Caixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246    


“Onde se encobre a miséria e estado desgraçado do país”: Antônio Muniz de Souza e as máximas para viajantes no Império do Brasil (1843)[i]

 

 

Magno Francisco de Jesus Santos

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Natal, RN – Brasil

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 orcid.org/0000-0002-2218-7772  

magno.santos@ufrn.br  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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“Onde se encobre a miséria e estado desgraçado do país”: Antônio Muniz de Souza e as máximas para viajantes no Império do Brasil (1843)

 

Resumo

Antônio Muniz de Souza (1782-1857) foi um letrado negro nascido no antigo norte do Brasil e que ao longo da primeira metade do século XIX viajou pelos sertões do Império. Fruto dessas experiências como viajante, ele publicou em 1843 o livro “Máximas e Pensamentos”, obra na qual apresentou algumas orientações para a conduta de homens que tivessem o interesse em viajar pelo país. A partir da mobilização dessa fonte historiográfica, este artigo tem como cerne a compreensão do letrado negro no que diz respeito ao papel atribuído aos viajantes em um país que estava em processo de construção de sua autonomia.

 

 

Palavras-chave: Antônio Muniz de Souza; províncias do norte do Brasil; viajantes; século XIX; sertão.

 

 

 

“Where the misery and disgraced state of country are hidden”: Antônio Muniz de Souza and the maxims for travelers in the Empire of Brazil (1843)

 

Abstract

Antônio Muniz de Souza (1782-1857) was a black letter born in ancient Brazil and who, throughout the first half of the 19th century, traveled through the backlands of the Empire. As a result of these experiences as traveler, in 1843 he published the book “Maxims and thoughts”, a work in which he presented some guidelines for the conduct of men who were interested in traveling around the country. Based on the mobilization of this historiographical source, this article has at its core understanding the conception of black letter regarding the role attributed to travelers in a country that was in the process of building its autonomy.

 

 

Keywords: Antônio Muniz de Souza; provinces in northen Brazil; travelers; XIX century; backlands.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 Introdução

Não é o romantismo do século, que coberto com as vestes da opulência (onde se encobre a miséria, e estado desgraçado do país) o que se vê nas páginas deste opúsculo. São reflexões de um homem, que entranhando-se pelas nossas matas presenciou as maravilhas da natureza, e que praticando o que escreve reconheceu por necessidade aquilo que fez por experiência (Rego, 1843, p. I, grifo próprio).

 

Este artigo inicia com as palavras de Manuel Gaspar de Siqueira Rego, proprietário e editor da Tipografia Niteroiense. A assertiva do editor elucidava as contradições entre o século do romantismo, vestido em opulência que velava a pobreza de um jovem país e a atuação de um viajante, despido do reconhecimento acadêmico e que escrevia a partir de suas experiências construídas no entranhar-se pelos sertões do Brasil. Essa antinomia mobilizada para intitular este artigo também sintonizava as incogruências entre as cidades do litoral e o desconhecido mundo dos sertões no interior de um jovem Império. A ambiguidade aludida no parágrafo de abertura da introdução do livro “Máximas e Pensamentos”, publicado pela Tiporagrafia Niteroiense nos idos de 1843, explicitava que o mencionado livro emergia como uma escrita marginal, dotada de uma matéria pouco usual, elaborada sob a pena de um letrado negro forjado nos sertões do antigo norte do país. Era um Brasil apresentado por um homem da terra, que alí havia nascido e dali percorreu o périplo pelas “matas” do país.

Pautado nessas considerações do escrito oitocentista, neste artigo tenho como escopo analisar a compreensão de Antônio Muniz de Souza, um letrado negro oitocentista, no que diz respeito ao papel atribuído aos viajantes em um país que se encontrava em processo de construção de sua autonomia. Para isso, mobilizo como fonte central o livro “Máximas e Pensamentos”, publicado nos idos de 1843 e que registrava os saberes praticados “em suas viagens pelos sertões do Brasil desde 1812 até 1840”. De acordo com a introdução escrita pelo editor:

 

Assim, dando a ellas publicidade, quase nas palavras do seu Autor, para não perder sua originalidade, fazemos um serviço àqueles, que talvez sem experiência, projetem viagens sem saberem os trabalhos, que se antolharão, sem meditar naquilo que deve seguir para colher bom fruto de sua empresa (Rego, 1843, p. I).

A introdução escrita pelo editor alude a duas características que diferenciavam o material a ser publicado, como a escrita pautada quase na versão original do autor e a potencialidade de servir como um guia para novos aventureiros que almejavam deslocar-se pelo país. O livro era apresentado como a súmula explícita do letrado, com a revelação da escrita ainda desprovida de revisões e que sinalizavam para as precárias condições de formação do viajante. O livro era revelador da precária condição econômica do autor, que de alguma forma, sinalizava as contradições de um país que de um lado revela-se pungente e do outro trazia grande parte da população em situação de miséria. O valor atribuído ao livro era devedor da experiência, das ideias gestadas pelos deslocamentos e pouco apuradas academicamente. De acordo com Ubiratan Castro de Araújo, ao apresentar a terceira edição do livro mais famoso de Muniz de Souza, “Viagens e observações de um brasileiro”, o letrado nortista trazia como principal caráter inovador o seguinte fato:

 

Foi um viajante brasileiro pelo seu olhar brasileiro. A paixão pelo interior do Brasil que marcou a sua vida orientou o seu olhar de um observador que reconhecia não ter a formação científica de uma (sic) naturalista, nem a formação humanística de um bacharel, mas se agarrava firmemente à deliberação de ser útil a seu país (Araújo, 2000, p. 9).

 

De acordo com o apresentador, nas páginas escrita por Antônio Moniz de Souza eclodiam as paisagens do interior do Brasil. Um país revelado pelo olhar de um brasileiro. Um país visto por dentro, por alguém nascido nos sertões. Assim, ao considerar esses aspectos que perpassam a escrita de Antônio Muniz de Souza, um brasileiro que possibilitava revelar o interior de seu país entre os letrados, penso ser pertinente mobilizar essa obra como uma fonte reveladora da concepção de nação tecida por um homem de letras do Brasil ainda na primeira metade da centúria oitocentista.

Para empreender a análise aciono como fonte o livro “Máximas e Pensamentos” publicado em 1843 e traz apontamentos destinados aos viajantes nacionais a partir de suas experiências vivenciadas ao longo de três decênios. Essa fonte foi cotejada por outras informações atinentes ao letrado, como notícias publicadas em jornais e outros escritos, publicados anteriormente. Além disso, também mobilizei as informações oriundas de escritos biográficos do sujeito, produzidos por autores oitocentistas como Saturnino de Souza e Oliveira, Sacramento Blake e Sílvio Romero.

Esse conjunto documental permite entender os deslocamentos do letrado negro brasileiro pelo interior do país, assim como, também possibilita pensar como ele teceu uma leitura comum de passado e um projeto compartilhado de futuro. Neste sentido, cabe pensá-lo a partir da concepção de cultura política tecida por Serge Berstein (1998), que instiga a discutir o político além da dimensão política-partidária. No caso de Antônio Muniz de Souza, temos um sujeito que realizou suas viagens pelos sertões brasileiros em um contexto marcado pelas guerras de independência e nos primeiros decênios posteriores à conquista da soberania. De algum modo, os seus escritos são reveladores de uma concepção de nação e também denunciavam os descasos com a população, notadamente, com os letrados que empreendiam viagens de reconhecimento do território.

Para empreender essa discussão, estruturei o texto em dois momentos. No primeiro, parto dos escritos biográficos da segunda metade do oitocentos e dos primeiros decênios do século XX para discutir os deslocamentos do sujeito pelo interior do Império do Brasil e assim, possibilitar entender quais espaços foram aferidos como sertões. No segundo momento discuto as recomendações aos viajantes no livro “Máximas e pensamentos”. Em tais recomendações, tornou-se possível entender a concepção de nação.

 

2 O viajante que tantos sertões rompeu

Antônio Muniz de Souza, conhecido como “O Homem da Natureza”, foi um letrado que nasceu na capitania de Sergipe nos idos de 1782 (Guaraná, 1925). A sua origem familiar é da Freguesia de Nossa Senhora dos Campos do Rio Real, localizada nos sertões limítrofes com a Bahia. De acordo com Sílvio Romero, “digna de apreço pelo seu valor intriseco, é a terra sergipense, e se dentre nossas gentes se deixam notar pela vivacidade de inteligência, os sergipanos figuram entre elas por direito de conquista” (Romero, 1899, p. V).

Um dos principais intelectuais brasileiros do final do século XIX, Sílvio Romero discorreu um breve perfil das contribuições de Antônio Muniz de Souza, traçando-o como um dos precursores do pensamento sergipano. Em suas palavras:

 

Dotados de gênio musical e de gênio lírico, os sergipanos em todos os tempos deram provas de talento e de ótimas qualidades de espírito e de caráter. Na vila de Campos, desde fins do século passado o famoso Philosopho da natureza – Antonio Moniz de Souza, bisavô de Tobias Barreto e parente do célebre repentista baiano Francisco Moniz Barreto, entregou-se a curiosas viagens e investigações científicas (Romero, 1899, p. VI).

 

Por tais circunstâncias, Antônio Muniz de Souza, conterrâneo de Tobias Barreto, foi equivocadamente apresentado como bisavô do filósofo Tobias Barreto de Menezes. Todavia, Sílvio Romero não apresentou nenhuma fonte que sustentasse essa assertiva, que se mostra pouco verossível, tanto pela proximidade temporal entre os dois autores, como também pelo fato de Antônio Muniz de Souza ter deixado a sua terra natal ainda no princípio do século XIX e ter ido viver em Niterói. Possivelmente, esse parentesco partiu de um esforço em evidenciar o filósoso brasileiro como herdeiro de um tronco familiar de cientistas e, o fato de ambos terem em comum a condição de não serem brancos.

Apesar ter contribuído de forma significativa com os fazeres científicos no Brasil na centúria oitocentista (Andrade, 2017; Santos, L. 2008; Santos, M. 2020), os dados biográficos acerca de Antônio Muniz de Souza ainda são consideravelmente escassos e dispersos. Além disso, os seus escritos também se encontram pulverizados em jornais e manuscritos salvaguardados em instituições como a Biblioteca Nacional e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (Bittencourt, 1913). Como de forma pertinente Lira Neto nos lembra, os vestígios disponíveis “são inevitavelmente falhados, restolhos parciais de um todo que se perdeu para sempre, outra não é a situação com que se encontra o historiador” (Lira Neto, 2022, p. 75).

Desse modo, pensar acerca da trajetória de Antônio Muniz de Souza implica em vasculhar os velhos escritos perdidos nas páginas amareladas e quebradiças dos impressos oitocentistas. Em tais escritos, a figura do letrado é tecida como uma pintura. Em meados do século XIX, emerge em cores vívidas, em uma tela que expressa um sujeito afeito ao bem, marcado pela religião e civismo. É uma tela que ilumina a figura central do sujeito retratado e deixa as bordas na penumbra, com parcas informações sobre as redes de sociabilidade e, notadamente, do seio familiar. Um retrato que possibilita enxergá-lo em sua condição de homem negro. Com o deslocar do tempo, a pintura galga novos contornos, ofuscando o sujeito e tornando-se borrada, como se revelasse um espectro. Na trama do tempo, o personagem parece diluir-se, apagando-se a sua imagem e emoldurando pinceladas por vezes distorcidas, ora como homem de elite, ora como homem branco (Santos, 2022). A nota biográfica tecida por Sílvio Romero em 1899 é um sinal desse efeito de miragem.

As primeiras informações biográficas de Muniz de Souza estão no livro inaugural do autor, no capítulo autobiográfico intitulado “Esboço da vida do Auctor desta obra apelidado por seus amigos – O homem da natureza brasileira”. Trata-se de um texto que busca apresentar à nação brasileira o viajante que já havia percorrido grande parte do território nacional e que passava a discutir sobre os seus problemas e possíveis soluções. Neste texto autobiográfico ele diz:

 

Antonio Muniz de Souza nasceu nas margens do Rio Real de Nossa Senhora dos Campos, termo da Vila do Lagarto, pertencente então à Província da Bahia, hoje à de Sergipe. Seus pais, também naturais do mesmo lugar, viviam da cultura da sua herança, e criação de gado, e sem outro horizonte, que o lugar de nascimento; sem outra esfera intelectual, que a superstição religiosa e política daquela época, criavam os filhos na mesma primitiva ignorância, felizmente combinada com a inocência dos costumes e boa moral prática (Souza, 1834, p. 8).

 

A escrita autobiográfica de Muniz de Souza elucidava a sua origem em um espaço limítrofe, entre a Bahia e Sergipe, além de elucidar os parcos recursos de uma família que vivia da pecuária. Essa condição de viver no limiar não se restringia ao espaço administrativo do antigo Estado do Brasil. Ela também se fazia presente nas ambivalências morais dos sertões. Com isso, tinha-se um espaço marcado pela ausência de instrução, fato que corroborava para a propagação de costumes tidos como supersticiosos e que se tornaram o pilar da formação familiar. Nos sertões adentro, encobria-se a miséria do país por meio da impossibilidade de instrução dos rebentos. As dobras do território incobria qualquer esfera intelectual. Tinha-se também a inocência de costumes e “boa moral”, que eram tecidas por uma dimensão prática da vida. O “bem” era apresentado como uma virtude que não teria sido propagado pelas letras, mas pela vivência.

É importante ressaltar que esse escrito partia da premissa de explicitar a propensão do autor para o mundo intelectual, “por meio do desenvolvimento do espírito”, em contraponto com a rudeza do espaço que o impossibilitara de cumprir com o seu desígnio. De algum modo, ele buscava justificar a ausência de uma formação escolar, pois, “na rudeza dos exercícios campestres, os anos, mais preciosos da sua adolescência, apagando-se quase totalmente aquela primeira voz que lhe apontara destinos mais dignos de um ente inteligente” (Souza, 1834, p. 8).

Essa rudeza acionada para designar o espaço de sua infância foi retomada em diferentes momentos de sua escrita. A Freguesia de Nossa Senhora dos Campos do Rio Real, foi apresentada como o espaço do atraso e da violência. Essa situação de desgraça não era inata dos sertões, mas um mal trazido pelos poderosos. A miséria dos sertões era resultante da violência carregada pelos homens do poder. Assim como outros interiores do país:

 

Os habitantes das Cidades do Brasil não sabem, se não por fama, até onde chega a impunidade e influência de certos homens poderosos nas campanhas e sertões; porém os camponeses e sertanejos, vítimas dos atentados destes pequenos déspotas, teriam longas e lastimosas histórias, que lhes contar, de todos os excessos, e atos de opressão e de crueldade destes Catilinas em ponto pequeno, que por sua audácia, ou riqueza conglobam ao redor de si os facinorosos, ladrões e malvados de toda a espécie e cometem à salvo assassínios, estupros, roubos e crimes lhes passam pela cabeça (Souza, 1834, p. 9).

 

Os sertões tecidos pela pena de Antônio Muniz de Souza emergiam como uma oposição à cidade brasileira. Era pensado como o espaço da violência, à margem da lei, marcado pelo abuso de poder dos homens que possuíam riquezas. Uma condição diametralmente oposta à condição de sua família. Isso sinaliza para outras camadas que perpassavam a construção de uma leitura atinente ao sertão. Ele não seria um espaço uníssono, linear e coeso. Ao contrário, constituía-se de inúmeras camadas complexas, marcardas por aspectos contraditórios que só poderiam ser entendidos a partir da consideração de outras instâncias, como a condição econômica dos sujeitos, gênero e instrução. Aquelas plagas, constituíam uma zona de tensão, de confronto de entre grupos antagônicos e por isso não forneciam a Antônio Muniz de Souza “bastante largueza para se desenvolver, além disso ele tinha esgotado na pofiada contenda, os seus cabedais e arruinado a sua saúde” (Souza, 1834, p. 11).

Ao sair de seu torrão natal, Antônio Muniz de Souza realizou um périplo pelos sertões do antigo norte do Brasil. Como foi expresso pelo biógrafo Saturnino de Souza e Oliveira, ele deslocou-se pelo interior brasileiro como um verdadeiro peregrino (Oliveira, 1850, p. 2-3). Pautado na premissa de que “o espaço é um lugar praticado” (Certeau, 2007, p. 202), torna-se possível mensurar como os seus escritos refirmavam possibilidade de os sertões serem conhecidos pelo mundo urbano do litoral. Os itinerários percorridos por Muniz de Souza podem ser observados por meio do quadro I:

 

Quadro I - Deslocamentos do Homem da Natureza pelos sertões

Ano

Lugares visitados

Motivações

1782 a 1808

Freguesia Nossa Senhora dos Campos do Rio Real

Localidade de nascimento

Final do século XVIII

Fazendas de gado

Enviado pelo pai para afastá-lo dos estudos

Início do século XIX

Freguesia dos Campos

Passou cinco anos no comércio e depois tornou-se capitão

1807

Viagem para Portugal

Intento de defender Portugal da invasão francesa

1807

Itamaracá

Naufrágio da embarcação, do qual ele ficou com enfermidades, inclusive, surdo.

1807

Rio de Janeiro

Tornou-se Donato do Convento Santo Antônio

1807

Capitania de São Paulo

Viagem que durou 9 meses, acompanhando o Provincial Frei Antônio de Santa Úrsula. Em decorrência da viagem adquiriu reumatismo.

1808

Convento Santo Antônio do Rio de Janeiro

3 meses na enfermaria. Leu os livros de Frei Velloso na biblioteca do convento

1812

Saiu do convento

 

1812

Bahia

Viagens pelas matas do recôncavo para colher material para venda

1815

Bahia

Contato com povos originários

Maio de 1817

Sertões da Cachoeira, de São Estêvão de Jacuípe, Camisão, Orobó e Jacobina

Retornou em dezembro e apresentou-se ao Conde dos Arcos

1818

Proposta para estudar botânica na Europa

Não realizada por problemas de saúde e idade avançada

Maio de 1818

Sertões da Bahia

 

1813 a 1819

Sertões

Encomendas do Dr. Paiva

1820

Capitanias do norte

Viagem ao Pará

1822

Província de Alagoas

Sofreu violência na revolução

1823

Províncias de Sergipe e Bahia

Saiu do porto da Rede e desembarcou na Torre

1823

Mata de São João

13 meses para cuidar da saúde

1824

Da Bahia ao Rio de Janeiro

Pelos sertões de Minas

1827-1828

Vila de Campos dos Goitacazes

viagem entre a Bahia e o Rio de Janeiro

1828

Campos e Muriaé

Contato com povos originários

1833

Rio de Janeiro

Publicou o primeiro volume de seu livro

1840

Cachoeiras do Macacu

Casou-se com Maria Firmina de Abreu Rangel

1842

Cachoeiras do Macacu

Administrou a fazenda por dois anos

1845

Chácara no campo de São Bento em Niterói

 

1857

Niterói

Faleceu em sua chácara Santa Rosa

Fonte: GUARANÁ, 1915; SANTOS, 2020; SOUZA, 1832, 1846.

 

Em tais viagens Antônio Muniz de Souza compilava artefatos da natureza brasileira para serem vendidas aos médicos e farmacêuticos que viviam em Salvador e no Rio de Janeiro, ou para serem doados a instituições como o Museu Nacional. Desse trabalho hercúleo, ele teve pouco reconhecimento e muito reclamou da ausência de chancela oficial das instituições científicas ou do fomento do poder público às suas empreitadas. Um indício de uma tímida homenagem aos feitos do viajante brasileiro foi a aquisição de um retrato em busto que ficou exposto no Museu Nacional e que integrou o acervo da Classe Retratos, estátuas e bustos” que foram apresentados na Exposição de História Nacional de 1881. De acordo com o catálogo da exposição, publicado nos Anais da Biblioteca Nacional, a pintura foi exposta entre os “retratos avulsos”, contando da referência: “18452 – Antonio Muniz de Souza, apelidado ‘O homem da natureza brasileira’; em busto. Pintado a óleo por Anon. S. d. Exp. Museu Nacional” (Classe [...], 1881, p. 1546).

Se no âmbito institucional Antônio Muniz de Souza recebeu pouco reconhecimento, por outro lado, ainda em vida os amigos contribuíram para construir uma representação na qual ele era inserido entre os “bem poucos se dedicam ao bem” (Oliveira, 1850, p. 2). Saturnino de Souza e Oliveira foi o responsável pela construção biográfica que potencializava o homem diante de seu espaço hostil:

 

O Sr. Antonio Muniz de Souza, que pela simplicidade de seus costumes, pela sua linguagem sincera e franca, mereceu o nome de homem da natureza, é um desses entes raros cuja missão no mundo parece ser unicamente de derramar o bem, o bem físico e o bem moral: em uma palavra. O Sr. Muniz é uma prova visível de que há homens que foram feitos à imagem e semelhança de Deus.

Nascido na província de Sergipe, desde a mais tenra idade ele amou a natureza, como a ama todo o coração bem formado. Dotado de um espírito claro, de um gênio indagador, começou a estudar a anatureza, não com os olhos de um naturalista, mas somente para conhecê-la.

Foi uma infelicidade que o Sr. Muniz não tivesse podido receber uma educação científica, porque seria hoje uma das nossas notabilidades; mas que educação poderia ele receber em uma província pouco culta? (Oliveira, 1850, p. 2).

 

A descrição biográfica parte da premissa de apresentá-lo como um homem simples, desprovido de educação formal e desprovido da etiqueca vigentes nos grandes centros. Ele seria um sujeito à margem do mundo tido como civilizado, encontrando-se inserido nos quadros naturais. Neste sentido, o epíteto “homem da natureza” galga outra roupagem: não seria somente o fato dele conhecer a natureza brasileira, mas também seria revelador ele a integrá-la. Neste aspecto, o bem, atrelado à figura do naturalista estaria correlata a sua condição de um homem que cresceu em espaço tido como inóspito, à margem da sociedade urbana, ou seja, atrelada à inocência. Ao ter nascido nos sertões, em uma província tida como inculta, ele revelava as misérias da nação, as desgraças de um jovem país que não atendia ao anseio de jovens que vislumbravam adentrar os meandros da ciência. A ausência de espaços de formação fazia com que a névoa da ignorância encobrisse o horizonte da nação. Muniz de Souza é apresentado como um sujeito no limiar entre o civilizado (em decorrência de sua propensão aos fazeres científicos e ao caráter religioso) e o “bom selvagem rousseniano”. Por isso, o biógrafo o apresentou como dotado de instintos:

 

O Sr. Muniz, dotado do instinto do bem, tentou peregrinar pelos sertões das nossas províncias do Norte, a fim de arrancar-lhes esses segredos que aliviariam tantas dores, que restituiriam à vida tantos entes úteis. Durante 28 anos, ele percorreu os sertões em busca destes precisos medicamentos, sofrendo todo o gênero de privações, de misérias e de perigos.

O que os naturalistas têm feito por amor da glória, o Sr. Muniz o fez por amor do bem. Aumentou a matéria médica brasileira com muitos vegetais cujas virtudes eram desconhecidas; fez coleções zoológicas e mineralógicas, com as quais presenteou o Museu Nacional e a muitas pessoas gradas; mas não se limitando somente a isto, ele procurou colher todas as matérias que pudesse ter alguns préstimos pelo seu uso nas artes ou como objetos comerciais.

Na sua longa peregrinação, o Sr. Muniz não teve somente em vista o bem físico dos homens, mas também moral. Ele serviu de catequisador, de apóstolo aos índios, de missionário a essas raças mestiças que povoam os sertões; raças semibárbaras, que reúnem aos vícios do selvagem grande parte dos vícios da civilização (Oliveira, 1850, p. 2-3).

 

Essa assertiva elucida os deslocamentos biográficos na edificação de um herói tecido entre a ciência e a inocência, entre a “civilização” urbana e a “bárbarie” indígena. A monumentalização do letrado ocorreu por meio da dimensão católica, como um sujeito afeito ao bem físico e moral, com a inserção entre os homens que haviam peregrinado pelos sertões, que haviam se tornado catequisador na conversão das populações sertanejas, um missionário responsável pelo transitar entre o litoral e o interior.

É justamente nessa construção biográfica que Saturnino de Souza e Oliveira revela os contornos morais e físicos de Antônio Muniz de Souza. No primeiro caso, elucida a dimensão religiosa do sujeito. O biógrafo alega ter adentrado “nestes pormenores para mostrar quais são os princípios religiosos do Sr. Muniz, princípios aliás inseparáveis de todo homem que ama a natureza como obra do Criador e a origem de toda a beneficência” (Oliveira, 1850, p. 3). No segundo caso, ele elucida o posionamento de Muniz de Souza em defesa do fim da escravidão e transcreve uma matéria que ele teria publicado no “Auxiliador da Indústria Nacional” em 1849. Um texto que revelava a sua condição de homem negro e que condenava a escravidão:

 

Estes entes que o Sr. Muniz e sua senhora introduziram no grêmio da sociedade civil, compem-se de QUATRO MOÇAS E CINCO RAPAZES, alguns ainda mais brancos do que seu próprio senhor. Mas o Sr Muniz, considerando-os como se fossem seus próprios filhos, não quis abandoná-los no meio do mundo, onde a sedução e os vícios nulificaram um tão grande benefício (Souza, 1849, p. 3).

 

Essa condição de homem de letras e negro, contrário à escravidão no país e defensor da construção de políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de vida da população do interior do Império do Brasil possui uma trajetória que exemplifica a complexidade social dos sujeitos oitocentistas (Santos, 2022). Era um homem que “ainda moço recebeu em herança paterna alguns escravos; partilhando uma grande parte dos prejuízos vulgares que ele”. Tratava-se de um sujeito que viveu na fronteira entre a liberdade de ser proprietário rural e a hostilidade de encontrar-se em uma sociedade escravista.

Recluso e desprovido de apoio dos cofres públicos para empreender novas empreitadas pelos sertões brasileiros, ele faleceu em Niterói, no dia 18 de setembro de 1857. O impresso “Jornal do Commercio” divulgou a seguinte nota:

 

Falecimento – Faleceu ontem, e sepultou-se no cemitério de Maruí de Niterói, o Sr Antônio Luiz de Souza, conhecido pelo homem da natureza brasileira, e autor de uma viagem aos sertões do Brasil. Vivia ultimamente retirado ao seio de sua família, em sua chácara de Santa Rosa, na capital da província (Fallecimento, 1857, p. 2).

 

O homem que se deslocou pelo interior do país e publicou o relato de suas viagens também preparou material para guiar outros sujeitos interessados em aventurar-se pelo Brasil. Saturnino de Souza e Oliveira informou:

 

Também correm impressas algumas máximas singelas deste homem notável. Estas máximas podem não merecer a atenção dos homens de letras por não serem fruto das locubrações de um literato; porém o homem honesto achará nelas excelentes regras de conduta (Oliveira, 1850, p. 3).

 

Ao aludir para o valor academicamente secundário do livro “Máximas e pensamentos”, Saturnino de Souza e Oliveira reafirmava a sua utilidade para orientar homens “honestos”. Neste sentido, cabe ajuizar quais eram essas contribuições presentes no escrito de Muniz de Souza.

 

3 As máximas para a conduta do viajante

Publicado em 1843 em decorrência do auxílio que recebeu de amigos que viviam em Niterói, na província do Rio de Janeiro, “Máximas e pensamentos” era um livro dedicado à orientação de novos viajantes desejosos de aventurar-se pelo país. O editor da Tipografia Niteroiense assim o definiu:

 

São máximas de condutas pertencentes à moral, para vivermos entre nossos concidadãos em boa harmonia, é o guia não só do viajante que percorre diversas terras, como de nós todos que somos verdadeiros viajantes, que viajamos neste mundo (Rego, 1843, p. II).

 

No entendimento do apresentador, a obra era destinada ao qualquer cidadão, pois mesmo partindo da premissa de ser um guia para os viajantes, todos os humanos poderiam ser vistos como viajantes no mundo. O editor niteroiense remetia à condição de que viver implicava em realizar uma viagem, em deslocar-se pelas experiências. Com isso, em um contexto de construção da identidade nacional em um país que acabara de celebrar os vinte anos de soberania, o livro lançado era tido como uma contribuição à pátria:

Nós publicamos estas reflexões com o fito unicamente de sermos úteis a nossos concidadãos, não nos molestando dos gritos dos satíricos, porque para esses as melhoras obras são todas filhas da ignorância.

Com estas máximas colheu nosso patrício feliz resultado, e utilidade para sua Pátria, e amizade dos estrangeiros, como de seus compatriotas, de quem recebeu o horonso título de Homem da Natureza e aos quais por gratidão oferece e dedica estes toscos pensamentos (Rego, 1843, p. III).

 

Rego reportava à condição do autor como dotado de pouca instrução, que produziu de forma crua o seu pensamento pautado exclusivamente na observação direta da natureza e assim corroborava para fomentar o sentimento patriótico. Ele também remetia aos elogios e redes de amizades construídas por Muniz de Souza tanto entre os estrangeiros, quanto entre os nacionais. O homem da natureza que havia realizado as suas “peregrinações pelo interior do Brasil”, desprovido de recursos e dotado apenas da “generosidade e coração de Peregrino” (Rego, 1843, p. V). O opúsculo também expressava o ajuizamente acerca das viagens:

 

O corajoso viajante que tantos sertões rompeu, e tantas fadigas e perigos afrontou, para descobrir preciosidades dos três reinos com que dotasse sua Pátria, e para se habilitar a ser, perante a consciência, advogado do miserável Índio, que o bafo devorador da nossa civilização aniquila do indefeso proletário, que os magnates esmagam, do pobre preto que com o intolerável trabalho arranca do seio da terra toda a riqueza que a imoralidade e o desgoverno esbanjam à porfia. Ele não franqueou no desempenho dessa evangélica missão, e enquanto a idade consentiu, alçou sua voz a favor das classes sacrificadas. Mas hoje a velhice o alcançou, e para fechar a sua longa carreira de dedicação e serviços, deixa aos poucos que o amor à natureza e à humanidade determinar a seguir as suas pisadas, os conselhos de sua experiência e o exemplo de suas virtudes. Tudo o quanto ensina foi por ele praticado (Rego, 1843, p. V-VI).

 

A escrita do prefácio reafirma a condição de Antônio Muniz de Souza como um herói que se aventurou por espaços quase inóspitos, que exigiam sacrifícios e determinação. O epíteto de peregrino para desegnar o vijante não remetia somente à ideia de deslocamento pelos espaços, mas reafirmava a dimensão religiosa desse palmilhar por outras plagas como um ato de sacrifício, de abnegação de si em prol do outro, do desconhecido, de homens e mulheres que se viam alhures, esquecidos por todos. Muniz de Souza evidenciou quais aspectos deveriam orientar o candidato à viajante:

 

O homem que deixa o seu país; e que armado do bastão de peregrino, passa a percorrer diversos países, deve ter paciência, constância e perseverança: os homens sábios devem ser aqueles a quem se dirija, porque estes o podem instruir; esforçar-se para arredar de si a imoralidade e implorar aos Céus o seu auxílio, deve ser uma das primeiras necessidades do viajante [...]. O sustento do viajante deve ser a esperança de conseguir vantagens para a humanidade [...], seu interesse o bem público, sua sorte a da Pátria, os gemidos desta a sua dor, a felicidade dos homens a sua glória (Souza, 1843, p. 1).

 

Muniz de Souza apresentou o ofício de viajante como um ato patriótico (Santos, 2020, 2022). Mais do que uma aventura por novas veredas, o deslocamento consistia em uma ação de promover o reconhecimento das riquezas veladas da nação, auxiliar a população que se encontrava a mercer do poder público. Para ser viajante, no entendimento de Muniz de Souza, tornava-se salutar exercitar o altruísmo, perseverar o bem comum. Para isso, ao estar com o bastão de peregrino deveria-se evitar o envolvimento em querelas políticas, buscando alojar-se em “lugar livre dos tumultos, onde não reine a intriga” (Souza, 1843, p. 1).

O roteiro traçado pelo escritor para o viajante destoava do que era efetivado por líderes políticos em viagens oficiais. Para Antônio de Souza os primeiros lugares a serem visitados deveriam ser os templos, as casas de caridade, misericórdias e cadeias. Tratava-se dos espaços institucionais para onde eram levadas as pessoas por “suas fragilidades e misérias. No templo, o viajante deveria render graças pelo êxito da jornada. Nas casas de caridade, comuns no Brasil oitocentista, eram destinadas aos enfermos, abandonados e flegelantes. Já as santas Casas de Misericórdias eram os espaços hospitalares, situados principalmente, nos grandes centros urbanos. Por fim, as cadeias públicas, situadas em praticamente todas as vilas do país, que abrigavam a população detenta.

Se para ser viajante implicava em experenciar as privações, o reconhecimento dos núcleos urbanos perpassava pelo encontro com os reclusos, enfermos, detentos. Viajar possibilitava encontrar o excluído. Uma oportunidade de encontrar a miséria do Brasil. Era um ato de penitência. No entendimento do autor, “para bem preencher esta missão deve de portar-se sisudo, de caráter firme e independente, tratando verdade e subtraindo-se a impostura e mentira” (Souza, 1843, p. 2).

Pautado nesta premissa, ele estabeleceu como ponto de partida de suas orientações “odiar a imoralidade, atacando e desaprovando tudo o que for injusto e prejudicial ao próximo; defendendo a Religião” (Souza, 1843, p. 1). Munido de uma forte concepção releiosa, o letrado expressava que o viajante deveria proteger os mais frágeis, os grupos vulneráveis. Para isso, deveria “revestir-se de caridade e filantropia, pois que a soberba é o inimigo mais temível que pode acompanhar ao viajante” (Souza, 1843, p. 1).

Mas afinal, quais eram esses grupos que Muniz de Souza defendia? Quem era alvo de sua atenção? Ao longo do opúsculo encontramos referências a diferentes categorias de sujeitos, entre os quais os velhos, jovens, crianças, viúvas, órfãos, infelizes, ornatos, e “o povo trabalhador, principalmente os agricultores; porque enquanto eles consomem sua existência no rigor da estação, praticando por caminhos pedregosos, nós andamos calçados e de gravata” (Souza, 1843, p. 9). De algum modo, a sociedade observada pelo autor denotava uma possível leitura de si, com a estima acerca de grupos sociais os quais ele havia convivido durante a infância e juventude. Além disso, recomendava para “ser compassivo com os animais domésticos, não dando-lhes pancadas, nem os fazer trabalhar serviços extraordinários” (Souza, 1843, p. 12).

Outros grupos que foram considerados como pontos de atenção para o viajante eram os povos originários e os negros escravizados:

 

Deve compadecer-se da mísera sorte dos Indígenas, animá-los e mimoseá-los despersuadindo-os das ideias que eles formam dos brancos, querendo dar cabo deles: considerá-los irmãos, pois que esta gente é destruída no seu próprio país!

Deve compadecer-se da escravidão, e suavizar, quando lhe for possível, a sorte dos míseros escravos.

Para com os estrangeiros deve exercer a lei da hospitalidade em toda a sua plenitude, para ter dirieto a outro lado (Souza, 1843, p. 9).

 

Um aspecto relevante no argumento de Antônio Muniz de Souza é que os povos originários e os negros escravizados aparecem no mesmo contexto dos estrangeiros. De algum modo, o autor enxergava a exclusão desses grupos na sociedade brasileira oitocentista, os quais eram tidos como “os outros” em seu próprio país, pessoas que compartilhavam da mesma mísera sorte. Por isso, os três estavam a mercê de socorros dos viajantes: os indígenas por meio de uma conversão, os negros por meio da compaixão e os estrangeiros com a hospitalidade.

Aparentemente, as prerrogativas defendidas pelo autor sinalizavam para um espectro amplo e plural no qual o viajante deveria dirigir a sua atenção, contemplando diferentes segmentos excluídos da sociedade imperial. Contudo, dentro dessa coletivamente alguns setores encontravam-se à margem, em decorrência das possíveis ameaças à estabilidade: “se algum indivíduo o atentar imprudentemente, deve considerá-lo bêbado ou louco: fuja dele, que de semelhante gente não se tira partido” (Souza, 1843, p. 11). Imbuído do intuito de afastar-se de querelas e transtornos, o viajante deveria evitar o contato com bêbados e “loucos”. Também ele apresentou ressalvas a amizades com hipócritas, que nestes casos, o viajante poderia “afastar-se de semelhante amizade sem ser afetado da enfermidade eu tal indivíduo encobria a brilhante plumagem da virtude” (Souza, 1843, p. 13).

A prerrogativa central das viagens consistia em contribuir para o engrandecimento do país. Para isso:

 

Deve em benefício da humanidade o viajante sempre promover coisas grandes, que lhe possam destruir em parte os males que nos acompanham e nunca queira o viajante sacrificar a menor vantagem nacional a sua; mas se vir que sacrificando a sua (por maior que seja) pode aproveitar a nação, não hesite um só momento que não o faça, porque grande coisa é promover benefícios a sua pátria, porque estes são duradores (Souza, 1843, p. 12).

 

As viagens eram pensadas como um projeto de construção de uma nação. Uma nação uníssona, que era conhecida por dentro e por seus próprios homens de letras. O país soberano deveria identificar as suas fontes de riquezas e instruir a população a sacrificar os benefícios particulares em prol do bem comum, da pátria. Esse projeto de nação encontra-se ancorado na busca pela construção de um futuro mais próspero, que superasse o estado de desgraça e miséria. Para isso, ele defendia o fortalecimento das práticas científicas e combate às superstições, bem como, a salvaguarda da natureza nacional:

 

Deve o viajante, quando vir um enfermo ao desamparo (sem um legítimo professor) não o desamparar, desvinado-o da peste dos curandeiros, tome conta dele, conservando-o em dieta, e repouso, não lhe aplique medicina desconhecida, só lhe aplicará alguma paliativa, aquela que não lhe fazendo bem, não lhe faça mal ou não o mate. Enquanto a paga será aquela que o viajante talvez ainda receba, quando lhe fizerem o mesmo.

Deve o viajante quando vir preconceitos contra a posteridade (bem como a destruição dos matos, e outros maus costumes, que vão se arraigando) sentir como mal próprio, e presente; porque os procuradores dos vindouros são os homens virtuosos (Souza, 1843, p. 19).

 

Antônio Muniz de Souza tecia uma leitura de si e a projetava na formação de novos viajantes, percebendo-se como um “procurador dos vindouros”. Um homem que atuava no presente, buscando garantir a existência e o êxito da nação no futuro. Essa construção de si arraigada na prática era devedora de uma forte conotação de continuidade. O indivíduo, em si, não passava de um elemento que tinha como premissa garantir a permanência da humanidade. O indíviduo era alvo do sacrifício em defesa do coletivo. Assim como ao presente cabia edificar um mundo melhor a ser delegado ao futuro.

É importante considerar alguns aspectos defendidos por Muniz de Souza no tocante à questão ambiental, com a recomendação para que se evitasse o desmatamento ou com o plantio de “milhões de plantas por todos os lugares por onde andar; estas se reproduzem de gerações em gerações a benefício público, e só terá fim com a consumação dos séculos” (Souza, 1843, p. 21). O futuro da nação perpassava pela preservação das matas.

Todavia, em quais aspectos esse projeto de nação tecido por Antônio Muniz de Souza coadunava com a política imperial? Ao longo de sua trajetória, o autor muito reclamou da ausência de atenção do poder público no tocante às suas descobertas, bem como a inexistência de reconhecimento por meio de atribuição de títulos nobiliárquicos e comendas. Pouco antes de publicar o livro, ele fez uma solicitação ao parlamento nacional:

É lido aprovado o seguinte parecer: a comissão de minas e bosques para poder interpor o seu parecer sobre o requerimento de Antônio Muniz de Souza, no qual pede o privilégio para explorar as minas desconhecidas da comarca de Porto Seguro, há mister de prévias informações que estas sejam exigidas da repartição competente.

Paço da câmara, 4 de agosto de 1841

M. F. Ribeiro de Andrade. B. Quaresma Torreão. J. C. de Brito (Sessão [...], 1841, p. 536).

 

Essa solicitação não desqualifica as premissas defendidas pelo letrado, nem evidenciam possíveis contradições. Ele não questionou a exploração das fontes de riquezas da nação, apenas criticou a forma pela qual essas riquezas permaneciam desconhecidas pelos brasileiros e acabavam sendo explorados quase que exclusivamente por estrangeiros. Desse modo, os seus escritos retomavam com as demandas que foram apresentadas pelo autor desde o descerrar da primeira década após a independência, quando anunciava as suas descobertas e demandava por reconhecimento:

 

Antônio Muniz de Souza, depois de haver a 8 anos transitado e examinado os Sertões da Província de Pernambuco, os da Bahia até a capital deste Império, em os quais se compreendem os ricos e fertilíssimos Países situados às margens do Jequitinhonha e Paraíba: nesta digreção (em que emprega três anos) observou com o maior cuidado os diversos terrenos, e as inumeráveis preciosidades nelles contidas, traçando ao mesmo paço uma descrição Estatística de todos os sítios, lugares e Aldeias, a fim de mostrar os costumes de seus habitantes, e o atraso em que ainda se acha a sua nascente indústria, anelando sempre ser em alguma coisa útil ao seu Paíz empreendeu nesta Capital uma viagem com o fito de observar as vantagens da Agricultura dos recôncavos da Corte para com elas estimular a imitação às demais Províncias [...]. Nesta mesma ocasião tratou de examinar as diversas plantas, e as suas virtudes, confrontando-as com as que em outras Províncias apresentam propriedades análogas e ainda não tivesse por principal fim procurar produtos minerais desconhecidos por acharem-se já explorados os recôncavos desta Província, por sábios naturalistas Nacionais e Estrangeiros, todavia o Distriito de Macacu [...], fez ali no dia 23 de outubro de 1828, um pequeno exame   que, ainda feito sem método pela falta de instrumentos próprios, foi contudo bastante para extrair à mostra, que com outros produtos ofereceu ao Museu Nacional e Imperial (Souza, 1829, p. 3).

 

Antônio Muniz de Souza, ao longo de toda a primeira metade do século XIX, manteve-se como um defensor da prerrogativa de descobridor das riquezas nacionais. Os seus escritos em jornais, assim como o envio de materiais para instituições científicas como a Faculdade de Medicina, Sociedade de Medicina, Jardim Botânico (Souza, 1843, p. 40) e o Museu Nacional do Rio de Janeiro sinalizam para um esforço pessoal em construir uma imagem de si como naturalista e conhecedor da natureza brasileira. Além disso, ele também informava que “entre muitas Nações, onde existem em seus Museus ricos produtos por mim colhidos, bem como nos do Brasil, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Portugal, Alemanha, assim como tenho coadjuavado a Medicina” (Souza, 1843, p. 28-29). Em decorrência da ausência de retorno, fosse ele financeiro ou simbólico, o viajante brasileiro passava a apresentar uma postura cética em relação ao governo imperial e ao poder no geral. Em “Máximas e pensamentos”, ele reafirmou o posicionamento crítico atinente ao Estado Imperial:

 

Quando o viajante vir os estadistas da sua pátria tratar com indiferença os produtos naturais do seu país apreciando só o açúcar no açucareiro, o café na xícara, o tabaco na ciaxa, o algodão na volta dos estrangeiros, não se importando com o desenvolvimento de todos estes produtos, únicos bens que possuímos para o nosso comércio; compadeça-se da miséria nacional! (Souza, 1843, p. 27).

 

Muniz de Souza em diferentes momentos de sua trajetória revelou a sua insatisfação com o silencio da monarquia no tocante aos seus feitos. Em certa medida, a miséria nacional era devedora da ineficácia dos governantes. Para um homem que buscava mostrar-se como afeito à justiça, esse menosprezo imperial se tornou um grande incômodo. Nas palavras do autor, os poderosos do império desconheciam as riquezas nacionais, apenas consumindo-as nos luxuosos salões da corte. Por outro lado, ele se autoproclamava herói da pátria:

 

Não digais isso, meu amigo, que em homem algum houvesse patriotismo demais, e esses mesmos grandes heróis que a história os aponta, apenas fizeram os seus deveres; e vós dizendo isso faltais a verdade.

Enquanto para mim a única coisa que me falta é ver a pátria feliz.

Quando (nos dias das festividades do Monarca) os partidistas perguntarem por achincalhar ao viajante “então que condecoração obteve do governo?” Reponde, não preciso de condecoração do governo; se ele condecora o homem por feitos heroicos, logo que eu os fizer estes estão condecorados por sua natureza, não admitem segunda condecoração: é certo que, seu eu pudesse tinha-me condecorado no dia da festividade do meu Monarca, fazendo uma ação de merecimento. Enquanto para mim as condecorações do Governo são ilusões; porque se vejo poucos homens, que julgo meus superiores por sabedoria e virtudes condecorados pelo governo, outros muitos também vejo muito inferiores condecorados (Souza, 1843, p. 28).

 

As palavras do autor elucidam um desconforto diante dos caminhos trilhados pelo poder público imperial, marcado pelas condecorações que atendiam às demandas políticas e pouco enfatizavam os feitos de homens de ciência, principalmente, quando estes eram oriundos de grupos excluídos. Ele buscava remediar os males da nação e apontava a falta de vontade dos políticos em fazer o mesmo. Por tal motivo, ele alegava seguir o rifão: “mais faz quem quer e não pode, do que o que pode e não quer” (Souza, 1843, p. 32). Com isso, ele defendia que “o verdadeiro patriota só sente os males de sua pátria, não está pronto a qualquer chamado sedutor, ou contrário aos interesses da nação” (Souza, 1843, p. 39). Como ente coletivo, a pátria deveria aplainar os anseios individuais.

 

4 Considerações finais

Antônio Muniz de Souza foi um homem de letras, oriundo do antigo norte brasileiro, negro, com parca formação escolar e que ao longo da primeira metade do século XIX realizou inúmeras viagens pelo interior do Brasil, o que levou a “tornar esses lugares por onde andei nas minhas viagens, para mostrar os seus habitantes, as preciosas riquezas de seus bosques” (Souza, 1843, p. 54). Ao escrever sobre os direcionamentos do homem viajante, ele revelou as condições de miséria e desgraça que encobriam o país, em duas perspectivas: de um lado, pelos antagonismos espaciais que crivavam as oportunidades da população. Por outro, a incapacidade do poder imperial em zelar pelos heróis nacionais que se sacrificavam em defesa das riquezas do Brasil.

No quarto decênio da centúria oitocentista, já com 58 anos, ele demonstrava a exaustão de suas empreitadas, reduzindo as viagens, solicitando a autorização para explorar minas e, inclusive, tecendo a estabilidade familiar: como ele bem enfatizou: “cessei de continuar na carreira das minhas viagens, já fatigado pelo peso da avançada idade, que me convida ao reposuo e por me deixar prender pela mão da minha cara Consorte D. Maria Firmina de Abreu Rangel, com quem me desposei em 28 de fevereiro de 1840” (Souza, 1843, p. 56). Ao que tudo indica, o matrimonio tardiu foi resultante de um sacrifício pessoal em prol de permanecer realizando as suas incursões pelo interior do país.

Os escritos biográficos e autobiográficos oriundos da pena de autores oitocentistas elucidam um esforço em construir um herói abnegado, patriótico, católico e defensor das liberdades: da pátria, das mulheres, dos negros que se encontravam sob o jugo do cativeiro e até dos animais que eram castigados no trabalho. Esse esforço também sinaliza para o cumprimento de um anseio de ser reconhecido no campo dos fazeres científicos ou pelo governo imperial, por meio da doação de acervos e entrega das descobertas. Neste quesito, pouco retorno obteve. De algum modo, por um longo período o seu nome ficou encoberto pela névoa do esquecimento, envolto no estado de desgraça do país ao qual havia dedicado grande parte de sua vida.

Contudo, em “Máximas e pensamentos” é possível descortinar um sujeito complexo, que vai muito além das reclamações por ter sido ignorado pelo Estado imperial brasileiro. O livro é revelador de como um letrado negro proveniente da província de Sergipe teceu um projeto de nação, articulou catolicismo e patriotismo no fomento à formação das novas gerações de homens que se debruçassem sobre a natureza. Revela um homem que apregoava o bem, que cultuasse os heróis da pátria e os mortos. Como ele afirmou, “o viajante deve visitar o túmulo dos seus amigos (e se possível de todos os homens) tributando-lhes o que a Religião nos cedeu e neste precioso exercício deve considerar que já podia estar encerrado naquele lugar” (Souza, 1843, p. 22). Pouco mais de uma década depois, ele seria sepultado em um pequeno cemitério de Niterói, em silêncio, desprovido de insígnias imperiais e de qualquer reconhecimento. O século da opulência e dos monumentos de heróis nos salões das academias continuava a encobrir a miséria de homens que haviam corroborado na feitura da nação.

 

Referências

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THOMPSON, Edward. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Trad. Antônio Luigi Negro; Sérgio Silva. Campinas: Unicamp, 2007.



[i] Artigo recebido em 08/04/2024

 Artigo aprovado em 05/12/2024

 

Fonte de fomento: este artigo apresenta os resultados parciais do projeto sobre os limites no Brasil, fomentado com Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq – PQ 2.