 1990 e no início dos anos de 2000, pesquisas
vêm se ocupando do funk carioca, do rap paulistano, do chamado “sertanejo
universitário” e de outras tantas manifestações e “cenas musicais” dentro ou
fora do eixo Rio-São Paulo; temas que conquistaram espaço na academia sob
diferentes perspectivas e metodologias, sendo normalmente cotejados com
marcadores de região, classe, raça ou gênero.
Diagnóstico implícito ou explícito nesses trabalhos, a canção
que vai se delineando pós-década de 1960 incorpora e traduz em sua matéria
musical, social e histórica uma diversidade cada vez mais predominante de
interesses e pautas político-ideológicas num mercado cultural altamente
segmentado, comum à era da mundialização[4].
O novo século expôs ainda mais a fragilidade de um ideário que, por anos, e no
limite conciliador, associou a abundância e a qualidade de nossa música popular
ao horizonte de uma modernização progressista de país[5].
Não por acaso, uma entrevista de Chico Buarque à Folha de S. Paulo, em 2004, acendeu debates já esboçados sobre a
“morte da canção”. Vários estudiosos se pronunciaram para esclarecer o que
estaria nas entrelinhas do insight de
que a canção tal qual a conhecemos, em contraste com as novidades do funk e do rap,
talvez tenha sido um fenômeno do século passado[6].
Mutatis mutandis, obviamente a canção não
desapareceu como forma musical. Pelo contrário: a internet, os sons eletrônicos
e as novas tecnologias de estúdio ou portáteis possibilitaram formas variadas e
descentradas de se fazer canção[7].
Mas o legado da canção de tradição canônica, da qual fez/faz parte um dos mais
icônicos músicos brasileiros, sofreu um abalo em sua função social. Deslocado sob
a emergência de novos movimentos sociais e das identidades fragmentárias, seu potencial de
representação do “povo brasileiro” seria hoje rarefeito senão nulo[8].
Num contexto no qual a “nação” já não detém o monopólio da
organização simbólica do social, para que problemáticas se deslocou, portanto,
o potencial crítico da canção no Brasil do século XXI? Viva e comercializada
sob os mais diversificados gostos e estilos, que condicionantes técnicos,
políticos, mercadológicos, socioculturais e ideológicos orientam suas
transformações? De que modo a canção dos últimos 20 anos materializa ou
decodifica na forma e linguagem as contradições, mudanças, crises e dilemas contemporâneos?
E em que medida aquela “linha evolutiva” reverbera na canção recente de músicos
consagrados ou na canção de músicos que emergiram neste século?
Canção popular, mercado
musical e política no Brasil do século XXI, este dossiê enfrenta parte dessas questões ao
reunir pesquisadoras(es) de diferentes regiões e instituições do país,
vinculadas à Música, à Sociologia, à História, Letras, Comunicação e outros
campos do conhecimento. Os recortes analíticos e enfoques interdisciplinares
sobre canção, mercado e política se somam a uma recente agenda de pesquisa
sobre a música popular deste século XXI, auxiliando-nos a compreender suas
relações com impasses e mudanças pelos quais tem passado a sociedade
brasileira, marcada por fatores como a consolidação da era digital, a
reafirmação do neoliberalismo, a relativa emergência social e simbólica das
minorias e a ascensão da extrema-direita.
Em “Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições
de casa: diáspora africana, orgulho negro e opressão racial em disco de Emicida”,
Adelcio Camilo Machado e Raul Ayrton Franco tomam o álbum como unidade de análise, identificando em cada
faixa aspectos-chave que compõem a narrativa sócio-sonora como um todo: ora
centrada na denúncia e crítica social dos diversos tipos de opressão à
população negra, ora celebrando os legados e símbolos da diáspora africana no
Brasil. Lançado em 2015, Sobre
crianças... reforçaria uma “nova condição do rap” da qual Emicida seria
exemplar. Para os autores, essa nova condição não se explica apenas via
mudanças contextuais, já que, num exercício de análise imanente, é constitutiva
da própria estrutura e linguagem do álbum. Já
Vanessa Vilas Bôas Gatti analisa canções de Alvos da Lei e Trilha Sonora do
Gueto em “‘Os heróis nunca morrem’: a constituição da posição social do rapper no
início do século XXI”. Segundo a autora, há na conduta e prática desses
e outros rappers de São Paulo uma
“missão” implícita herdada de seus precursores: demarcar o pertencimento à
periferia como um lócus de
reconhecimento e legitimidade[9].
Tal conduta reatualizaria uma cisão do rap em relação àquele ideário
progressista também sustentado pelo elogio acrítico à miscigenação.
Em “Táticas de escuta de música nos serviços de
streaming: uma etnografia digital multissituada”, Leonardo De Marchi e Marlon
Câmera Leal Figueiredo dedicam parte do artigo às transformações ocorridas
na indústria fonográfica nos últimos 20 anos para, na sequência, analisarem
dados e entrevistas inéditas de usuários de serviços de streaming em diferentes países. Buscam assim detectar, em diálogo
com noções de Michel de Certeau, que táticas
de escuta de música têm sido adotadas diante das estratégias dos Serviços de Recomendação Automática (SRA) gerados
por inteligência artificial. Tal etnografia digital multissituada aponta caminhos metodológicos para novas pesquisas. Em “A musealização da fonografia
‘plataformizada’: canção popular brasileira como acervo aural no século XXI”, Luiz Henrique Assis Garcia explora
outra problemática inerente à era digital. Que políticas de salvaguarda têm
sido criadas por acervos de tipologias da imagem e do som haja vista a
plataforma streaming como o formato
fonográfico hoje predominante? O autor discute alternativas aos desafios
colocados, realçando, para isso, projeto o “Estéreo MIS”, acervo do Museu da
Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP) que consiste em registrar e
disponibilizar, online, shows e
entrevistas de músicos independentes.
Renato Gonçalves Ferreira Filho trata de música eletrônica, estética queer, crítica social e ocupação do
espaço urbano ao caracterizar “Os
‘corpos em aliança’ nas intersecções entre o coletivo musical Teto Preto e o
contexto da festa Mamba Negra”. Seu artigo pioneiro no assunto nos conduz
ao contexto dessa festa gestada numa São Paulo efervescente em meio às
“jornadas de junho” de 2013. As intersecções com o coletivo Teto Preto, cria
direta de Mamba Negra, são interpretadas à luz da “teoria performativa de
assembleia” de Judith Butler, com destaque para os videoclipes mencionados e
para a articulação entre música, gênero, performance e política. Articulações
semelhantes perpassam o artigo de Jaimeson
Machado Garcia e Ana Luiza Martins. “Cancelamento
e resiliência através da canção: de Carmen Miranda a Karol Conká” aborda
como as duas artistas, sob circunstâncias e pressões diversas, e em momentos bem
distintos de nossa história, responderam através da canção – respectivamente
“Disseram que voltei americanizada” e “Paredawn” – às críticas de seus
respectivos públicos e às tentativas de isolamento midiático.
Assinado
por Lucas Bitencourt Fortes, “Hibridismo
cultural e pedagogias culturais no saravá metal da banda Gangrena Gasosa” mostra-nos
como essa banda carioca, ativa desde os anos de 1990, justapõe universos
aparentemente incomunicáveis ao mesclar hardcore
e heavy metal com uma série de
elementos provenientes de religiões de matriz africana, tudo isso somado a um
tom pedagógico e humorístico no álbum Gente
ruim só manda lembrança pra quem não presta (2018). Por fim, no
artigo “O miasma pelo cômodo: sampleagem e neoliberalismo em Makalister”,
Vinícius de Oliveira Prusch busca
costurar os potenciais elos existentes entre a dicção e as técnicas de montagem
do rap em Makalister, jovem rapper
catarinense, e o avanço do neoliberalismo no Brasil do século XXI.
Nosso dossiê também conta
com “Movimento e transformação: uma
entrevista com o saxofonista Thiago França, por Sheyla Diniz”, e com uma
resenha de Lucas Marcelo Tomaz de Souza para
o livro “Criar um mundo do nada: a invenção de uma historiografia da música
popular no Brasil” (São Paulo: Intermeios, 2019), de autoria de José
Geraldo Vinci de Moraes. A entrevista do músico Thiago França concedida a
Sheyla Diniz evidencia o itinerário artístico, as parcerias, os desafios
profissionais e a linguagem estética desse que é um dos mais representativos nomes
da atual “cena paulistana independente”, conhecido por integrar o aclamado trio
Metá Metá, ao lado da cantora Juçara Marçal e do violonista/guitarrista Kiko
Dinucci, e por idealizar projetos igualmente emblemáticos como a Espetacular
Charanga do França. Já a resenha de Lucas Souza revisita as análises de Vinci
de Moraes, cujo livro é fruto de sua tese de livre-docência defendida na USP em
2017, sobre a constituição de uma historiografia da música popular no Brasil.
Tal processo iniciado há aproximadamente 100 anos por cronistas e memorialistas
incidiu décadas a fio sobre a escrita da história de nossa música popular,
sendo hoje matéria de revisão crítica.
Para nós, organizadores, é imensamente
satisfatório ter reunido esse material agora apresentado como resultado do
dossiê – uma iniciativa motivada por Simpósio de Pesquisa Pós-graduada (SPG) que
coordenamos nas edições de 2022 e 2023 da Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs) – “Canção popular, mercado musical e política no Brasil do século XXI:
transformações, crises e perspectivas de análise”. Reiteramos, aqui,
portanto, nosso empenho em criar espaços de
interlocução, reflexão e divulgação científica sobre objeto de estudos tão
fascinante e não menos desafiador que é a música/canção popular, considerando
ainda sua diversidade e complexidades no Brasil do tempo presente. Esperamos que os artigos, a entrevista e a resenha possam
contribuir com pesquisadoras(es) e demais interessadas(os) no tema. Agradecemos
sinceramente às autoras e autores que nos confiaram seus textos, aos
pareceristas convidados e à equipe editorial da revista Percursos. Boa leitura!
Sheyla
Castro Diniz
Universidade de São Paulo (USP)
Tulane University (TU)
Lucas
Marcelo Tomaz de Souza
Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab)
Organizador/a
[1] TATIT, Luiz. O
século da canção. Cotia: Ateliê, 2004.
[2] MAMMÌ, Lorenzo. “A era do disco”. In: A
fugitiva: ensaios sobre música. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
[3] Ver
RIDENTI, Marcelo. “Cultura e política nos anos
1970: o fim do ciclo das vanguardas no Brasil”. In: SARTI, I. (org.). Ciência,
política e sociedade: as Ciências Sociais na América do Sul. Porto Alegre:
Sulina/Ed. UFRGS, 2007, p. 161-166; e NAPOLITANO, Marcos. “Arte e política no
Brasil: história e historiografia”. In: EGG, A.; FREITAS, A.; KAMINSKI,
R. (orgs.). Arte e política no Brasil: modernidades. São Paulo:
Perspectiva, 2014.
[4] Ver ORTIZ, Renato. Mundialização
e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2007; e NICOLAU NETTO, Michel. Música brasileira e identidade nacional na
mundialização. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2009.
[5] WISNIK, José Miguel. “Global e mundial”. In: Sem
receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.
[6] Ver BARROS E SILVA, Fernando. “O fim da canção (em
torno do último Chico)”, Serrote, São
Paulo, n. 3, nov. 2009; e NOBRE, Marcos; ZAN, José Roberto. “A vida após a
morte da canção”, Serrote, São Paulo,
n. 6, nov. 2010.
[7] DAVINO, Leonardo. Sujeito cancional:
verbivocoperformance poética contemporânea, Ipotesi,
Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 87-100, jan./jun., 2016.
[8] DINIZ, Sheyla Castro.
“MPB (Música Popular Brasileira)”. In:
CLARK, W. (org.). Grove Music Online:
Ibero-Latin
update Project. 1.º
ed. Oxford: Oxford University Press, 2024, p. 1-4.
Disponível online em 24 de
janeiro de 2024: https://doi.org/10.1093/omo/9781561592630.013.90000381979.
Acesso em 20 nov. 2024.
[9] Ver, também, CAMARGOS,
Roberto. O rap no Brasil: a periferia
com o poder da palavra (1988-2015). Teresina: Cancioneiro, 2024.