e-ISSN 1984-7246
As intelectualidades negras
na compreensão do Brasil
Organizadores
do Dossiê
Fernanda
Oliveira
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS)
lattes.cnpq.br/2707940149001288
Marília
Passos Apoliano Gomes
Universidade Federal do
Piauí (UFPI)
lattes.cnpq.br/9090578300570173
Bruno
Ferreira Freire Andrade Lira
Universidade de
Pernambuco (UPE)
lattes.cnpq.br/6001672724993794
Em 2023 a Lei 10639/2003 completou 20 anos, trazendo consigo a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na
educação básica. Esta norma deu início a um considerável incremento de
políticas públicas antirracistas no Brasil, quais sejam: as diretrizes
curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais (2004)[1];
o Estatuto da Igualdade Racial (2010)[2]; a
política de cotas étnico-raciais (2012)[3]; e,
recentemente, um pacote de políticas nacionais para a promoção da igualdade
racial (2023)[4].
Este conjunto de ações, desde então, tem contribuído pedagogicamente para uma
transformação no cerne da sociedade brasileira ao incentivar e realizar
processos de letramento racial. Isso fica evidente com dados do Censo 2022, em
que pela primeira vez o Brasil se reconhece e se declara enquanto um país de
maioria parda, equivalente a 45,3% da população.
Todavia, apesar do reconhecimento desses significativos avanços, é
importante destacar que a implementação destas políticas de igualdade racial
ainda encontra dificuldades. Isso decorre da permanência de um pacto de branquitude,
apontado por Cida Bento (2022), que desde o período de colonização promove,
reproduz e legitima as hierarquias e classificações sociais na estrutura social
brasileira, produzindo um acordo tácito de manutenção de privilégios a certos
grupos, nesse caso sobretudo homens, brancos, cisheterossexuais e cristãos. As
diferenças, aqui, são transformadas em desigualdades que geram marcadores
sociais - a raça, a etnia, o gênero, a sexualidade, a religião - que determinam
hierarquias de suposta superioridade e inferioridade. A partir disso se
institucionalizam na sociedade matrizes de opressão como o racismo e o
cisheteropatriarcado que legitimam a misoginia, a transhomofobia e processos de
genocídio (Nascimento, 2021).
Não somente isso, é de se destacar também a visibilização de uma
interseccionalidade, ou seja, a compreensão de que a questão racial se encontra
interseccionada às desigualdades sexuais e de gênero, assim como às
desigualdades de classe, produzindo uma tripla discriminação, em especial, à mulher
negra de classe baixa (Gonzalez, 2020).
Diante desse contexto, é fundamental que no processo de ações
antirracistas ocorra também o reconhecimento e a valorização da
representatividade afrodiaspórica. A retomada de uma ancestralidade e de uma
memória negra é fundamental para empoderar a luta antirracista, contribuindo
para a visibilização de uma sociedade brasileira plural e diversa, em especial
aquilo que Lélia Gonzalez (2020) chama de Améfrica
Ladina.
Nesse sentido, o objetivo do Dossiê é valorizar as intelectualidades
negras brasileiras, em especial nas ciências humanas e sociais, enquanto
sujeitos/as produtores/as de conhecimento e de interpretações sobre os nossos
vários Brasis. Partindo da pluriversalidade e do reconhecimento de que a
realidade social é complexa, buscamos construir um espaço de compartilhamento
de saberes oriundos de lutas sociais e de (r)existências desde intelectuais a
movimentos e coletivos negros colocados, muitas vezes, em condição de
subalternidade. Por isto propomos este local de compreensão sobre o Brasil a
partir das intelectualidades negras. Isso é simbolizado no autorretrato de
Arthur Timótheo da Costa (1882-1922), um de tantos artistas negros
invisibilizados na história, que em sua escrevivência se retratou enquanto sujeito
cognoscente, intelectual e artista. O tema, em questão, encontra sua
pertinência no significativo aumento do reconhecimento e valorização de uma
produção negra enquanto intérpretes da realidade brasileira, seja pela
ampliação na circulação desse conhecimento gerado como pelo fortalecimento
constante de um movimento de enfrentamento do racismo institucional e
estrutural que perpassa nossa sociedade. Assim, um dossiê para visibilizar
pesquisas com referências e produções das intelectualidades negras na compreensão
do Brasil é uma ótima oportunidade para contribuir no crescimento de espaços
plurais e antirracistas, sobretudo quando tais discussões têm alcançado maior
repercussão nacional e internacional, como sempre deveria ter sido.
Recebemos uma considerável quantidade de trabalhos acadêmicos, cuja
escolha se pautou na máxima diversidade regional, de gênero, racial e
acadêmica, sendo consonante a perspectiva plural ensejada. O dossiê, portanto,
consegue compartilhar uma variedade de temáticas que se propõe a compreender o
Brasil sob o olhar de intelectualidades negras, que vão refletir a partir de
diferentes áreas e matrizes teóricas como a interseccionalidade, os feminismos
negros estadunidense e brasileiro, o pensamento afrodiaspórico e os/as mais
diversos/as intelectuais negras/os.
Destacamos que os primeiros quatro artigos trazem investigações sobre
a vida e trajetória de importantes intelectuais negros da primeira metade do
século XX no Brasil. Estas pessoas invisibilizadas na história hegemônica
emergem a partir das suas lutas sociais, de existência e resistência, que
possibilitaram produzir conhecimentos.
O primeiro texto é a “A invenção do Brasil negro: intelectuais negros
e sua produção cultural no pós-abolição” de autoria de Jonatas Ribeiro e Wellington
Gonçalves. Neste artigo, visibiliza-se a produção do maestro Duque Bicalho e do
jornalista José Eutrópio enquanto agentes promotores de uma cultura negra, na
primeira metade do século XX no Brasil.
O segundo trabalho, escrito por Silvana Mendes Schuindt e Adriana Vaz,
é “Maria Nicolas (1906-1938): mulher negra, uma ‘forasteira de dentro’ no
ensino público primário do Paraná”. Aqui é destacada a trajetória da normalista
Maria Nicola no Paraná, também na primeira metade do século XX, e como a
interseccionalidade marcou a sua vivência em uma sociedade marcadamente
racista.
O terceiro artigo, intitulado “‘Vocês vão me escutar, vão me
entender’: o itinerário intelectual e político de Diva Moreira”, de autoria de
Arlene Martinez Ricoldi e Isabela Pereira de Sena, aborda o itinerário da
socióloga e ativista Diva Moreira e sua importância para o Movimento Negro
brasileiro.
O quarto texto é da autora Lívia Maria Tiéde que nos apresenta em
“From Brazil to The Planet: politics of race in the american black press” a
trajetória do intelectual afro-americano J.S. Moore, que viveu na Bahia e,
durante os anos de 1917 a 1930, dirigiu diversos escritos críticos a diferentes
jornais nos E.U.A, tratando sobre as questões raciais no Brasil. O texto
apresenta uma perspectiva da luta global sobre o racismo e analisa como se
construíram distintas formas de resistência em sociedades marcadas pelo
colonialismo e pela diáspora forçada.
Na sequência, apresentamos um conjunto de produções que vão
compartilhar memórias e realizações de intelectuais negros da segunda metade do
século XX até os dias atuais.
Em “Escrevivência: sentidos na obra evaristiana e modos de viver a
pesquisa em educação”, as autoras Dandara Rodrigues Dorneles, Carla Beatriz
Meinerz e Russel Teresinha Dutra da Rosa, trazem a partir de Conceição Evaristo
como o conceito de Escrevivência pode ser incorporado à pesquisa em Educação,
possibilitando uma metodologia viva que germina práticas de investigação que
viabiliza o protagonismo ao conhecimento produzido a partir da experiência
negra.
No artigo “Para além do invisível de fora: narrativas do avesso”,
Jéssica França de Oliveira reflete, à luz da obra “O avesso da pele” de
Jeferson Tenório, como este intelectual trata de ler a sociedade e os corpos
negros, sejam em suas invisibilidades, resistências e avessos.
Em “Pensamento social brasileiro e (trans) feminismos negros:
contribuições de intelectuais travestis e mulheres negras na interpretação do
Brasil” de Victor Reis, verifica-se o reconhecimento e a valorização do protagonismo
das feminilidades negras na construção de um pensamento social brasileiro.
Atravessado pelas temáticas da interseccionalidade, o diálogo com outras
intelectualidades negras e suas resistências assim como suas práticas sociais
identifica três gerações de intérpretes do Brasil: a 1ª, com referência em
Lélia Gonzalez; a 2ª, com destaque para Cida Bento e Sueli Carneiro; e a 3ª
representada por Megg Rayara de Oliveira, reconhecendo a força de um pensamento
transfeminista negro.
Roselaine Dias da Silva nos traz “A intelectualidade entre o terreiro
e a academia no século XXI: a contribuição da Iyalorixá Dalzira Maria Aparecida
Iyaguña no Sul do Brasil”. Aqui conhecemos a intelectual e Iyalorixá que
defendeu sua tese de doutorado com 80 anos de idade, ao que a autora
problematiza a (não) relação entre o conhecimento institucionalizado acadêmico
e o saber oral ancestral de religiões de Matriz Africana. A análise tem por
base o terreiro enquanto espaço de existência e resistência assim como local de
narrativas e memórias que vão produzindo saberes e ancestralidade.
Em “A estratégia narrativa em Insubmissas lágrimas de mulheres: uma
leitura interseccional” de Albânia Celi Morais de Brito Lira é retomada a
Escrevivência de Conceição Evaristo enquanto estratégia narrativa que se propõe
a possibilitar o protagonismo à voz da mulher negra, em especial seu relatos de
violência assim como experiências de lutas e práticas sociais para existir.
Fernanda Barros dos Santos em “A intelectualidade negra brasileira e
os espaços decisórios: uma análise quanto à representatividade por raça/cor e
gênero na Universidade Federal do Rio de Janeiro” é responsável por realizar
uma importante pesquisa sobre a representação de pessoas negras em espaços
institucionais. Através de uma metodologia quantitativa, analisou-se um estudo
de caso na Universidade Federal do Rio de Janeiro, observando o peso que a
questão racial ainda incide sobre eleições para locais de tomadas de decisão.
Em “Escrevivência, lugar de fala e autoetnografia: a importância das
pesquisas antirracistas”, Flávio Fortunato Cardoso e Lilian Blanck de Oliveira
põem em evidência as construções epistemológicas, políticas e literárias de
Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro e Bárbara Carine. Aqui, o/a autor/a
levantam importantes reflexões sobre a potência da proposta da “escrevivência”
em Evaristo, que não diz respeito a todas as experiências, e do conceito de
“lugar de fala” a partir de Ribeiro e Carine, problematizando possíveis
equívocos de entendimento e utilização de ambos. Por fim, na tessitura
analítica, os autores apresentam a proposta da autoetnografia como
possibilidade metodológica intercultural e crítica na construção de pesquisas
antirracistas.
No artigo “Empretecendo os caminhos: o Coletivo Mapinduzi e a promoção
de intelectualidades negras”, Juliana Silva Santana, Mar Silva, Davison da
Silva Souza e Gabriele da Silva Antunes analisam sua própria experiência de
aquilombamento discente, através de um grupo de leitura de intelectuais negras
que se tornou um lugar de afetos, diálogos e resistência, em uma universidade
cearense, no Nordeste brasileiro. O/as autor/as apresentam suas vivências no
curso de Pedagogia e a ausência de referências negras ao longo da formação, ao
que se uniram no coletivo para promoção de letramento racial, Escrevivências e
pedagogias engajadas, tendo por referência várias intelectuais negras e a
perspectiva de movimento negro educador, como Conceição Evaristo, Beatriz
Nascimento, Patrícia Hill Collins, Cida Bento, bell hooks, Lélia Gonzalez e
Nilma Lino Gomes.
Azânia Mahin Romão Nogueira, no artigo “Vou aprender a ler pra ensinar
meus camaradas: a formação afro-popular e a construção de políticas públicas na
práxis da professora Jeruse Romão”, apresenta a trajetória da educadora
catarinense Jeruse Romão desde os anos 1980 enquanto importante referência na
luta pela educação pública, de qualidade e na construção de marcos educacionais
antirracistas em Santa Catarina, em que legislações municipais incluíram a
história e a cultura africana e afro-brasileira desde 1993, 10 anos antes da
Lei 10.639. A autora analisa a organização e a articulação do movimento negro
em Santa Catarina e o protagonismo de Jeruse Romão na luta pela educação
brasileira e antirracista.
No artigo “Guardador de Lembranças: aspectos da memória negra na obra
de Oswaldo de Camargo”, Ricardo Silva Ramos de Souza apresenta a obra de
Oswaldo de Camargo, poeta, ensaísta e crítico literário paulista que teve
intensa participação na Associação Cultural do Negro (ACN - 1954 e 1976). O autor
traz uma discussão sobre memória, lembrança e esquecimento a partir da obra de
Camargo, compreendendo o intelectual como um “guardador de lembranças”, ao
traçar o “Pequeno mapa da poesia negra” e ‘A Razão da Chama: antologia de
poetas negros brasileiros. Ramos
discorre ainda sobre a organização dos eventos culturais do “Ano 70 da
abolição” pela ACN e problematiza o encobrimento das contribuições de negras e
negros para o desenvolvimento da capital paulista, através do contraste
consciência e memória por Lélia Gonzalez.
Arilson dos Santos Gomes, em “As relações raciais no Ceará e o raid
dos jangadeiros negros em época de Lei Afonso Arinos (1951-1958)”, analisou
como os impressos da década de 1950 em Fortaleza tratavam a identidade racial
dos jangadeiros que se lançaram ao mar em luta por direitos trabalhistas,
quando da primeira lei que tratou como contravenção penal a discriminação
racial no Brasil. No artigo, o autor problematiza a ideia de “caboclo
cearense”, a partir de reflexões sobre as misturas raciais regionais e da
“fábula da raça”, identificando a mobilização dessa categoria em romances e nos
periódicos analisados. Dialogando com Abdias do Nascimento, Gilberto Freyre,
Lélia Gonzalez e Roberto DaMatta, discute sobre o “racismo à cearense”, nas suas
especificidades em relação ao “racismo à brasileira”.
No artigo “Problematizando ‘o perigo de uma história única’ na
formação universitária: contribuições das intelectualidades negras”, Ivone
Maria Mendes Silva analisa experiências que os sujeitos pertencentes
principalmente a minorias étnico-raciais têm tido e construído no/a partir do
contexto universitário e o quadro político e sócio-histórico em que vivem.
Destaca-se que a autora tem como base de suas reflexões autores como Sueli
Carneiro, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e bell hooks. Em contraponto ao
maior acesso de discentes negres e indígenas nas Universidades, fruto de
mobilização política e de avanços legislativos como a Lei 10.639, a autora
apresenta a problemática dos currículos que ainda apresentam história única,
nas Licenciaturas em Pedagogia.
Os autores José Moacir de Sousa Vieira, Rodolfo Moreda Mendes e Mário
Valério Filho nos trazem o trabalho “Perspectivas de Lélia Gonzalez e Milton
Santos em relação ao racismo e ao preconceito de classe: o caso do Jardim Nova
Esperança em São José dos Campos-SP”. Aqui trata-se de analisar a relação da
infraestrutura precária com a desigualdade de raça e classe a partir do estudo
de caso do Jardim Nova Esperança, no município de São José dos Campos, SP.
Centrado nesta realidade, os autores movimentam o diálogo entre Lélia Gonzalez
e Milton Santos para refletir sobre território, saneamento e manutenção de
formas de racismo dentro de uma condição de classe vulnerabilizada.
O Dossiê conta ainda com a resenha da obra de Muniz Sodré “O Fascismo
da cor: uma radiografia do racismo nacional", por Guilherme Pedroso, e
duas importantes entrevistas, quais sejam: 1) "A intelectualidade potente
das pessoas negras: trajetória da Professora Dra. Maria Zelma de Araújo Madeira
– uma inspiração”, realizada por Adriana de Oliveira Alcântara e Áurea
Eleotério Soares Barroso, e 2) “ConVersons: papo afroliterário com Lia Vieira,
a teia de afetos e a escrita que nos une", concedida a Feibriss Ametista
Henrique Meneghelli Cassilhas, Jacqueline Augusta Leite de Lima, Jeff Jeffa
Moreira Santana e Silvana Martins dos Santos (Nana Martins).
Por fim, e não menos importante, queremos agradecer aos/às diferentes
pareceristas que contribuíram com suas avaliações para a produção deste dossiê
de extremo fôlego.
Fernanda
Oliveira
Departamento de História e
Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Marília
Passos Apoliano Gomes
Departamento de Ciências Sociais e
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal do Piauí (UFPI)
Bruno
Ferreira Freire Andrade Lira
Colegiado da Licenciatura em Ciências
Sociais (UPE)
Programa de Pós-Graduação em Saúde
Pública do Instituto Aggeu Magalhães/FIOCRUZ (PPgSP/IAM/FIOCRUZ)
Organizador/as
Referências
BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das letras, 2022.
GONZALEZ, Lélia A. Por um
feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2020.
NASCIMENTO, Letícia. Transfeminismo. São Paulo: Editora Jandaíra, 2021.
[1] BRASIL
Ministério da Educação/SECAD. Diretrizes
curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o
ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília, DF: MEC,
2004.
[2] BRASIL.
Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Estatuto
da Igualdade Racial. Brasília,
DF: Presidência da República, 2010.
[3] BRASIL. Lei n.
12.711, de 29 de agosto de 2012. Diário
Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, 30 ago. 2012.
[4] BRASIL.
Decreto nº 11.656, de 23 de ago. 2023. Altera o Decreto nº 4.885, de 20 de novembro
de 2003, que dispõe sobre a composição, a estruturação, as competências e o
funcionamento do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Brasília,
DF: Editor, 2023.