A intelectualidade
potente das pessoas negras: trajetória da Professora Dra. Maria Zelma de Araújo
Madeira – uma inspiração
Entrevista com:
Maria Zelma de Araújo Madeira
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
Fortaleza – CE, Brasil
lattes.cnpq.br/1832498331579131
Entrevista concedida à:
Adriana de Oliveira Alcântara
Universidade Federal do Ceará (MAPP/UFC)
Fortaleza – CE, Brasil
lattes.cnpq.br/7900026385283869
Áurea Eleotério Soares Barroso
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP)
São Paulo – SP, Brasil
lattes.cnpq.br/9154740335244535
A entrevista mostra a trajetória vitoriosa de Maria Zelma de Araújo Madeira, mulher negra, nascida em uma família com poucos recursos econômicos, no interior do estado do Piauí. Racismo e sexismo, expressões tão naturalizadas, mas que devem ser cotidianamente enfrentadas, atravessaram a sua história, como também se tornaram objetos centrais de contestação na sua experiência pela defesa dos direitos humanos no estado do Ceará, onde reside e atua, hoje, como Secretária Estadual de Igualdade Racial. Também vale destacar que é se graduou em Serviço Social e possui doutorado em Sociologia. É professora do Curso de Serviço Social e do Mestrado Acadêmico em Serviço Social, Trabalho e Questão Social (MASS), na Universidade Estadual do Ceará (UECE).
A partir de um trabalho propositivo e assertivo na gestão pública com fins à plena inclusão, a exemplo do combate ao racismo, foi agraciada com diversos prêmios. Passou a ocupar espaços de destaque, algo visto até nos dias atuais como inerente às pessoas brancas.
Por essa e outras histórias, a professora. Drª. Maria Zelma de Araújo segue inspirando gerações de negros e negras a buscarem melhores lugares de inserção social, de modo a enfatizar que nada é natural, mas construído. E se é construído, também pode ser desconstruído, reconstruído e reinventado porque o racismo é um preconceito aprendido e por isso pode ser desaprendido, o que faz lembrar uma das lições do mestre Paulo Freire de que o aprender nos é constitutivo e também interminável.
É no rumo dessa expectativa que convidamos à reflexão com a instigante conversa nas próximas páginas, a qual nos provoca para a urgência de levantar a bandeira contra a imoralidade do racismo por meio de um conhecimento que transforme esse estado de coisas, apesar das adversidades do nexo estrutural classe social-raça/etnia e relações sociais de sexo/gênero.
Entrevistadoras: Por favor, a fim de conhecermos mais Maria Zelma de Araújo Madeira, nos conte sobre a sua história a partir da infância, com foco na educação formal e não formal. Quais são as marcas inesquecíveis da sua vida escolar?
Maria Zelma: Nasci no dia 22 de dezembro de 1967, em Aroazes, um município de pequeno porte, do estado do Piauí, localizado na microrregião de Valença do Piauí, mesorregião do centro-norte piauiense. Antes que eu completasse quatro anos de idade, a minha família se mudou para Teresina, capital do estado em busca de melhores oportunidades de trabalho e de escolarização para os seus filhos. O meu pai trabalhava na construção civil e a minha mãe era costureira. ela sempre teve uma compreensão ampla da realidade – Fiz o ensino fundamental em escolas públicas e como tantas crianças negras, também sofri com o racismo, mas a minha mãe sempre atribuiu importância à escola e nunca me deixou desistir.
Concluí o ensino médio em uma instituição privada, graças a uma bolsa de estudo que a minha mãe havia conseguido através de articulações com pessoas da região. Ela não teve oportunidade de estudar muitos anos, é apenas alfabetizada, mas nos incentivou a cursar a graduação, pós-graduação.
Entrevistadoras: Em Racismo Estrutural, Silvio Almeida expõe a sua própria surpresa, mesmo como homem negro, de ser “despertado” para a realidade da desigualdade racial tardiamente. E, para você, como foi enfrentar essa pseudonormalização e conquistar um espaço no universo acadêmico naturalizado às pessoas brancas, isto é, de privilégio e destaque social?
Maria Zelma: É de suma importância problematizar a questão trazida por vocês e buscar estratégias eficazes para não perpetuarmos o racismo estrutural no Brasil. O racismo e o sexismo atravessaram a minha trajetória pessoal e profissional. Fiz graduação e pós-graduações (especialização, mestrado e doutorado) em universidades sólidas e públicas. Iniciei na docência acadêmica em 1997 no Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará. Consciente dessa problemática, criei junto com alunos bolsistas e pesquisadores o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) e o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Afro-Brasilidade, Gênero e Família (NUAFRO), com o objetivo de ampliar as possibilidades para a realização de estudos, pesquisas por estudantes em situação de vulnerabilidade pela pertença racial, na maioria negros/as e em situação de pobreza, no âmbito da graduação, de iniciação científica e do mestrado acadêmico em serviço social, trabalho e questão social (MASS) ao qual estou vinculada, desde 2012.
Entrevistadoras: A propósito, fale a respeito da sua atuação acadêmica. A sua produção intelectual perpassa questões como família, gênero, relações étnico-raciais, cultura e religiões de matriz africana, entre outros. Cite alguma produção sua.
Maria Zelma: Eu sou docente da Universidade Estadual do Ceará e oriento pesquisas de iniciação científica e Mestrado, a partir de duas linhas de investigação: raça/etnia, gênero, família e geração nas políticas públicas e relações étnico-raciais - cultura e sociedade. Entre as minhas produções, cito a pesquisa de doutoramento “A maternidade simbólica na religião afro-brasileira: aspectos socioculturais da mãe-de-santo na umbanda em Fortaleza-Ceará”, defendida no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, em 2009.
De modo sucinto, foi realizada uma investigação de cunho qualitativo, com uso do método da história oral e instrumentos de coleta de dados como entrevistas e observação participante. A seguir, alguns achados da pesquisa: no campo religioso, o feminino e a maternidade das sacerdotisas se desenvolvem a partir das referências simbólicas dos orixás e das entidades espirituais. Em particular na umbanda, as mães-de-santo são guardiãs de uma tradição e procuram manter vivas heranças culturais, contribuindo de algum modo para que a cultura e a religião ocupem espaços públicos e ganhem o reconhecimento da sociedade pelos seus saberes e suas práticas. E, por meio desse simbolismo, são construídos novos espaços de luta contra a opressão feminina, transgressão aos poderes e discursos oficiais que circunscrevem os domínios da mulher.
Entrevistadoras: Você recebeu uma série de títulos e prêmios, por favor, cite alguns.
Maria Zelma: Sim, atribuo importância a todos, porque significam reconhecimento, mas vou citar apenas alguns. Em 2020 recebi o título de Doutora honoris causa pela Universidade do Estadual do Rio Grande do Norte, que muito me honra. Fui agraciada com o título de Cidadã de Fortaleza pela Câmara municipal desta cidade. Em 2022 nasci no estado do Piauí e essa titulação me encheu de gratidão e alegria. Recebi também a menção honrosa do Conselho Regional de Serviço Social (CRESS - 3ª. Região), em 2014, pelo desempenho do NUAFRO, um reconhecimento de meus pares que muito me honraram. A campanha Ceará sem racismo: respeite minha história, respeite minha diversidade foi premiada pelo Instituto Innovare em 2020. Portanto, recebi um reconhecimento devido à minha atuação como gestora pública na Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR). Enfim, recebi alguns prêmios e muitas homenagens, guardo tudo com muito afeto.
Entrevistadoras: Fale sobre seu cotidiano na Secretaria Estadual de Igualdade Racial do Ceará. Como lida com os desafios para a atuação na gestão pública?
Maria Zelma: Assumi a Secretaria de Igualdade Racial (SEIR) em 2023. No período de 2015-2020 respondi pela Coordenação Estadual de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial do Ceará (CEPPIR). Nessa oportunidade, estruturamos a Política de Igualdade Racial no Ceará, criamos o Conselho Estadual de Política de Igualdade Racial (COEPIR), criamos a campanha Ceará sem racismo, respeite minha história, respeite minha diversidade, quando fui agraciada com o prêmio Innovare 2020, na categoria Justiça e Cidadania. Também estive à frente da Assessoria Especial de Acolhimento aos Movimentos Sociais (ASEMOV), pasta responsável pela política de participação e controle social das políticas públicas, ligada a casa civil do governo do Estado do Ceará (2020-2022). Acredito que essas experiências na gestão pública levaram o governador do Estado do Ceará a me convidar para assumir essa pasta.
Na SEIR, dialogo de modo amplo e consistente em todo o território cearense, tendo como público direto os grupos étnico-raciais racializados de modo subalterno como população negra, povos e comunidades tradicionais como quilombolas, povos de terreiro e ciganos. Temos como missão promover a igualdade racial com reconhecimento étnico, justiça e desenvolvimento inclusivo para a população negra, quilombola, povos de terreiro e povos ciganos no Ceará. Nesse sentido, busco identificar parcerias que favoreçam a implementação de políticas efetivas e intersetoriais de combate ao racismo estrutural e a necessidade de enfrentar as desigualdades sociais e raciais. Sei que os desafios são enormes, mas o compromisso e a vontade de contribuir com um mundo mais justo e igualitário entre os grupos raciais alimentam a minha caminhada.
Entrevistadoras: Para finalizar, como você acha que o lugar que você nasceu contribuiu para o lugar que você ocupa hoje?
Maria Zelma: O lugar em que eu nasci contou de modo positivo, porque desde a infância fui encorajada a exercer minha liderança, fui elogiada por familiares e estimulada a buscar melhores lugares. Nesse espírito de luta, resistência e acreditando nos meus potenciais, observando conquistas alcançadas pela população negra no nosso país, enfim, a soma de fatores de ordem subjetiva e das condições objetivas contribuíram para que eu ocupasse espaços importantes na consolidação da democracia e para o desenvolvimento de um Brasil mais justo e igualitário. Não teremos democracia, desenvolvimento enquanto operar o racismo.
Entrevistadoras: Que livro indica para pensar o racismo?
Maria Zelma: O crime do Cais Valongo, de Eliana Alves Cruz. Um livro sobre a questão racial, racismo e resistência.